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Leituras de Bocage - Repositório Aberto da Universidade do Porto

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14 leituras <strong>de</strong> bocage<br />

<strong>do</strong>s casos, a celebri<strong>da</strong><strong>de</strong> alcança<strong>da</strong> não garantia aos autores setecentistas qualquer estatuto; se o tinham,<br />

<strong>de</strong>corria <strong>de</strong> pertencerem à nobreza ou à protecção <strong>de</strong>sta.<br />

Com efeito, <strong>do</strong>s Pirinéus para cá, a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> senhorial não só enfermava <strong>da</strong> falta <strong>de</strong> burguesias<br />

mas, igualmente, <strong>de</strong> uma élite pensante. Burguesia maioritariamente <strong>de</strong>stituí<strong>da</strong> <strong>de</strong> consciência <strong>de</strong> classe,<br />

cuja aspiração mais profun<strong>da</strong> consistia em inserir-se no estrato privilegia<strong>do</strong> – a aristocracia. Em Portugal,<br />

apenas uma pequeníssima franja tem acesso às Luzes e, em consequência <strong>do</strong> esmaga<strong>do</strong>r analfabetismo,<br />

este diminuto núcleo letra<strong>do</strong> mal chega para dinamizar política e culturalmente uma população<br />

divorcia<strong>da</strong> <strong>de</strong> si própria. Na tentativa <strong>de</strong> “aprisionar” a to<strong>do</strong> o custo uma visão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em transe<br />

<strong>de</strong> conversão, a passivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s gentes interessava ao Po<strong>de</strong>r, importava por to<strong>do</strong>s os meios perpetuar<br />

a mesmi<strong>da</strong><strong>de</strong>, o status quo social, garantia <strong>da</strong> longevi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> monarquia absoluta. Para isso a censura 6 e,<br />

pior, a auto censura eram os garantes <strong>da</strong> manutenção <strong>do</strong> sistema.<br />

Tanto Mace<strong>do</strong> como <strong>Bocage</strong> ce<strong>do</strong> se entregam à boémia pobre. Como fra<strong>de</strong>, José Agostinho<br />

conhece o Limoeiro seis anos antes <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong>, em 1791. A este cárcere seguiu-se ain<strong>da</strong> o <strong>do</strong> Castelo<br />

<strong>de</strong> S. Jorge. Fora con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> por múltiplos escân<strong>da</strong>los: <strong>de</strong>sacatos, crimes <strong>de</strong> concubinato e roubo <strong>de</strong><br />

livros. Ten<strong>do</strong> professa<strong>do</strong> aos <strong>de</strong>zassete na Or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s Eremitas Calça<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Santo Agostinho, vem a<br />

conhecer a expulsão perpétua <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m pelo acórdão <strong>do</strong> Definitório <strong>do</strong> convento <strong>do</strong>s gracianos, regressan<strong>do</strong><br />

ao pleno exercício no esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> presbítero secular, em 1794, como se jamais tivesse sofri<strong>do</strong><br />

um processo canónico. E não ficamos por aqui, Frei José Agostinho teria igualmente <strong>de</strong> prestar contas<br />

ao Santo Ofício por mor <strong>de</strong> quatro queixas apresenta<strong>da</strong>s por corte amorosa e impie<strong>da</strong><strong>de</strong>, acaso os<br />

processos <strong>de</strong>stas <strong>de</strong>núncias não tivessem si<strong>do</strong> suspensos. As Invasões vieram interromper to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong><br />

normal <strong>do</strong> reino e estes acabaram por ficar sem efeito.<br />

Enquanto Frei Agostinho, avesso a uma vi<strong>da</strong> cenobítica, se entrega à estúrdia e dissipa assim<br />

catorze anos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> conventual, <strong>Bocage</strong>, órfão <strong>de</strong> mãe, a crescer sem o agasalho paterno 7 , leva praticamente<br />

o mesmo tempo, entremean<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>nte com a boémia. Ain<strong>da</strong> a<strong>do</strong>lescente, como<br />

voluntário, assenta praça no Regimento <strong>de</strong> Infantaria <strong>de</strong> Setúbal, on<strong>de</strong> passa algum tempo; aos <strong>de</strong>zoito<br />

anos, alista-se, em Lisboa, na Companhia <strong>do</strong>s Guar<strong>da</strong>s Marinhas (não confundir com a Aca<strong>de</strong>mia <strong>do</strong>s<br />

Guar<strong>da</strong>s Marinhas, cria<strong>da</strong> posteriormente). Embora venha a <strong>de</strong>sertar <strong>de</strong>z meses <strong>de</strong>pois para se entregar<br />

completamente à farra alfacinha, este estoira-vergas, <strong>da</strong><strong>da</strong> a precoci<strong>da</strong><strong>de</strong> poética, além <strong>de</strong> animar<br />

o Botequim Nicola, já frequenta casas nobres on<strong>de</strong>, a troco <strong>de</strong> jantares e <strong>de</strong> alguma fama, <strong>de</strong>senfastia<br />

saraus e dá colori<strong>do</strong> a enfa<strong>do</strong>nhos outeiros com os seus sonetos improvisa<strong>do</strong>s e ditirambos. Seguin<strong>do</strong> o<br />

hábito, também oferece letras para as modinhas brasileiras. Demasia<strong>do</strong> jovem e presa fácil <strong>de</strong> amourettes,<br />

converte para verso os <strong>de</strong>saires sentimentais e perpetua bucólicas Armias, Márcias, Anar<strong>da</strong>s, Nises,<br />

Lénias e outras mais.<br />

Apesar <strong>de</strong> não ter frequenta<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o curso na Companhia, <strong>Bocage</strong> vê-se nomea<strong>do</strong> guar<strong>da</strong> marinha<br />

por mercê régia e, feitos vinte e um anos, no mês <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1786, por “Um vivo amor <strong>de</strong><br />

nome e fama”, encontramo-lo feito ao mar na nau Nossa Senhora <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>, rumo à Índia. Após uma<br />

escala pelo Rio <strong>de</strong> Janeiro e outra por Moçambique, chega a Goa a 29 <strong>de</strong> Outubro. Aqui prossegue os<br />

estu<strong>do</strong>s militares, frequenta a Aula Real <strong>da</strong> Marinha, mas “por causa legítima” (sabemos tratar-se <strong>de</strong><br />

<strong>do</strong>ença), não se apresentou a exame. Por <strong>do</strong>is anos sentiu uma vi<strong>da</strong> gemina<strong>da</strong> ao seu celebra<strong>do</strong> herói<br />

e mo<strong>de</strong>lo:<br />

6 Recor<strong>de</strong>mos as proibições <strong>do</strong>s títulos estampa<strong>do</strong>s no edital <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong> 1770 para vermos como a largueza <strong>do</strong> espírito<br />

pombalino coincidia já com a profilaxia apologética. Observemos uma amostra: O Essay Concerning the Human Un<strong>de</strong>rstanding<br />

<strong>de</strong> Locke só era li<strong>do</strong> com licença especial. A juventu<strong>de</strong> não teve acesso à brinca<strong>de</strong>ira séria <strong>da</strong>s Lettres Persanes <strong>de</strong> Montesquieu,<br />

proibi<strong>da</strong>s na classe <strong>do</strong> livro libertino; não leu o Candi<strong>de</strong> <strong>do</strong> agita<strong>do</strong>r Voltaire, nem a leitura subversiva <strong>do</strong> Rousseau <strong>do</strong> Emile ou<br />

as suas Confessions, que mereceram <strong>da</strong> parte <strong>de</strong> Pereira <strong>de</strong> Figueire<strong>do</strong> o curioso encómio - à la Bruyère -, <strong>de</strong> “prostituição <strong>de</strong><br />

modéstia”. O Elogio <strong>da</strong> Loucura <strong>de</strong> Erasmo passou para o In<strong>de</strong>x, Bodin foi visto com reservas, Di<strong>de</strong>rot censura<strong>do</strong>, e Le Vrai Sens<br />

du Systeme <strong>de</strong> la Nature <strong>de</strong> Helvétius, classifica<strong>do</strong> <strong>de</strong> venenoso, acabou em chamas na praça pública. É ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que foi anula<strong>da</strong> a<br />

famigera<strong>da</strong> segregação entre cristãos-novos e cristãos-velhos, pelo édito perpétuo <strong>de</strong> 1773 (25 <strong>de</strong> Maio), não foi, to<strong>da</strong>via, permiti<strong>da</strong><br />

a leitura <strong>do</strong> temível Espinosa, nem tão-pouco <strong>de</strong> Hobbes, <strong>de</strong> Bayle, <strong>de</strong> La Mettrie e <strong>de</strong> Collins. O edital vem na sequência<br />

<strong>da</strong> “Real Mesa <strong>da</strong> Comissão Geral sobre o Exame e Censura <strong>do</strong>s Livros”, cria<strong>da</strong> em 15 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1767.<br />

7 O pai, bacharel em Cânones e com talento <strong>de</strong> poeta, tinha si<strong>do</strong> nomea<strong>do</strong>, em 1767, como ouvi<strong>do</strong>r para a comarca <strong>de</strong> Beja.<br />

Em 1770, acusa<strong>do</strong> por não ter apresenta<strong>do</strong> contas <strong>da</strong> arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> décima referente ao ano 1769, já em Setúbal, em 1771, foi<br />

conduzi<strong>do</strong> à ca<strong>de</strong>ia e transitou para o Limoeiro por seis anos.

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