Leituras de Bocage - Repositório Aberto da Universidade do Porto
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leituras <strong>de</strong> bocage<br />
Os estudiosos <strong>da</strong> Literatura não têm nunca tais certezas. Sabem que a História é um templo <strong>de</strong> belas<br />
a<strong>do</strong>rmeci<strong>da</strong>s que é preciso beijar com amorosa constância. O Esquecimento faz parte <strong>da</strong> História.<br />
E é preciso a regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> leitura, o ir e vir <strong>do</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong> indica<strong>do</strong>r sobre a página <strong>do</strong> livro, para acor<strong>da</strong>r<br />
<strong>da</strong> letargia um verso, um autor. Mais empenha<strong>da</strong>mente até, quan<strong>do</strong> o autor se enfaixou em lugarescomuns<br />
e se guar<strong>do</strong>u em pomposo esquife. Poeta <strong>do</strong> Amor, exagera<strong>do</strong> e brigão, erótico e satírico,<br />
neoclássico ou pré-romântico, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> o Pré-romantismo é a caixa para on<strong>de</strong> se remetem, em<br />
miscelânea, os românticos <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> clássicos ou os clássicos <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> românticos.<br />
Se <strong>Bocage</strong> <strong>de</strong>ve temer algo é que não o leiam. Pois aqueles que atentamente o fazem, quase sempre<br />
dão por garanti<strong>do</strong> ficarem presos aos fulgentes episódios <strong>da</strong> sua biografia, à musicali<strong>da</strong><strong>de</strong> venéfica <strong>do</strong>s<br />
seus versos, ou aos apolíneos neologismos, às nectariza<strong>da</strong>s traduções, ou aos vipéreos sarcasmos saí<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
sua pena.<br />
Por isso se impunham estas leituras. Reúnem-se aqui, suscitan<strong>do</strong> o diálogo, reflexões <strong>de</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sos<br />
e regulares leitores <strong>da</strong> poesia setecentista, e <strong>da</strong> poesia <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong>, em particular. Gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s<br />
textos agora publica<strong>do</strong>s teve a sua origem em duas sessões <strong>do</strong> Colóquio Internacional <strong>Leituras</strong> <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong><br />
(séculos XVIII-XXI), organiza<strong>do</strong> na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, por ocasião <strong>do</strong><br />
bi-centenário <strong>da</strong> morte <strong>de</strong> Manuel Barbosa du <strong>Bocage</strong> (uma a 28 <strong>de</strong> Outubro, outra a 24 e 25 <strong>de</strong> Novembro<br />
<strong>de</strong> 2005). Abriu esse colóquio o Professor Doutor Francisco Ribeiro <strong>da</strong> Silva, em representação<br />
<strong>da</strong> Reitoria <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>. Lançou-nos três <strong>de</strong>safios: a leitura <strong>da</strong>s poesias <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong>,<br />
o entendimento <strong>da</strong>s contradições <strong>da</strong> sua época, a aceitação <strong>da</strong> contradição como factor <strong>de</strong> progresso<br />
também para a nossa própria época. A insatisfação é o motor <strong>da</strong> pesquisa. Com efeito, quase to<strong>do</strong>s os<br />
textos aqui apresenta<strong>do</strong>s resultaram <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong> novas leituras, reformulações, substituições. Não<br />
são já os textos apresenta<strong>do</strong>s no referi<strong>do</strong> Colóquio, por muito sujeitos que foram ao buril <strong>do</strong> tempo e<br />
<strong>da</strong>s circunstâncias. E são agora edita<strong>do</strong>s com o patrocínio <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Literários <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Letras e Reitoria <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, que em boa hora os julgaram dignos <strong>de</strong> vir a lume.<br />
<strong>Bocage</strong> <strong>de</strong>pressa se torna um <strong>de</strong>safio. Des<strong>de</strong> logo, numa perspectiva bio-bibliográfica. Para autores<br />
como A<strong>de</strong>lto Gonçalves (A casa on<strong>de</strong> nasceu <strong>Bocage</strong>, e outras ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que não pegam), a investigação sobre a<br />
casa on<strong>de</strong> teria nasci<strong>do</strong> <strong>Bocage</strong>, no Largo <strong>de</strong> Santa Maria, em Setúbal, é o ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para outros<br />
factos novos <strong>da</strong> História comum <strong>do</strong> Brasil e <strong>de</strong> Portugal que ain<strong>da</strong> não ganharam foro <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
consuma<strong>da</strong>. As provas apresenta<strong>da</strong>s, já arrola<strong>da</strong>s na sua biografia (<strong>Bocage</strong>: o perfil perdi<strong>do</strong>, 2003), são<br />
também a história <strong>de</strong> um percurso por bibliotecas e arquivos, indispensável a qualquer estu<strong>do</strong> sobre o<br />
século XVIII.<br />
Com efeito, na percepção que temos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong>, frequentemente se confun<strong>de</strong>m a Ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
e o Mito, e não raramente o Mito se sobrepõe à Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao <strong>da</strong>r forma a uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> simbólica que<br />
confun<strong>de</strong> a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um com a <strong>do</strong> poeta. Daí alguma regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s façanhas anedóticas <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong>.<br />
E também o seu oposto trágico. Ao longo <strong>de</strong> duzentos anos, foram aparecen<strong>do</strong> várias biografias<br />
romancea<strong>da</strong>s ou romances históricos, que tiveram <strong>Bocage</strong> como protagonista. O género, aliás, infere<br />
<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as características próprias <strong>de</strong> um relato que, por natureza, é subjectivo e encomiástico. Fátima<br />
Marinho (<strong>Bocage</strong> Revisita<strong>do</strong>) realça-o e, partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> levantamento <strong>de</strong>ste fenómeno, estu<strong>da</strong> a relação<br />
entre a perspectiva histórica e a literária na biografia literária: em obras como A Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira Paixão <strong>de</strong><br />
<strong>Bocage</strong>, Amores <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong> na Índia e <strong>Bocage</strong>, <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> e terceira déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> século XX, mas também na<br />
mais recente biografia literária, o romance <strong>de</strong> José Jorge Letria, Já <strong>Bocage</strong> não sou, publica<strong>do</strong> em 2002.<br />
E é nesse aspecto que parece ain<strong>da</strong> mais interessante o diálogo que este texto intimamente estabelece<br />
com o <strong>de</strong> José Jorge Letria (<strong>Bocage</strong>: verso e reverso). Afirman<strong>do</strong>-se como voz <strong>de</strong> um escritor e não<br />
como voz crítica ou especialista, o autor inci<strong>de</strong> na experiência <strong>da</strong> escrita. Preten<strong>de</strong> mesmo sublinhar a<br />
sua subjectivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, consubstancian<strong>do</strong>-se a novela num diálogo <strong>de</strong> vozes que falam <strong>de</strong> si, entre si e <strong>de</strong><br />
Portugal. Mas José Jorge Letria quis também <strong>da</strong>r testemunho sobre o mo<strong>do</strong> como a vi<strong>da</strong> e a obra <strong>de</strong><br />
<strong>Bocage</strong> o marcaram logo na a<strong>do</strong>lescência, contribuin<strong>do</strong> para que ele próprio viesse a tornar-se poeta.<br />
Separar com rigor as vozes, eis, pois, uma difícil missão. E to<strong>da</strong>via, imprescindível, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista<br />
<strong>do</strong> crítico que quer <strong>da</strong>r a ca<strong>da</strong> um o que é seu para fazer justiça ao Autor e ao Leitor. <strong>Bocage</strong> epicurista,<br />
<strong>Bocage</strong> libertino, <strong>Bocage</strong> liberal, <strong>Bocage</strong> pré-romântico, neoclássico ou barroco, <strong>Bocage</strong>/Elmano,<br />
<strong>Bocage</strong> e os elmanistas… Entre os rótulos que colamos a <strong>Bocage</strong>, quantos e quais são efectivamente<br />
<strong>de</strong> <strong>Bocage</strong>, quantos não são efectivamente mais nossos <strong>do</strong> que <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong>?<br />
O paralelismo com outros autores e outras épocas impõe-se para perceber <strong>Bocage</strong> e a sua época.