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conto crônica poema coelho de moraes 1 - Página de Ideias

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<strong>conto</strong> <strong>crônica</strong> <strong>poema</strong> <strong>coelho</strong> <strong>de</strong> <strong>moraes</strong><br />

A bicicleta era nossa vítima e morria ao sabor <strong>de</strong> longas jornadas. Muitas vezes com<br />

suas partes em <strong>de</strong>salinho. Era natural que os valores dos técnicos fossem invertidos a cada<br />

campeonato. Não estavam, tais males, do lado do ciclista <strong>de</strong>saparecido e com sua corrida?<br />

A bicicleta encarnava a humanida<strong>de</strong> infeliz. Essas visões, certamente em parte infundadas,<br />

ameaçavam impedir o ciclista <strong>de</strong> levar mais longe seu olhar. Mas, sua <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> causa<br />

dissimula um alcance profundo nos tempos e nas medidas <strong>de</strong> recor<strong>de</strong>s.<br />

A bicicleta em si, ou o binômio ciclista-cicleta daria, ao mundo que representava, mais<br />

do que um caráter <strong>de</strong> revolta? Uma preocupação superior <strong>de</strong> assegurar o futuro, a<br />

duração <strong>de</strong> uma corrida e a duração <strong>de</strong> uma vitória. Com isso víamos limites à nossa<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> voar, liberda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> buscas que constituíam o sentido <strong>de</strong>sse mundo <strong>de</strong> pistas<br />

asfaltadas e turbulências <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> partidas e chegadas. Seja dito, sem querer rebaixar<br />

nada, sem distinções <strong>de</strong> pódios ou mesmo <strong>de</strong> equipes (eu gostaria <strong>de</strong> sugerir, ao<br />

contrário, um sentimento <strong>de</strong> força), a própria vida do ciclista correspon<strong>de</strong> a um equívoco.<br />

Ele gostaria <strong>de</strong> ser um pássaro. A angústia, evi<strong>de</strong>ntemente, me guiava entre atletas atentos<br />

– isso me extraviava novamente – pensando em escrever um livro ou uma história que<br />

falasse do ciclismo.<br />

Por mim passavam <strong>de</strong>z outros, em uma velocida<strong>de</strong> amarga e <strong>de</strong>slustrosa. Seriam<br />

também escritores?<br />

- Corre Michelet, corre! – gritou um <strong>de</strong>les, enquanto eu pedalava afobado para voltar<br />

ao meu ponto.<br />

Numa passagem árdua, entre curvas e florestas (que não cheguei a curtir como queria,<br />

mas obtive <strong>de</strong> terceiros informações precisas) vi que meu trabalho e minha insegurança eram<br />

fruto <strong>de</strong> um medo e uma falta <strong>de</strong> respeito com os outros atletas. Eu os <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhei, confiando<br />

plenamente nas funções da minha bicicleta. Faltou-me inspiração. Vi minha velocida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spencar e percebi que a respiração encontrava outros ritmos, alheios ao ensaio, ao treino,<br />

aos conselhos da equipe técnica.<br />

Tento imaginar meu rosto, resfolegante, emaciado, nobre, as narinas frementes.<br />

*<br />

-Michelet é sem igual!! Viva! Corre! Força – e a torcida me animava.<br />

Diziam os jornais que ninguém podia ser comparado a mim, em função da acuida<strong>de</strong><br />

visual, dramática, muitas vezes, com um elemento quase shakespeariano do acontecimento<br />

vivido. Eu corro para esse espectador invisível, que passa sob a viseira <strong>de</strong> meu capacete<br />

como um borrão, como um polichinelo risonho, sacudindo braços e dando vivas. Traço meu<br />

caminho na história. E corro.<br />

Os técnicos censuram meus erros, <strong>de</strong>talhes, posicionamento no selim, mas tiveram que<br />

se curvar diante da minha força <strong>de</strong> visionário. E eu corri. E, sou realmente um ciclista, no<br />

sentido em que pedalar é um feito majestoso, em que o homem centauro que doma sua<br />

bicicleta, projete sentidos e quimeras e não, pura e simplesmente, uma ciência. Corro e vôo.<br />

As asas não aparecem mas esbatem-se no rosto dos atletas que ficam para trás. O ritmo do<br />

coração retorna aos gradis da introspecção. Sei muito bem reconhecer a gran<strong>de</strong>za e<br />

suspeitar das intrigantes melopéias dos cantadores <strong>de</strong> vitória, mas eu lanço minha<br />

personagem do momento – Michelet, o ciclista – numa ardorosa e rápida pincelada nos<br />

cenários da estrada e transmito meu vôo para um pujante regozijar das almas, que na lateral<br />

gritam meu nome. O proscênio da fatalida<strong>de</strong>, segundo Piscator, meu mestre e preparador<br />

físico. Ele me vigia e eu me metamorfoseio no gran<strong>de</strong> corredor, no gran<strong>de</strong> domador do<br />

cavalo metálico – na magrela dos tempos juvenis, no camelo dos tempos <strong>de</strong> aprendiz <strong>de</strong><br />

ciclista.<br />

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