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conto crônica poema coelho de moraes 1 - Página de Ideias

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

1


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

Direitos <strong>de</strong> Cópia para<br />

Cecília Bacci & Guilherme Giordano<br />

ceciliabaccibscm@yahoo.com.br<br />

menuraiz@hotmail.com<br />

EDITORA ALTERNATIVAMENTE<br />

produtoresin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes@yahoo.com.br<br />

TIRAGEM 15000 POR E-MAIL<br />

DOWNLOAD EXCLUSIVO<br />

http://www.pagina<strong>de</strong>i<strong>de</strong>ias.com.br<br />

Coleção BROCHURA / PDF / ESPIRAL<br />

Capa<br />

COELHO DE MORAES<br />

<strong>coelho</strong><strong>de</strong><strong>moraes</strong>@terra.com.br<br />

2<br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mococa<br />

São Paulo<br />

julho<br />

2010


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

CONTO CRÔNICA POEMA<br />

Coelho De Moraes<br />

3


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

CÂNTICOS ESPIRITUAIS<br />

Não(!), não é uma idéia nova. Vejamos os Salmos. Reconhecidamente peças literárias que se<br />

po<strong>de</strong> acompanhar com saltério <strong>de</strong> plectro (sabe, aquele instrumento que se ven<strong>de</strong> nas praças:<br />

uma tabuinha com cordas tendo um papel com a música por baixo, sendo tocado com a pena<br />

<strong>de</strong> algum frango <strong>de</strong>savisado "?", pois é! é ele), címbalos (pequenos pratos), aulos (simples<br />

flautas, como as <strong>de</strong> bambu) e órgãos (que, possivelmente, eram tubos soprados por algum<br />

tipo <strong>de</strong> vento, fole armado com pesos <strong>de</strong> pedra ou água ou no braço <strong>de</strong> algum escravo). O<br />

fato é que já se cantava, se tocava e se bailava em música <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção. Davi que o diga.<br />

Exímio bailarino e sedutor. Urias que o diga.<br />

O texto que aqui vai é inspirado em DHARMENDRA, ou Ernani Fornari, que, por bem montou<br />

um livro com músicas para <strong>de</strong>voção, buscando facilitar sua execução <strong>de</strong> um lote <strong>de</strong>las, do<br />

Oriente ao Oci<strong>de</strong>nte. É muito satisfatório.<br />

Abro esta conversa falando sobre o Mantra (Man - pensar, meditar, <strong>de</strong>vanear, articular uma<br />

forma mental, e Tra - instrumento, objeto para emissão <strong>de</strong> som). O Mantra é a palavra, ou o<br />

texto sagrado retirado das escrituras védicas. E o que é o Veda? Pergunto e respondo: são<br />

antigos textos sagrados dos hindus. São Shruti, ou seja, texto da revelação divina, escritos em<br />

sânscrito, por volta <strong>de</strong> 1500 ou 2000 a.C., durante e após o período <strong>de</strong> invasão ariana à<br />

Índia: Yajurveda - ritos <strong>de</strong> sacrifício; Samaveda - melodias e cânticos para sacrifício;<br />

Atarvaveda - fórmulas e palavras mágicas; Rigveda - hinos <strong>de</strong> louvor a <strong>de</strong>uses da natureza,<br />

principalmente Agni (o do fogo).<br />

O idioma sânscrito, por causa da sua fonética, tem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar vibrações e favorecer<br />

a emanação <strong>de</strong> energia <strong>de</strong> suas fontes. Daí que cantar a<strong>de</strong>quadamente o seu mantra ou o<br />

Mahtma Mantra (o Gran<strong>de</strong> Mantra) conhecidíssimo como OM, o leitor estará energizando-se<br />

<strong>de</strong> maneira ímpar. Experimente. Por isso comprova-se como verda<strong>de</strong>iro o dito popular <strong>de</strong> que<br />

"Quem canta os seus males espanta", porém em parte, já que nos tratos da energia é sabido<br />

que energia não tem direção nem sofre a ação do maniqueísmo - energia Má ou Boa - energia<br />

é energia e só. O uso <strong>de</strong>la é que po<strong>de</strong> se alterar. De qualquer maneira, diz o autor, a<br />

entonação correta dos mantras nos coloca em sintonia com Deus.<br />

Há mantras curtos, longos, secretos, populares.<br />

Combina o mantra com três formas básicas: Bhajans - canções <strong>de</strong>vocionais normalmente<br />

lentas, <strong>de</strong> adoração acompanhada por harmônio, flauta, tampoura (um tipo <strong>de</strong> instrumento<br />

<strong>de</strong> corda); Kirtans - canto geralmente acompanhado <strong>de</strong> dança vindo com karatalas (pratinhos<br />

<strong>de</strong> mão) e mridangas (tumbadora com pele nas duas extremida<strong>de</strong>s). O participante baterá<br />

palmas e acompanhará o cantor; Japa - canto <strong>de</strong> repetição on<strong>de</strong> se repete o nome da<br />

divinda<strong>de</strong> ou um mantra completo.<br />

Importante em todas essas situações é que o aspecto <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção está sempre ligado ao fator<br />

alegria, na ato <strong>de</strong> dançar e movimentar o corpo e respirar e ser saudável.<br />

OM SARVE SHAM SWASTIR BHAVATU – leio:<br />

OM SARVE CHAM SUASTIR BHAVATU (h aspirado ou r carioca, as sílabas com o mesmo peso<br />

tônico).<br />

4


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

KETZACOATL<br />

Cresce sobre nossa terra a serpente / toda <strong>de</strong> ouro e sol<br />

E do chão se vai o pranto / a clamar por paz pra nossa gente<br />

Passa pelo céu como um corisco aveludado<br />

e rasgando vai a imensidão do azul<br />

É um anjo emplumado / serafim com tanta asa /<br />

Que escurece a nuvem da manhã<br />

Ele é nosso rei senhor / Ele é Ketzacoatl<br />

Preces cantam nosso povo / acredite a vida é duro fio<br />

E da mão se faz um tanto / a gritar por flor e um canto novo<br />

Passa pelo céu como um brilhante cravejado<br />

e rumando vai na direção do anil<br />

É o algoz dos enricados / um arcanjo disfarçado /<br />

Que incen<strong>de</strong>ia os mares / num brasil<br />

Ele é nosso rei senhor / Ele é Ketzacoatl<br />

Ouve / ouve a minha prece<br />

Canto bem alto / quero que o céu / olhe por mim<br />

Eu... / eu já não tenho <strong>de</strong> meu mais nada /<br />

Só minha sombra<br />

E talvez o chão pra percorrer<br />

Mas se eu encontrar / a tua sombra<br />

Tudo o que é que sonho a mim virá<br />

Ah! / Que ousadia / eu me intrometer<br />

A serpente emplumada há <strong>de</strong> me aten<strong>de</strong>r?<br />

Encherá <strong>de</strong> nenúfar e néctar o vaso /<br />

Esse meu corpo <strong>de</strong> barro sagrado /<br />

Cresce sobre nosso mundo a serpente / toda <strong>de</strong> ouro em pó<br />

Traz consigo a semente fecundada / germinada / viva<br />

Passa pelo céu como um corisco em flor carnado<br />

e rasgando vai a imensidão do azul<br />

Vem do mar oriental / rompendo o ar que nos envolve<br />

Com / a / sua branca luz solar<br />

Ele é nosso rei senhor / Ele é Ketzacoatl<br />

Preces cantam nossa gente, acredite a vida é duro fio<br />

E da mão se faz cinzel / a gritar por flor e um canto novo<br />

Passa pelo céu como um brilhante marejado<br />

e rumando vai na direção do anil<br />

É o algoz dos po<strong>de</strong>rosos / um arcanjo disfarçado /<br />

Que incen<strong>de</strong>ia o oceano / num brasil<br />

Ele é nosso rei senhor / Ele é Ketzacoatl<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

O PESO POLÍTICO DE UM FÁ MAIOR<br />

Não há a necessida<strong>de</strong> direta da consciência.<br />

Tudo po<strong>de</strong> - como acontece -, no cômodo repetir quotidiano. Da rotina que nos leva e traz<br />

para atos impensados, mas reais.<br />

Ora, direis, que política haverá por trás <strong>de</strong> um Fá Maior?<br />

Haverá a política das Igrejas e dos po<strong>de</strong>res medievais estabelecidos. E vejamos como.<br />

A voz humana tem limites. A voz humana canta. E canta <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> limites. Normalmente<br />

procura o limite que lhe é mais cômodo, para cantar sem gran<strong>de</strong>s esforços.<br />

Muita música é construída em função disso. Fica fácil para qualquer um cantar. A construção<br />

<strong>de</strong> um hino tem essa obrigação ou o hino ficaria ridículo - esganiçado ou gutural.<br />

Nos medievos, lá pelo século VIII ou IX, a Igreja Católica recebeu uma herança que foi a<br />

salmodia. E salmodia é cantar salmos ou recitá-los. E isso foi feito com o canto que chamamos<br />

Gregoriano ou cantochão. As vozes - masculinas em sua maior parte - em uníssono a entoar<br />

os salmos e as orações.<br />

A Igreja era dona <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r magnífico, costas largas, se dizendo representante <strong>de</strong> Deus, e<br />

todos sabemos o po<strong>de</strong>r - aí sim - que tem a música. Ela envolve e enfeitiça. Qualquer padre<br />

medieval podia ser acusado <strong>de</strong> bruxaria em função da música.<br />

O fato é que ao se cantar <strong>de</strong>ntro da tessitura cômoda do canto, <strong>de</strong>ntro das igrejas ou<br />

mosteiros, aquele volume sonoro se expandia e caía como um pesado fardo opressor sobre as<br />

pessoas, especialmente quando a fundamental <strong>de</strong> um modo (se é que po<strong>de</strong>mos ter essa<br />

liberda<strong>de</strong>) <strong>de</strong>sabava sobre as palavras mais terrenas como "pecado", "humanida<strong>de</strong>", "po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

Deus", enquanto as notas mais agudas e singelas ou sensíveis cabiam para as passagens on<strong>de</strong><br />

o texto dizia "céus", "excelso", "santificações".<br />

Quando aquele Fá Maior - ou Mi Maior ou Mi bemol Maior, tanto faz, pois o diapasão da<br />

época mudava <strong>de</strong> país para país sem, no entanto, fugir daquele "comodo cantabile" - quando<br />

ele passava a expressar sua pujança, ao fim do canto o confessionário era tomado a tapa pela<br />

platéia...ou fiéis.<br />

Era a Igreja passando a sua informação e <strong>de</strong>monstrando a sua condição <strong>de</strong> baluarte <strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong>s. A música logo <strong>de</strong> início sendo usada como dominadora <strong>de</strong> mentes e mentora.<br />

Eis o princípio gerador do que hoje dizemos ser música comercial e música artística.<br />

A primeira obe<strong>de</strong>ce a fórmulas - olhe o termo - consagradas (ligadas ao sagrado), que<br />

i<strong>de</strong>ntificam o ser com uma verda<strong>de</strong> qualquer que, comodamente, ele não quer negar, pois o<br />

faria pensar e - sabemos - pensar dói.<br />

A segunda, preocupada coma criação <strong>de</strong> novas linguagens e imagens, passa a ser tida como<br />

profana, <strong>de</strong> difícil compreensão e, portanto, <strong>de</strong>sagregadora, obrigando a um estudo e<br />

queimação <strong>de</strong> mufa constante. Cuidado com a música que você ouve. Po<strong>de</strong>rá estar<br />

equivocado e começar a fazer coisas que nunca faria antes, como rebolar sobre uma garrafa,<br />

saltitar como um boneco <strong>de</strong> cordas, cantar repentes <strong>de</strong> presidiário, oferecer o tchan e ainda<br />

<strong>de</strong>scobrir que está completamente inserido no contexto dos consumidores insanos.<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

LIBERDADE... AINDA QUE TARDE<br />

Chefes Reis e Governantes<br />

serão sempre tiranos<br />

Suas idéias <strong>de</strong> Bem e <strong>de</strong> Mal<br />

imposta sobre a multidão servil<br />

que se amotina e que se trai<br />

e, por se trair à servidão retorna<br />

Ao lutar se retrai esse povo / é mentira que é povo <strong>de</strong> paz /<br />

certamente é um povo covar<strong>de</strong><br />

Então retornam a servidão<br />

Da <strong>de</strong>sunião nasceu a traição<br />

Sem pensamento sem luta<br />

Sem voz ativa sem garra não teremos Pátria<br />

Cada um luta buscando iguais<br />

do lado que mais lhe convém lutar<br />

Há sofrimento e um preço<br />

Algo além <strong>de</strong>sejar: O sonho <strong>de</strong> ser livre<br />

Liberda<strong>de</strong> mesmo que tar<strong>de</strong> / Liberda<strong>de</strong> e Fraternida<strong>de</strong> /<br />

Igualda<strong>de</strong> mesmo que tar<strong>de</strong><br />

Por <strong>de</strong>sejar algo além / Inalcançável utopia /<br />

o sonho do crescimento / da busca infinda / eterna /<br />

a nos obrigar a lutar pela<br />

Liberda<strong>de</strong> / liberda<strong>de</strong><br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO?<br />

Eis aí uma ativida<strong>de</strong> arcaica, completamente perdida no tempo por variadas circunstâncias.<br />

Uma <strong>de</strong>las, e penso, a mais importante, é o fato <strong>de</strong> ser obrigatória.<br />

A pergunta que, imediatamente, me vem, é: Para quê?<br />

Fabricar soldados da reserva, potencialmente armados ou aptos a lidar com armas.<br />

Novamente: Para quê?<br />

A <strong>de</strong>sculpa é a possível invasão <strong>de</strong> algum povo bárbaro que, ensan<strong>de</strong>cido, tenta tomar nossas<br />

terras e violentar as mulheres ou alguns homens. Invadidos já estávamos, quando atrelamos<br />

nossa soberania ao Fundo Monetário Internacional - FMI - e, que eu me lembre, nunca<br />

pediram para que eu guerreasse contra os monetaristas.<br />

Só resta o fato <strong>de</strong> que essa obrigatorieda<strong>de</strong> está estribada em uma atitu<strong>de</strong> ditatorial,<br />

opressora, oportunista, inconseqüente e castradora.<br />

Parece que os que bolaram isso - todos os Bilacs parnasianos e ocos do mundo - quiseram<br />

fazer mães e filhos sofrerem a troco <strong>de</strong> nada. A troco da formação <strong>de</strong> buchas <strong>de</strong> canhão.<br />

Ora, se se é obrigado, aos <strong>de</strong>zoitos anos, sofrer o Serviço Militar - sim, pois isso é um quadro<br />

clínico - e Obrigatório, por que não fazermos o Serviço Teatral Obrigatório? Ou o Serviço<br />

Musical Obrigatório? Ou <strong>de</strong> Artes Plásticas, também obrigatório? Que tal o <strong>de</strong> Literatura...<br />

Obrigatório?<br />

Muitas serão as vantagens. São serviços que po<strong>de</strong>m ser feito por ambos os sexos. Dificilmente<br />

manterá um sentimento belicoso no ser humano, aliás, é justamente o empreen<strong>de</strong>dor <strong>de</strong><br />

humanida<strong>de</strong> no ser. Ciências Humanas, <strong>de</strong> nosso largo conhecimento. São produtores <strong>de</strong><br />

conciliação e são apoiados pela teoria da relativida<strong>de</strong>: tudo tem outras maneiras <strong>de</strong> se expor e<br />

tudo tem vários significados ou caminhos - contrário aos ensinamentos militares on<strong>de</strong> a<br />

criativida<strong>de</strong> é nula e os mo<strong>de</strong>litos usados são "kitsch".<br />

Quem tiver tendência ao militarismo ou for levado a isso pela família terá a opção do Serviço<br />

Militar...agora opcional. Da mesma forma que as pessoas artistas terão a opção <strong>de</strong> outros<br />

Serviços entre os listados acima e outros que inventaremos ao longo do tempo.<br />

Já pensaram nosso jovem recebendo sua convocação para se alistar no Grupo Coral mais<br />

perto, tendo que cantar em coro durante um ano?<br />

Ou se inscrever num Grupo <strong>de</strong> Teatro e montar uma peça ou duas no ano?<br />

E para fazer essas coisas inteligentes não é preciso levantar às quatro da manhã. Só tem<br />

vantagens, esse negócio.<br />

É claro que as armas <strong>de</strong> guerra não terão mais em quem mandar, o que será uma perda...<br />

mas, só para eles. Nada que importe.<br />

Se as três armas - Água, Terra e Mar - ainda quiserem gastar dinheiro à-toa po<strong>de</strong>rão financiar<br />

também esse Serviços Opcionais. Ninguém reclamará.<br />

Então, hoje, começamos a pensar nisso.<br />

Queremos o fim do Serviço Militar Obrigatório.<br />

É uma bobagem sem base científica ou humana.<br />

Não estamos na Ida<strong>de</strong> Média (talvez alguns). As pessoas usarão farda se quiserem. Mas,<br />

po<strong>de</strong>rão querer mexer em tinta, ou escultura, ou num violino, talvez numa caneta e em<br />

editores <strong>de</strong> texto.<br />

Os jovens terão meu apoio para acabar com essa pusilânime obrigatorieda<strong>de</strong>.<br />

Essa prática da Autorida<strong>de</strong> Nenhuma.<br />

As Escolas <strong>de</strong>vem fazer a sua parte.<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

POESIA ANACRÔNICA I<br />

Dessa vez temos oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrar em contato (não muito íntimo, acredite) com o poeta<br />

fenício Abu-ben-Bim-bom. Além <strong>de</strong> divagar e <strong>de</strong>vanear, ainda se <strong>de</strong>u ao luxo <strong>de</strong> querer o<br />

lugar <strong>de</strong> Hamurabi, o do Código. Não tendo conseguido seu lugar ao sol do <strong>de</strong>serto, nem à<br />

sombra do palácio, Abu-ben passou a escrever. Como esse pessoal que nasce pra lá da divisão<br />

da Terra escreve da direita pra esquerda, o nosso tradutor teve certos problemas na colocação<br />

<strong>de</strong> algumas palavras. Mas - para o que é -, serve.<br />

Dão!<br />

Beu cabelo dão!<br />

Gomo farei bara beber a areia do <strong>de</strong>serto?!?!<br />

Dão, dão!<br />

Bor que lebaste Kabel, bara o oásis <strong>de</strong> Omar?<br />

Kabel, o cabelo, é beu trâsborte,<br />

Beu aconchego das horas tardias da doite.<br />

Abu chora.<br />

Abu quer Kabel.<br />

Kabel me <strong>de</strong>ixou para cantar no coro muslim.<br />

Cabelo fii da mãe, esse!!<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

UM SARAU NADA AMISTOSO<br />

Imaginemos que artistas renomados se reunissem alhures.<br />

Do que falariam, imersos em suas ociosas genialida<strong>de</strong>s, algures escondida, crípticas nas<br />

imensas circunvoluções <strong>de</strong> seus cérebros?<br />

Lendo Cesar Pinto, topei com um série <strong>de</strong> fofocas brejeiras que certamente, como boas<br />

mentiras, farão parte dos saraus on<strong>de</strong> os artistas estiverem.<br />

A mesa farta, talheres <strong>de</strong> prata e Haen<strong>de</strong>l falando sobre Gluck:<br />

—- O meu cozinheiro é mais músico que Gluck. Do outro lado Rossini grita:<br />

—- É por que você não conhece a música <strong>de</strong> Weber. Me dá cólicas.<br />

Mas certamente haverá aqueles com dor <strong>de</strong> cotovelo, porém, justos. André Getry, célebre<br />

crítico teria dito <strong>de</strong> Mozart:<br />

— Ele coloca a estátua na orquestra e o pe<strong>de</strong>stal na cena.<br />

Ainda na mesma mesa, com a colher silverada empapuçada <strong>de</strong> maionese ouvimos a opinião<br />

<strong>de</strong> Schumann:<br />

—Você, Rossini, é o mais notável pintor-<strong>de</strong>corador, mas se tirarmos a iluminação fictícia e a<br />

sedutora perspectiva teatral, não sobra mais nada. Você é uma borboleta que voa pelo<br />

caminho da águia. A águia é Beethoven. A águia se <strong>de</strong>sviou para não esmagá-la com o bater<br />

<strong>de</strong> suas asas.<br />

É claro que temos que <strong>de</strong>scontar a pinimba entre italianos e germânicos.<br />

Sabemos também que, entupido <strong>de</strong> dinheiro, Rossini se <strong>de</strong>sligou do show-business. Ele<br />

mesmo dizia que sempre usou fórmulas que sempre <strong>de</strong>ram sucessos.<br />

Há pinimba entre franceses e germânicos. Berlioz disse que se achava vingado ao ouvir a<br />

imensa vaia na estréia do Tanhäuser <strong>de</strong> Wagner. Mas, cá entre nós, Wagner vivia <strong>de</strong> vaias.<br />

Conhecemos povo <strong>de</strong> melhor nível.<br />

Tchaikowsky — um dos meus prediletos — dizia que a música <strong>de</strong> Brahms não lhe <strong>de</strong>spertava<br />

calor, mas frio, sendo grave e profunda, às vezes sublime. Taí um cara mais fino.<br />

Sobre Wagner, um outro francês, provavelmente na Sala <strong>de</strong> Fumar, Camille Saint-Saens — o<br />

mais sábio dos músicos:<br />

— O wagnerismo, sob pretexto <strong>de</strong> arte, foi uma maravilhosa máquina montada para roer e<br />

limar o patriotismo dos franceses . Era a alma alemã se insinuando pouco a pouco em nosso<br />

povo.<br />

Para acabar essa contagiante fofocada, tem uma do Liszt.<br />

Nicolau da Rússia, o Czar, disse que não apreciava duas coisas em Liszt: seus cabelos longos e<br />

as suas opiniões. Liszt sabendo disso mandou a seguinte resposta ao Czar:<br />

— Quanto aos meus cabelos, <strong>de</strong>ixei-o crescer em Paris, e só em Paris eu os cortarei.<br />

—Quanto a idéias políticas, só as direi quando tiver 300 mil baionetas à minha disposição.<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

LILITH<br />

Eu sei<br />

A lua vem manchar o teu saber<br />

Brilhar no paraíso / Luzir on<strong>de</strong> é preciso<br />

Rasgar a minha pele /<br />

Expor tesouros tão vastos como o mar<br />

Vou<br />

O mundo me espera do outro lado<br />

Um mundo repleto <strong>de</strong> paixões<br />

Muito além do jardim<br />

Não pensa que tem po<strong>de</strong>r para impedir<br />

Eu parto e não volto<br />

Acreditei / mas eu não via nada cativante<br />

Saio já / Saio já<br />

É hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedir<br />

A<strong>de</strong>us / a lua é negra<br />

Cansei do nada igual<br />

Faltou mais vida e sal<br />

O portão já vai se abrir /<br />

e aquele anjo está prestes sorrir<br />

Vou<br />

O mundo me espera do outro lado<br />

Um mundo repleto <strong>de</strong> paixões<br />

Muito além do jardim<br />

Vejo que o mar já queima<br />

Ar<strong>de</strong> em fogo / É um sol /<br />

e a vida vai brotar em mim<br />

E o que resta fica aqui<br />

Parto agora / digo a<strong>de</strong>us / e vou<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

ANÁLISE SEMÂNTICA E FILOSÓFICA<br />

SOBRE A PALAVRA BOCETA<br />

pelo in<strong>de</strong>fectível Dr. Valfrido Masca-Aranias<br />

Valfrido Masca-Aranias é irmão em primeiro grau <strong>de</strong> Boiardo Masca-Aranias, outro articulista.<br />

Os dois são colegas <strong>de</strong> aca<strong>de</strong>mia da Dra. Moth <strong>de</strong> Costard e primos por parte <strong>de</strong> não se sabe<br />

<strong>de</strong> quem, <strong>de</strong> Akenathon Pinto, tio <strong>de</strong> Tut-Ank-Os-Pés. A questão <strong>de</strong> comer (ou mascar)<br />

aranhas não tem nada a ver com a presente análise, pois nem um nem outro irmão manteve<br />

qualquer contato com Raul Seixas e ou Paulo Coelho enquanto estes ainda eram vivos, muito<br />

embora tenham, os dois, Boiardo e Valfrido, um pezinho na família dos leporí<strong>de</strong>os, a dos tais<br />

<strong>coelho</strong>s e afins. No brasão da família consta um báculo e dois <strong>de</strong>stes bichinhos caídos, um do<br />

lado do outro, ao que consta, mortos ou dopados. Ou "do prados", para fazer um trocadrilho<br />

(como diria Toni Q'uéloguis) infame com os <strong>coelho</strong>s. Sob estas figuras, uma inscrição, em<br />

latim: Matatum une duni cuniculus cum unicum baculoratum. Amém.<br />

Va<strong>de</strong> retro nu rectus tuus.<br />

Para saber a tradução, escreva para scarparomaciel@uol.com.br pedindo a transcrição<br />

integral a um dos nossos sábios. Se quiser que façamos também o seu mapa astral, envie-nos<br />

data e hora <strong>de</strong> nascimento, nome, telefone e o que fez na noite <strong>de</strong>ste último sábado. Ah... não<br />

se esqueça <strong>de</strong> R$ 5,00 (cinquinho) pro incenso e pra conta <strong>de</strong> telefone e uso da Internet.<br />

A palavra BOCETA é uma das mais ilustres palavras do vocabulário. Mas, só serve para quem<br />

fala. Não serve para quem escreve. E quando a BOCETA se instala na altura do pescoço —<br />

sabe-se lá por quais ginásticas — já começamos a nos referir a santos escapulários.<br />

Há quem diga que a BOCETA é uma caixinha ovalada on<strong>de</strong> muitos insignes enfiavam o <strong>de</strong>do<br />

ou <strong>de</strong>positavam seu rapé.<br />

Outros, mais afoitos, sugerem que é uma estrutura ovalada on<strong>de</strong> outros <strong>de</strong>positam outras<br />

coisas, inhclusive o <strong>de</strong>do. Kurulan, por exemplo, batedor etíope da minha colega Dra. Moth <strong>de</strong><br />

Costard, <strong>de</strong>posita ali o seu báculo, com precisão beduína.<br />

Os cretenses, muito safados, dizem que a palavra <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> BOQUETE que é um método<br />

antigo <strong>de</strong> cura contra os males da mor<strong>de</strong>dura ofídica. Os cretenses teriam inventado o método<br />

quando Minos, pai adotivo do Minotauro, tendo ido visitar seu filho no labirinto, foi picado por<br />

uma cobra. Pasífae, mulher <strong>de</strong> Minos, porém, já uma vez jantada por Zeus — teve uma<br />

repentina idéia e mor<strong>de</strong>u a perna <strong>de</strong> Minos, com o intuito <strong>de</strong> arrancar a dor ou <strong>de</strong> piorá-la.<br />

Porém, em vez <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimentos ouviu:<br />

— Para com isso, mulher não foi aí! Foi aqui!<br />

— Aqui, on<strong>de</strong>?<br />

— Aqui. Nos entremeios da virilha.<br />

Bem, Pasífae disse que já estava acostumada com aquelas coisas <strong>de</strong> picadurismo <strong>de</strong> insetos e<br />

outros bichos, tascou-lhe uma <strong>de</strong>ntada lá nos entremeios das virilhas minóicas.<br />

Ao se levantar, Pasífae estava com a boca banhada em sangue; Argineu — que ninguém<br />

nunca soube quem é — já estava rindo quando tomou uma traulitada tamanha, que per<strong>de</strong>u o<br />

rumo. E saiu da história sem ninguém nem saber por que entrou. Labirintus in vitro.<br />

As moças <strong>de</strong> Creta começaram, então, a pintar a boca com um vermelho intenso — imitando<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

Pasífae — para chamar atenção dos rapazes, como que <strong>de</strong>monstrando, que o que elas tinham<br />

em cima era bem parecido com o que elas tinham, por <strong>de</strong>baixo dos panos, em baixo. Nos<br />

entremeios das virilhas.<br />

Como é sabido, em volta da boca temos músculos bucinadores. Portanto, bucinar, bucinare,<br />

buçanha (já aí uma corruptela). De BUÇANHA para BOCETA é um pulo ou uma abertura <strong>de</strong><br />

pernas, já que estamos na Grécia em tempos <strong>de</strong> jogos Olímpicos.<br />

O lema da ban<strong>de</strong>ira paulista nos dá uma pista sobre essas <strong>de</strong>sinências e magias do<br />

vocabulários: "Non ducor. Duco". Ou seja : "Não sou conduzido. Conduzo". Exegetas expõem a<br />

idéia <strong>de</strong> que a palavra BOCETA <strong>de</strong>riva também <strong>de</strong> expressões idiomáticas daqueles povos do<br />

Pindo, já <strong>de</strong>vidamente invadidos pelos latinos ladinos Romanos. Alguém po<strong>de</strong>rá ter dito: "Non<br />

bucor. Buco", ou seja. "Não sou abocanhado. Abocanho"; querendo dizer "Como com a boca,<br />

Envolvo com lábio e <strong>de</strong>gluto, Boqueta-se, enfim, BUCETA-SE. A palavra muda com o tempo e<br />

lugar.<br />

No entanto, isso parece mais uma coisa chula do que <strong>de</strong> exegetas.<br />

A gente ri e pronto.<br />

Muitos povos transformam o V em B e vice-versa ou bice-bersa. São modos <strong>de</strong> falar. Como os<br />

latinos já se apropriavam das coisas dos outros, naquelépoca, há uma linha <strong>de</strong> estudos que<br />

quer indicar a origem das palavras <strong>de</strong> nada mais e nada menos que <strong>de</strong> VOX, VOZ. Aquele som<br />

que sai da boca. Certos povos, ainda não estudados <strong>de</strong>vidamente, diriam BOX OU BOZ. Um<br />

pequena voz: vozeta, vozetinha e vocês já sabem como fica o resultado disso. Um vozeirão,<br />

então... mas, são itens a serem ainda comprovados por mentes mais científicas.<br />

Bem, certo <strong>de</strong> que o tema foi palpitante, carente ainda <strong>de</strong> mais estudo e pesquisa, daremos<br />

por encerrada nossa conversa <strong>de</strong> hoje.<br />

Prometemos para o futuro uma análise importante sobre a palavra CULATRA.<br />

Só.<br />

13


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

POESIA ANACRÔNICA II<br />

Apresentamos a poeta Anninha. Doce, afável, <strong>de</strong> olhos azuis e uma tez aveludada, uma cútis<br />

agradável <strong>de</strong> se tocar co’a fímbria dos <strong>de</strong>dos; nos surpreen<strong>de</strong> quando extravasa as suas<br />

potencialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> artista e mostra o seu outro lado, ficando imediatamente <strong>de</strong> costas.<br />

No nosso grupo é a mimosinha do papai Tunico e foi ela quem <strong>de</strong>u a idéia daquele cubo<br />

enxadrezado, que é o símbolo da nossa equipe <strong>de</strong> literatos.<br />

Ela sempre mantém os pés no chão ao recitar e quando saem seus versos é possível ver sua<br />

úvula tremulante e vermelha, na expressão máxima da sua veia poética. É, <strong>de</strong>cididamente,<br />

uma poetisa venérea. Essa poesia é em homenagem a ela mesma e a todas as poetas manuais.<br />

Mãos más<br />

Turbam<br />

Pensamento<br />

Mãos leves<br />

Roçam lá<br />

Roçam lábios... Roçam<br />

Mãos más<br />

Caras<br />

Bocas<br />

Baba-beijo<br />

Salivoso... pensamento<br />

Dança leve<br />

Abro a porta<br />

A saliva<br />

A gosma leve<br />

Leva-te ao meu suco<br />

Suco meu<br />

Aparta leve<br />

Lábios meus... Invada<br />

Mãos más<br />

Turbam-se a si<br />

No portar do glúteo<br />

Louco aperto<br />

Mexo leve<br />

Manso ir e vir<br />

Suplico<br />

Gemer canto<br />

Invasor teso<br />

Invaginar... Aberta a mina<br />

A POE(nhe)TA<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

KAROSHI: TRABALHO ATÉ NA MORTE<br />

Manda a socieda<strong>de</strong> / nós obe<strong>de</strong>cemos<br />

trabalho é punição / trabalho é banco aberto<br />

trabalho é lucro alheio / na da mais / nada menos<br />

Que fará o mundo numa greve eterna on<strong>de</strong> todos parem?<br />

Que fará o chefe sem po<strong>de</strong>r mandar - manifesta tara?<br />

Karoshi: no Japão / trabalha até morrer / pois a fila é gran<strong>de</strong><br />

trabalho e vitória são hinos danados / ocupam nossa alma<br />

lá na escola / jovem puro /<br />

enfiou-nos na cabeça o futuro / o amanhã que nunca veio<br />

enfiou-nos na cabeça o professor / que já morreu<br />

trabalha para o país / e menino <strong>de</strong> amanhã<br />

Torpe a idéia da vocação / o dom / o talento<br />

Quer saber? Para <strong>de</strong> trabalhar / <strong>de</strong>ixa o banco / sai da fábrica<br />

Vá fazer poesia / faça música doentia / sobe ao palco / mete o malho<br />

O jornal te espera em brancas folhas<br />

Notícia:<br />

operário agressivo segue or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>nsa dura<br />

sobrecarga é o trabalho / a ninguém dignifica /<br />

a vítima sofre dos nervos / o dono da empresa coleta o dinheiro<br />

a vítima se per<strong>de</strong> nos rumos / o dono da empresa vai a Paris<br />

Notícia:<br />

Nasceram margaridas nos campos<br />

Ninguém veio colher<br />

Muita gente foi ao SUS<br />

Muita gente ficou lá<br />

a vítima se per<strong>de</strong> nos rumos / o dono da empresa vai a Paris<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

BOMBA!!!<br />

D. SEBASTIÃO RETORNA DE ALCÁCER-KIBIR<br />

do correspon<strong>de</strong>nte Amenófis Pinto<br />

África ( UPI ) – A notícia caiu como uma bomba em Porto Calle. O amado Don Sebastião, dado como<br />

morto na batalha <strong>de</strong> Alcácer-Kebir, após centenas <strong>de</strong> anos, retorna mais jovial do que nunca,<br />

reclamando tronos e vantagens.<br />

Veio diretamente para a Colônia e hoje o encontramos às portas dos gabinetes governamentais<br />

requisitando o po<strong>de</strong>r que era seu <strong>de</strong> herança e <strong>de</strong> direito e <strong>de</strong> fato – tudo ao mesmo tempo –<br />

mandando que um tal Fernando caia fora – imediatamente – do trono português.<br />

As autorida<strong>de</strong>s européias não querem facilitar a coisa para o fantasmagórico Rei e afirmam que lutarão<br />

nas cortes <strong>de</strong> todo o mundo para a manutenção do status quo daquelas regiões.<br />

D. Sebastião, logo ao chegar, tomara posse <strong>de</strong> terras em Brasília e na Bahia, <strong>de</strong>terminando um Reino<br />

Algarviano na faixa que liga as duas capitanias. Com ele vieram 2 638 soldados muito bem treinados e<br />

mais 1200 mercenários africanos que se aliaram ao reaparecido monarca durante esses anos todos.<br />

Para esse bando <strong>de</strong> gente burra que não sabe nada, D. Sebastião, também conhecido como "o<br />

Desejado", foi o décimo sexto rei <strong>de</strong> Porto Calle, filho do príncipe D. João e sua Mulher D. Joana, o que<br />

até hoje é motivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates e seminários, o fato <strong>de</strong>le ser filho <strong>de</strong> sua própria mulher e ao mesmo<br />

tempo um homem traído. Isso fez com que ele se enfronhasse nas guerras.<br />

Quando alcançou a maiorida<strong>de</strong>, empreen<strong>de</strong>u expedições a Tanger e a Ceuta, <strong>de</strong>saparecendo na<br />

batalha <strong>de</strong> Alcácer-Kebir que é uma cida<strong>de</strong> (alcácer – the castle - o castelo) do Marrocos mais ou<br />

menos do tamanho <strong>de</strong> Casa Branca.<br />

Estamos todos aflitos à espera <strong>de</strong> uma invasão.<br />

O exército se manifesta e se põe <strong>de</strong> prontidão. O TG <strong>de</strong> Mococa está emprestando uma artilharia<br />

pesada para impedir a entrada do monarca em terras mocoquenses. Foi pedida a ajuda <strong>de</strong> El Cid, el<br />

spaniol, que sabe falar e comer muitas línguas.<br />

A guerra parece iminente!<br />

Amenófis Pinto, Irmão <strong>de</strong> Akenathon Pinto, envia do Continente Africano notícias fresquinhas sobre o<br />

mundo mo<strong>de</strong>rno, o <strong>de</strong> 500 anos atrás. Como ainda não mandou nenhuma fotografia sua para a<br />

redação, não sabemos nem como ele é. Mas para não <strong>de</strong>ixar você, leitor, sem nenhuma figura para<br />

abstrair, fica valendo esta mandala. Sem trocadilhos, evite criticar esta matéria e mandá-la para o Cabo<br />

das Tormentas ou, como é chamado nesta porção oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> terra, "on<strong>de</strong> o Judas per<strong>de</strong>u as botas",<br />

ou as meias (que é mais longe) ou, coisa que o valha.<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

MILÊNIO<br />

Reverendo Tiburtius<br />

Minha gente, o novo milênio alcançou a cida<strong>de</strong> à toda. Ativida<strong>de</strong> total. Muitas manifestações<br />

religiosas e científicas alvoroçam o morador da cida<strong>de</strong> que mais cresce nesse nor<strong>de</strong>ste <strong>de</strong><br />

Estado.<br />

Será uma Cida<strong>de</strong>-Estado? Não! Isso é coisa do passado.<br />

Agora é uma cida<strong>de</strong> abrigo <strong>de</strong> pássaros Beraldinos da cabeça branca, e, aquele outro pássaro<br />

construtor <strong>de</strong> torres, o tal do João Sem-Terra.<br />

Estamos no novo milênio e a cida<strong>de</strong> mostra toda a sua pujança e criativida<strong>de</strong>. Uma cida<strong>de</strong><br />

sem preconceitos. Numa tacada só elegeu uma única pessoa com todas as minorias juntas<br />

embutidas nela. Só faltou ser negro, ou afro-algum lugar.<br />

É o tal do "mo<strong>de</strong>rnismo" que muita gente repele. Os velhos ficam alucinados com as novida<strong>de</strong>s<br />

e ficam mais velhos. Não conseguem <strong>de</strong>dilhar um ábaco nem a pau – coisa que qualquer<br />

criança chinesa fazia a 4 000 anos atrás. Eis algumas:<br />

Outra: O Papa tem novos filhos. Serão her<strong>de</strong>iros do pontificado? Um <strong>de</strong>sses filhos é mulher e<br />

um outro é mulherzinha... tá valendo assim mesmo?<br />

Descobriram ou inventaram ou roubaram uma nova música, éééééééé! Chama-se cantochão.<br />

O pessoal da Península Ibérica, principalmente os que ficam virados para o mar – os <strong>de</strong> Porto<br />

Calle - pensaram que era coisa <strong>de</strong> se cantar com a cara na terra ou algo parecido e já foram<br />

torcendo o nariz para o modismo. Mas, não tem nada disso. É só u’a maneira nova <strong>de</strong> fazer a<br />

cabeça do povo. Parece que o autor da nova composição se chama padre Martchelo.<br />

Dizem que é o Bene<strong>de</strong>to Martchelo, o nome do gajo.<br />

Na Cida<strong>de</strong>, é bem sabido, o novo milênio vem trazendo alucinações. O alcai<strong>de</strong> do Burgo ia<br />

tentar o po<strong>de</strong>r novamente, mas sua candidatura foi pro buraco (sem risos!!) e a oposição se<br />

articulou em torno <strong>de</strong> uma tchurma nova. Eles carregam uma estrela vermelha e <strong>de</strong>ram o que<br />

falar. Gastaram pouco e ficaram lado a lado com o que gastou muito e teve o mesmo número<br />

<strong>de</strong> escolhas. Mas quem ganhou mesmo foi uma equipe <strong>de</strong> contrabandistas <strong>de</strong> um outro<br />

pássaro – em extinção, é bem verda<strong>de</strong> – um que tem nariz gran<strong>de</strong>, amarelo e preto.<br />

Ganharam e queremos ver levar.<br />

Na Cida<strong>de</strong> há pouco teatro, há pouco grupo coral (mesmo porque essas coisas aparecerão só<br />

daqui a quinhentos anos. Não vamos nos precipitar). Por outro lado, alguma coisa nova na<br />

arte da tortura já está em ação: a fogueira, por exemplo. É uma invenção recente. Antes se<br />

<strong>de</strong>dicavam ao palito entre as unhas (inspirados nos fenícios <strong>de</strong> um tal Malufio), e na costura<br />

<strong>de</strong> vaginas rebel<strong>de</strong>s, para adúlteras e viúvas – alguns ainda usam enfiar o palito nas vaginas<br />

— porém, o novo milênio trouxe a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e agora eles usam fogueiras. Joana d’Arc<br />

será a matrona da primeira fogueira.<br />

Na Cida<strong>de</strong>, estamos no ano 1 000. Muita gente morreu por isso, pensando que o mundo fosse<br />

acabar. De certo modo, para esses que morreram, o mundo acabou e não foram poucos. Na<br />

Cida<strong>de</strong> eles não acreditam <strong>de</strong> jeito nenhum que o mundo seja redondo. Para eles, o planeta é<br />

um cubo. Não sabem ainda, do uso <strong>de</strong> caravelas, mas parece que reconhecem logo <strong>de</strong> cara<br />

um côco. Quem tinha <strong>de</strong>u e quem não tinha comeu, e assim foi.<br />

17


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

É a crise da passagem do milênio.<br />

Eu, Reverendo Tiburtius, alquimista, discípulo <strong>de</strong> Paracelso, <strong>de</strong> hoje em diante o cronista da<br />

Cida<strong>de</strong>, contando a saga daquela gente mo<strong>de</strong>rna e acompanhando, <strong>de</strong> longe, a passagem do<br />

tempo.<br />

E, fiquei sabendo agorinha, uma notícia <strong>de</strong> matar o ganso: Don SEBASTIÃO RETORNA DE<br />

ALCÁCER-KEBIR. O nosso correspon<strong>de</strong>nte Amenófis Pinto trará <strong>de</strong>talhes.<br />

POESIA ANACRONICA III<br />

Recebemos uma cartinha sensível <strong>de</strong> um poeta magistral. O Rabino Joshua. Dono <strong>de</strong> uma veia<br />

só, ele, sempre que po<strong>de</strong>, vai ao hospital <strong>de</strong>sentupi-la. Os médicos já o proibiram,<br />

peremptoriamente, <strong>de</strong> escrever poesia. No entanto, o nosso estimado Rabino Joshua sempre<br />

nos surpreen<strong>de</strong> com sua fecundida<strong>de</strong>, facundida<strong>de</strong> e ficundida<strong>de</strong> (ele tem uma produção <strong>de</strong><br />

figos, em Israel). Eis sua obra:<br />

Queria teu queijo, forte e catingoso<br />

Teu queixo pontudo dilacera meus olhos<br />

E choro...<br />

Os crocodilos <strong>de</strong> Jafa não choram como eu<br />

E o queijo, como eu.<br />

A pele da mama, quente <strong>de</strong> sol,<br />

Me dá um queijo pronto<br />

E choro...<br />

Tira esse queixo da minha orelha !!<br />

18


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

VOZ DO INTERIOR<br />

Há grupos artísticos – assim se <strong>de</strong>nominam – no interior, na interland, fora do circuito da<br />

capitais.<br />

Os grupos se acham artísticos e se dizem culturais.<br />

Misturam tudo isso ao ‘aprendizado’ advindo da televisão e começam a elucubrar o sonho<br />

global.<br />

Falta a formação. O básico da formação. Falta a leitura e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber ler. Falta<br />

saber ler e pão isso enten<strong>de</strong>r o texto.<br />

Um dia ator interpretava um texto e perguntei-lhe sobre o significado <strong>de</strong> uma palavra que ele<br />

dissera. A resposta foi: É... procurei em vários dicionários e não encontrei. (pausa) Ia até te<br />

perguntar.<br />

Uau!<br />

Uma palavra que não tem nos dicionários.<br />

Nos vários dicionários que ele pesquisou. E que tendo pesquisado e nada achado, interpretou<br />

assim mesmo.<br />

Interpretou o que? A falta do significado?<br />

E que dicionários são esses, exaustivamente procurados, que não possuem a palavra<br />

‘imberbe’?<br />

Acima foi o exemplo da maioria dos grupos interioranos. Há músicos que são (sic) ‘auto <strong>de</strong><br />

datas’; assim se chamam ‘auto <strong>de</strong> datas’, orgulhosos da situação. E é mais um exemplo do<br />

equívoco geral.<br />

Nenhum <strong>de</strong>les é humil<strong>de</strong>. São todos arautos da cultura ou da contracultura mas, enfim, são<br />

lutadores anacrônicos <strong>de</strong> uma era rebel<strong>de</strong> que já foi, cujos frutos colhemos agora, e,<br />

percebemos que os frutos estão sem sumo.<br />

O equívoco finaliza quando o pretenso artista tem que entrar no mercado <strong>de</strong> trabalho e vai<br />

direto para a loja, ven<strong>de</strong>r eletro-domésticos, pois têm <strong>de</strong> sobreviver, eu acho.<br />

São <strong>de</strong>sculpas, pois enquanto são jovens <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nham a busca da formação e praticam,<br />

viciosamente, a construção do ator segundo a técnica d’A Malhação. É triste.<br />

São rebel<strong>de</strong>s e exigem apoio do po<strong>de</strong>r público, <strong>de</strong> quem se dizem inimigos. Chorosos clamam<br />

“ninguém nos apóia”, como se dissessem “nós, gênios das artes, ninguém nos dá apoio,<br />

temos a sabedoria das musas, ninguém nos apóia”, e copiosas lágrimas crocodilianas caem<br />

sugestivamente.<br />

Sábio aquele, interiorano, que <strong>de</strong>senvolve sua arte abrindo a mente para as várias tendências.<br />

Sábio o que ouve e apren<strong>de</strong>, e apreen<strong>de</strong> e testa para ver se é bom mesmo.<br />

Sábio o que lê e se nutre da experiência alheia.<br />

Pobres PaulosVilhenas sem QIs em todas as suas articulações. Pobres!<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

MINICOITO<br />

Nesse sincronismo <strong>de</strong> andar <strong>de</strong> Gradiva indica que o fetiche se mostra implacável. O senso do<br />

sincronismo é um sinal do gênio, já disse um certo Jeremias, enquanto lambiscava <strong>de</strong>dos e<br />

outros artelhos. No entanto, a Gradiva – aquela que avança, - e a Gradisca – aquela que<br />

agrada ou dá – têm alguma coisa <strong>de</strong> similar em suas andanças pela face do abismo ou ruínas.<br />

As lendas, mesmo as verda<strong>de</strong>iras, convergem a um imaginário perdido que enaltece qualquer<br />

cego <strong>de</strong> espírito. Vejam o meu caso, absoluto ignorante nas coisas do dia-a-dia social, nunca<br />

penso no coletivo da socieda<strong>de</strong>, mesmo porque eu cai aqui e não fui convidado por ninguém a<br />

partir <strong>de</strong>ssa ou aquela civilização... se me fosse dado a escolher eu seria grego... que tenho a<br />

ver com isso então? O i<strong>de</strong>al comum do sublime não me é suficiente para amar ninguém, muito<br />

menos quem avança ou quem dá. Interessa o meu prazer direto.<br />

Foi com essa falta <strong>de</strong> atenção mundana que eu me apresentei à Gradiva tentando, no mesmo<br />

momento, beijar-lhe a fímbria da roupa, com meta <strong>de</strong> alçar-lhe os pés saltitantes. A menina<br />

passou a correr <strong>de</strong>sabaladamente enquanto eu me via preso por uma <strong>de</strong>ntada, em sua roupa.<br />

Amante das artes da corrida <strong>de</strong> 100 metros Gradiva esfolou minha boca <strong>de</strong>sejosa esfregandoa<br />

na areia da pista assim como quem nada quer. Não foi por isso que <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar<br />

aqueles pés ligeiros, parentes dos pés <strong>de</strong> Aquiles, se bem que os pés <strong>de</strong> Aquiles <strong>de</strong>ixavam<br />

muito a <strong>de</strong>sejar...<br />

Consegui reconhecer a inteligência da velocida<strong>de</strong> e arte da <strong>de</strong>senvoltura vendo-a pular pelas<br />

ruínas <strong>de</strong> Atenas como quem foge <strong>de</strong> cabritos monteses. Em termos <strong>de</strong> expressão humana<br />

Gradiva era inumana e sabia disso. Uma <strong>de</strong>usa? Tudo bem, mas eu só queria seus pés<br />

convidativos e sublimar o coito que não viria. Beijar-lhe os pés correspon<strong>de</strong>ria a um rápido<br />

intercurso sexual. Acredito, muitas vezes, que com essas sublimações eu ainda atinja o status<br />

<strong>de</strong> santo.<br />

A inteligência física, coisa que não me faz cabeça pois não me interessa o domínio da razão,<br />

é uma forma <strong>de</strong> inteligência importante para acadêmicos e outros doentes, mas é irrelevante<br />

como qualquer outra, para fetichistas <strong>de</strong> plantão, como eu.<br />

Gradiva era <strong>de</strong>usa. Deusa da carreira. Corredora dos mais amplos e largos saltos. Suas pernas<br />

atingiam amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> mulher lapidar. Mas, suas sandálias estavam sempre sujas. E isso é<br />

coisa <strong>de</strong> gênio. Não somente em termos <strong>de</strong> saltos ornamentais como em salto sobre obstáculo,<br />

mas também em termos humanos gerais <strong>de</strong> salto triplo. Ela, Gradiva, é matriz irreverente <strong>de</strong><br />

outras corredora sensuais <strong>de</strong> belo corpo e calças justas. Original da linguagem do atletismo<br />

mais <strong>de</strong>senvolto; matriz <strong>de</strong> espasmos sexuais dos mais esportivos se bem que <strong>de</strong>vendo tudo a<br />

Onan. Se corresse como correm os atletas nos vasos cretenses!<br />

Tirem a roupa <strong>de</strong> Gradiva e verão que não minto. Magnífica estátua surgida sob as mãos <strong>de</strong><br />

um Fídias olímpico. Observem seus saltos e piques <strong>de</strong> oitocentos metros que já estão em nível<br />

sobre-humano <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação, e percebam que minha boca ainda está presa aos ilhoses <strong>de</strong><br />

couro <strong>de</strong> sua sapatilha bem moldada. Que pés. Que jarretes!<br />

Tenho trabalhado para escapar do feitiço <strong>de</strong> Gradiva, trabalho com artistas que me expulsam<br />

rapidamente <strong>de</strong> seus estúdios, pois quando chegam no final do dia há pés espalhados por<br />

20


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

toda parte. Pés <strong>de</strong> pano e palha, pés <strong>de</strong> mármore ou pedra e granito. Pés pintados nas<br />

pare<strong>de</strong>s no mais puro afresco... enfim, pés. Ao longo da minha carreira <strong>de</strong> podólatra fui<br />

curador <strong>de</strong> variadas mostras <strong>de</strong> sucesso, mas, nunca me esqueci <strong>de</strong> Gradiva e sua capacida<strong>de</strong><br />

impar <strong>de</strong> saltar fora dos relevos em que se metia e calcar o tornozelo na nossa cara.<br />

QUATRACRÓSTIOCOELEMENTAL<br />

Ação / realizAção / do mundo / da idéia / éter / planAstral / psiquInconciente<br />

RáArRá / das fadas o mundo / pensamentHermético / Sílfi<strong>de</strong>s molengas <strong>de</strong> suor<br />

Fogo Salamandra te queima / te convém / contra todo mal / passado /presente / futuro<br />

O <strong>de</strong>sejo / a vonta<strong>de</strong> / mais mudança / tudo muda / purifica em queima lava<br />

Geme a flama ondulante / crepitante em dourada energia / religar um <strong>de</strong>us alhures<br />

On<strong>de</strong> há vela / há fogueira / Luz Divina e Fé Po<strong>de</strong>r / on<strong>de</strong> há alma... o plasma queima<br />

Amorosa emoção <strong>de</strong> fluida cauda em tanque lago / nutre o sonho / <strong>de</strong>spertar<br />

Guante azul <strong>de</strong> fera Ondina / feminina fluida ninfa / esperança líquida a gotejar<br />

Urge o rio / o mar / o lago sacrOrnamental / urge a grísea linfa oculta<br />

Até quando esperar que se calme a onda / até quando esperar / até quando / até...<br />

Terra e vida bem visível / concretu<strong>de</strong> em pedra e rocha / a semente duralex<br />

Elemento ativo em litográfica assinatura / marca a terra co’a palavra solta<br />

Rasga o ventre em barro e lama / faz nascer AdãoAdamah / faz sentir o é<strong>de</strong>n rôto<br />

Risca a marca em testa arisca / cainita testa ampla / foge agora! / tão gran<strong>de</strong> é o crime<br />

Ara o leito frouxo / planta já na areia / vem fazer crescer o orbe / grita e canta melodias!<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

UMA ABORDAGEM SEMÂNTICA E FILOSÓFICA<br />

SOBRE A PALAVRA BOSTA<br />

Dr. Boiardo Masca-Aranias<br />

Boiardo Masca-Aranias é terapeuta psicofísicopropedêutico e tem como lema "LEVAR A VIDA BOIANDO", ao invés<br />

<strong>de</strong> "flauteando", como era <strong>de</strong> se esperar. numa região inóspita da Austrália e vive <strong>de</strong> recuperar cangurus<br />

estressados.<br />

A palavra BOSTA nos remete a estudos especializados da linguagem humana. Em<br />

muitos momentos ela reflete o DaSein (ou seja, o ser <strong>de</strong> si mesmo, enquanto outro); em<br />

outros muitos momentos ela é negativa e bastante plástica na sua textura, o que nos faz<br />

pensar em material em <strong>de</strong>composição <strong>de</strong> uma Psiché conturbada. Somando-se esses muitos<br />

momentos, vimos que <strong>de</strong>u mais <strong>de</strong> 130% e que alguma coisa nessa conta <strong>de</strong>ve estar errada.<br />

Como Filosofia e Semântica não são Matemática, por enquanto, tanto faz.<br />

A origem da palavra BOSTA remonta à antigüida<strong>de</strong>. Não se encontrou nenhuma referência a<br />

ela no futuro. O que mais se aproxima <strong>de</strong> BOSTA é uma referência a Boeotarches que foi uma<br />

dos principais magistrados da Beócia ou Boeotia (a letra "t" falada com uma leve sibilância, um<br />

quase c). A Boeotia era uma província central da Grécia (Héla<strong>de</strong>) continental.<br />

Lá viviam os Beócios, e consta que eram muito burros, daí o epíteto.<br />

De Beócio para Beostios foi um "t" na cara.<br />

Outros povos — certamente os bárbaros que não sabiam falar bla-blá-blá, mas<br />

somente bar-bar-bar — não sabendo ou não po<strong>de</strong>ndo falar: — "Beostios!", acabaram por<br />

falar: "Bóstos!", don<strong>de</strong> a possível origem <strong>de</strong>sse vernáculo curioso e, não vai aquí, nem alí, nem<br />

acolá, trocadilho algum, se é que o caríssmo leitor está pensando nisso.<br />

Uma outra referência, no entanto, muda a geografia da coisa.<br />

Encontraremos em Cartago um certo Bóstar, a<strong>de</strong>strador <strong>de</strong> bois (bos) e iniciador das atuais<br />

touradas <strong>de</strong> Madrid. Naquela época eram as Bostárias <strong>de</strong> Cartago muito concorridas, tanto<br />

que Asdrúbal e Aníbal — os irmãos Barca — não perdiam uma, só que teimavam em correr<br />

com elefantes. Pagavam uma multa e corriam. Podiam per<strong>de</strong>r corrida <strong>de</strong> elefantes mas as<br />

Bostárias <strong>de</strong> Cartago, nunca! Sempre aos domingos. Hoje conseguimos dizer: "Isso é uma<br />

bosta!", e queremos dizer que aquilo não passa <strong>de</strong> uma bosta mesmo.<br />

Também falamos: "Bom por bosta!", e que po<strong>de</strong>mos nos referir a um elogio apreciável,<br />

<strong>de</strong> alguém que por coisa pouca, e sem esperar nada em troca, pratica o bem. É que BOSTA é<br />

um vocábulo muito rico.<br />

Vejam bem: Em 1630 os puritanos chegaram aos Estados Unidos e fundaram uma<br />

cida<strong>de</strong> entre os Rios Charles e Mistic. Traziam muitos carneiros — não me perguntem como<br />

— e tais carneiros eram muito cagadores. Encheram aquelas cercanias <strong>de</strong> bosta <strong>de</strong> carneiro,<br />

toneladas e toneladas <strong>de</strong> um adubo excrementoso, importado da Europa. Foi então que surgiu<br />

a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boston e todos os produtos que po<strong>de</strong>m vir <strong>de</strong> um centro como esse, tendo como<br />

exemplo a Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Harvard. Harvard é pura Boston!<br />

Assim, caros leitores e pesquisadores, findaremos o nosso brevíssimo estudo sobre a<br />

origem da palavra BOSTA e esperamos que — como essa não é uma obra fechada — que nos<br />

enviem, pelo correio eletrônico, mais informações sobre tão sugestivo tema.<br />

Sabemos que há BOSTA para o mal e BOSTA para o bem.<br />

Mas, esse já é um conjunto <strong>de</strong> idéias a serem <strong>de</strong>senvolvidas com o auxílio <strong>de</strong> um certo<br />

Teodoro, <strong>de</strong> São João da Boa Vista, que está escrevendo um ensaio que versa sobre as quinze<br />

mil maneiras <strong>de</strong> se falar a palavra BOSTA.<br />

Até mais.<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

POESIA ANACRONICA V<br />

no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> inci<strong>de</strong>ntes ínfimos<br />

no terreno amoroso <strong>de</strong> uma contra-imagem<br />

a boa imagem se altera e se inverte<br />

O corpo do morto intacto / inalterado<br />

com um pequeno traço<br />

Um ponto em <strong>de</strong>composição<br />

O gesto a palavra e o modo<br />

Um sestro rápido e rasteiro <strong>de</strong> falha<br />

Um ponto<br />

Algo que surge / inesperado / <strong>de</strong> local insuspeito<br />

Seria o outro vulgar?<br />

Se revela nela um’outra raça pelo gesto?<br />

Pelo jeito se mostra uma<br />

originalida<strong>de</strong> insuspeita / explosiva / irritante<br />

Eu me alarmo e grito no instante sem volta<br />

Uma síncope na linda frase me <strong>de</strong>sarma<br />

o chão como que some <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> mim<br />

Rasgou-se a imagem<br />

quebrou-se o cristal da alma luzidia<br />

por mim criada<br />

Um ponto opaco sobre o espelho<br />

<strong>de</strong>sfascinado... sem dor / sem face... sem cor<br />

Fico envergonhado<br />

e permaneço no caminho do Bem<br />

tomando conta <strong>de</strong> minha própria imagem<br />

que se rasgou / esfacelada / sem face / selada a face<br />

bruscamente rompida pelo ponto<br />

Minha imagem se torna mesquinha<br />

mas não se torna má<br />

Reflito<br />

O outro se alterou pela linguagem<br />

e isso é freqüente<br />

Quando ela fala<br />

o mundo se altera<br />

um mundo novo se mostra<br />

um mundo que não é o meu<br />

-isso me comove-<br />

mas <strong>de</strong>vo saber que ao dizer<br />

vá tomar no rabo<br />

23


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

NOTAS ROUBADAS<br />

Sim, sim... tudo é roubado.<br />

É evi<strong>de</strong>nte que se trata aqui <strong>de</strong> uma intencionalida<strong>de</strong>, que Rita me perdoe, a leve Apoena,<br />

aquela que se <strong>de</strong>ita, lânguida, entre fronhas e lençóis, vestida apenas <strong>de</strong> pele morena, às vezes<br />

doce, às vezes salgada, às vezes coberta <strong>de</strong> uma seda negra, soerguendo um livro, também<br />

negro... É inútil interrogar sobre a sincerida<strong>de</strong> do escritor voyeur.<br />

Como manifestar a essência <strong>de</strong> Rita sem glorificá-la? O escritor, quando a vê, nota que ela se<br />

escon<strong>de</strong> entre as flores e folhas, em um mimetismo que acelera sua perigosa manifestação<br />

como doçura ou como um animal pelágico, darwiniano, na mesma cor que as água do mar.<br />

Rita adormece. Deixou que seu lábios se mantivessem entreabertos e, como um novo Castro<br />

Alves, o escritor percebe que balançam sobre seu corpo as tranças do cortinado, fazendo leve<br />

sombra, sobre ela e o livro. Curioso, o escritor, aí, bem diferente do Alves, se aproxima e quer<br />

sobrepor seus lábios contra os <strong>de</strong>la, mas, o que há pior do que notar que as pernas da moça<br />

se entreabrem, também, num movimento furtivo e a doçura <strong>de</strong> suas intimida<strong>de</strong>s se mostram<br />

suaves. Cálidas.<br />

O escritor se permite perguntar. “E agora. Que lábios beijarei?”<br />

Ela está úmida e sorri, em meio ao sono. “Dormirá <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>? Ou será poetisa fingidora, um<br />

Pessoa mulher, fingindo o que sente, sentindo o que inventa sentir?” Poetisa apetitosa e o<br />

anagrama bem cabe naquela situação.<br />

Veremos mais adiante o quanto o tema do adormecimento é maléfico na vida do escritor. No<br />

<strong>de</strong>vaneio do escritor. Convém opor esse temor do dormir ao temor da sombra, do oculto, da<br />

noite, e enquanto os lábios se tocam... a boca do escritor e os lábios molhados da vulva da<br />

pequena... as pálpebras se fecham e os braços se recolhem como bem queriam os dois. É o<br />

caráter invertido do escritor antigo e obcecado pelos sentidos e pelo prazer. Rita geme. A<br />

morte seca a domina e ela se torce na cama. “Finge dormir?” Finge estorcer como se em<br />

sonho estivesse alheia aos <strong>de</strong>sejos do escritor faminto? A encarnação <strong>de</strong> Deus no homem se<br />

renovando em cada uma <strong>de</strong> suas paixões.<br />

O <strong>de</strong>sejo pertence a todos os tempos.<br />

O escritor pensa nisso, abre os olhos para o baixo ventre da moça e vê os seios morenos,<br />

bicos salientes, agora, massageados pelas mãos da índia. “Ela dorme?” Ele sorri.<br />

Ângulos salientes e reentrantes, simetricamente opostos e talvez inimigos... o escritor se<br />

<strong>de</strong>bruça sobre a cama e o livro sai para a lateral, <strong>de</strong>spejando letras e imagens não lidas.<br />

Ritinha geme e se abre. O escritor se percebe um gibelino, uma cor germânica no andar e no<br />

falar; uma lealda<strong>de</strong> perdida entre pare<strong>de</strong>s caiadas; e ela, Rita, a índia, a Apoena <strong>de</strong> cabelos<br />

lisos, parece recen<strong>de</strong>r a razão e lei <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos mais vorazes e mais <strong>de</strong>nsos, algo como um<br />

guelfo. E esse par é um tema <strong>de</strong> valorização do ardor e da paixão imediata.<br />

O escritor está <strong>de</strong>sesperado e lento. Saliva inteiramente a entrada da gruta da mulher que se<br />

ergue no ar, buscando <strong>de</strong>graus. Nessas horas tão plenas, tão prodigiosamente concentradas,<br />

on<strong>de</strong> os minutos valem séculos, não importa se o escritor se encontra no século 21 e Ritinha<br />

vive em 1920, somente a morte respon<strong>de</strong>rá à impaciência dos espíritos à pressa das coisas.<br />

Ela fala: “Escritor, o que é esse nosso romance?”<br />

“Rita, é o que neste momento você tem no espírito, sem a preocupação com pátria, com<br />

ciência...com religião”, ele respon<strong>de</strong>.<br />

“É um romance insípido... ah!... não é uma gran<strong>de</strong> poesia, o que temos?”, ela pergunta.<br />

“Nada disso. Não há amor sem a <strong>de</strong>vastação do <strong>de</strong>sejo sobre o corpo. Fora disso é abstração<br />

e mesmo subversão... “<br />

24


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

“Perversão... perversão!”, ela grita, “Me ama, me <strong>de</strong>strói, me <strong>de</strong>seja!”, ela continua a gritar<br />

enquanto seus cabelos negros são jogados para todos os lados e a roupa <strong>de</strong> seda – será<br />

cetim? – <strong>de</strong>saparece não se sabe on<strong>de</strong>.<br />

O escritor é um catador <strong>de</strong> ossos, restaurador da poeira humana e o escritor percebe que,<br />

fo<strong>de</strong>r, é um enterro precipitado. Por isso ele evitava penetrar no corpo moreno. Mania da<br />

época? Como gozar com essa mulher se o escritor só a conhece através <strong>de</strong> fotografias e<br />

escritos e poesias?<br />

Ela, agitada, diz entre lábios marcados e mordidos: “Quem é você?<br />

“Sou vegetariano, domesticador <strong>de</strong> pássaros e procuro nas vidas uma história em espiral,<br />

nada mais”. Ela não po<strong>de</strong> saber muito sobre o escritor pois a fantasia se <strong>de</strong>sdobra em nada.<br />

“Você me faz lembrar da glória e da falsa mistura da donzela com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amar .<br />

Provavelmente você não existe”.<br />

“Há a idéia e há o pensamento. On<strong>de</strong> caberá um, não existirá o outro”, e o escritor, após dizer<br />

isso, <strong>de</strong>saparece.<br />

Rita fecha as pernas molhadas, <strong>de</strong>vagar, sorvendo últimos sopros <strong>de</strong> prazer, <strong>de</strong> tanto beijo e<br />

mordidas e, senta-se no leito, procurando o livro. Olha para todos os lados e corre à janela.<br />

Nada.<br />

Deci<strong>de</strong> retomar da obra que lia, no ponto em que parou e lá estava: “A humanida<strong>de</strong> não é um<br />

homem que envelhece; é um homem que rejuvenesce, e que tem a infância à sua frente como<br />

um paraíso... Sim, sim... tudo é roubado... É evi<strong>de</strong>nte que se trata aqui <strong>de</strong> uma<br />

intencionalida<strong>de</strong>, que Rita me perdoe, a Apoena... aquela que se <strong>de</strong>ita, lânguida, entre fronhas<br />

e lençóis... vestida apenas <strong>de</strong> pele morena, às vezes doce, às vezes salgada... às vezes coberta<br />

<strong>de</strong> uma seda negra...<br />

É inútil interrogar sobre a sincerida<strong>de</strong> do escritor...<br />

25


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

ORFEU<br />

Vou com a alma lavada / Uma oração / fome e paixão<br />

Saio co’a palma virada ao céu / É a danação / sem coração<br />

Corre um mar <strong>de</strong> fogo<br />

Sigo essa luz na estrada / Uma noção / <strong>de</strong> confusão<br />

Lembro da boca / cheirava a mel / Beijo e razão / força e emoção<br />

Um luar amigo<br />

Quero que o dia floresça / Num jardim exalando <strong>de</strong>lícias<br />

Quero que a noite emu<strong>de</strong>ça / Os teus lábios <strong>de</strong> aroma violeta<br />

Meu amor<br />

Eu atravesso a porta / Mas a Esperança foge <strong>de</strong> mim<br />

Quero lembrar do sabor da ninfa / E não me canso / lago sem fim<br />

Tomo a barca e vou<br />

Vou / sem <strong>de</strong>scansar / vou procurar meu bem-querer /<br />

Nessa terra / on<strong>de</strong> o sol / não brilha mais<br />

Vou /a me rasgar/ quebro os espinhos / nem vai doer / Resgatar a antiga paixão / o amor e a<br />

Paz<br />

Quero que o dia amanheça / Num jardim orvalhado em riquezas<br />

Quero que à noite me cresça / Denso mar <strong>de</strong> abraços e rezas<br />

Meu amor<br />

Vou com a alma lavada / Uma oração / fome e paixão<br />

Saio co’a palma virada ao céu / É a danação / sem coração<br />

Corre um mar <strong>de</strong> fogo<br />

Quero que o dia endureça / O caminho não é fácil <strong>de</strong> andar<br />

Não não! virar a cabeça / ou a ninfa / em nuvem / em brisa sumirá<br />

... sem <strong>de</strong>scansar / vou procurar meu bem-querer /<br />

Nessa terra / on<strong>de</strong> o sol / não brilha mais<br />

Vou / a me rasgar / quebro espinhos / nem vai doer /<br />

Resgatar a antiga paixão / o amor e a Paz<br />

26


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

VÔO DE BICICLETA<br />

Cada pessoa é uma humanida<strong>de</strong>. Uma história universal... uma força <strong>de</strong>cidida voando<br />

pelas estradas, se quiser...<br />

Quando tomei <strong>de</strong> minha bicicleta eu percebi que armava uma revolução <strong>de</strong> sentidos,<br />

para restaurar os ventos <strong>de</strong> meu prestígio, e todos os que saíram às ruas e me viram em<br />

roupas coloridas e um capacete transparente. A corrida começava.<br />

Lavar a mancha <strong>de</strong> lama <strong>de</strong> uma vida <strong>de</strong>sprezível era pilotar com argúcia e<br />

temperamento a minha bicicleta. Ao meu lado outros ciclistas se arrumavam, cavaleiros<br />

andantes cervantinos? - e conversavam a valer, exibindo luvas <strong>de</strong> couro.<br />

Esguichei uma golada boa <strong>de</strong> bom líquido e <strong>de</strong>ixei meu sonho vagar pela pista<br />

<strong>de</strong>marcada. Era uma corrida dura <strong>de</strong> suportar a todo filho daquela terra... pior do que<br />

aquilo só a fome, câimbras e uma queda. Mas a leitura <strong>de</strong> páginas ar<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> técnicas<br />

antigas e ensinamentos mo<strong>de</strong>rnos me fizeram erguer a cabeça. Digestão, enriquecimento e<br />

prudência e as pernas seriam móveis alavancas sorvendo os metros da estrada em busca<br />

<strong>de</strong> um primeiro lugar.<br />

Os juízes se aproximaram com instruções.<br />

Fomos posicionados e os números tremularam nas camisetas pois um vento simples<br />

nos alcançou, trazendo aromas insuspeitos <strong>de</strong> café.<br />

Testemunhas <strong>de</strong>sesperadas se estendiam pela pista, aos gritos, em torcidas familiares,<br />

alguns consternados, se ofereciam para nos ajudar. Aí experimentamos um ardor <strong>de</strong> viver<br />

e a enorme responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atrelar nossos antepassados àquela corrida.<br />

Um tiro.<br />

Partimos.<br />

*<br />

Poucos somos nós, ciclistas que ingenuamente temos confiança em algumas idéias<br />

simples: a meus olhos, principalmente, o progresso e a velocida<strong>de</strong>, voando pelas ruas me<br />

inspiravam um perdão universal; a verda<strong>de</strong> e a justiça traçavam, juntas, um <strong>de</strong>senho<br />

arbitrário sob o céu <strong>de</strong> ventos e sombras e nuvens; as leis da natureza eram cumprimento<br />

obrigatório das normas para uma vitória ampla e discreta. As rodas da bicicleta <strong>de</strong>slizavam<br />

vertiginosas e essas obras eram verda<strong>de</strong>iros atos <strong>de</strong> fé.<br />

O paradoxo que me <strong>de</strong>tinha era o fato <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>rmos, todos os corredores,<br />

chegarmos juntos e felizes, vencendo a prova, pois não haveria prêmio maior do que<br />

imensamente correr sobre bicicletas, <strong>de</strong>slizando sobre asfalto perfeito. Já me disseram que<br />

isso é ter pouca consciência dos limites da razão. E a meu lado zuniam aparelhos<br />

metalizados <strong>de</strong> inclemente fibra. Pingos <strong>de</strong> suor do ciclista <strong>de</strong>slizavam sobre os guidons,<br />

mas, sumiam com as brisas violáceas. Pernas fortemente treinadas faziam reinar correntes<br />

e engrenagens <strong>de</strong>ntadas. A mudança <strong>de</strong> marcha me fez subir centímetros e alcançar<br />

metros à frente.<br />

Andar <strong>de</strong> bicicleta é um belo ato <strong>de</strong> fé.<br />

Penso que muitas vezes eu me extraviava nas estradas. A mim valia mais o viajar do<br />

que vencer a corrida. Uma curiosida<strong>de</strong> malsã <strong>de</strong> saber a quantas ia o vento no meu rosto?<br />

Mesmo assim, a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser um ciclista nos conduziam, no enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> competidores<br />

que éramos, às nossas verda<strong>de</strong>s mais profundas. Mesmo que cada um fosse para um<br />

lado. Mesmo que eu me per<strong>de</strong>sse sem pedalar e <strong>de</strong>cifrar os enigmas dos aros metálicos <strong>de</strong><br />

minha SILVER pujante.<br />

Correr e manter a cabeça erguida.<br />

27


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

A bicicleta era nossa vítima e morria ao sabor <strong>de</strong> longas jornadas. Muitas vezes com<br />

suas partes em <strong>de</strong>salinho. Era natural que os valores dos técnicos fossem invertidos a cada<br />

campeonato. Não estavam, tais males, do lado do ciclista <strong>de</strong>saparecido e com sua corrida?<br />

A bicicleta encarnava a humanida<strong>de</strong> infeliz. Essas visões, certamente em parte infundadas,<br />

ameaçavam impedir o ciclista <strong>de</strong> levar mais longe seu olhar. Mas, sua <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> causa<br />

dissimula um alcance profundo nos tempos e nas medidas <strong>de</strong> recor<strong>de</strong>s.<br />

A bicicleta em si, ou o binômio ciclista-cicleta daria, ao mundo que representava, mais<br />

do que um caráter <strong>de</strong> revolta? Uma preocupação superior <strong>de</strong> assegurar o futuro, a<br />

duração <strong>de</strong> uma corrida e a duração <strong>de</strong> uma vitória. Com isso víamos limites à nossa<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> voar, liberda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> buscas que constituíam o sentido <strong>de</strong>sse mundo <strong>de</strong> pistas<br />

asfaltadas e turbulências <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> partidas e chegadas. Seja dito, sem querer rebaixar<br />

nada, sem distinções <strong>de</strong> pódios ou mesmo <strong>de</strong> equipes (eu gostaria <strong>de</strong> sugerir, ao<br />

contrário, um sentimento <strong>de</strong> força), a própria vida do ciclista correspon<strong>de</strong> a um equívoco.<br />

Ele gostaria <strong>de</strong> ser um pássaro. A angústia, evi<strong>de</strong>ntemente, me guiava entre atletas atentos<br />

– isso me extraviava novamente – pensando em escrever um livro ou uma história que<br />

falasse do ciclismo.<br />

Por mim passavam <strong>de</strong>z outros, em uma velocida<strong>de</strong> amarga e <strong>de</strong>slustrosa. Seriam<br />

também escritores?<br />

- Corre Michelet, corre! – gritou um <strong>de</strong>les, enquanto eu pedalava afobado para voltar<br />

ao meu ponto.<br />

Numa passagem árdua, entre curvas e florestas (que não cheguei a curtir como queria,<br />

mas obtive <strong>de</strong> terceiros informações precisas) vi que meu trabalho e minha insegurança eram<br />

fruto <strong>de</strong> um medo e uma falta <strong>de</strong> respeito com os outros atletas. Eu os <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhei, confiando<br />

plenamente nas funções da minha bicicleta. Faltou-me inspiração. Vi minha velocida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spencar e percebi que a respiração encontrava outros ritmos, alheios ao ensaio, ao treino,<br />

aos conselhos da equipe técnica.<br />

Tento imaginar meu rosto, resfolegante, emaciado, nobre, as narinas frementes.<br />

*<br />

-Michelet é sem igual!! Viva! Corre! Força – e a torcida me animava.<br />

Diziam os jornais que ninguém podia ser comparado a mim, em função da acuida<strong>de</strong><br />

visual, dramática, muitas vezes, com um elemento quase shakespeariano do acontecimento<br />

vivido. Eu corro para esse espectador invisível, que passa sob a viseira <strong>de</strong> meu capacete<br />

como um borrão, como um polichinelo risonho, sacudindo braços e dando vivas. Traço meu<br />

caminho na história. E corro.<br />

Os técnicos censuram meus erros, <strong>de</strong>talhes, posicionamento no selim, mas tiveram que<br />

se curvar diante da minha força <strong>de</strong> visionário. E eu corri. E, sou realmente um ciclista, no<br />

sentido em que pedalar é um feito majestoso, em que o homem centauro que doma sua<br />

bicicleta, projete sentidos e quimeras e não, pura e simplesmente, uma ciência. Corro e vôo.<br />

As asas não aparecem mas esbatem-se no rosto dos atletas que ficam para trás. O ritmo do<br />

coração retorna aos gradis da introspecção. Sei muito bem reconhecer a gran<strong>de</strong>za e<br />

suspeitar das intrigantes melopéias dos cantadores <strong>de</strong> vitória, mas eu lanço minha<br />

personagem do momento – Michelet, o ciclista – numa ardorosa e rápida pincelada nos<br />

cenários da estrada e transmito meu vôo para um pujante regozijar das almas, que na lateral<br />

gritam meu nome. O proscênio da fatalida<strong>de</strong>, segundo Piscator, meu mestre e preparador<br />

físico. Ele me vigia e eu me metamorfoseio no gran<strong>de</strong> corredor, no gran<strong>de</strong> domador do<br />

cavalo metálico – na magrela dos tempos juvenis, no camelo dos tempos <strong>de</strong> aprendiz <strong>de</strong><br />

ciclista.<br />

28


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

Os juizes se viram atarantados quando surgi na reta final, convulso, instigante, alegre,<br />

cabeça inclinada para trás, rompendo o brilho do olhar gelado dos adversários e vencendo a<br />

minha primeira corrida.<br />

A multidão alvoroçada, gritava meu nome. Eu sorri.<br />

Ornado da coroa <strong>de</strong> louros, levantei o troféu.<br />

Nele se refletiu um perdido raio <strong>de</strong> sol.<br />

AVE POIESIS ANIMA MEA<br />

Antero conta que:<br />

Estava a Morte ali, em pé, diante, coberta <strong>de</strong> penas<br />

Selvática ave, “Sim, diante <strong>de</strong> mim”, como serpente,<br />

diz ele, serápis dormente na selva dos dias,<br />

cobra que dormisse replumada na estrada<br />

De repente, Antero diz:<br />

A ave/serpente ergueu-se nos céus<br />

cuspindo <strong>poema</strong>s <strong>de</strong> fogo<br />

Bacante funérea queimando a noite!<br />

Gesto <strong>de</strong> <strong>de</strong>mente envolto em cinzas <strong>de</strong> estrelas!<br />

Antero nos disse : “Que busca, ave dorida,<br />

pomba faminta, errante no mundo dos homens?”<br />

Erguidos os olhos, Antero se fala em silêncio:<br />

“Não acredito no que ouço!<br />

Mas, já que perguntei...”<br />

— Não tema, respon<strong>de</strong> a ave volante<br />

/ Sinistra ironia domina as lonjuras /<br />

Estranha voz, atroz e calma, alma <strong>de</strong>snuda<br />

em asas flambantes torcera o bico reinol<br />

Torcera em cruel a boca fria em bicas pesada<br />

- Eu não busco o teu corpo nem teus ais pueris<br />

Anima mea me basta dolente e fugaz<br />

... É troféu e Gloria <strong>de</strong> mais e mais nos meu dias<br />

... Busco a alma tua gentil que não partiu<br />

Antero respon<strong>de</strong>: “Sou Fausto!<br />

Que sei da minha alma?”<br />

E a ave, em fogo, gritou enquanto partia:<br />

- Sai, capeta!<br />

29


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

O MESMO VÔO DE BICICLETA<br />

VERSÃO DIAMANTE NEGRO<br />

Cada pessoa é a humanida<strong>de</strong>. História universal... força <strong>de</strong>cidida correndo pelos<br />

campos, pelas tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong> várzea, nas ruelas sem calçamento...<br />

Percebi que se armava uma revolução <strong>de</strong> sentidos, para restaurar os ventos <strong>de</strong> meu<br />

prestígio, e todos os que saíram às ruas e me viram em roupas coloridas e meias longas,<br />

a chuteira dourada, lançavam gritos <strong>de</strong> alegria.<br />

Lavar a mancha <strong>de</strong> lama <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>rrota era dominar com argúcia e temperamento a<br />

minha bola. Os jogadores se arrumavam, cavaleiros andantes cervantinos? - e<br />

conversavam a valer.<br />

Deixei o sonho vagar pela grama <strong>de</strong>marcada. Era uma partida dura <strong>de</strong> suportar a todo<br />

filho daquela terra pois não há ícone maior do que representar as cores <strong>de</strong> Quintino, terra<br />

<strong>de</strong> Zico e outros <strong>de</strong>uses... pior do que aquilo só a fome, câimbras e uma queda. Mas a<br />

leitura <strong>de</strong> técnicas antigas e ensinamentos mo<strong>de</strong>rnos me fizeram erguer a cabeça.<br />

Fomos posicionados e os números tremularam nas camisetas.<br />

Testemunhas <strong>de</strong>sesperadas se estendiam nas arquibancadas. Experimentamos um<br />

ardor <strong>de</strong> viver e a enorme responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atrelar antepassados àquela peleja.<br />

O apito.<br />

A meus olhos, principalmente, o progresso e a velocida<strong>de</strong>, inspiravam um perdão<br />

universal; a verda<strong>de</strong> e a justiça traçavam, juntas, um <strong>de</strong>senho arbitrário; as leis da<br />

natureza eram cumprimento obrigatório das normas para uma vitória ampla e discreta. As<br />

pernas <strong>de</strong>slizavam vertiginosas e essas obras eram verda<strong>de</strong>iros atos <strong>de</strong> fé.<br />

O paradoxo que me <strong>de</strong>tinha era o fato <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>rmos, todos os jogadores,<br />

chegarmos juntos, fazendo o mesmo gol na mesma hora. Já me disseram que isso é ter<br />

pouca consciência dos limites da razão. E a meu lado zuniam atletas <strong>de</strong> inclemente fibra.<br />

Pernas treinadas faziam reinar subjetivas correntes e engrenagens <strong>de</strong>ntadas.<br />

Jogar futebol é um belo ato <strong>de</strong> fé.<br />

Penso que muitas vezes me extraviava no campo. A mim valia mais o estar jogando do<br />

que vencer. Mesmo assim, a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser jogador nos conduzia, no enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

competidores que éramos, às nossas verda<strong>de</strong>s mais profundas. Mesmo que cada um fosse<br />

para um lado. Mesmo que me per<strong>de</strong>sse da bola por segundos.<br />

A bola era vítima e morria ao sabor <strong>de</strong> jornadas. Muitas vezes atingia alturas<br />

inimagináveis. A bola encarnava a humanida<strong>de</strong>. Essas visões, certamente em parte<br />

infundadas, ameaçavam o atleta <strong>de</strong> levar mais longe o olhar.<br />

A bola em si, ou o binômio bolatleta daria, ao mundo que representava, mais do que<br />

um caráter <strong>de</strong> revolta? Uma preocupação superior <strong>de</strong> assegurar o futuro, a duração <strong>de</strong><br />

uma partida e a duração <strong>de</strong> uma vitória. Com isso víamos limites à nossa liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

voar nos ares em busca da pelota magnífica, liberda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> buscas que constituíam o<br />

sentido <strong>de</strong>sse mundo <strong>de</strong> campos, <strong>de</strong> gramados ou poeira e turbulências <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong><br />

partidas e chegadas. A vida do jogador correspon<strong>de</strong> a um equívoco. Ele gostaria <strong>de</strong> ser<br />

um pássaro. A angústia, evi<strong>de</strong>ntemente, me guiava entre atletas atentos – isso me<br />

extraviava novamente – pensando em escrever um livro ou ir para a Europa. Lembrei dos<br />

antigos campos <strong>de</strong> várzea da Gamboa. As brigas <strong>de</strong> campo em Cascadura.<br />

Por mim passavam <strong>de</strong>z outros jogadores, tática armada, um <strong>de</strong>salinho <strong>de</strong> condutas e<br />

marcações. Seriam também escritores?<br />

30


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

- Corre Guilherme, avança! – gritou um <strong>de</strong>les, enquanto eu me dirigia afobado para a<br />

ponta direita.<br />

Numa passagem árdua, entre dois zagueiros (que não cheguei a curtir como queria,<br />

mas obtive <strong>de</strong> terceiros informações precisas) vi que meu trabalho e minha insegurança eram<br />

fruto <strong>de</strong> um medo e uma falta <strong>de</strong> respeito com os outros atletas. Eu os <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhei, confiando<br />

plenamente nas funções da minha perna direita. Faltou-me inspiração. Vi minha velocida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spencar e percebi que a respiração encontrava outros ritmos, alheios ao ensaio, ao treino,<br />

aos conselhos da equipe técnica.<br />

Tento imaginar meu rosto, resfolegante, emaciado, nobre... as narinas frementes.<br />

*<br />

Diziam os jornais que ninguém podia ser comparado a mim, em função da acuida<strong>de</strong><br />

visual, dramática, muitas vezes, com um elemento quase shakespeariano do acontecimento<br />

vivido. Eu corro para esse espectador invisível, que passa como um borrão, como um<br />

polichinelo risonho, sacudindo braços e dando vivas.<br />

O técnico censura meus erros, <strong>de</strong>talhes, posicionamento, mas teve que se curvar diante<br />

da minha força <strong>de</strong> visionário. Sou realmente um jogador, no sentido em que o homem que<br />

doma a bola, projete sentidos e quimeras e não, pura e simplesmente, uma ciência. Corro e<br />

vôo, até, em cabeçadas majestosas. As asas não aparecem mas esbatem-se no rosto dos<br />

outros atletas. O ritmo do coração retorna aos gradis da introspecção. Lanço minha<br />

personagem do momento – Guilherme, o atacante – numa ardorosa e rápida pincelada nos<br />

cenários do estádio e transmito meu vôo para um pujante regozijar das almas que, na lateral,<br />

gritam meu nome. O proscênio da fatalida<strong>de</strong>, segundo Piscator, meu mestre e preparador<br />

físico. Ele me vigia e eu me metamorfoseio no gran<strong>de</strong> azougue, no gran<strong>de</strong> domador da<br />

esfera colorida.<br />

O juiz se viu atarantado quando surgi na entrada da área, convulso, instigante, alegre,<br />

cabeça inclinada para trás, rompendo o brilho do olhar gelado dos adversários e vencendo a<br />

linha <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa.<br />

Contorcendo meu corpo joguei a bola por cima <strong>de</strong> mim e do zagueiro próximo. Ela<br />

passou pelo goleiro, estirado, ar <strong>de</strong> espanto... vendo a bola cair.<br />

A multidão alvoroçada, gritava meu nome.<br />

Ornado da coroa <strong>de</strong> louros, levantei a taça no pódio, <strong>de</strong> frente para a tribuna <strong>de</strong> honra.<br />

Nele se refletiu um perdido raio <strong>de</strong> sol que vinha perdido e rebatido dos montes baixos <strong>de</strong><br />

Jacarepaguá.<br />

31


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

CHUVA DE LIVROS<br />

Bom.<br />

Eu bem me lembro e foi assim.<br />

Nimrod andava <strong>de</strong> um lado para o outro e preparava mais uma <strong>de</strong> suas artimanhas. O rei era<br />

danado para inventar cousas. O fato é que o tempo fechou e uma chuva <strong>de</strong>nsa, preta, sidérea,<br />

carregada <strong>de</strong> nuvens grávidas, intensa, <strong>de</strong>sceu intempestiva sobre aquele povo que ainda<br />

não tinha inventado o guarda-chuva.<br />

Olhando o céu, assim como quem tira piolho da cabeça <strong>de</strong> macaco, Nimrod teve a idéia.<br />

Construir uma imponente torre, que alcançasse o céu e fizesse parar aquela chuva tremenda.<br />

Meu filho Jordão, dado a invenções e musicismos ao som da lira, disse que era mais fácil<br />

inventar um guarda-chuva do que construir a tal da torre. Achei graça e pus, tais palavras, na<br />

conta dos anseios do jovem imberbe que crescia rapidamente. E, choveu outra vez, para fúria<br />

<strong>de</strong> Nimrod, que estreava suas novas galochas.<br />

O fato é que, após as chuvas, o chão local ficava impregnado <strong>de</strong> substancia escura,<br />

escorregadia. Diziam que era neve. Nimrod, furibundo, gritava: "Neve escura, cara-pálida!. E o<br />

frio? Cadê o gelo?" e, o cara-pálida dava <strong>de</strong> ombros ocultando-se rapidamente do olhar<br />

nocivo <strong>de</strong> Nimrod.<br />

O rei, por sua vez, saiu atrás <strong>de</strong> patrocinadores e conseguiu, com Baal & Co., dinheiro<br />

suficiente para alugar uns dois mil escravos e, usando a matéria prima local - palha e barro,<br />

segundo estudado apurados <strong>de</strong> C.B.<strong>de</strong> Mille - iniciou o trabalho <strong>de</strong> ereção... ereção da torre,<br />

bem entendido.<br />

E chovia. Uma chuva estranha que à medida que a torre subia se tornava mais e mais grossa.<br />

Até doía <strong>de</strong> tão pontuda. Cravejada <strong>de</strong> arestas. Ornada <strong>de</strong> arabescos friáveis.<br />

Mas, a torre, se tornava imponente, a olhos vista, mesmo por que não havia outra maneira <strong>de</strong><br />

olhar a não ser com olhos.<br />

A chuva era cada vez mais torrencial. Descia meio quadrada, volumétrica, retangúlica,<br />

enciclopédica; quando batia na cabeça da vítima era <strong>de</strong>smaio na certa, e, <strong>de</strong>ssa forma, ao<br />

longo <strong>de</strong> trinta meses <strong>de</strong> construção, a torre se impunha no horizonte, enquanto os povos, já<br />

<strong>de</strong>sorientados, jaziam por terra. Ao sopé um chão <strong>de</strong> couro e barro, gelatina e ossos.<br />

De escravos, porém, mais nenhum. Todos quedavam inconscientes nas estradas que seguiam<br />

a encosta da torre.<br />

Em pé apenas Nimrod e sua namorada, a Bebel.<br />

Ele a levou para o alto daquela simbólica construção, passando por cima dos corpos dos<br />

escravos e, <strong>de</strong> alguns representantes do povo, pré-putados, pós-putados e <strong>de</strong>putados para<br />

batizar a construção em sua homenagem. A Torre <strong>de</strong> Bebel, seria conhecida nos quatro<br />

costados do mundo.<br />

Então a primeira gota da <strong>de</strong>finitiva chuva caiu.<br />

Era um volumoso livro <strong>de</strong> culinária caldaica. Ele <strong>de</strong>spencou e atingiu o bestunto da Bebel.<br />

Ela não agüentou o tranco e caiu. Desmiolada, num primeiro momento. Desmaiada num<br />

segundo, apesar <strong>de</strong> não Maio não ter sido inventado, ainda.<br />

Aquela chuva estranha eram livros <strong>de</strong> todos os tamanhos e se espalhavam pelo orbe,<br />

avançando sobre vilas e lugarejos longínquos.<br />

Nimrod se escon<strong>de</strong>u <strong>de</strong>baixo do corpo da mulher e foi se esquivando o quanto po<strong>de</strong>, mas,<br />

não <strong>de</strong>morou muito naquele balé no alto da torre: A coleção completa <strong>de</strong> uma enciclopédia<br />

sumeriana atingiu sua moleira e ele emborcou naquela lama livresca.<br />

O estado <strong>de</strong> animação suspensa durou exatamente um ano, ou seja, sete meses, já que aquele<br />

povo não tinha um calendário mo<strong>de</strong>rno para se guiar. Então, todos acordaram do sono<br />

32


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

livresco e passaram a relatar, para o amigo do lado, a experiência por eles vivida. Mas, o<br />

faziam em vão.<br />

Amigo não entendia amigo. Inimigo muito menos. Ninguém entendia coisa alguma.<br />

Exasperados tomavam dos livros e procuravam o significado das palavras, suas e o<br />

significado da dos outros. Alhures, muitos ainda jaziam em terra pois o livro, que lhes<br />

abiscoitara a memória, ainda era feito daquelas argilas duras <strong>de</strong> Súmer e Goshen. Com direito<br />

a galo e tudo mais. Pouca palha e muito barro, como sói dizer.<br />

E foi assim que Nimrod viu-se em um local on<strong>de</strong> nada se po<strong>de</strong>ria explicar ou enten<strong>de</strong>r, a não<br />

ser que passasse a estudar, ler e reler aquela quantida<strong>de</strong> toda <strong>de</strong> livros. Buscar conhecimento<br />

e entendimento com o material que <strong>de</strong>scera dos céus. O novo maná.<br />

Meu filho Jordão, com o qual só pu<strong>de</strong> conversar novamente quando fez <strong>de</strong>zoito anos, por que<br />

nada do que dizia me era compreensível, abriu um livro e encontrou uma história sobre a<br />

invenção do guarda-chuva e partiu a ser cantor <strong>de</strong> ópera para os lados <strong>de</strong> uma Cashemira<br />

ainda a ser inventada.<br />

Bebel quase ficou paralítica em função da volumosida<strong>de</strong> da obra que lhe atingira a cabeça,<br />

mas, a po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> muita flexão <strong>de</strong> pernas e um amplo relacionamento com os homens locais –<br />

única linguagem que lhe era possível - suas habilida<strong>de</strong>s foram preservadas e hoje ela trabalha<br />

nas docas <strong>de</strong> Jaffa.<br />

Nimrod, por sua vez, graças ao contínuo trabalho <strong>de</strong> captar livros e melhor compreen<strong>de</strong>r a<br />

situação do mundo, construiu uma vasta biblioteca levada para Alexandria. Encarando<br />

seriamente a importância daquela chuva <strong>de</strong> livros passou a enten<strong>de</strong>r que sua postura fora<br />

errônea e lutou bravamente pela libertação dos escravos do mundo. Aqueles que sofreram a<br />

ação da chuva tornaram-se imediatamente livres (livres-pensadores?), em pensamentos,<br />

palavras e obras (pedreiros-livres?).<br />

Eu escrevo livros, <strong>conto</strong> histórias e estórias, <strong>de</strong> todos os tempos. Tento mostrar que cada povo<br />

diz uma coisa, e que muita coisa com o mesmo nome po<strong>de</strong> significar diferenças.<br />

Os povos conhecem a mim como Cronos e sabem que lerei tudo o que a humanida<strong>de</strong><br />

produzir, para sempre.<br />

33


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

DE LENTEJOULAS E OUTROS ERROS<br />

caríssimo poeta<br />

envio anexada uma flora espalmada como sonho como fado<br />

trago a ficha <strong>de</strong> inscrição amarrada em ca<strong>de</strong>rno e adornada para maio<br />

lanço o tema em perspectiva<br />

teu olhar / a visão /<br />

assinada a missiva / rubricados vários temas / <strong>de</strong>snudada ilusão<br />

manda tua idéia / livre / leve / em peso<br />

caríssimo poeta<br />

lembra que o sonho é <strong>de</strong> tênue tão fugaz e nada vale<br />

o trabalho da formiga é ineficaz / <strong>de</strong>mora / <strong>de</strong>sculpa<br />

colibri com a gotinha nunca apaga fogo algum<br />

são <strong>de</strong>sculpas engraçadas / se<strong>de</strong>ntárias / bem burguesas<br />

existe o diferente e assim perdura o mundo<br />

o fraco chorará<br />

só perdura em <strong>poema</strong> antigo<br />

se há socieda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> haver igualda<strong>de</strong><br />

os po<strong>de</strong>res são <strong>de</strong> opressão<br />

civilização construída e paga<br />

altera o mundo num vez e nunca mais se volta ao primo esboço<br />

acreditar em mundo novo – acreditar em mundo outro é <strong>conto</strong> <strong>de</strong> fadas velhuscas<br />

sempre tem um lobo atrás da casa<br />

caro poeta<br />

se eu quiser um dia<br />

o valor do dia-a-dia / o amor das coisas simples<br />

eu não usava NET<br />

não entrava em CHAT<br />

Não ligava carro<br />

Nem logava BLOG<br />

não tinha namoricos virtuais<br />

caro poeta<br />

esquece o Parnaso<br />

Bilac já dorme em outros berços<br />

eu prefiro alguém que saiba do que faz<br />

em vez do voluntário ineficaz / a formiga / o colibri<br />

tá ligado?<br />

Mas escreve assim mesmo / escreve qualquer coisa<br />

Elogia a torto e a direito / o ca<strong>de</strong>rno fecha em maio<br />

E a WEB nos espera<br />

Um abraço<br />

COELHO<br />

34


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

JESUS EM APARECIDA<br />

Mateus (21,12): Tendo Jesus entrado no templo, expulsou a todos os que ali vendiam e<br />

compravam; também <strong>de</strong>rrubou as mesas dos cambistas e as ca<strong>de</strong>iras dos que vendiam<br />

pombas. 13) E disse-lhes: Está escrito: A minha casa será chamada casa <strong>de</strong> oração; vós,<br />

porém, a transformais em covil <strong>de</strong> salteadores.<br />

Marcos (11,15): E foram para Jerusalém. Entrando ele no templo passou a expulsar os que<br />

ali vendiam e compravam; <strong>de</strong>rrubou as mesas dos cambistas e as ca<strong>de</strong>iras dos que vendiam<br />

pombas. 16) Não permitia que alguém conduzisse qualquer utensílio pelo templo; 17)<br />

também os ensinava e dizia: Não está escrito: A minha casa será chamada casa <strong>de</strong> oração<br />

para todas as nações? Vós porém a ten<strong>de</strong>s transformado em covil <strong>de</strong> salteadores. 18) E os<br />

principais sacerdotes e escribas ouviram estas cousas e procuravam um modo <strong>de</strong> lhe tirar a<br />

vida, pois o temiam, porque toda a multidão se maravilhava <strong>de</strong> sua doutrina.<br />

Lucas (19,45): Depois, entrando no templo, expulsou os que ali vendiam, 46) dizendo-lhes:<br />

Está escrito: A minha casa será casa <strong>de</strong> oração; mas vós a transformastes em covil <strong>de</strong><br />

salteadores.<br />

João nada fala a respeito do episódio no Templo.<br />

Coelho (capítulo e versículos ainda in<strong>de</strong>terminados, pois o Evangelho segundo Coelho ainda<br />

está em processo <strong>de</strong> inspiração): A) Tendo Jesus chegado à Aparecida, lá nem perceberam<br />

da sua presença pois todos os visitantes, também chamados peregrinos, preocupavam-se com<br />

a sagrada compra <strong>de</strong> santinhos e amuletos e bentinhos e terços abençoados e escapulários e<br />

imagens em cera, da mesminha forma que faziam os seguidores <strong>de</strong> Baal. Jesus viu que nada<br />

apren<strong>de</strong>ram <strong>de</strong> seus ensinamentos e isso turvou seu semblante. B) Disse-lhes Jesus, em altos<br />

brados: Está escrito. Isso aqui é um templo <strong>de</strong> orações, mas vocês o transformaram num<br />

mercado. Parece um covil <strong>de</strong> ladrões. Quem são esses caras <strong>de</strong> saiote preto? Serão fariseus?<br />

Quem <strong>de</strong>u permissão para ven<strong>de</strong>r bugigangas em meu templo? C) Alguns incautos riram a<br />

valer e nisso Jesus saiu a chicotear a todos, tanto os padres, os bicheiros, os gatunos, os<br />

banqueiros, os exploradores da cruz, os beatos, as beatas, os vendilhões do templo, os que<br />

dizem plantar a civilização do amor, bem como os que vendiam pombas plásticas, como<br />

lembrança <strong>de</strong> Aparecida e outras quinquilharias inúteis, pernas <strong>de</strong> cera, braços <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e<br />

cabeças ocas. D) Nesse momento todos se atemorizaram e se perguntavam: Quem é este<br />

doudo? Quem é o barbudo sujo e maltrapilho? Quem é este louco sacripanta? Assim diziam os<br />

pagadores <strong>de</strong> promessas, os que negociavam com os santos, os traficantes <strong>de</strong> favores e seus<br />

mediadores, representantes do céu em terra, donos <strong>de</strong> TVs Universais. E) Então a milícia<br />

pública, a polícia, chegou, alertada pelos serviçais do templo, e, a po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> umas boas e<br />

inesquecíveis cacetadas <strong>de</strong>rrubaram Jesus, ao que o Rabi disse: Outra vez? Essa não! F) A<br />

multidão apupou. Podia, novamente, comprar e ven<strong>de</strong>r, comercializara figura do crucificado,<br />

expor os seus santinhos em paz! Jesus foi levado para a Delegacia <strong>de</strong> Polícia <strong>de</strong> Aparecida.<br />

Exegetas <strong>de</strong> várias tendências religiosas ensinaram que a conversa foi assim direcionada:<br />

Delegado: - Quem sois vós? (é claro que o <strong>de</strong>legado não disse assim, na segunda do plural,<br />

mas nós, escribas contemporâneos temos que obe<strong>de</strong>cer as regras do vernáculo e do bem<br />

falar). Quem sois vós, seu bagunceiro?<br />

Jesus: - Jeoshua bem Yussuf, bem Miriam<br />

Delegado: - O que? É alguma brinca<strong>de</strong>ira? Não entendi nada. Respeite a autorida<strong>de</strong> presente<br />

– Jesus olhou em volta procurando alguém - Responda direito – tornou o <strong>de</strong>legado - Da<br />

on<strong>de</strong> vem o senhor?<br />

Jesus: - Você não vai acreditar.<br />

Delegado: - Tente.<br />

35


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

Jesus: Está bem. Eu avisei...é muito difícil <strong>de</strong> acreditar, mas, lá vai... Venho do céu. (Os<br />

policiais começaram rir. Jesus observou essa questão e muito se turbou em seu semblante) Eu<br />

não disse?<br />

Delegado: - Não tem mais nada para inventar?<br />

Jesus: - Nasci em Belém.<br />

Delegado: (escrevendo em seu pergaminho) Ah! Agora sim... Belém... do... Pará. Deve estar<br />

em São Paulo há muito tempo , pois não consigo perceber o sotaque.<br />

Jesus: - Paulo está aqui também? Ué? Por que não me avisou. Eu não teria enfrentado<br />

sozinho aquela multidão, sim, pois, e repito, a multidão estava ensan<strong>de</strong>cida e Paulo é gran<strong>de</strong>,<br />

pesado e gosta <strong>de</strong> <strong>de</strong>scer o braço <strong>de</strong> vez em quando... Eu nasci em Belém da Judéia....<br />

O resto é fragmento ainda em tradução... difícil <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r... o fato é que Jesus notou<br />

que os policiais eram menos violentos que os policiais <strong>de</strong> Mel Gibson, e achou isso bom. Chega<br />

<strong>de</strong> cacetada. Resolveram prendê-lo por <strong>de</strong>struir bens alheios, abriram um processo por<br />

transitar sem documentos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e por falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>coro público.<br />

O <strong>de</strong>legado ficou na dúvida se o repatriava ou o levava para o <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação.<br />

O <strong>de</strong>legado já estava cheio <strong>de</strong> hippies bandalheiros.<br />

O <strong>de</strong>legado lavou as mãos na pia.<br />

Imediatamente carregaram Jesus para a cela. Lá o homem <strong>de</strong> Nazaré encontrou-se com a ralé<br />

da cida<strong>de</strong> e disse: ‘Eis que me encontro on<strong>de</strong> <strong>de</strong>vo realmente estar. Em meio a publicanos,<br />

pecadores e dissolutos, para orar e pregar.’<br />

Jesus levantou a voz <strong>de</strong> muitas águas e falou: ‘Filhinhos. Não temais, pois estou aqui. Sou o<br />

caminho, a verda<strong>de</strong> e a luz.’<br />

Ao que um dos presos bradou: - Ih! Lá vem outro evangélico.<br />

Nesse momento uma pomba cinzenta a<strong>de</strong>jou pelo vestíbulo.<br />

Os presos a pegaram e a comeram ante o assombro <strong>de</strong> Jesus que disse:<br />

- Pusta, mas o que que é isso, meu Deus! On<strong>de</strong> fui amarrar o meu jumento?<br />

- Se preocupa não, barbaça, - disse um dos encarcerados – que Deus é Pai!<br />

E Jesus retrucou: - É! Tô vendo!<br />

Pouca coisa mais se sabe <strong>de</strong>ssa história.<br />

36


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

DIÁRIO DE PIRATA<br />

Dia Um, como se nascesse<br />

Perdidos entre beijos e vagas<br />

abraços <strong>de</strong> morte eu e RoseBraga<br />

resolvemos invadir a baía dos lábios<br />

Assim começa um <strong>conto</strong> comum e vulgar.<br />

Terá começo meio e fim? Não!<br />

Terá saltos e ondinas corcovas.<br />

Com quantas asas veremos no ar as aves <strong>de</strong> arribação?<br />

Já conhecemos a América<br />

RoseBraga, jovem, munida <strong>de</strong> adaga,<br />

melindrosa, ofereceu <strong>de</strong>stinos e costas e lombadas tremulantes<br />

no íntimo da alcova<br />

perseguida pelo <strong>de</strong>stino e fogo amoroso<br />

O episódio foi <strong>de</strong> banalida<strong>de</strong> comovedora,<br />

e envolveu uma pulseira perdida <strong>de</strong> uma tia<br />

as pérolas <strong>de</strong> um governador<br />

o baú marchetado <strong>de</strong> quilhas<br />

e um mal-entendido, além disso<br />

A cabeça do capitão rolou assim mesmo.<br />

Menos irrelevante será talvez relatar<br />

como suce<strong>de</strong>u que corsários atônitos<br />

partilhassem algo maior que a vonta<strong>de</strong> tenaz<br />

<strong>de</strong> transformar a Mogiana – caravela indomável –<br />

num imenso palco para trânsito e brado <strong>de</strong> Pentesiléia e Aquiles<br />

<strong>de</strong> toda fauna <strong>de</strong> bucaneiros intrépidos<br />

dos muitos que já ocuparam, e ocupam, as ma<strong>de</strong>iras da nave<br />

- ma<strong>de</strong>iras que aceitaram o suor <strong>de</strong> RoseBraga e eu...<br />

em noites <strong>de</strong> calores e luas cheias vagais / vagabundas / perdulárias -<br />

mas / nada que tenham construído<br />

a não ser a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> observar o tempo passar<br />

pois tudo o que construímos já existia<br />

terra / mar / onda / escuma e sirena<br />

a história feita <strong>de</strong> equívocos, e <strong>de</strong> amores vazios<br />

a história feita <strong>de</strong> estórias e <strong>de</strong> valores tardios<br />

Valha-me Alexandre, o Herculano,<br />

que chamava a cousa vulgar como coisa bunda<br />

e nada mais.<br />

O povo da cidadilha elegeu<br />

duas vezes/ três vezes / quatro vezes<br />

padres e asnos / pró-rogos vicariato /<br />

sem vergonha para um projeto Curra<br />

37


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

<strong>de</strong>ntro da lei<br />

esquecidos dos piratas que vagavam na noite / largo <strong>de</strong> baías<br />

A eternida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>sdobra além <strong>de</strong> nossa luci<strong>de</strong>z<br />

em piscinas inúteis / adulteradas / em tavernas populares<br />

a felicida<strong>de</strong> ignara e feia / a luci<strong>de</strong>z feliz sem peia<br />

profunda e permanente sobre as razões e timbres da infelicida<strong>de</strong><br />

Eu, Marcus Pirata e RoseBraga <strong>de</strong> brunas coxas<br />

criamos vínculo menos quebradiço<br />

menos um passado <strong>de</strong> banco <strong>de</strong> escola ou <strong>de</strong> caserna partilhada.<br />

Mas as cousas não se ficam por aqui<br />

há também a paixão comum pela gastronomia dos mares do sul<br />

o segredo mais bem guardado das cavernas <strong>de</strong> netuno<br />

Perdições entre polvos e corais<br />

O vento nas nossas faces<br />

A nave <strong>de</strong>slizando por umbrais<br />

38


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

CÂNTICOS E VINHOS E PERFUMES<br />

Abigail está isolada.<br />

Ela tomou do livro e copia uma poesia <strong>de</strong> Augusto dos Anjos, remetendo, sem pressa ou<br />

dores, para o amante que a esquece.<br />

Abigail pensa duas vezes em dormir com outro mas se arrepen<strong>de</strong>.<br />

A beleza <strong>de</strong> Abigail se <strong>de</strong>sfaz entre lágrimas e cabelos <strong>de</strong>sgrenhados. A loucura a cerca entre<br />

pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong>scarnadas.<br />

Um misto <strong>de</strong> índio e negro e branco se confun<strong>de</strong>m em seu rosto marchetado do <strong>de</strong>sespero.<br />

Inflamada <strong>de</strong> amor físico ela não quer enfiar a mão entre as coxas para diminuir a tensão.<br />

Percebe-se um sopro mórbido em Abigail, uma certa febre, assim parecido com os ventos<br />

outonais, carregados <strong>de</strong> cargas violáceas. Tudo está muito claro, mesmo que Martes tivesse o<br />

interesse em tornar a história obscura.<br />

Martes encontrou Abigail na entrada da primavera, ela, a moça, perdida em flores e jardins<br />

reclusos. Abriam vinhos e <strong>de</strong>gustavam suas bocas. O sangue intenso <strong>de</strong> Martes se insinuava<br />

em Abigail que mantinha a boca entreaberta, don<strong>de</strong> caía um vinho apetitoso. Caía na areia,<br />

areia <strong>de</strong> amores cegos, <strong>de</strong> prazeres perdidos e rascantes, areia movida a prantos. Martes -<br />

filho <strong>de</strong> guerreiros das ruas, até formoso não fosse um <strong>de</strong>svio na sobrancelha esquerda, não<br />

fosse o colorido <strong>de</strong> um jambo leve - se dirigia à cida<strong>de</strong> para beber um pouco <strong>de</strong> vinho e<br />

cantar louvaminhas aos <strong>de</strong>uses locais, e caiu aos pés da jovem, encontrando Abigail no meio<br />

do caminho. Ela se <strong>de</strong>dicava a colher flores e a roupa se <strong>de</strong>spegava dos ombros mostrando<br />

uma pali<strong>de</strong>z singela.<br />

Ela o convidou para colher mais flores.<br />

“Quero rosas”, ele disse, num leve sotaque sulista. Ela disse: “Quer a rosa, mas <strong>de</strong>ve levar o<br />

espinho junto.”<br />

Martes percebeu que ela era <strong>de</strong> uma ignorância <strong>de</strong>finida. Muito <strong>de</strong>finida mesmo. Apesar do<br />

corpo tinha a voz <strong>de</strong> menina fugaz. Ele pediu vinho. Abigail também bebeu e começou a<br />

cantar, palpitante, tendo a pele rosada e um torvelinho em sua mente.<br />

Ela disse: “Quero mais... toma <strong>de</strong> minha coxa... Beija minha boca... Tocar você é mais doce<br />

que o vinho... Um aroma para que eu siga o seu perfume...”<br />

Ele falou: “Um peito tão branco (Martes segurou um dos seios) parece iluminado com um azul<br />

do céu que nasce (ele beijou ternamente o peito <strong>de</strong> Abigail). Vejo daqui seu <strong>de</strong>licado sorriso...<br />

é preciso protegê-la <strong>de</strong> algo, disso bem o sei. Talvez protegê-la <strong>de</strong> mim... quero crer.”<br />

“É preciso me proteger. Diz pra mim... on<strong>de</strong> estão suas carroças e casas?”, ela perguntou<br />

enquanto Martes ria. “ É bom que diga para que eu não me <strong>de</strong>ite por aí, resguardada por<br />

outros braços.” Mas, ele continuou calado, ornado apenas com o gentil sorriso e nada mais.<br />

Você tem um sorriso maroto, ela pensou, consi<strong>de</strong>rando as covinhas e um pouco da barba.<br />

Não seria melhor esquecer?, Martes se pergunta.<br />

“Sete espíritos habitam em mim”, ela disse, “e <strong>de</strong> uma só palavra eu sou capaz <strong>de</strong> fazer um<br />

mundo. Eu não resisto e agüento a tempesta<strong>de</strong>, me entrego completamente e po<strong>de</strong>ria dizer<br />

que morro <strong>de</strong> amor... mas... eis algo que mulheres não dizem jamais.”<br />

“Você me parece um pequeno <strong>poema</strong> alado, la<strong>de</strong>ado por alas <strong>de</strong> <strong>de</strong>mônios famintos”, ele<br />

explicou, enquanto sua mão <strong>de</strong>slizava pela cintura <strong>de</strong> Abigail, puxando-a para si.<br />

“Em sete noites eu crescerei <strong>de</strong> modo inopinado e você, <strong>de</strong> conquistador, Martes, será<br />

conquistado sem pieda<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong> acreditar!”, completou Abigail, escon<strong>de</strong>ndo o rosto do sol que<br />

se filtrava entre as folhas da palmeira. “Eu sou a dama da casa. Vem. Moremos nos campos...<br />

longe das conversas e das pessoas.”<br />

39


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

“Eu não posso”, Martes retorquiu cuidadoso, “eu não posso. Já percebo que a mandrágora<br />

está plantada em algum chão da campina, mas eu não posso.”<br />

“Po<strong>de</strong> sim.”<br />

**<br />

Na manhã seguinte Abigail está diferente. Talvez grávida. Está diferente. Mãe naquela mesma<br />

noite. É o sangue do meio-dia. Lembra Rama e Sita e a queda da montanha, ainda virgem e<br />

solene. Naquele meio-dia há muito aroma e sombras, há sabores acres e a busca pelo vinho<br />

medicamentoso. O Ramayana <strong>de</strong>sdobrado em pétalas.<br />

O fato é que Abigail transcen<strong>de</strong> mirra e canela e parece haver dormitado sobre esses incensos<br />

durante meses. Há tanto óleo <strong>de</strong> mirra que parece suficiente para três cadáveres.<br />

Ela, já mãe enternecida, e Martes, se encaminham para o poente, numa caravana <strong>de</strong><br />

camelos ordinários, pensando na vida que se abre entre o odor insípido <strong>de</strong> lírios flutuantes e o<br />

amaro rancoroso do aloé que a cada <strong>de</strong>z anos dará sua flor.<br />

Lembra cuidadoso... a cada <strong>de</strong>z anos, não menos.<br />

40


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

ESTRATÉGIA PARA OBSERVAR O CÉU<br />

... morto<br />

... foi / sem o <strong>de</strong>sejar<br />

Heliocêntrico <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a mudança do céu<br />

radical e completa mudança do céu<br />

estratégia para ver o céu<br />

estratégia no pensar do cosmo<br />

estratégia do olhar humano<br />

- O Sol é o centro <strong>de</strong> tudo!<br />

gritou do centro <strong>de</strong> si mesmo<br />

caelum e mundus / clareza e ornamento<br />

antiga escultura antiga<br />

...morto<br />

caiu <strong>de</strong> cara nas estrelas que lhe espetaram o olho esquerdo<br />

neocósmica teoria<br />

ah! Danado <strong>de</strong> especulador celestial<br />

nem gregos nem troianos<br />

a Terra não é o centro do universo!<br />

É o Sol!<br />

Ora / direis /ouvir solares<br />

munido com triquetrum e baculus<br />

sem lentes / solitário / avarento filósofo do céu<br />

morreu matemático<br />

como o mestre Millor /<br />

como o Mestre Millor sofreu todas as operações<br />

felizmente todas matemáticas...<br />

Ah! A geografia das constelações...<br />

confuso e sem sentido / membros perfeitos <strong>de</strong> corpos diversos<br />

franqueinstain do céu<br />

... antes <strong>de</strong> morrer...<br />

testemunha da diária revolução diária do firmamento<br />

na isolada contemplação do firmamento<br />

... com ou sem nevoeiros...<br />

não temia a vara do bispo ou do inquisidor<br />

Receava os militantes da ignorância<br />

prontos a incinerar cientistas ou vegetais<br />

o que viesse primeiro<br />

... morreu assim mesmo / pois ninguém vira semente<br />

a ciência / água pura / se no chão / virava lama<br />

em sua mão plantou-se um céu<br />

ora / direis / olhar estrelas<br />

morreu aos 70 com a cabeça cheia<br />

a cabeça como céu estrelas<br />

o estrago estava feito e o mundo per<strong>de</strong>u seu centro<br />

41


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

REENCONTROS<br />

Minha mãe me enviara, numa tar<strong>de</strong> sol e chuva – casamento <strong>de</strong> viúva como diziam<br />

nas terra Mogianas - para <strong>de</strong>positar dinheiro no banco. Ela fazia isso todo mês e este era um<br />

dinheiro regrado e guardado no aperto. Era o dinheiro que minha mãe me dava para garantir<br />

uma parte do futuro, como se assim fosse possível. O mal ou bem <strong>de</strong>sses seres humanos<br />

simples é que acreditam em <strong>conto</strong>s <strong>de</strong> fadas da mesma forma como bebem água. Naquela<br />

tar<strong>de</strong> eu tinha 12 anos e ao entrar no prédio da empresa sugadora <strong>de</strong> dinheiro alheio vi-me<br />

numa agencia da cida<strong>de</strong> pequena conclamando a gritos como era pujante o tal do banco...<br />

gran<strong>de</strong>; piso <strong>de</strong> granito brilhante, escadas e murais <strong>de</strong> artistas brasileiros <strong>de</strong> importância.<br />

Aquilo muito me impressionou e acabou provando que muito dinheiro alheio havia sido gasto<br />

naquela casa on<strong>de</strong> se paga para guardarem seu dinheiro e ainda o usam. Beleza do<br />

espetáculo – pois tudo é espetáculo - pela quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vidros coloridos e painéis em<br />

mosaico que se faziam <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>s.<br />

Fui ao caixa, sujeito já cansado estava lá carimbando e cansado estava <strong>de</strong> tanto<br />

carimbar papel e soube, <strong>de</strong>pois, que quando inventarem algo melhor que o carimbo ele será<br />

substituído por outro profissional, mais jovem e mais hábil na tecnologia do momento. Falei da<br />

minha missão. O nome <strong>de</strong>le era Leoni<strong>de</strong>s. Leoni<strong>de</strong>s – igual o leão da fábula - choramingou<br />

que não sabia usar computador. Era este seu argueiro enfiado na pata. Eu disse que tinha 12<br />

anos, não sabia o que era um computador – uns monstros com enormes fitas giratórias que<br />

enchiam, uma ala inteira do prédio, no <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> compensação <strong>de</strong> cheques - e não<br />

estava enten<strong>de</strong>ndo nada do que ele falava entre lágrimas.<br />

Leoni<strong>de</strong>s era um sujeito <strong>de</strong> seus 30 e tantos anos, talvez, e, hoje penso que parecia,<br />

mas não era, recém ingresso no banco, começando a vida profissional naquele momento,<br />

parecia, obe<strong>de</strong>cendo claramente os preceitos <strong>de</strong> RH: mostrar atenção seletiva com seus<br />

clientes e boa vonta<strong>de</strong> seletiva no trabalho. Quem tiver ara <strong>de</strong> rico <strong>de</strong>ve ser atendido primeiro.<br />

Ralé e velhos <strong>de</strong>vem ficar na fila ao lado.<br />

Apesar <strong>de</strong> chorão Leoni<strong>de</strong>s, com pronto atendimento, conversava comigo<br />

perguntando se estudava, se tinha amigos, se gostava <strong>de</strong> música, se tocava algum<br />

instrumento, e dizia tudo isso sem olhar para mim pois era texto e enredo <strong>de</strong>corado <strong>de</strong> seu<br />

treinamento para atendimento <strong>de</strong> clientes. Segurava entre amarelo pálido e branco marfim,<br />

muito sem graça nem brilho, um sorriso no rosto empedrado. A cortesia sólida e estabelecida<br />

<strong>de</strong> acordo com o manual. Leoni<strong>de</strong>s facilitou meu <strong>de</strong>pósito ao saber que minha mãe também<br />

trabalhava no banco - coisas do corporativismo - e ainda saí <strong>de</strong> lá com folhetos das novida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> investimentos e cartas <strong>de</strong> crédito para minha mãe ler e pensar em possibilida<strong>de</strong>s e<br />

alternativas <strong>de</strong> enriquecimento rápido. Senti-me muito importante carregando os tais papeis<br />

coloridos.<br />

E, assim foi. O tempo passou. Cresci, estu<strong>de</strong>i música e teatro, o cabelo cresceu, a<br />

barba também; havia mudado <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> mas tudo era um truque para escapar do cerco da<br />

policia ditatorial. Nem sei quantas vezes pintei meu cabelo. Mudava <strong>de</strong> en<strong>de</strong>reço e talvez<br />

estivesse ai um sintoma ou motivo <strong>de</strong> suspeição em tempos <strong>de</strong> terror. Fui parar no interior<br />

paulista junto a vários amigos e montamos nosso aparelho em Casa Branca; através <strong>de</strong><br />

concursos em quartéis e cursos <strong>de</strong> guerrilha no exterior – digo curso, mas tratava-se <strong>de</strong><br />

evi<strong>de</strong>nte treinamento - ao longo <strong>de</strong> minha vida jovem, naquele novo dia especial eu estava às<br />

vésperas <strong>de</strong> invadir o banco da cida<strong>de</strong> armado <strong>de</strong> metralhadora e muitos sacos para forrar <strong>de</strong><br />

dinheiro.<br />

42


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

Então, em mais um dia <strong>de</strong> sol, daqueles que a gente pe<strong>de</strong> para todos os santos que o<br />

ar condicionado não falhe, entramos na agencia <strong>de</strong>sguarnecida, aproximamo-nos dos caixas<br />

e não é que o Leoni<strong>de</strong>s estava ali, carimbando mais papéis!<br />

- Nossa!, brinquei, você ainda por aqui?.<br />

Ele ficou branco, estranhou, pensou que fosse tomar um tiro e não soube respon<strong>de</strong>r.<br />

- Qual é o seu nome?.<br />

- Eu me chamo Leoni<strong>de</strong>s, - ele disse. - Quer que enfie tudo no saco?, - falou sem<br />

muita reação no rosto. - É pra já! - Parecia que ele roubava o banco mais do que <strong>de</strong>veria<br />

fazê-lo, com empenho e engenho ar<strong>de</strong>nte. Percebi um leve sorriso <strong>de</strong> orgulho nele.<br />

- Se eu não fosse bancário eu seria guerrilheiro. - O restante do grupo invasor já se<br />

preparava para escapar com muito malote entupido <strong>de</strong> dinheiro. A ação fora rápida.<br />

Ante que respon<strong>de</strong>sse a Leoni<strong>de</strong>s um senhor, que vinha logo atrás, falou,<br />

aproximando-se:<br />

- Bom dia... Sim! É para a minha neta. – e, passou documentos sobre meus ombros<br />

para o caixa. Na verda<strong>de</strong> ele tencionava trabalhar com várias carteiras <strong>de</strong> investimento. A<br />

menina neta lá <strong>de</strong>le olhava risonha e tentava passar a mão na metralhadora que eu carregava.<br />

Leoni<strong>de</strong>s olhou para mim como se perguntasse não bastava.<br />

- O senhor é...<br />

- Não posso dizer.<br />

- Claro... – <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros meio galhofeiro – Codinome... nem um codinome?<br />

- Tá... po<strong>de</strong> ser... Triúnviro. Meu codinome é Triúnviro... às vezes é Kaiser.<br />

- Uau!... Megalomania...<br />

O senhor atrás na fila, o velho, bateu no meu ombro e perguntou acidamente: - O<br />

senhor vai <strong>de</strong>morar? Tenho que levar minha neta para o jardim... e já está tar<strong>de</strong>... po<strong>de</strong> ser?<br />

Olhei para a baixotinha risonha ao meu lado.<br />

- Sim... é minha neta. Estamos <strong>de</strong> férias na cida<strong>de</strong> e aproveitamos para um passeio.<br />

- Nós também, - respondi, e puxei os malotes com dinheiro para meu lado. O grupo<br />

escapulia e eu saia correndo atrás <strong>de</strong>les.<br />

E, então, o ciclo se fechava. Não a coincidência pura e simples, mas, a existência da<br />

sincronicida<strong>de</strong> que ficou ali patente, como diziam muitos estudiosos, nos levavam a rever e<br />

convergir para momentos que sempre sonhamos como <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> que voltassem. Leoni<strong>de</strong>s<br />

contara um pouco das suas experiências no banco, da perda do sonhos, do mofo nos <strong>de</strong>dos,<br />

da pele esver<strong>de</strong>ada e ainda me <strong>de</strong>u alguns conselhos, e lembrou-se <strong>de</strong> um garoto que<br />

aten<strong>de</strong>ra. Éramos os mesmos mas ele não sabia, nem notou ou fingiu que não. A juventu<strong>de</strong>,<br />

por um instante, voltou e Leoni<strong>de</strong>s se tornou o choramingas <strong>de</strong> sempre. Professores e<br />

bancários são sempre choramingas e do tipo estático, ou seja, sem tirar a bunda da ca<strong>de</strong>ira.<br />

Característica da carreira?<br />

Numa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> sol como aquela, há anos nos víramos numa agencia <strong>de</strong> outro banco,<br />

e travamos rápida conversa que me estimulou a fazer música, teatro e guerrilha. Leoni<strong>de</strong>s terá<br />

mesmo me inspirado a tanto? Parece que parte <strong>de</strong> nossa confiança na empresa nos levou ao<br />

reencontro. A minha certeza absoluta <strong>de</strong> que ali havia muito dinheiro alheio, guardado sob<br />

seguro e que <strong>de</strong>veria passar <strong>de</strong> mão. No meu caso com a crença numa luta armada. A outra<br />

parte, evi<strong>de</strong>nte, a nossa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong> especialização, que trouxe vida longa a<br />

banqueiros e empresário ladrões. Aliás, não há empresário que não seja ladrão. Não existe<br />

nenhuma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguém lucrar sem que outro perca. Chamam a isso <strong>de</strong> “negócios”<br />

mas nada mais é do que roubo mesmo com diplomas <strong>de</strong> rôtaris e laions estampados na<br />

pare<strong>de</strong>. E, ainda, a confiança em futuros variados e sonhados, plantados para a colheita do<br />

amanhã. Cada um com sua <strong>de</strong>sculpa.<br />

43


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

Despedimo-nos. Leoni<strong>de</strong>s ainda olhou em redor como se sentisse uma ponta <strong>de</strong><br />

sauda<strong>de</strong> tendo testemunhando as mudanças do tempo, e, eu num acenar que po<strong>de</strong> ter<br />

causado suspeita futura sobre ele como se aliado interno fora. Eu ainda disse: “O ar<br />

condicionado está ótimo”.<br />

O a<strong>de</strong>us <strong>de</strong>finitivo. Uma rajada <strong>de</strong> tiros para o ar. Ele sorriu, a neta do velho <strong>de</strong>u pulos<br />

e risos, e eu parti para o fusca gelo que me esperava na calçada. O pessoal estava já<br />

impaciente.<br />

Da entrada <strong>de</strong> vidro e ferro a menina abanou a mão.<br />

Se nosso luta <strong>de</strong>sse bom resultado a pequena teria muita estrada pela frente.<br />

RÁ<br />

Emergir o holofote do nada<br />

em que na tar<strong>de</strong> submersos fomos<br />

Transcen<strong>de</strong>r queria / aparecer<br />

O sol transgredir / sabido / fronteiras<br />

<strong>de</strong>u-lhe / instransponível / a morte<br />

O sol criar na tar<strong>de</strong> / no real<br />

o irreal queria / plausível / aparecer<br />

só / incomensuravelmente só<br />

plasmar / entendamos / <strong>de</strong> possível<br />

o impossível<br />

o porque dos olhos<br />

e a visão <strong>de</strong>ssas ruína<br />

44


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

45


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

publicação produzida na FATECmococa, temporada 2008<br />

Março 1 000 exemplares distribuição gratuita nº0<br />

EDITORIAL<br />

Todo grupo Universitário <strong>de</strong>ve se<br />

aventurar no novo, sempre, sob pena <strong>de</strong><br />

cair na mesmice e na repetição do eterno<br />

presente. O eterno retorno da burrice<br />

materializada em sabedoria insípida.<br />

Como produtos da geração Xuxa<br />

emburreceu-se a camada jovem. Isso é<br />

notório.<br />

Daí o motivo <strong>de</strong>ssa publicação que visa<br />

ampliar o leque <strong>de</strong> leituras e <strong>de</strong><br />

pensamentos da FATEC e seus<br />

integrantes, incluindo comunida<strong>de</strong>.<br />

Mas, pensar às vezes dói. Muitas vezes<br />

dói no corpo <strong>de</strong> quem pensa, pois, quem<br />

não pensa resolve distribuir pancadas à<br />

esquerda e à direta.<br />

Evitaremos tal situação.<br />

Raras são as escolas, em Mococa, que<br />

mantêm livres periódicos livres e<br />

permitem que os alunos, professores,<br />

servidores e comunida<strong>de</strong> se expressem<br />

abertamente; claro que isso <strong>de</strong>ve ser feito<br />

com a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les mesmos<br />

pensadores e escritores.<br />

Nada <strong>de</strong> pseudônimo.<br />

Quem escreve assina embaixo.<br />

Portanto, parte da <strong>crônica</strong> da cida<strong>de</strong><br />

passa pela FATEC, e, essa é sua voz<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, esperando por mentes<br />

livres.<br />

MACHADO<br />

Mestre da literatura, respeitado em<br />

todo o planeta – Woody Allen já fez<br />

referência à obra do Machado <strong>de</strong> Assis<br />

em entrevista em 95 - no entanto,<br />

ainda falta leitura sobre a obra do<br />

mestre fluminense. É pouco lido, em<br />

verda<strong>de</strong>, em verda<strong>de</strong> vos digo. E é<br />

sabido que bons <strong>de</strong>bates surgem <strong>de</strong><br />

bons leitores.<br />

Quem nada lê nada tem a dizer.<br />

O Machado, além disso, foi o fundador<br />

da Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras, seu<br />

primeiro presi<strong>de</strong>nte; era mulato,<br />

epiléptico, casou com a branca<br />

Carolina, tinha tudo para se converter<br />

em coisa alguma, no entanto é um dos<br />

iluminadores das nossas cabeças<br />

brasileiras.<br />

O CineFatec gravou a adaptação <strong>de</strong><br />

Bruna Freire – UM OLHAR SOBRE<br />

CAPITU; gravou A CARTOMANTE e<br />

tem preparado textos do gran<strong>de</strong><br />

Machado para saborear em imagens e<br />

arte cênica.<br />

Ave, Machado.<br />

Qual é a tua contribuição para a cida<strong>de</strong> em que vive, além do sofrimento <strong>de</strong> ver<br />

tudo se <strong>de</strong>struir, além <strong>de</strong> cruzar os braços para a cultura?<br />

É sabido que qualquer opinião ou ensinamento bem dado po<strong>de</strong> alterar as cabeças<br />

e as mentes e, <strong>de</strong>ixar o sofrimento nosso <strong>de</strong> cada dia com as religiões que se<br />

aproveitam <strong>de</strong>sse nicho <strong>de</strong> mercado.<br />

Ser ou não Ser? po<strong>de</strong> ser trocado por Ter ou não Ter? esvaziando o Humano <strong>de</strong><br />

suas qualida<strong>de</strong>s mais interessantes.<br />

O celular que você tem é realmente útil ou você foi obrigado a comprar por causa<br />

da propaganda? Será mero status ou micagens?<br />

46


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

Quando os navegantes aportaram na América Latina aqui viviam 80 milhões <strong>de</strong> indígenas. Em<br />

menos <strong>de</strong> um século acabaram com 70 milhões <strong>de</strong>les, sob as bençãos da Santa Madre Igreja e<br />

<strong>de</strong> suas angelicais virtu<strong>de</strong>s. Por que será? O olhar do índio não interessa? A fome do índio não<br />

vale? O índio não obe<strong>de</strong>ce? A pintura do índio é ofensiva? A cor? A música? A voz?<br />

A ALMA una e autônoma proposta pelos discursos da alma é ridicularizada em nome <strong>de</strong> uma<br />

organização das partes do corpo - transmutado agora em organismo - que se torna o suporte<br />

da moral e do entendimento. A saú<strong>de</strong> concebida como a boa or<strong>de</strong>m entre as partes passa a<br />

ser um saber especialista suportado pela idéia do normal e do patológico. O doente <strong>de</strong>ve<br />

relatar seus males nos exames a fim <strong>de</strong> corrigí-los.<br />

Se a introspecção, entendida como auto-observação, era garantia da autonomia da alma nos<br />

discursos anteriores, a sensação, entendida como fato psicológico mais verda<strong>de</strong>iro, permitiu<br />

aos discursos médicos conhecer a alma <strong>de</strong> outra forma inacessível a este saber. Os discursos<br />

médicos forneceram uma nova inteligibilida<strong>de</strong> à noção filosófica <strong>de</strong> sensação transferindo-a <strong>de</strong><br />

uma função da alma para uma função do corpo. Esta operação <strong>de</strong>sloca o estudo da<br />

psicologia, "a alma se <strong>de</strong>svanece ao dar lugar aos discursos sobre o cérebro, os nervos, a<br />

medula, ou seja, o organismo e seu funcionamento." É?<br />

A ciência política é a teoria e prática da política e a <strong>de</strong>scrição e análise dos sistemas políticos e<br />

do comportamento político.<br />

Abrange teoria e a filosofia políticas, os sistemas políticos, i<strong>de</strong>ologia, teoria dos jogos,<br />

economia política, geopolítica, geografia política, análise <strong>de</strong> políticas públicas, política<br />

comparada, relações internacionais, análise <strong>de</strong> relações exteriores, política e direito<br />

internacionais, estudos <strong>de</strong> administração pública e governo, processo legislativo, direito<br />

público (como o direito constitucional) e outros.<br />

Na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma das ciências sociais, a ciência política usa métodos e técnicas que po<strong>de</strong>m<br />

envolver tanto fontes primárias (documentos históricos, registros oficiais) quanto secundárias<br />

(artigos acadêmicos, pesquisas, análise estatística, estudos <strong>de</strong> caso e construção <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los).<br />

COMPROVADO DISCO VOADOR NÃO EXISTE!!!<br />

Um elucidativo texto do pesquisador, dublê <strong>de</strong> Psicabalista, Carlos Gustavo Junior, esclarece,<br />

<strong>de</strong> uma vez por todas, os fatos sobre DISCOS VOADORES e, suas curiosas variantes <strong>de</strong><br />

cunho sexual, os CHARUTOS VOADORES.<br />

Segundo Carlos Gustavo, tudo não passa <strong>de</strong> estórias provindas dos Estados Unidos, país das<br />

possibilida<strong>de</strong>s ilimitadas e da «ficção científica». Para o Psicabalista são «boatos visionários» tal<br />

como as estórias dos cruzados em Jerusalém ou dos fiéis peregrinos em Fátima. No entanto,<br />

Carlos Gustavo Junior é incisivo: «Não existe bola especial nenhuma, em São José do Rio<br />

Pardo! Nem estrada <strong>de</strong> terra tem mais!<br />

A civilização acaba com o misticismo».<br />

Acontecimentos extraordinários da natureza como meteoros, cometas, chuvas <strong>de</strong> sangue,<br />

bezerro com duas cabeças e outras criaturas disformes são interpretados como notáveis que<br />

anunciam acontecimentos ameaçadores, ou ainda, são vistos como «sinais do céu». Quem via<br />

muito disso era Van Gogh, mas, ele não se <strong>de</strong>u muito bem. O episódio da orelha, todos<br />

conhecem. Finalmente, como em Milagres, até coisa “invisívi” (sic) passa a ser vista, a olho<br />

nu. Portanto, VAPO!!, sai <strong>de</strong>ssa! SÔ!<br />

47


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

Enfim, , trará luz para esta cida<strong>de</strong> movediça. A minha cida<strong>de</strong>. A<br />

tua cida<strong>de</strong>. Chega <strong>de</strong> escuridão e trevas. Não faça como GOETHE. Dê palpites.<br />

Fale. Escreva. Participe <strong>de</strong>sta empreitada. Mas, não me venha com sanida<strong>de</strong>s e<br />

coerências. Seja Breton. Seja Dali. Daquí. Seja Buñuel.<br />

CULTURA IMPORTADA<br />

PARA A COLÔNIA<br />

CONSUMIR CALADA<br />

Dança e gira e vira cambalhota e pinga <strong>de</strong><br />

suor e os colonizados seguem repetindo o<br />

que seu mestre americano mandar, sem<br />

dar um pio. Claro que não é apenas a<br />

coisa do HipHop, também o é o do Rock,<br />

queiramos ou não.<br />

Música importada e como dizia Platão:<br />

Quer dominar um povo? Faça-o pela<br />

música. Altere sua música e a dominação<br />

estará completa.<br />

Muito bem, per<strong>de</strong>mos.<br />

E os IPOD enfiados na orelha mandam<br />

or<strong>de</strong>ns subliminares para a juventu<strong>de</strong><br />

obe<strong>de</strong>cer sem questionar, afinal o<br />

mercado quer ven<strong>de</strong>r e as crianças –<br />

inconscientes - comprarão.<br />

AUTOMÓVEIS<br />

Não há mais lugar para eles, ou para nós.<br />

Já foi escrito e, provavelmente,<br />

pesquisado – em um século tivemos 1<br />

bilhão <strong>de</strong> automóveis, e, mais um bilhão<br />

no próximo <strong>de</strong>cênio. Século. Decênio.<br />

E o que é que as pessoas fazem?<br />

Compram mais carros. O sonho <strong>de</strong><br />

consumo. “O filhinho que passou na<br />

faculda<strong>de</strong>”. “Ah! Hoje o automóvel é um<br />

bem necessário”. E, lá vai a pessoa,<br />

sozinha, em seu carro. Um carro por<br />

pessoa e a poluição comendo, mas quem<br />

é que tem qualquer tipo <strong>de</strong> consciência?<br />

Ninguém. Nem os mais velhos. Para<br />

manter o status e o penis ereto é<br />

necessário ter automóvel.<br />

A sujeição aos bens <strong>de</strong> consumo já é<br />

premissa antiga e Marx explica muito bem<br />

esse fetichismo.<br />

ADÃO e EVA eram GÊMEOS<br />

UPI- International – Iraque ou mesopotâmia, ou que vier primeiro.<br />

Recentes estudos <strong>de</strong>scobriram que ADÃO e EVA tiveram infância e eram gêmeos, talvez<br />

xifópagos. A Bíblia mesmo não afirma que nasceram adultos – isso é coisa do senso comum<br />

inventada por algum capeta <strong>de</strong>sprevenido – e, agora, a Ciência <strong>de</strong>svenda o mistério<br />

<strong>de</strong>scobrindo que o primeiro casal, além <strong>de</strong> gêmeos, eram contumazes incestuosos, o que<br />

parece ser bom, segundo a mesma fonte Deuteronômica.<br />

Alguns exegetas proclamam que o incesto era costume na época e que não po<strong>de</strong> ser visto fora<br />

do contexto. Outros exegetas retiram sempre a coisa do contexto para garantirem a<br />

veracida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas idéias. Não dá para enten<strong>de</strong>r esses tais exegetas.<br />

O fato é que ADÃO e EVA eram gêmeos, nasceram sabe-se lá <strong>de</strong> que barriga, provavelmente<br />

um caldo <strong>de</strong> proteínas misturado com lama que estava no chão ou na beirada do rio Tigre ou<br />

Eufrates (os cientistas não querem tomar partido).<br />

Alguns pesquisadores nacionalistas, que estavam no campo <strong>de</strong> pesquisa, dizem que o<br />

sobrenome <strong>de</strong>les era Hussein, mas, os titulares não confirmam. Afirmam sim que a fruta não<br />

48


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

era maçã, mas amora, pois, é em mórula que se dá a multiplicação das a multiplicação das<br />

células após a formação do zigoto e daí, a construção do embrião.<br />

Dizem que o Gêneses se refere ao período intra-uterino – dando nova luz, ou dando à luz, um<br />

novo conceito – e que dura uma semana para se <strong>de</strong>senvolver.<br />

Logo, dizem, Moisés, que estudou no palácio do faraó, segundo B. De Mille, não só era<br />

Biólogo, como costumava tirar água <strong>de</strong> pedra em suas horas vagas.<br />

EDITORIAL<br />

Plantar as sementes da cultura é tarefa<br />

árdua. Principalmente num país on<strong>de</strong> há 70<br />

% <strong>de</strong> analfabetos funcionais e muitos<br />

vereadores sem qualquer função. Tudo isso<br />

é produto da nossa história. Enquanto no<br />

final do século 19 Estados Unidos e França<br />

tinham, lá, seus 15% <strong>de</strong> analfabetos, o<br />

Brasil contava com 84%. É diferença pra<br />

ninguém botar <strong>de</strong>feito.<br />

Seguindo a isso vem a nossa mentalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> eterna colônia eterna: servis e<br />

obedientes o tempo todo e macaqueando o<br />

que vem do Norte, sempre.<br />

Daí, plantar semente <strong>de</strong> cultura é tarefa<br />

para Hércules, inda mais quando<br />

universitários limitam a jogar baralho nos<br />

corredores das Universida<strong>de</strong>s. Dã!!<br />

Obrigado.<br />

Ler e aproveitar que o Machado <strong>de</strong> Assis<br />

faz 100 anos <strong>de</strong> morto-vivo, pois, sua obra<br />

está aí para dar exemplos <strong>de</strong> como se po<strong>de</strong><br />

ser culto e construtor <strong>de</strong> civilizações. E,<br />

aqui do lado a nossa homenagem <strong>de</strong> outro<br />

centenário ilustre.<br />

Pra finalizar: É universitário? Tem que ter<br />

cultura, pois o mercado <strong>de</strong> trabalho não é<br />

para meia-bomba.<br />

GUIMARÃES ROSA<br />

O caso <strong>de</strong>ste é já<br />

fazer 100 anos <strong>de</strong><br />

nascimento,<br />

especialmente se<br />

estivesse vivo. O<br />

Machado <strong>de</strong> Assis<br />

fazendo 100 anos <strong>de</strong><br />

morto e o Guimarães<br />

100 anos <strong>de</strong> nascimento. Merecem<br />

comemorações constantes, e, a melhor<br />

<strong>de</strong>las é a leitura <strong>de</strong> suas obras. DICA:<br />

Tem um prédio ao lado <strong>de</strong> um banco<br />

na Praça do Rosário, no centro da<br />

cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mococa. Ali habita a<br />

Biblioteca Municipal e seus<br />

funcionários abnegados prontos para<br />

servir e trocar figurinhas literárias.<br />

Basta ir até lá, e, pegar, por exemplo<br />

GRANDE SERTÃO:VEREDAS, do<br />

Guimarães e, quem sabe?, ESAÚ E<br />

JACÓ, do Machado <strong>de</strong> Assis. E a vida<br />

estará ganha.<br />

Prato feito para quem se alimenta <strong>de</strong><br />

cultura.<br />

Mas, cultura não é só ficar lendo. É<br />

aplicar o que leu e apren<strong>de</strong>u ou<br />

apreen<strong>de</strong>u no dia-a-dia da sua cida<strong>de</strong>.<br />

Fazer política, enfim.<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

CIDADE<br />

Sobre a mágica <strong>de</strong> rubras manhãs<br />

eras nua:com rosto<br />

e levavas na boca um <strong>de</strong>nte <strong>de</strong> ouro<br />

Em momentos <strong>de</strong> Astros e Terras consumados<br />

foste a crua entranha<br />

on<strong>de</strong> me achei em fins <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro<br />

Esqueci, por ti, os lilases<br />

as envergonhadas andanças<br />

que sempre praticava no prelúdio das noites<br />

Derramei beijos sofríveis em teus seios <strong>de</strong> jasmins sonoros<br />

Nos signos da tar<strong>de</strong><br />

eu enxergava os minutos gélidos como palma <strong>de</strong> vidro<br />

e nas pupilas <strong>de</strong> tuas lágrimas alquebradas<br />

cercavam-me<br />

o vão da ostra<br />

o caminho das vertentes<br />

as pausas entre suspiros<br />

cada paralelepípedo<br />

Escrevo no Inverno<br />

Encontro vagas <strong>de</strong> espuma entre nossa distancia<br />

Parece que <strong>de</strong> mim<br />

um vazadouro libera<br />

o resto <strong>de</strong> bonda<strong>de</strong> esquecido<br />

sempre esquecido entre artimanhas doces,<br />

<strong>de</strong>rramando sobre a pele antiga das praças centrais<br />

aquilo que cobre teu regaço cansado <strong>de</strong> uso<br />

toda a poesia inútil <strong>de</strong> todo o dia brota daí<br />

50


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

A CASA DOS BOTÕES<br />

Novamente Gatsu estava com o taco na mão.<br />

Realmente, ou seja, ele se tornando objeto-em-si, <strong>de</strong> maneira repetida, nem se lembrava<br />

direito da ultima vez em que segurou um taco com tanta virilida<strong>de</strong>. Sabia que aquele era <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira bem lisa, confeccionado pelas mãos divinas <strong>de</strong> prostitutas sagradas, sendo que o<br />

manípulo finalizava em um punho <strong>de</strong> borracha vindo da Alsácia Lorena, punho especialmente<br />

feito para Gatsu. Coisas do ontem.<br />

Gatsu, nas coisas do hoje, preocupava-se em rebater a bola para bem longe.<br />

Era um jogo e acontecia assim:<br />

Do outro lado da sala alguém atirava a pelota, - tratava-se <strong>de</strong> esfera <strong>de</strong> chumbo <strong>de</strong> 7 cm <strong>de</strong><br />

diâmetro, extremamente polida, - <strong>de</strong> modo que a obrigação <strong>de</strong> Gatsu era, com o taco aquele,<br />

<strong>de</strong>sviar o objeto esférico para os cantos do salão <strong>de</strong> espelhos; isso faria com que a bola<br />

penetrasse na sua própria imagem, num dos tais espelhos entre milhares. Depen<strong>de</strong>ndo do<br />

tipo <strong>de</strong> espelho – quadrado, ovalado, elipsói<strong>de</strong>, mercurado, argentado, plastomerizado, Gatsu<br />

conseguiria certos pontos importantes para a equipe (que era ele mesmo e o taco, em um<br />

momento; noutro, ele e a bola <strong>de</strong> chumbo). Se o espelho se quebrasse os pontos reverteriam<br />

para o adversário. Aliás, ai é que entrava a perícia dos jogadores. Fazer com que a bola se<br />

mesclasse à sua própria imagem e se fundisse em um abraço platinado até que por fim - com<br />

peripécias na química das reflexões ou refrações como querem alguns - a imagem caísse para<br />

fora do espelho, vindo rolar pelo tapete <strong>de</strong> pele <strong>de</strong> carneiro.<br />

Gatsu era um "expert" e, após três espelhos quebrados contra cinco <strong>de</strong>struições do oponente<br />

(o que dava a folgada margem <strong>de</strong> 43 pontos <strong>de</strong> Gatsu contra 18 do outro jogador ), Gatsu<br />

conseguiu o máximo <strong>de</strong> suavida<strong>de</strong> na sua tacada e arrancou do mais valioso espelho a mais<br />

<strong>de</strong>nsa das imagens plúmbeas que já se viu em um país como esse, a qual veio dormitar a<br />

seus pés. Eram 75 pontos cravados.<br />

Fora excelente a tacada e os aplausos <strong>de</strong>sceram da platéia em forma <strong>de</strong> cascatas algumas, e,<br />

como granizo em campos <strong>de</strong> milho, outrunas.<br />

0 adversário veio cumprimentar o vencedor que chorava <strong>de</strong> alegria.<br />

Abraçaram-se e, como era costume, rodopiaram em torno <strong>de</strong> si mesmos mantendo as<br />

cabeças coladas na forma <strong>de</strong> peõezinhos. Foi quando o rapaz per<strong>de</strong>dor tomou o braço <strong>de</strong><br />

Gatsu e perguntou-lhe, visivelmente intrigado:<br />

- E, sobre a casa dos botões.<br />

Entreolharam-se. Gatsu hesitou como se soubesse <strong>de</strong> algo ingrato, infame, sem ter a mínima<br />

intenção <strong>de</strong> contar coisa alguma. O olho superior, safirino; os <strong>de</strong>dos pontiagudos que levou a<br />

uma das bocas; mas, a salva <strong>de</strong> palmas que ainda jorrava da turba <strong>de</strong> torcedores fez com que<br />

Gatsu tomasse a iniciativa e mirasse fixamente o outro, mantendo um ar <strong>de</strong> preocupação só<br />

encontrado entre os mirmidões. Procurou, durante alguns instantes, no fundo da memória.<br />

Então, <strong>de</strong>u <strong>de</strong> ombros e disse:<br />

- Não sei. Nunca ouvi falar – e saiu para o vestiário.<br />

51


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

TAXA SOBRE ALCOOL e CIGARRO<br />

Os <strong>de</strong>partamentos, ministérios e outras secções que respon<strong>de</strong>m pela saú<strong>de</strong>, também<br />

respon<strong>de</strong>m, por custos <strong>de</strong> clínica e cuidados e tratamentos para esses viciados oficializados em<br />

seus rituais <strong>de</strong> auto-<strong>de</strong>struição.<br />

Além do dinheiro extraviado, - sim, pois isso é um roubo, rombo, solapar <strong>de</strong> recursos, - há<br />

que, obrigatoriamente, cuidar e dar tratamento e atendimento aos doentes que usam cigarro e<br />

bebida alcoólica. E isso, todo dia.<br />

Tais usuários ainda são queridinhos da socieda<strong>de</strong>.<br />

Certamente todos somos livres para ir e vir , fumar e beber, e manter outras ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

risco que <strong>de</strong>pendam do livre arbítrio, porém, me parece que outras pessoas, ainda e alhures.<br />

– cidadãos avessos à estas práticas, - que nada disso fazem e nem querem fazer, se vêm<br />

obrigadas a pagar, contra sua vonta<strong>de</strong>, contra seu livre arbítrio, o tratamento e atendimento<br />

<strong>de</strong>sses mesmos grupos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, adictos e <strong>de</strong>strutivos que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m o direito <strong>de</strong> fumar e<br />

beber.<br />

Há quem diga que a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve cuidar dos seus produtos e dos sub-produtos.<br />

Com certeza tudo isso é produto cultural.<br />

Pois bem. Quem fuma e bebe <strong>de</strong>ve pagar a mais por isso. Muito mais.<br />

Como fumar e beber são valores culturais, - não naturais, - construídos a cada tempo,<br />

proponho que seja criada uma taxa direcionada para os cofres públicos <strong>de</strong> modo a ser usada,<br />

exclusivamente, no quesito CULTURA.<br />

Há estatística que prova o dilapidar dos cofres da saú<strong>de</strong>, além do roubo normal <strong>de</strong> seus<br />

políticos usuários, em 12% para tratamento <strong>de</strong> fumantes e doenças causadas pelo fumo,<br />

incluindo o panorâmico câncer e o nostálgico enfisema. Outro tanto maior é para tratar e<br />

aten<strong>de</strong>r doentes que chegam ao Pronto-Socorro para atendimento e tratamento <strong>de</strong> efeitos do<br />

álcool. Essas pessoas, - inconscientes e pouco dadas à cidadania, – consomem a paciência <strong>de</strong><br />

enfermeiros e médicos, consomem soro e medicamento, consomem horas em ambulatório,<br />

continuam doentes e não param <strong>de</strong> se auto <strong>de</strong>struir.<br />

No ato <strong>de</strong> consumir <strong>de</strong>ve haver uma sobretaxa in loco. Na loja ou botequim, em torno <strong>de</strong><br />

10%, angariados para a CULTURA, repito.<br />

A outra opção é o NÃO atendimento em postos públicos para os portadores <strong>de</strong>stes vícios<br />

sociais, – cuidado se não o BOPE te pega, – e, tais doentes <strong>de</strong>vem se dirigir a médicos<br />

particulares para não onerar mais ainda o custo do tratamento público. Cada um cuida do seu<br />

prazer.<br />

Nada <strong>de</strong> SUS com estes. Não merecem. SUS apenas para doentes sadios ou ocasionais, ou<br />

ainda, doentes que surgem por imperícia da Saú<strong>de</strong> Pública, como en<strong>de</strong>mias, epi<strong>de</strong>mias,<br />

parasitoses e afecções ocasionadas pela fome e carência global.<br />

Um alcoólico ou fumante não po<strong>de</strong> competir com essas formas <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>s,<br />

principalmente quando as vítimas são jovens e crianças. Virem-se!<br />

Cada doente fumante ou alcoólico que vá pagar seu médico particular, ou, fique à mercê <strong>de</strong><br />

Darwin.<br />

Ou a sobretaxa ou o médico particular.<br />

Eia! SUS!!<br />

52


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

IMPOSTO ZERO<br />

Sou a favor <strong>de</strong> que não se <strong>de</strong>ve pagar impostos para administrações, comprovadamente,<br />

incompetentes. Tem gente que acha que não. Se você não pagar os impostos, dizem elas,<br />

trata-se <strong>de</strong> <strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong>, afinal, afirmam, todos pagam e você <strong>de</strong>ve pagar. Sendo assim,<br />

todos são infelizes, você <strong>de</strong>ve ser também...<br />

Mentira. Comerciante sonega mais que o quê e continua honesto, mas, isso é outro assunto<br />

para outra pauta.<br />

Imposto, a palavra já diz, é posto por quem tem as costas largas e po<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r com a<br />

polícia ou promotores <strong>de</strong> plantão.<br />

Um ato <strong>de</strong> pura civilida<strong>de</strong> e cidadania é escolher se <strong>de</strong>ve ou não pagar impostos; eu acredito<br />

nisso. Você vê buracos pelas ruas durante quatro, oito anos e se pergunta: Pra’que pagar<br />

impostos se o buraco só cresce?<br />

Você sabe que nas noites a lua e as estrelas são mais visíveis pois não há lâmpada nas ruas.<br />

Postes nus. A poesia po<strong>de</strong> ser legal mas a insegurança é patente.<br />

Sinecuristas e outros tipos <strong>de</strong> promotores interioranos, principalmente usuários a burrice<br />

caipira, querem dar exemplos <strong>de</strong> dureza nesses casos. Gritam, entre suas gravatas e<br />

colarinhos impecáveis que fazem e acontecem. Pura balela. Se quisessem manter e preservar<br />

justiça seriam juízes <strong>de</strong> futebol, - que têm o beneplácito <strong>de</strong> errar na hora certa, - ou<br />

<strong>de</strong>sistiriam. É impossível acreditar em justiça em discurso <strong>de</strong> advogados. Ficção científica. E,<br />

advogados são caros.<br />

Vejam bem: O poste <strong>de</strong> luz que ilumina minha rua fui eu que pus e acendo a lâmpada <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntro da minha casa. As lâmpadas eu compro. Os buracos, como já disse, ampliam-se a<br />

olhos vistos no asfalto vagabundo do meu bairro. Os buracos não fui eu quem projetou.<br />

Pagar imposto? Claro que não. Vapo, sô. Ato cidadão será o <strong>de</strong> escolher ou negociar<br />

impostos. Ou então, <strong>de</strong>scontar do imposto as melhorias que você mesmo fez em seu bairro,<br />

mesmo quem somente fez em frente à sua casa.<br />

Coisa lúcida, não? Para os não lúcidos fica o lugar comum.<br />

Muganga, a Macondo da Mogiana, é até muito corajosa em enfrentar 8 anos <strong>de</strong> burrice<br />

indômita. Correu muito risco, e mesmo assim, eu me dou o direito <strong>de</strong> não confiar nesta<br />

geração. Cada buraco <strong>de</strong>sses que vemos pela rua vale um cachê em prior e obra <strong>de</strong> arte.<br />

Acredito até que os governantes <strong>de</strong> plantão retirem seus <strong>de</strong>z por cento <strong>de</strong> cachê, antes da<br />

obra ficar pronta. Piece-of-art. Os buracos permanecem e, se somarmos todos teremos um<br />

verda<strong>de</strong>iro piscinão. Talvez esteja aí a estratégia do alcai<strong>de</strong> para o esvaziamento das<br />

enchentes. Entupir a rua <strong>de</strong> buracos sem <strong>de</strong>sentupir as bocas-<strong>de</strong>-lobo ou os riachos e rios e<br />

ribeirinhas poéticas, esvaziando, assim, as futuras enchentes.<br />

Eu mesmo prefiro Sandy e Junior a ter piscinões. Eu sou <strong>de</strong>sses espertos, como o promotor<br />

público, que prefere ver 200 pilas sair da cida<strong>de</strong> em vez <strong>de</strong> acabar com enchentes. Belo<br />

aniversário. 5 <strong>de</strong> abril, dia <strong>de</strong> Sandy e Junior. 200 mangos milhares no lixo. E vamos nessa.<br />

E a menina ainda cantou sobre pré-gravação, ou seja, (<strong>de</strong>s)cantou.<br />

Sim, a natureza é culpada – promotora, assim diremos - das chuvas, mas a pretoria é<br />

responsável no caso <strong>de</strong> enchentes. O interessante é que os comerciantes das beiradas<br />

preferem colocar um tampão nas portas <strong>de</strong> suas lojas em vez <strong>de</strong> reclamar com o alcai<strong>de</strong><br />

negligente... UAU! A coisa ficou mesmo <strong>de</strong> cabeça para baixo mesmo.<br />

Eu sou a favor <strong>de</strong> emenda que mantenha o alcai<strong>de</strong> por mais 16 anos. Talvez a até nisso a<br />

burrama da câmara errará nos cálculos.<br />

Agra<strong>de</strong>i a todos?<br />

Assim eu fisso <strong>de</strong> conta que sou cego.<br />

53


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

O VEREADOR SONâMBULO<br />

Muganga continua a vazar em besteirol. A Macondo da Mogiana traz agora “A saga <strong>de</strong> Lúcifer<br />

Brós Marião”; daquelas <strong>de</strong> encher a boca <strong>de</strong> fel.<br />

Durante onze anos foi vereador e se gaba, em propaganda, <strong>de</strong> nada ter feito pelo município.<br />

Está escrito em seu papelucho <strong>de</strong> campanha. Sente-se na obrigação <strong>de</strong> prestar contas à<br />

população somente 11 anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> eleito pela primeira vez.<br />

Muito estranho.<br />

Ainda por cima, - ou por baixo dos panos, - tem sonhos e <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> ser Prefeito.<br />

Por cima e por baixo. Será isso uma ameaça?<br />

Diz ele que continua segurando na mão <strong>de</strong> Deus. O que é um perigo, pois, quanto maior a<br />

altura maior o tombo. Mas, sabemos que Deus é bom, e Ele, pela boca <strong>de</strong> Joshua, sempre<br />

disse: “Vin<strong>de</strong> a mim os pequeninos”. Realmente Lúcifer Brós Marião não é dos maiores. É<br />

pequenino em corpo e alma. Dizendo-se seguidor <strong>de</strong> Jesus e sabendo, como todos, que Jesus<br />

chamava para si os publicanos, as prostitutas e os criminosos e doente e leprosos, a resposta<br />

está dada. Lá foi ele.<br />

Há quem diga que Jesus também disse: “Vin<strong>de</strong> a mim os políticos, mas sentem-se num banco<br />

mais afastado”. Os exegetas não confirmam esta versão, ou aversão.<br />

Bem... sigamos a saga do pequeno Lúcifer Marião.<br />

Diz ele ter bom relacionamento com o Executivo MuMicipal. Isso é mau, para um vereador,<br />

que <strong>de</strong>veria ser o fiel escu<strong>de</strong>iro do povo. Para o povo é um mal.<br />

Na sua biografia encontramos números: 709 requerimentos (paeis que pe<strong>de</strong>m algo, o que não<br />

quer dizer que consigam o tal algo); 506 indicações (o que <strong>de</strong>monstra a sua conduta <strong>de</strong> <strong>de</strong>do<br />

duro – In<strong>de</strong>x Durus – Point Dexter); 362 Moções (que sabemos todos <strong>de</strong> nada servirem a não<br />

ser para <strong>de</strong>monstrar servilismo. Se fossem Monções encheriam o Ribeirão do Meio <strong>de</strong> água<br />

salobra); 46 Leis (quid quo pro?); 16 <strong>de</strong>cretos Legislativos e 5 resoluções. No entanto uma<br />

Lei que daria suporte aos artistas da cida<strong>de</strong>, já existente, sancionada pelo caudilho atual, o<br />

velho Lúcifer não tocou e nem se mexeu no trono, para saber do que se tratava, pois não<br />

podia correr o risco <strong>de</strong> alterar a suas “boas relações” com o Executivo MuMicipal.<br />

“Boas Relações, hein?”<br />

O Beato Insigne Legislador, conhecido como BIL, ainda propaga que <strong>de</strong>volveu dinheiro do<br />

exercício anterior da sua Câmara ar<strong>de</strong>nte predileta, sendo que isso é uma obrigação natural e<br />

que o dinheiro retorna automaticamente aos cofres MuMicipais.<br />

Ele prega o que não faz.<br />

A Câmara Escola já existia, talvez com outro nome e diz que foi ele, BIL, quem i<strong>de</strong>alizou a tal<br />

peripécia. BIL esteve presente na inauguração <strong>de</strong> uma coisa; ao lado do <strong>de</strong>putado Tal,<br />

discursando na fundação <strong>de</strong> uma escola que era fundação, prestigia a Copa <strong>de</strong> futebol; batiza<br />

elevadores; escon<strong>de</strong> Museus; enfim, ações nenhuma e ações ocas. Em situações como estas<br />

encontraremos Lúcifer Brós Marião, aqui chamado <strong>de</strong> BIL ou Beato Insigne Legislador.<br />

Completamente opaco em seus atos quotidianos termina a sua propaganda política para<br />

prefeito com um: “VAMOS REFLETIR JUNTINHOS”. Sendo opaco não sei como refletirá.<br />

Ele conta a história do pintor que pinta Jesus e Judas com o mesmo rosto. Parece que o<br />

mesmo rosto serviu para as duas circunstancias distintas. Esta mensagem Lúcifer Brós Marião<br />

nos dá <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>ja:<br />

- “Cuidado comigo. Tenho duas caras que servem para qualquer coisa em qualquer situação”.<br />

O dinheiro da campanha política antes do tempo que Lúcifer Brós Marião jogou na rua veio da<br />

on<strong>de</strong>? Em que gráfica foi feito? Quem foi o jornalista responsável?<br />

O pré-caudilho terá alguma resposta para isso?<br />

54


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

20 ANOS NO PODER<br />

TEXTO DO ANO 2003<br />

Sergio Motta disse: - O nosso (PSDB) projeto <strong>de</strong> governo é permanecer os próximos<br />

vinte anos no po<strong>de</strong>r (Não contava ele com a provi<strong>de</strong>ncia divina que preten<strong>de</strong>u que ele<br />

permanecesse o resto da eternida<strong>de</strong> no céu).<br />

Fernando Henrique: Esqueçam tudo o que escrevi! (ao ocupar o posto <strong>de</strong> presi<strong>de</strong>nte<br />

eleito). A proposta é a instalação do sistema Neo-Liberal que o colega Collor não soube aplicar<br />

(digo eu).<br />

Lula disse: Nunca fui <strong>de</strong> esquerda! (após entrar como governo). E estamos nos<br />

preparando para permanecer muito tempo no po<strong>de</strong>r.<br />

Taí. Essa coisa <strong>de</strong> permanecer no po<strong>de</strong>r não é algo novo e os <strong>de</strong>sesperados <strong>de</strong> plantão<br />

nem precisam comer suas unhas já em sabugo pois quando se atrela ao po<strong>de</strong>r é para nele<br />

permanecer, sim!, ou, não haveria reeleição nem Maquiavel. A idéia da reeleição veio no<br />

governo FHC. Os “cidistas” que o digam, mesmo que o cidista mor mu<strong>de</strong> <strong>de</strong> partido. Pelo<br />

menos em Muganga, a Macondo da Mogiana, a proposta do Sergio Motta está em franco<br />

<strong>de</strong>senvolvimento e se alicerçando bem. Parabéns. Teceram uma estratégia e estão se dando<br />

bem. O Sergio Motta era o homem forte - uma espécie <strong>de</strong> José Dirceu com suspensório e<br />

camisa listrada – do governo Fernando Henrique. A mesma truculência, talvez. Tipo: bateu,<br />

levou.<br />

O governo Lula vai fazer o mesmo.<br />

Com maior competência pois a organização partidária é maior e mais articulada – a<br />

Articulação manda, <strong>de</strong>manda e <strong>de</strong>smanda. E se conforma às situações. Vejamos a <strong>de</strong>claração<br />

do Genoíno – presi<strong>de</strong>nte nacional do PT – <strong>de</strong> que, após as eleições, haverá uma nova<br />

reciclagem nas posições e se <strong>de</strong>senhará uma nova visão do que é ser <strong>de</strong> esquerda. Quer dizer,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> votos em Congressos Petistas (po<strong>de</strong>m ser dirigidos como já sabemos todos<br />

que estivemos na Convenção em Serra Negra em 2001) os dirigentes alterarão mais uma vez,<br />

sem opinião <strong>de</strong> mais ninguém, para que lado as “ban<strong>de</strong>iras históricas” <strong>de</strong>vem balançar. A<br />

maioria dos petistas articulados, os recentes paraquedo-petistas e os que só estão por aqui<br />

para aproveitar da ocasião e ver no que dá, dirão amem, além e aquém, como verda<strong>de</strong>iros<br />

cor<strong>de</strong>irinhos pascais. Sois-disant.<br />

Bico <strong>de</strong> lacre, enfim, por que lá vem cargo.<br />

As leis <strong>de</strong> Mordaça recentes, ANCINAVE, Fe<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> Jornalistas e outros que a tais<br />

me transporto, em história, a Getúlio Vargas e aos processos <strong>de</strong> ditadura, rolam como águia<br />

na pedra. Naquelas épocas, sob várias Leis <strong>de</strong> Mordaça, o Brasil cresceu esplendoroso, com<br />

direito a optar se ficava com os Estados Únicos ou com os Nazistas. Roosevelt veio, em<br />

pessoa, garantir o seu voto para o bloco dos irmãos americanos. E, o curioso, tendo o PTB<br />

como base <strong>de</strong> governo fe<strong>de</strong>ral. Aliás, o PTB sempre esteve sob as asas do governo Fe<strong>de</strong>ral. É<br />

o partido que mais esteve no governo. Gran<strong>de</strong> exemplo dá ao PMDB. Basta estudar bem<br />

nossa história. O PTB trabalhista, <strong>de</strong> Jango, <strong>de</strong> Brizola, então o PMDB <strong>de</strong> Sarney, <strong>de</strong> Itamar e<br />

junto a Lula. Mas isso é a nossa história.<br />

Em Muganga, a Macondo da Mogiana, após uma <strong>de</strong>rrotada passagem pela pretoria<br />

mocoquense, o alcai<strong>de</strong> sem bigo<strong>de</strong>s saiu do PMDB e foi <strong>de</strong>tonar o PTB. Saiu <strong>de</strong> lá e voltou<br />

para projetar a maior lição <strong>de</strong> nonsense já vista. Montar a coligação Jeito Honesto <strong>de</strong><br />

Governar. A coligação é feita por dois partidos. Um nunca governou. O Outro já. Dessa forma<br />

fica a pergunta que não quer calar: “Como assim, JEITO HONESTO?”<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

Estão dizendo quer há um jeito <strong>de</strong>sonesto ou querem dizer que o governo atual é<br />

<strong>de</strong>sonesto?<br />

Não entendi.<br />

Mesmo assim, o modo petista <strong>de</strong> governar é o que se <strong>de</strong>senvolve em nível nacional. E<br />

com as vitória nas exportações, na supersafra <strong>de</strong> grãos, na ampliação do aparelhamento das<br />

instâncias <strong>de</strong> governo, a diminuição dos juros (SELIC e outros), as vitórias na política externa<br />

(vi<strong>de</strong> subsídios europeus), mega compras <strong>de</strong> inverno, superfaturamento no natal, nos fazem<br />

pensar que a população pouco vai se lixar se os jornalistas estão censurados ou não. Os mais<br />

velhos se lembrarão do Getúlio e dirão: Naquela época veio o Salário Mínimo quando se<br />

comprava <strong>de</strong> tudo; naquela época teve Volta Redonda, apareceu a Petrobrás e outras Brases,<br />

o Brasil ganhou a guerra e teve negócios com os Estados Unidos, então, para quê o povo vai<br />

se preocupar se alguns cineastas, escritores, jornalistas, artistas, estão sob censura ou<br />

orientação ou disciplina ou não?<br />

E reaparecem os pais dos povos.<br />

Esse é o caminho. É para aí que vamos. Vinte anos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. E, se as regras não estão<br />

claras, o eleitor estu<strong>de</strong> bem o que fará nas próximas eleições. Nada mais. Estu<strong>de</strong> se souber ler<br />

e escrever.<br />

O PT local tem a obrigação <strong>de</strong> explicar como é que funciona o “JEITO HONESTO DE<br />

GOVERNAR”. Quem foi o autor <strong>de</strong>ssa pérola?<br />

Em 2000 tivemos um plano <strong>de</strong> governo. Provavelmente o primeiro da história da<br />

política <strong>de</strong> Mococa. Lembro que, por influencia do pensamento lento vigente na cida<strong>de</strong>, o<br />

plano <strong>de</strong> governo não saia nunca pois os companheiros, atentos, faziam questão <strong>de</strong> não vir a<br />

algumas reuniões, adiava-se a votação e o tempo passava, queriam votar e discutir e votar e<br />

discutir e votar e discutir... tararáu-tararáu-tarará. E, ficaria assim mesmo, caso não<br />

houvesse uma tomada <strong>de</strong> iniciativa, – que as pessoas confun<strong>de</strong>m com ação ditatorial, - para<br />

se por na rua o tal plano <strong>de</strong> governo, um esboço, é claro, baseado nos governos <strong>de</strong> algumas<br />

prefeituras petistas daquele momento. Para lerdos a iniciativa era uma espécie <strong>de</strong> usurpação e<br />

fazem questão <strong>de</strong> esquecer que, idéias, as pessoas têm individualmente. O que soma no<br />

coletivo são as idéias <strong>de</strong> cada indivíduo. Uma puxa a outra. Agora, num local sem idéias...<br />

On<strong>de</strong> está o plano <strong>de</strong> governo da campanha atual?<br />

On<strong>de</strong> buscar os quadros para ocupar a prefeitura no caso <strong>de</strong> vitória. E no caso <strong>de</strong><br />

vitória, certamente a coligação aparelhará a Prefeitura com seu quadro; um quadro que já<br />

governou Muganga e <strong>de</strong>ixou um legado para ser esquecido.<br />

Será, enfim, uma campanha para uma Prefeitura ou uma Pré-fritura?<br />

56


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

MOKA<br />

Virgínia me falava da resolução dos contrários. Falava como podia pois minha língua se<br />

enfiava em sua boca macia. E todos sabemos que essa resolução é a atração máxima <strong>de</strong> todos<br />

os gnósticos. Eu nem queria mais saber <strong>de</strong>sse pessoal. Místico, esotérico e loquaz.<br />

- Me larga. É hora. Estamos já atrasados e você não me larga.<br />

- - É a Kundalini.<br />

- O quê? – ela perguntou, enquanto abaixava a túnica <strong>de</strong> linho marroquino.<br />

- Nada nada. Vamos.<br />

A noite prometia <strong>de</strong>lícias, mas ela não me quis dar as mãos. Fiz <strong>de</strong> tudo para não irmos ao<br />

templo. Eu mesmo tinha mais do que fazer.<br />

O templo nos esperava. Lá o povo se alvoroçava para ver sacerdotisas semi-nuas e o ritual<br />

mais atualizado. O povo. Besta colossal. Substancia-chave, substancia-vida em que se permitia<br />

superar as contradições da natureza humana. Mas pensar naquilo não ficava bem com tanta<br />

estrela para ouvir segredos. E no meu caso, o povo era chave enigmática para a liberda<strong>de</strong>.<br />

- Como é que você po<strong>de</strong> ser assim. Ativo e contemplativo ao mesmo tempo – Virgínia<br />

perguntou e me pareceu levemente zangada.<br />

- É que sou poeta e filósofo. Tenho minha religião mas raciocino livremente.<br />

- É difícil ser sábio e criança.<br />

- Não, não é não. Basta manter acesa a chama do <strong>de</strong>sejo. Sobre você, Virgínia. E umas<br />

questões sobre liberda<strong>de</strong> e moral.<br />

- A última ambição. Ser jovem e velho ao mesmo tempo. Você não passa <strong>de</strong> um<br />

adolescente – ela riu, sem marca alguma que lembrasse atrasos e esperas.<br />

O jardim do templo se abriu aos nossos olhos. Olhei para os arbustos circunvizinhos e tudo<br />

me pareceu calmo. Estátuas colossais, várias fontes <strong>de</strong> água, árvores frondosas tremulavam<br />

ao sabor do clarão das tochas.<br />

- Venha. Vamos para os aposentos com rapi<strong>de</strong>z – ela me disse.<br />

Entramos passando por algumas pessoas curiosas que nos olhavam e rumamos para os<br />

corredores do palacete procurando camareiros e auxiliares. De longe eu mergulhava nos<br />

cabelos <strong>de</strong> Virgínia e lembrava <strong>de</strong> seus aromas. Uma dúvida me alcançava. Por certo nesse<br />

momento eram banhados com mirra e óleos aromáticos recém chegados da Cachemira. O<br />

povo, o filtro dos iluministas. O povo, a pedra filosofal dos hermetistas se aglomerava nos<br />

<strong>de</strong>graus ocres que se faziam <strong>de</strong> arquibancadas. O povo, a vida reduzida a seu princípio. O<br />

momento esperado tinha data marcada.<br />

Sem a túnica recebi banhos <strong>de</strong> óleos, também, mas a meu lado outros homens recebiam<br />

atenção diferenciada. Eunucos masturbavam aqueles senhores, lentamente, estimulando-lhes<br />

<strong>de</strong>sejos e facilitando o culto futuro.<br />

- Nem todos po<strong>de</strong>m atravessar a porta.<br />

Imediatamente me virei e um daqueles homens arfantes chamou minha atenção.<br />

- Como? Desculpe, mas eu pensava em outra coisa – estremeci.<br />

- Des<strong>de</strong> Moisés, todos os magos que viram a Terra prometida, não po<strong>de</strong>m atravessar a<br />

porta.<br />

- O quê?<br />

- Moisés não teve permissão para entrar na Terra Prometida – ele falou.<br />

- Provavelmente foi <strong>de</strong>sta para melhor – ele me olhou com ar estranho e eu resolvi<br />

completar – No bom sentido, é claro. Ele e Elias...<br />

- É...talvez... talvez... É um dos nossos mais rasos problemas – disse com algum<br />

interesse - Mas o povo tem uma resposta mais flagrante para isso – disse.<br />

57


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

- Que eu saiba, sim. Estamos sempre à porta <strong>de</strong>sse povo. Olhando para ele. Dando<br />

exemplos. Enfeitando algumas <strong>de</strong> suas noites com dramas místicos importantes.<br />

- É possível. Não acredito muito nisso. Mas é possível – ele como que segredava.<br />

- Não acredita...?<br />

- Não. Eu vim do povo. E posso dizer que o povo é meu pai. Há muito obstáculo para<br />

essa..., como direi,... incorporação mágica... a tomada <strong>de</strong>r consciência do povo.<br />

- Mas você é um dos sacerdotes(!)... o oráculo...<br />

- Sim, sou sacerdote... mas cá entre nós... tirando essa parte da preparação dos<br />

eunucos... o bom mesmo é estar com essas mulheres, quando roubamos o corpo<br />

das... castas divas... – ele riu para si mesmo - ... muito castas... Eu nasci povo e trago<br />

o povo no coração e o povo quer comer as sacerdotisas... eu faço isso por eles...- riu<br />

– meu sacrifício pessoal...<br />

- Comer! – Eu me lembrei da inacessível língua <strong>de</strong> Virgínia antes <strong>de</strong> sairmos <strong>de</strong> casa. E<br />

me lembrei das reuniões nas grutas.<br />

- É. Essa cosmologia da re<strong>de</strong>nção acaba em infortúnio, acredite. Tudo isso aqui não<br />

passa <strong>de</strong> espetáculo para o povo gozar. Enquanto ritualizamos, entre aspas, as<br />

sacerdotisas com nossos pênis, preste atenção como o povo, também entre aspas, se<br />

masturba e trepa por todo lado..., o tal do povo. O universo triunfante do liso e do<br />

quente, nada mais do que isso – ele me falou enquanto se limpava do óleo.<br />

Um sinal <strong>de</strong> badalo ecoou pelos aposentos e eu estava atônito.<br />

- Vamos. Pega a túnica.<br />

Um farto aroma <strong>de</strong> café se esparrama pela nave. Todos bebiam o líquido escuro, bem<br />

quente, distribuído à gran<strong>de</strong> por torneiras douradas que saiam das pare<strong>de</strong>s marmóreas. Por<br />

efeito do líquido muitos gritavam e batiam contra o peito. Muita gente não tinha estofo para<br />

beber aquele elixir <strong>de</strong> potência e vigor. Naquele tempo, durante as semanas que antecediam o<br />

drama no templo era comum a venda <strong>de</strong> café pelas irmãs-sacerdotisas, às portas da cida<strong>de</strong>.<br />

Naqueles tempos as crianças não saiam às ruas. A preparação para a semana da fertilida<strong>de</strong><br />

era a tônica da nossa cultura. O espírito brotava espontânea como ele realmente era. Nem<br />

todos gostavam disso.<br />

No entanto um leve amargor me tomou. Um sintoma diferente e novo me atingia. Meu<br />

coração batia como se se precipitasse para explodir.<br />

Enquanto cantavam o hino “O advento do Café” eu corri para uma espécie <strong>de</strong> sala<br />

para receber chuvas, que dava para os aposentos das mulheres. Nem sei o que é que faria,<br />

ainda, mas a hora chegava. Os corredores eram sinuosos e as tochas <strong>de</strong> pouco valiam. De sala<br />

em sala eu tentava vê-las. Em uma os embrutecidos pelo tabaco se pegavam em tapas no<br />

rosto. Noutra sala os idosos se banhavam em rapé – na verda<strong>de</strong> uma mistura <strong>de</strong> ópio e<br />

gergelim – in<strong>de</strong>fesos em relação ao ridículo. Mais além barris <strong>de</strong> vinho e raparigas<br />

conturbavam o ambiente com gritos e danças. Alguns patrício vinham se <strong>de</strong>liciar entre coxas<br />

jovens pagas a preço <strong>de</strong> turmalinas. O reino do café era o reino da <strong>de</strong>stemperança.<br />

De repente eu me via em uma sala e ao entrar estava ao lado <strong>de</strong> Virginia que achou<br />

tudo aquilo muito estranho, mas sorriu.<br />

- Ei, querido. Você per<strong>de</strong>u alguma coisa? Ou se per<strong>de</strong>u?<br />

- Não quero per<strong>de</strong>r você. Vamos embora daqui.<br />

- O que foi? Está diferente. Nunca vi essa dobra em sua testa. Você exagerou no café?<br />

Está mais sóbrio.<br />

- Meu discernimento está mais amplo. Mas não quero per<strong>de</strong>r você. A história vai mudar<br />

seus caminhos.<br />

58


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

- Tolice, meu querido. Tolice. Estamos prestes a aumentar a ampliar a consciência local<br />

com a exposição do nosso drama.<br />

- Esqueça isso.<br />

- Nem me fale uma coisa <strong>de</strong>ssas... é algum enigma?.<br />

- Não há enigmas!! O que há é a praxis!! Tudo mentira! – as mulheres que nos<br />

escutavam começaram a rir, mas eu continuei - O Café impôs a mim o álibi do sexo<br />

pela excitação do espírito. Mas como só o aroma a mim chegou, tudo se torna mais<br />

claro.<br />

Tentei tomar a mão <strong>de</strong> Virgínia para sair, puxando-a para fora do templo. Ela não<br />

queria. Fez força contrária e escapuliu com certa violência.<br />

- Ouça como a turba urra – ela falava tranqüilamente - Eles nos esperam – o badalo<br />

soou novamente e a gritaria ficou maior. Eu suava. Faltava-me a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

argumentar a<strong>de</strong>quadamente. As mulheres retiravam suas roupas e passavam para<br />

outro aposento, em direção à nave central do templo.<br />

- Vem comigo, Virginia, fica comigo somente. A coisa vai esquentar por aqui. – mas ela<br />

se limitou a passar o dorso da mão entre as suas próprias pernas e levantar, na minha<br />

direção, <strong>de</strong>dos molhados, quase os esfregando no meu rosto<br />

- Vai esquentar mesmo. Egoísta. Não vê que somos belas damas, hoje representando<br />

meretrizes sagradas, a mais subida honra e você quer que eu vá com você. Ficar<br />

somente com você?<br />

- Sim. Mas não é só isso.<br />

- Louco! Lá estaremos embebidas em café Árabe... o líquido, nem tão quente das bacias<br />

douradas nos banhando – Virginia <strong>de</strong>scalçou as sandálias – discursaremos sobre o<br />

Serralho, o penteado à sultana que levamos para ser <strong>de</strong>sfeito nas orgias – ela,<br />

negligentemente, <strong>de</strong>ixou cair uma das alças, escorregando sobre o ombro – Quem<br />

sabe não falaremos sobre as Mil e Um Noites? Nós, as huris mo<strong>de</strong>rnas, que daremos<br />

seios fartos aos nossos irmãos sacerdotes e <strong>de</strong>pois nos fartaremos com a platéia<br />

enlouquecida. Você está é muito louco!!<br />

Vi que meus esforços seriam vãos. O badalo novamente tocou e a última imagem que vi foi<br />

Virginia se afastando, <strong>de</strong>ixando resvalar para o chão a túnica <strong>de</strong> seda... suas ancas<br />

on<strong>de</strong>avam... ela transpirava...<br />

Inexplicavelmente eu me encontrei em meio a uma luta aguerrida. Estava no centro da<br />

nave, os sacerdotes e sacerdotisas copulavam, mas uma batalha se <strong>de</strong>senrolava nas<br />

arquibancadas. Um grupo armado havia penetrado no templo. Pelo que sei eu estava do lado<br />

<strong>de</strong>ste grupo. Desfechei muitos murros e parti uma série <strong>de</strong> queixos. Eu sempre me exercitei<br />

nas áreas Ginásticas da cida<strong>de</strong> e estava fortalecido, portanto era muito fácil, mesmo com as<br />

mãos atadas, fazer tombar umas quatro pessoas. Os revoltosos não eram maioria numérica<br />

mas a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> vencer passava por cima <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>talhe. Os guardas do templo, armados <strong>de</strong><br />

lanças, eram quebrados ao meio. Os casais ritualísticos foram cortados com largas facas.<br />

Rebel<strong>de</strong>s, com marretas, <strong>de</strong>struíam altares e ídolos, <strong>de</strong>rrubavam os vasos e turíbulos das aras,<br />

pisoteavam as oferendas. A batalha. Os rebel<strong>de</strong>s entravam no templo, <strong>de</strong> surpresa, e venciam<br />

a contenda, pondo, por fim, fogo nas <strong>de</strong>pendências. Todos partiram, em silêncio, da mesma<br />

forma que chegaram E eu com eles.<br />

Não soube mais <strong>de</strong> Virgínia. Batedores disseram que algumas irmãs-sacerdotisas<br />

sobreviventes, <strong>de</strong>sfiguradas umas, queimadas outras, trôpegas enfim, se prostituíam pelos<br />

lados das terras do leste. Os reis gnósticos, percebendo que os rebel<strong>de</strong>s se fortaleciam a cada<br />

momento, inventaram <strong>de</strong> transportar as mudas <strong>de</strong> café para as Antilhas. Principalmente as<br />

mudas que vinham da Índia, mais baratas e mais populares. O responsável por esse traslado<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

<strong>de</strong> mudas <strong>de</strong> plantas cafeeiras foi o cavaleiro <strong>de</strong> Clieux, hipócrita religioso, que conseguiu<br />

transformar a Martinica em exportadora do ouro negro, chegando a 10 milhões <strong>de</strong> libras <strong>de</strong><br />

café por ano. Clieux se tornou Rei da Martinica.<br />

Um ano <strong>de</strong>pois os rebel<strong>de</strong>s retornaram ao templo mas já não existia o ritual e nem mais se<br />

ouvia falar naquelas histórias <strong>de</strong> putas e eunucos e banhos cafeeiros. Muitos diziam que Café<br />

era coisa <strong>de</strong> Iluministas e Enciclopedistas. Os rebel<strong>de</strong>s haviam vencido. E naquele momento eu<br />

era um <strong>de</strong> seus lí<strong>de</strong>res. Trofônio, o oráculo, não mais se <strong>de</strong>u à mostra e as pitonisas vendiam<br />

borras <strong>de</strong> café jurando que era muito bom para afastar formigas <strong>de</strong> plantas tenras,<br />

protegendo os jardins, suas flores e seus frutos.<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

O NAVIO FANTASMA<br />

resumo da ópera <strong>de</strong> Richard Wagner<br />

PRIMEIRO ATO:<br />

O capitão norueguês DALAND <strong>de</strong>vido à uma intensa tempesta<strong>de</strong> ancora em uma baía<br />

protegida, não muito distante <strong>de</strong> seu porto <strong>de</strong> origem. Ele e a tripulação vão para baixo<br />

<strong>de</strong>scansar enquanto esperam um tempo melhor, <strong>de</strong>ixando o timoneiro sozinho em alerta. Ele<br />

canta para manter-se <strong>de</strong>sperto mas logo dorme. Um misterioso navio <strong>de</strong> mastro negro ancora<br />

ao lado. A fantasmagórica tripulação enrola suas velas vermelhas. O capitão <strong>de</strong>sembarca. O<br />

capitão é o lendário HOLANDÊS VOADOR, con<strong>de</strong>nado a navegar eternamente. Po<strong>de</strong> parar a<br />

cada sete anos à procura <strong>de</strong> uma mulher fiel que possa redimi-lo. Na verda<strong>de</strong> ele anseia pela<br />

morte <strong>de</strong>finitiva e esquecimento. DALAND acorda e saúda o capitão. O capitão sinistro fala <strong>de</strong><br />

seu <strong>de</strong>stino e pe<strong>de</strong> hospitalida<strong>de</strong> em troca <strong>de</strong> uma riqueza. Quando o HOLANDÊS sabe que o<br />

outro tem uma filha – SENTA - pergunta se ela po<strong>de</strong>ria ser sua esposa. DALAND se entusiasma<br />

com um possível rico genro.<br />

Mas surge o vento e eles partem. O HOLANDÊS seguirá <strong>de</strong>pois, após o <strong>de</strong>scanso.<br />

SEGUNDO ATO:<br />

Fian<strong>de</strong>iras sob a supervisão <strong>de</strong> MARY. SENTA está olhando a foto do HOLANDÊS VOADOR<br />

que está na pare<strong>de</strong>. As moças <strong>de</strong>bocham <strong>de</strong>la e previnem <strong>de</strong> que ERIK, o noivo caçador,<br />

sentirá ciúmes. SENTA não liga e pe<strong>de</strong> para que MARY, que se recusa, cantar a balada do<br />

HOLANDÊS, que sempre a comove. Então ela mesma canta, e até que as fian<strong>de</strong>iras tomam<br />

parte da canção cantando o refrão, emocionadas. No final SENTA, ardorosa, <strong>de</strong>clara que quer<br />

ser a re<strong>de</strong>ntora do HOLANDÊS - isso choca as moças. ERIK chega e dá notícias da chegada<br />

<strong>de</strong> DALAND e repreen<strong>de</strong> SENTA pela obsessão com a história do HOLANDÊS. Ele sabe que o<br />

prático DALAND nunca aceitará um genro pobre como ele, mas pe<strong>de</strong> que ela retribua pelo<br />

menos o amor que ele – ERIK - tem por ela. ERIK conta o sonho que vê a ela e o tal<br />

navegador <strong>de</strong>saparecendo no mar.<br />

Para SENTA é presságio. DALAND chega com o HOLANDÊS. Conta <strong>de</strong> suas riquezas e<br />

explicita a beleza da filha. A sós com a mulher, o HOLANDÊS canta-lhe os sofrimentos e<br />

acredita que eles tenham chegado ao fim. SENTA se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> casar com o HOLANDÊS.<br />

TERCEIRO ATO:<br />

Os marinheiro <strong>de</strong> DALAND comemoram o regresso. O outro navio está ao lado. Como<br />

ninguém sai <strong>de</strong> lá, todos dizem se tratar <strong>de</strong> um navio fantasma. De repente o navio holandês<br />

se movimenta, a<strong>de</strong>rnando como se numa tempesta<strong>de</strong>. Surge um canto selvagem e<br />

fantasmagórico. Os outros fogem levando tudo ao silêncio. SENTA sai da casa e ERIK a<br />

censura pela <strong>de</strong>cisão, e que ela já lhe havia jurado sua fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>. O HOLANDÊS ouve a<br />

conversa e resolve fugir para poupar SENTA, pois se ela faltasse com o compromisso seria<br />

punida eternamente, como ele. SENTA quer seguir o estranho. Como o navio sinistro já está<br />

ao mar, SENTA se lança ao mar, jurando fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>. Aí, nesse ponto, o NAVIO FANTASMA<br />

afunda. No horizonte o HOLANDÊS VOADOR e SENTA aparecem transfigurados em seu amor.<br />

61


<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

TRATADO MÉDICO MUI MODERNO<br />

DAS VIRTUDES E PROPRIEDADES DE VÁRIAS ESPÉCIES DE EXCREMENTOS<br />

um certo Albertus Parvus Lucius, sec XIII<br />

Dos Excrementos do Homem<br />

Dyscórydo, em suius lybro décymo, Galeno, no décymo, e Eginette, no sétymo <strong>de</strong> suius<br />

SyMPLES, estymam muyto e dão gran atenção a los excrementos do homem, e asseguram<br />

que, sem qualquer outro remédyo, curam las doenças e dolores da garganta, ipsus est, as<br />

amygdalytes; eys a maneyra <strong>de</strong> los preparar: dar-se-á a comer a um homem jovene, <strong>de</strong> bom<br />

temperamento e <strong>de</strong> boa saú<strong>de</strong>, tremoços durante três dyas, com pã bem cozyda, que tenga<br />

um poco <strong>de</strong> fermiento e <strong>de</strong> la sal; dar-se-lhe-á para beber apenas vino palhete, sem lhe dar<br />

mays nada além do que se acaba <strong>de</strong> dyzer; será necessáryo rejeytar como ynúteys, los<br />

excrementos que fyzer no prymeyr dya; los que fyzer nos otros dos dyas serã recolhydos,<br />

tendo valor <strong>de</strong> pur’ouro, e seram conservados muy cuydadosamente, <strong>de</strong>spoys mysturar-se-ã<br />

com otro tanto <strong>de</strong> myel, e <strong>de</strong>bem ser bebydos, esta bosta toda, e engolydos como o opyato,<br />

ou aplycados exteryormente como una cataplasma ou um’emplastro; este remédyo é<br />

soberano para las amygdalytes, pero muy ruim.<br />

Para a próxima semana: Dos Excrementos do Cão<br />

A PROPULSÃO HUMANA<br />

Tempos <strong>de</strong> décadas <strong>de</strong> idas e vindas<br />

Anos e décadas em re<strong>de</strong> em canoa em batel<br />

pé na estrada Kerouac já tomei do meu chapéu<br />

pe<strong>de</strong> tanto o mundo todo / <strong>de</strong>ixa fora o <strong>de</strong>sperdício<br />

brinda o povo andando a pé / pé na estrada / mundaréu<br />

pé na rua / tempo passo a passo tempo / pé ante pé<br />

educa e sana o corpo meu<br />

Eu não tenho carro / não tenho não...<br />

não poluo por aí / não por mim nem por ninguém<br />

Po<strong>de</strong> ser que seja útil ter um carro<br />

mas não é pra todo dia<br />

Bicicletas uso tanto e tantas vezes que das vezes me perdi<br />

Ser pe<strong>de</strong>stre é natural / ah! Tempo real<br />

cara ao vento / com cuidados<br />

triciclos tive muitos em criança<br />

patim era outro meio / rolimã / pedalinho / patinete<br />

patinete nem te falo<br />

elegante porte aberto / peito inteiro a pleno vento / orgulho e prosa<br />

há quem sofra por andar / há quem sofra por ser vivo<br />

a força própria do seu corpo<br />

ai, como isso dói<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

O CAMINHO SAGRADO DE MILAGRES<br />

Parcial da obra magna da religiosida<strong>de</strong> Mogiana a partir <strong>de</strong> Muganga.<br />

INTROITO<br />

Eu, Outro Coelho, percorri o sagrado Caminho <strong>de</strong> Milagres e tenho cre<strong>de</strong>nciais que me fazem<br />

soberano na escrita <strong>de</strong>ssas cartas.<br />

A única coisa que me pesa é a ida<strong>de</strong> e alguns malucos que moram na minha cida<strong>de</strong>. Fora isso<br />

e a bengala do velho Coelhim, vivo contente por ser um dos poucos que percorreu o<br />

verda<strong>de</strong>iro caminho <strong>de</strong> MILAGRES.<br />

MILAGRES é difícil <strong>de</strong> ser encontrada.<br />

Fica próxima a São Benedito das Areias e Monte Santo <strong>de</strong> Minas, perto do condado da<br />

Guardinha, localida<strong>de</strong>s por si sós sagradas e cobertas <strong>de</strong> milagreiros e benzedores.<br />

Pessoas sublimes nasceram lá, mas com essa ida<strong>de</strong> só me lembro dos meus parentes, mesmo.<br />

Gente da mais alta estirpe.<br />

Para mostrar como percorrer esse caminho eu escolhi o método das epístolas. Cartas para o<br />

futuro, como diria o Heitor.<br />

Contra todos os inimigos que me vieram a aparecer, obstáculos humanos e físicos da<br />

natureza, pu<strong>de</strong> contar com amigos do mais alto grau. Vocês saberão <strong>de</strong> tudo e espero que se<br />

sacrifiquem para manter acesa a chama do Caminho <strong>de</strong> MILAGRES, espalhando a Boa Nova<br />

por toda a Terra, ou pelo menos, pela vizinhança da nossa terrível cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Muganga.<br />

Eu, Outro Coelho, <strong>de</strong>claro que tudo o que vai aqui escrito é verda<strong>de</strong>.<br />

Vamos às cartas.<br />

EPÍSTOLA 1<br />

Às vésperas <strong>de</strong> completar 293 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> resolvi expor ao mundo o místico e secreto<br />

caminho sagrado para MILAGRES, a cida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro a<strong>de</strong>us. Por isso escrevo estas<br />

epístolas.<br />

Estávamos entrando no século 21. Importantes mudanças se faziam no mundo e no país e eu<br />

consi<strong>de</strong>rava a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que o céu se abrisse para mostrar suas verda<strong>de</strong>s.<br />

Caiu-me sobre as mãos a história do LOUCO DE MILAGRES, do escritor Jutas Jesail, das terras<br />

do Aquilão. Contado daquela forma parecia algo inverossímil, o que me estimulou a buscar<br />

ajuda em templos e sábios locais. Fiquei <strong>de</strong>cepcionado. As cida<strong>de</strong>s vizinhas viviam sob<br />

brumas, mesmo aquelas com nome <strong>de</strong> santo.<br />

Conversando com Jutas e outros pensadores pareceu <strong>de</strong>finitivo que fundássemos uma Igreja<br />

própria. Killar Manuris, um rumeno-grego <strong>de</strong> cabelos lisos, antes <strong>de</strong> partir para a Suécia,<br />

acreditava na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma passagem mística na região. Jutas, sempre céptico,<br />

informava no seu jeito reticente que tinha visto lobisomem lá pelos lados <strong>de</strong> MILAGRES. Não<br />

tinha certeza, mas, uma coisa peluda passou por cima <strong>de</strong>le quando catava pedras rombudas<br />

na estrada. Eu disse que podia ser gambá e todos riram. Em todo caso marcamos para uma<br />

quinta feira a fundação da Igreja. Cada um traria amigas e amigos interessados na fundação.<br />

Principalmente amigas.<br />

Foi assim que teve início a próspera e emergente Igreja do Triângulo <strong>de</strong> Quatro Pontas. A sua<br />

meta: abrir o caminho místico na região, principalmente, o Caminho Sagrado para<br />

MILAGRES.<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

EPÍSTOLA 2<br />

A quinta-feira veio com muita chuva.<br />

Estávamos na sala ritual - para criar clima <strong>de</strong>nominamos a sala <strong>de</strong> PAULO, O MAGRO - e<br />

<strong>de</strong>ssa forma iniciamos o nosso trabalho cerimonial.<br />

Era a primeira sessão. Lá estavam Dejanira Felício, amparando roupas <strong>de</strong> peregrinos que<br />

pretendiam correr sem direção alguma; Jutas Jesail, carregando um aipo; Zinar Citrus, chefe<br />

<strong>de</strong> cerimonial, responsável pelo aroma <strong>de</strong> sândalos e alecrim do local; Killar Manuris, com<br />

uma dúzia <strong>de</strong> gigabaites pendurados no pescoço; Russa Mertô, sacerdotisa dançarina,<br />

efetuando complicados passos <strong>de</strong> ir e vir; Yussuf <strong>de</strong> Babel, cantarolando, <strong>de</strong>safinadamente, o<br />

hino magno da nossa obra mística; a curiosa Wuilla Tuilla, guerreira do Jardim do É<strong>de</strong>n e<br />

representante <strong>de</strong> hécates e lâmias; Ziurni Szina, <strong>de</strong>senrolando uma série <strong>de</strong> pergaminhos<br />

proibidos na cida<strong>de</strong>; Kuíka Nenorei, observadora e conselheira para uma das pontas do<br />

triângulo (a externa); Urraco Nuñes, sumo sacerdote tolteca, da região <strong>de</strong> Rivero Nero,<br />

caminhando ao lado <strong>de</strong> uma ameba, por ele mesmo, domesticada; Cecilia Bacci Espectral<br />

Azul, trazendo todo o seu conhecimento <strong>de</strong> Wicca; Guilherme Giordano, também conhecido<br />

como Guilherme d´Orange ou Guillaume <strong>de</strong> Mauchaut, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da época; e eu, é claro,<br />

Outro Coelho, que prontamente, lhes escreve.<br />

Como havia muita neblina causada pelo incenso <strong>de</strong> mirra eu nem sei mais quem estava por lá,<br />

mas tinha uma penca <strong>de</strong> gente.<br />

Foi necessário citar a todos os magníficos daquele momento pois o registro <strong>de</strong>ve ficar<br />

completo, antes que eu perca a memória.<br />

Implantávamos ali o germe da Suprema Igreja do Triângulo <strong>de</strong> Quatro Pontas.<br />

Dali sairia o escolhido. Aquele que se tornaria o peregrino para a gran<strong>de</strong> caminhada.<br />

Dali sairia também o coletor <strong>de</strong> dízimos.<br />

Os cargos foram disputados a tapa.<br />

EPÍSTOLA 3<br />

Naquela noite chuvosa os escorpiões foram dormir mais cedo.<br />

Um pouco antes <strong>de</strong> se iniciar o ritual chegou Zézinho, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte direto <strong>de</strong> Jesus, por parte<br />

<strong>de</strong> mãe, carregando algumas caixas, pregos, ataduras e atamoles. Estava completo o grupo<br />

sacerdotal da Sagrada Igreja do Triângulo <strong>de</strong> Quatro Pontas, mais conhecida como SIT-QPlotes<br />

preferenciais, na bolsa <strong>de</strong> valores.<br />

Não posso falar do ritual completo por dois motivos: um <strong>de</strong>les e mais importante é <strong>de</strong> que não<br />

me lembro mais como era. O segundo, que me parece óbvio, os componentes da Or<strong>de</strong>m do<br />

Triângulo po<strong>de</strong>riam não gostar, mesmo que eu não me lembre mais como se fazia. No<br />

entanto, não está aí o <strong>de</strong> mais importante, nesse negócio. Os rituais são similares. E, no caso,<br />

secretos, como já disse.<br />

A sacerdotisa bailarina dançou umas quadrilhas para abrir e limpar espaço. Não era à toa que<br />

ela estava munida <strong>de</strong> uma vassoura. Muito incenso foi queimado; algumas pessoas se<br />

retiraram por serem asmáticas, per<strong>de</strong>ndo aquele acontecimento único na face da terra.<br />

Zézinho, também conhecido como o Zé <strong>de</strong> Campo Estrela, disse que o Caminho para Milagres<br />

seria aclamado da mesma forma que o “outro” Coelho, também chamado <strong>de</strong> Paulo – o Magro<br />

- havia feito com o caminho da Espanha, <strong>de</strong>vidamente coberto, esquadrinhado e<br />

documentado pelo peregrino Peres, o <strong>de</strong> olhos bovinos.<br />

Mas eu, o ainda OUTRO COELHO, observei que a energia rolava naquele templo e naquele<br />

tempo.<br />

De repente, uma Sarabanda haen<strong>de</strong>liana irrompeu, lenta e gradual, em ritmo <strong>de</strong> três, como se<br />

espera <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira Sarabanda, e a sacerdotisa bailarina, erguendo a mão <strong>de</strong>ixou que<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

a mão ficasse mais alta que ela mesma.<br />

Jutas Jesail, cônscio <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>veres, comeu o aipo ritualístico.<br />

Dejanira <strong>de</strong>clamou uma poesia que nos emocionou e Killar, num ato histórico para alguns e<br />

histérico para outros, esparramou meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus gigabaites no chão, sobre os tomates,<br />

on<strong>de</strong> Cecilia traçara - com giz espectral azul - uns <strong>de</strong>senhos da sabedoria wicca. Então<br />

Guilherme pegou sua gaita <strong>de</strong> foles e tocou uma melopéia <strong>de</strong> saudação. Alguns cavalos<br />

relincharam e Guilherme parou imediatamente. Zinar aproveitou para pingar algumas gotas<br />

<strong>de</strong> seu suor mágico e o ar fen<strong>de</strong>u-se, <strong>de</strong>ixando transparecer uma outra dimensão. Yussuf,<br />

com um saco <strong>de</strong> fios tentou, inutilmente, captar as cargas das fagulhas e raios que chispavam<br />

da fenda fantasmagórica, enquanto Tuilla, num pretérito do futuro perfeito, começou a me<br />

bater com seu chicote. É claro que eu pedi para que parasse pois aquilo doía.<br />

Foi aí que percebi claramente... não muito claramente, por causa da fumaça - percebi que a<br />

escolha estava feita, apesar da tremenda discussão gerada nos bastidores.<br />

O peregrino da Sagrada Igreja para o sagrado caminho era o sagrado eu.<br />

OUTRO COELHO, assim chamado.<br />

EPÍSTOLA 4<br />

Enquanto os <strong>de</strong>mais chefes da Igreja se estapeavam atrás <strong>de</strong> um altar, nos fundos da<br />

construção, para ver quem seria O Sagrado Coletor <strong>de</strong> Dízimos, eu, peregrino eleito, me<br />

dispunha a iniciar imediatamente os preparativos para a jornada.<br />

Importante frisar que, diferente <strong>de</strong> outros caminho sagrados, caminhos já domesticados com<br />

plaquetas, pousadas, bilhetinhos e observadores e fiscais, O Caminho Sagrado para Milagres<br />

estava para ser <strong>de</strong>svendado.<br />

Aí cabia o inusitado do feito, pois inúmeros pensadores, mestres e místicos teorizavam na<br />

existência <strong>de</strong>sse caminho e coube a mim, Outro Coelho, a missão <strong>de</strong> encontrá-lo e <strong>de</strong>senhá-lo<br />

em mapa.<br />

Um trabalho cheio <strong>de</strong> perigos e efetivas ações dos po<strong>de</strong>res psíquicos terrestres e invisíveis, ou<br />

seja, eu precisaria <strong>de</strong> muita concentração, sacrifício e fleuma para buscar nas raízes<br />

atmosféricas, terrenas e aquáticas, por que não nas fogaríficas, também, a <strong>de</strong>cifração daquele<br />

enigma.<br />

Fui para um spa, on<strong>de</strong> recuperaria forças e receberia cursos <strong>de</strong> sobrevivência aplicados pelos<br />

mais iminentes sábios andarilhos já conhecidos! e, alguns <strong>de</strong>sconhecidos também.<br />

A data para a partida estava marcada para o dia <strong>de</strong> Santos Reis.<br />

Houve muita festa, quermesse, vendilhões <strong>de</strong> todos os templos estavam presentes e a Igreja do<br />

Sagrado Triângulo <strong>de</strong> Quatro Pontas aproveitou para levar o seu. Chefes, pastores, padres,<br />

bispos, irmãos, fratres, estavam presentes com seus seguidores e bandas <strong>de</strong> música. A Igreja<br />

Católica S/A, a Evangélicos Unidos, a Tra<strong>de</strong> Espíritas Alinhados Protoplasmic, a recentemente<br />

formada Liga Árabe Judaica para assuntos <strong>de</strong> religião também enviou seu representante e, é<br />

claro, a Ateus Incorporation não ficou <strong>de</strong> fora. Irmanda<strong>de</strong>s variadas, instituições <strong>de</strong> assistência<br />

dos mais diversos naipes li<strong>de</strong>rados pela major 90%MEU, e uma quantida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

pequenas empresas do ramo da fazedura, benzedura e pilhagem religiosa. Incluindo os<br />

Bizantinos <strong>de</strong> Orelhas Pontudas.<br />

Sentimos apenas a presença espiritual do patrono do templo, Paulo, O Magro, pois estava em<br />

santa missão <strong>de</strong> contar recursos advindos da venda <strong>de</strong> seu último livro traduzido para o<br />

cartaginês. O nosso patrono não só vendia bastante livro para o planeta todo como também já<br />

começava a exportar para tempos antigos também. A primeira investida foi em Cartago, no<br />

tempo <strong>de</strong> Aníbal Barca. Demais(!) o nosso patrono. Ele era Multi_Pluri.<br />

Mas, após um vento ensur<strong>de</strong>cedor, apareceu no átrio do templo uma pessoa que não havia<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

sido convidada para nossa festa. Um fogo gelado irrompeu e uma mulher com chifre e<br />

báculo, <strong>de</strong> rosto esver<strong>de</strong>ado, pálido e maquiagem impecável, apareceu subitamente, lançando<br />

chispas para todo lado.<br />

Medo geral. Um frio na espinha. Barbas <strong>de</strong> molho.<br />

EPÍSTOLA 5<br />

A mulher olhou-me <strong>de</strong>safiadoramente e disse:<br />

- Eu apareci nesta festa sem ser convidada, para testar seus po<strong>de</strong>res.<br />

- Estou vendo que você é uma aparecida - disse eu, sem me <strong>de</strong>ixar intimidar. Nisso ela<br />

balançou seus cabelos listrados.<br />

- Eu tenho po<strong>de</strong>res maiores que os seus. Não adianta gritar pois o Chefe Supremo está do<br />

meu lado, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, fora <strong>de</strong> mim... somos uno.<br />

- Sei... sei... - disse eu, inteligentemente - mas, meta<strong>de</strong> do que você faz é o óbvio e a outra<br />

meta<strong>de</strong> é o ululante. Não adianta falar mais que a boca, nem conversar com o vento. O que<br />

você é, é isso mesmo, e não passará disso, aparecendo ou <strong>de</strong>saparecendo... - ela me olhou<br />

com um ar <strong>de</strong> quem não enten<strong>de</strong>u coisa alguma, que era o seu ar natural e vociferou:<br />

- Você quer estar em meu lugar... você quer sentar na minha mesa... você pensar que é maior<br />

do que eu... confessa que você já comeu meus canelones!!<br />

- O Chefe Supremo, logo no começo dos seus (<strong>de</strong>s)trabalhos me convidou para fazer parte <strong>de</strong><br />

sua corja... mas eu percebi a furada e nem aceitei... afinal, eu sou Outro Coelho e sou do<br />

Bem... - enquanto ela soltava chispas por todos os seus quatro lábios e três olhos eu conclui -<br />

... aí ele chamou qualquer um por que não tinha mais opção...<br />

Um raio ver<strong>de</strong> brilhou. A aparecida <strong>de</strong>sapareceu em meio à fumaça, muito pó, balouços e<br />

gritos...um rodar <strong>de</strong> baiana à mineira. Sem ritmo e muito barulho.<br />

Os membros da Igreja aplaudiram e aclamaram: "Eis o nosso real representante. Vida longa.<br />

Viva! Viva! Vamos preparar a jornada".<br />

Eu saí com alguns amigos e começamos a nos preocupar com o que eu <strong>de</strong>veria levar para a<br />

jornada <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas, sofrimento, abnegação e <strong>de</strong>marcação da trilha sagrada que levaria<br />

para a cida<strong>de</strong>, sagrada, <strong>de</strong> Milagres.<br />

O <strong>de</strong>sconhecido me esperava.<br />

Parece que o Chefe Supremo também.<br />

EPÍSTOLA 6<br />

Esses 293 anos pesam <strong>de</strong>mais.<br />

Já nem me lembro <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes talvez mais importantes do que a história em si. Mas o fato é<br />

que na cripta sagrada da Sagrada Igreja do Triângulo <strong>de</strong> Quatro Pontas eu me vi coberto <strong>de</strong><br />

glórias e não sei <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinha uma trilha sonora composta especialmente para o momento.<br />

Acho que era o pessoal do Quinteto Armorial que tocava algures ou alhures... para mim... Ave,<br />

Suassuna.<br />

Eu e amigos fomos para casa procurar todo o material necessário para a busca da Trilha, mas<br />

não a sonora. A Trilha para a Cida<strong>de</strong> Sagrada.<br />

Sabíamos que ela - a Cida<strong>de</strong> - ficava para lá <strong>de</strong> Arceburgo, além <strong>de</strong> Monte Santo, enfurnada<br />

em um quadrilátero mágico on<strong>de</strong> tudo po<strong>de</strong> acontecer, se é que tudo já não aconteceu e não<br />

há mais a se fazer por lá. Mas, antes disso precisávamos pensar no cajado, nos sapiquás, nos<br />

embornais, no manto contra intempéries e nas orações contra bichos do mato, bichos das<br />

pedras e bichos dos pés. E se a aparecida aparição reaparece da mesma forma que<br />

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

<strong>de</strong>sapareceu? E se ela retornar com algum outro tipo <strong>de</strong> aparecido?<br />

Todo cuidado seria pouco.<br />

Com a ajuda da sacerdotisa bailarina que dançava sem parar - mesmo porque ela parada não<br />

teria dança alguma - oramos intensamente. Zézinho, também conhecido como o Zé <strong>de</strong><br />

Campo Estrela, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte direto <strong>de</strong> Jesus, por parte <strong>de</strong> mãe, relatou uma lista <strong>de</strong> objetos<br />

que eu <strong>de</strong>veria carregar e concluí que tudo aquilo pesaria meia tonelada.<br />

- Isso é impossível, cara - disse eu, sabiamente. Ele torceu a boca e a<strong>de</strong>rnou a cabeça.<br />

- Você é que sabe - disse ele.<br />

Jutas Jesail, mascando suas últimas porções do aipo ritualístico falou qualquer coisa que não<br />

enten<strong>de</strong>mos por ele estar com a boca cheia, mas concordamos pelo fato <strong>de</strong> que podia ter sido<br />

algo <strong>de</strong> útil, mesmo que ele não tivesse essa intenção.<br />

Tivemos a idéia <strong>de</strong> abrir o livro do peregrino Peres, o <strong>de</strong> olhar bovino, para nos ilustrarmos<br />

quanto a esse item <strong>de</strong> materiais imprescindíveis para uma viagem.<br />

Tuilla tomou <strong>de</strong> uma zarabatana para proclamar aos cinco véus <strong>de</strong> Ísis que Outro Coelho<br />

estava se aprontando, tentando com nisso espantar todos os maus espíritos das cercanias,<br />

mas parece que o negócio não <strong>de</strong>u certo pois ela teve que mergulhar sua cabeça numa lata <strong>de</strong><br />

gordura para escapulir das muriçocas africanas que a atacavam.<br />

- Muriçocas africanas, aqui em Muganga? - Dejanira, a prima lector <strong>de</strong> nossa congregação<br />

perguntou, com um leve ar altivo. Quando ela baixou a sobrancelha foi como se o ar tivesse<br />

caído com seus quinze quilômetros <strong>de</strong> altura e a atmosfera não fosse mais do que milho <strong>de</strong><br />

pipoca. Todos se ajoelharam. Percebíamos a grandiosida<strong>de</strong> daquilo tudo.<br />

No entanto, havia um espião, entre nós. Se não entre, pelo, menos ao lado, com pouca<br />

intimida<strong>de</strong>. Era um menino bobinho, gordinho, <strong>de</strong> bochechinha rosa, cabelo - o que lhe<br />

restava - cor <strong>de</strong> palha... era um tremendo <strong>de</strong> um fofoqueiro... E ainda por cima usava óculos.<br />

ALTERNATIVAMENTE<br />

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