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Leituras de Bocage - Repositório Aberto da Universidade do Porto

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3 leituras <strong>de</strong> bocage<br />

Revelan<strong>do</strong>-se admira<strong>do</strong>r <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong> (<strong>de</strong> quem afirma, no Curso <strong>de</strong> Literatura Portuguesa, que “a<br />

populari<strong>da</strong><strong>de</strong> lhe sobreviveu meio século”, asseguran<strong>do</strong> que “será ain<strong>da</strong> conheci<strong>do</strong> pelo nome, quan<strong>do</strong><br />

já ninguém lhe conhecer os livros”), Camilo <strong>de</strong>plora nela a <strong>de</strong>sproporção <strong>do</strong>s sentimentos para<br />

mesquinhos assuntos, e i<strong>de</strong>ntifica-o com a imagem servil <strong>do</strong>s poetas setecentistas. Sensível à sedução<br />

<strong>da</strong>quela <strong>de</strong>scomunal música, à “travação harmónica <strong>da</strong>s palavras”, Camilo classifica os sonetos <strong>de</strong><br />

<strong>Bocage</strong> como “orquestra estrepitosa” 3 .<br />

Esta ambigui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> critérios nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> estar presente na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong>. As apreciações<br />

<strong>do</strong>s seus contemporâneos oscilam também entre o elogio e a sátira, <strong>da</strong> mesma forma com que o poeta<br />

passava <strong>da</strong> <strong>de</strong>dicatória subserviente ao epigrama mor<strong>da</strong>z. A Viscon<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Balsemão, a quem <strong>Bocage</strong><br />

chamava “consola<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> meus negros males”, irmã <strong>de</strong> “lúgubres cantos”, acaba impaciente:<br />

Sofri teu génio caprichoso, e duro,/ Conheci teu carácter inconstante,/ Calculei qual serias no futuro./ Custou-me<br />

mas venci, feliz instante!/ Vê se po<strong>de</strong>s achar, não to seguro,/ Quem sofra em paz teu génio extravagante. 4<br />

<strong>Bocage</strong> sabia o quanto estes alterna<strong>do</strong>s sentimentos pesam nas apreciações literárias. Os seus apelos<br />

à Posteri<strong>da</strong><strong>de</strong> quase sempre evocam <strong>do</strong>is <strong>de</strong>uses tutelares que não moram ou <strong>de</strong>moram no tempo<br />

presente: o Critério e o Desinteresse 5 .<br />

Talvez porque mais livre <strong>de</strong> Interesses, o Critério <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res estrangeiros foi mais favorável<br />

a <strong>Bocage</strong>. Para Balbi, o génio <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong> só será perceptível com o tempo, e ain<strong>da</strong> assim limita<strong>do</strong> pelo<br />

tempo: “la postérité ne pourra jamais se faire l’idée <strong>de</strong> toute l’étendue <strong>de</strong> son génie” 6 . Beckford, ao<br />

ouvir as composições <strong>da</strong>quele “páli<strong>do</strong>, esquisito mancebo, […] a criatura mais extravagante, mas porventura<br />

a mais sui generis que Deus ain<strong>da</strong> formou”, mostra-se “estremeci<strong>do</strong> e arrebata<strong>do</strong>”. Beckford<br />

que, ao cantar ou ouvir cantar, caía por vezes num “<strong>de</strong>lírio musical” 7 , reconhecen<strong>do</strong> que pouco sabia<br />

<strong>do</strong> idioma português para lhe avaliar as subtilezas <strong>do</strong>s conceitos, facilmente se <strong>de</strong>ixa conquistar pela<br />

sua música: “aquele estranho e versátil carácter possui o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro segre<strong>do</strong> <strong>de</strong> encantar, segre<strong>do</strong> que,<br />

ao gra<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu possui<strong>do</strong>r, anima ou petrifica um auditório inteiro”. 8 Assim era o Orfeu.<br />

Não nos <strong>de</strong>ixemos pois enganar pela falsa humil<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong> que, confessan<strong>do</strong>-se “inculto<br />

habita<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s agras serras/ que mal <strong>da</strong> avena humil<strong>de</strong> sabe os sons extrair insinua<strong>do</strong>s/ <strong>da</strong> simples<br />

Natureza”, classifica amiú<strong>de</strong> os seus versos <strong>de</strong> “agrestes”, “<strong>de</strong>stoa<strong>do</strong>s”, “sem arte, sem beleza e sem<br />

brandura” 9 . Não será por acaso que Camilo era sensível à “travação harmónica”. Ou que Beckford se<br />

sentia hipnotiza<strong>do</strong> pela incompreensível linguagem. Mais <strong>do</strong> que uma captatio benevolentia, cremos estar<br />

por <strong>de</strong>trás <strong>da</strong> argumentação <strong>de</strong> <strong>Bocage</strong> um efectivo e prolonga<strong>do</strong> projecto retórico <strong>de</strong> re<strong>de</strong>finir a Literatura<br />

através <strong>do</strong> carácter sublime <strong>da</strong> Música. Por várias vezes, faz <strong>Bocage</strong> referência ao mito linguístico<br />

<strong>da</strong> <strong>de</strong>sconjunta<strong>da</strong> torre <strong>de</strong> Babel. Metaforicamente, Babel é a Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s Homens, por oposição a<br />

um mun<strong>do</strong> divino (<strong>de</strong> Deus ou <strong>de</strong> Nossa Senhora) marca<strong>do</strong> pela Utopia 10 . Esse tempo utópico é o <strong>da</strong><br />

origem <strong>do</strong> verbo, <strong>da</strong> palavra, tempo idílico em que o significa<strong>do</strong> e o significante, o som e o conceito,<br />

não conheciam cisão. Aí teria nasci<strong>do</strong>, para <strong>Bocage</strong> como para muitos autores <strong>do</strong> século XVIII, não só<br />

a poesia lírica, mas a própria literatura, já que o género lírico teria marca<strong>do</strong> o próprio nascimento <strong>da</strong><br />

Literatura. Frei Alexandre <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Família, tio e mentor <strong>de</strong> Garrett, explicita-o:<br />

É antigo ao homem buscar algum refrigério a seus males e a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> inventou as primeiras artes: o canto <strong>de</strong>via<br />

ser o <strong>de</strong>safogo <strong>da</strong> alma como outras invenções serviram ao corpo. […] Ain<strong>da</strong> entre os Gregos, quan<strong>do</strong> já as artes<br />

3 C. CASTELO-BRANCO – Curso <strong>de</strong> Literatura Portuguesa, Lx, Editorial Labirinto, 1986, pp. 231 e 234.<br />

4 M. Luísa Malato BORRALHO – D. Catarina <strong>de</strong> Lencastre (1749-1824)…, tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utoramento apresenta<strong>da</strong> à FLUP, <strong>Porto</strong>,<br />

1999, tomo I, p. 306. Poema transcrito integralmente no t. II, Ms. G, fl. 284.<br />

5 V.g., BOCAGE – Obras <strong>de</strong>…, <strong>Porto</strong>, Lello, [imp. 1968], p. 539. Por ain<strong>da</strong> se não encontrar integralmente edita<strong>da</strong>, não usamos<br />

ain<strong>da</strong> aqui a cui<strong>da</strong><strong>da</strong> edição <strong>de</strong> Daniel Pires.<br />

6 Adrian BALBI – Essai statistique sur le Royaume <strong>de</strong> Portugal et d’Algarve…, 2 vols., Paris, Rey et Gravier Lib., 1822, pp. clxv e<br />

clxvj.<br />

7 William BECKFORD – Diário <strong>de</strong>.... em Portugal e Espanha, introd. e notas <strong>de</strong> Boyd Alexan<strong>de</strong>r, trad. e pref. João Gaspar Simões,<br />

3.ª ed., Lisboa, B.N.L., 1988, p. 130.<br />

8 Apud Teófilo BRAGA in BOCAGE – Op. cit., p. 26.<br />

9 BOCAGE – Op. cit., v.g., pp. 130, 132, 588.<br />

10 BOCAGE – Op. cit., v.g., pp. 557, 619.

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