JORGE BENCI E A ESCRAVIDÃO: PERCEPÇÕES DE UM JESUÍTA ...
JORGE BENCI E A ESCRAVIDÃO: PERCEPÇÕES DE UM JESUÍTA ...
JORGE BENCI E A ESCRAVIDÃO: PERCEPÇÕES DE UM JESUÍTA ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>JORGE</strong> <strong>BENCI</strong> E A <strong>ESCRAVIDÃO</strong>: <strong>PERCEPÇÕES</strong> <strong>DE</strong> <strong>UM</strong> <strong>JESUÍTA</strong> ITALIANO<br />
EM <strong>UM</strong>A SOCIEDA<strong>DE</strong> ESCRAVISTA<br />
Resumo<br />
Natália de Almeida Oliveira 1<br />
Jorge Benci, jesuíta italiano que chega ao Brasil em Agosto de 1683 e pede para retonar deste,<br />
em 1700, é autor da obra “Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos”, esta é<br />
formada por sermões que este pregou na Bahia durante o XVII, que são publicados em Roma<br />
no ano de 1705 na forma de livro. Sua obra é dividida em uma introdução e quatro discursos,<br />
durante todos estes, o jesuíta aborda a escravidão, partindo da premissa, das mútuas<br />
obrigações entre senhores e escravos. Nossa comunicação tem o escopo de apresentar as<br />
percepções de Jorge Benci sobre a escravidão, no que tange o discurso II, “Em que se trata da<br />
segunda obrigação dos senhores para com os servos”, que aborda a Doutrina Cristã.<br />
Palavras - chave: Jorge Benci; Jesuíta; Escravidão.<br />
Abstract<br />
Jorge Benci, Italian jesuit who arrived in Brazil in august 1683 and asked to back this, in<br />
1700, is the author of “Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos,” this<br />
consists of sermons that he preached in Bahia during the seventeenth , which are published in<br />
Rome in the year 1705 in book form. His work is divided into an introduction and four<br />
speeches during all these, the jesuit discusses slavery, assuming, of mutual obligations<br />
between masters and slaves. Our communication has the scope to present the perceptions of<br />
Jorge Benci on slavery, regarding the speech II, “Em que se trata da segunda obrigação dos<br />
senhores para com os servos,” which addresses the Christian Doctrine.<br />
1 Atualmente é aluna do Curso de Especialização em História do Brasil Colonial pela Faculdade de São Bento do<br />
Rio de Janeiro.. É Licenciada e Bacharel em História pela Universidade Gama Filho. Foi bolsista de Iniciação<br />
Científica, Voluntária e CNPq, vinculada à Universidade Gama Filho. Trabalhou no Arquivo do Tribunal de<br />
Justiça do Rio de Janeiro. Atualmente é professora de História da rede particular do município do Rio de Janeiro<br />
e da Baixada Fluminense. Por causa do tempo de apresentação e do tamanho da comunicação, não pontuaremos,<br />
todo o Discurso II, trabalharemos apenas com os itens 1 e 2.
Key-words: Jorge Benci; Jesuit; Slavery.<br />
Introdução<br />
Jorge Benci de Arimino nasceu em Ramini, na Itália, em 1650. Ingressou na Companhia<br />
de Jesus em Bolonha, em 17 de Outubro de 1665, com 15 anos de idade. Embarcou para<br />
Lisboa em 1681, para trabalhar nas atividades missionárias. Em 15 de Agosto de 1683,<br />
realizou sua profissão solene no Rio de Janeiro. Em 2 de Maio de 1700, quando estava na<br />
Bahia Jorge Benci, pede para sair do Brasil, por motivos pessoais, pedindo para voltar à<br />
Veneza onde havia estado ou para ir para a Ilha de São Tomé, mas é enviado para Lisboa, na<br />
qual trabalha com os assuntos referentes a Província do Brasil. O jesuíta morre em 10 de<br />
Julho de 1708. Serafim Leite na História da Companhia de Jesus no Brasil, volume VIII, o<br />
considera “moralista” (LEITE, 1949: 95-96).<br />
Exerceu cargos de Pregador e Procurador do Colégio da Bahia, Professor de Teologia e<br />
Humanidades, Visitador Local e Secretário Provincial, durante os anos de 1688 e 1692. Benci<br />
foi a São Paulo, tratar da questão do “ajustamento com os paulistas” (ZERON, 2011: 336-<br />
340), no contexto da batalha travada dentro da Companhia de Jesus, por jesuítas italianos e<br />
portugueses. Mesmo com a proibição da Coroa de jesuítas estrangeiros assumirem altos<br />
cargos dentro da Ordem, isso na prática não se efetivou, pois Antonio Adreoni ocupou cargos<br />
altos, seguido de Jorge Benci.<br />
Jorge Benci está presente nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707,<br />
como referência aos escravos africanos, por sua obra Economia Cristã dos Senhores no<br />
Governo dos Escravos, que a priori era um sermão, que foi enviado já em forma de livro para<br />
Roma em 12 de Maio de 1700 e publicado no ano de 1705.<br />
Jorge Benci além da Economia Cristã é o autor os seguintes sermões: Sentimentos da<br />
Virgem Maria N. S. em sua Soledade, sermão pregado na Sé da Bahia, no ano de 1698.<br />
2
Sermão de S. Felippe Neri, pregado no Recife, no ano de 1701. Sermão do Mandato, pregado<br />
na Bahia, também no ano de 1701. 2<br />
A Economia Cristã e a construção do projeto missionário<br />
A Economia Cristã tem uma introdução e quatro discursos, já na introdução Benci nos diz<br />
que a escravidão é a filha do pecado original de Adão e Eva, sendo graças ao pecado que<br />
existe cativeiro, pois “o gênero humano é livre por natureza”, mas por terem Adão e Eva<br />
pecado “grande parte dele a cair na servidão e no cativeiro, ficando uns senhores e outros<br />
servos”, logo se “Adão perseverasse no estado de inocência em que Deus o criou, não haveria<br />
no mundo cativeiro, nem senhorio.” (<strong>BENCI</strong>, 1977: 47).<br />
“O pecado, pois, foi o que abriu as portas por onde entrou o cativeiro no mundo” (<strong>BENCI</strong>,<br />
1977: 48), este pecado vindo de uma concepção Cristã, surge da revolta do homem contra o<br />
Criador, e deste surgem as batalhas dos povos contra povos, isto é as guerras. E o cativeiro<br />
surge para a preservação da vida daqueles que foram vencidos, ao invés de “banhos de<br />
sangue” serem derramados em cada batalha, desta maneira, os vencidos se entregavam aos<br />
vencedores, que “ficavam com o domínio e o senhorio perpétuo sobre os vencidos, e os<br />
vencidos com a perpétua sujeição e obrigação de servir aos senhores” (<strong>BENCI</strong>, 1977: 47-48).<br />
Utilizando a ideia do “senhorio como filho do pecado”, Benci afirma:<br />
E para atalhar estas culpas e ofensas, que cometem contra Deus os senhores, que não<br />
usam do domínio e do senhorio que têm sobre os escravos, com a moderação que<br />
pede a razão e a piedade Cristã: tomei por assunto, e por empresa dar a luz a esta<br />
obra, a que chamo de Economia Cristã: isto é regra, norma e modelo, por onde se<br />
devem governar os senhores cristãos para satisfazerem às suas obrigações de<br />
verdadeiros senhores. (<strong>BENCI</strong>, 1977: 49)<br />
Benci nos diz que os senhores de escravos quando não usam a moderação e a piedade,<br />
pressupostos que todo bom cristão deve utilizar para com os seus escravos, pecam contra<br />
Deus. Por isso, como enviado divino o italiano cria a Economia Cristã, que é “regra, norma e<br />
2 Serafim Leite, em sua obra aponta duas outras obras de Benci, que ainda não tivemos acesso, o Sermão ao povo<br />
na Quinta-feira, de 1701. E o “De vera et falsa probabilitate opinionum.”<br />
3
modelo” de como um senhor de escravos deve tratar seus cativos, para assim ser um senhor de<br />
escravos cristão.<br />
Para o religioso, os senhores do Brasil colonial tratam os escravos como se estes fossem<br />
jumentos, mas isto é errado, pois “senhor e servo são de tal correlativos, que assim como o<br />
servo está obrigado ao senhor, assim o senhor está obrigado ao servo. Esta mútua e recíproca<br />
correspondência de obrigações entre senhores e servos” (<strong>BENCI</strong>, 1977: 50), é reconhecida na<br />
Epístola ao Colossenses 3 . Quais são as obrigações de um senhor com seu servo? Jorge Benci<br />
indaga e diz que a resposta veio por inspiração do Espírito Santo, pois unindo o Eclesiástico<br />
33 a Aristóteles 4 , une-se o sagrado e o profano, e se chega a três palavras: trabalho, sustento e<br />
castigo.<br />
Combinai agora um texto com outro texto, o profano com o sagrado; cotejai o<br />
panis com o cibus, a disciplina com o castigatio, e o opus com o opus: e vereis<br />
[...] que nestas três palavras, panis, disciplina, opus, se compreendem todas as<br />
obrigações, que não são poucas, as que devem os senhores aos servos. Por isso<br />
nelas fundarei os discursos desta Economia Cristã, em que pretendo instruir aos<br />
senhores, e especialmente aos do Brasil, no modo com que devem tratar os<br />
escravos, para que façam distinção entre eles e os jumentos; a qual certamente<br />
não fazem os que só procuram tirar deles o lucro, que interessam no seu<br />
trabalho. (<strong>BENCI</strong>, 1977: 51-52)<br />
Mesmo apoiando e legitimando a escravidão no pecado original de Adão e Eva, Benci é<br />
contra o modo como os escravos são tratados no Brasil, porque crê em uma circularidade de<br />
deveres e obrigações mútuas nas relações senhores e escravos. Esta mudança no trato com o<br />
cativo que Benci prega é baseada em preceitos cristãos. O jesuíta italiano acredita que um<br />
homem cristão que foi amado por Cristo e ensinado por este deve ter caridade com o próximo<br />
e não tratar seu servo como um bruto/jumento. Desta maneira Jorge Benci, com a Economia<br />
3 Colossenses 3: 22 - “Servos, obdecei em tudo os senhores desta vida, não quando vigiados para agradar a<br />
homens, mas em simplicidade de coração, no temor de Deus.” E Colossenses 4:1: “Senhores, daí aos vossos<br />
servos o justo e o equitativo, sabendo que vóis tendes um senhor no céu”. In: Bíblia de Jerusalém. Nova edição<br />
revisa e ampliada. Editora: Paulus. São Paulo, 2002. p.2058.<br />
4 Eclesiástico 33: 36 - “Para o asno forragem, chicote e carga; para o servo o pão, correção e trabalho”. In: Bíblia<br />
de Jerusalém. Op. Cit. p. 1196. Que deveria se unir “aos Oikonomika atribuídos a Aristóteles”, como nos elucida<br />
Bivar Marquese. In: MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente – Senhores,<br />
letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1680. Editora: Companhia das Letras. São Paulo, 2004. p.<br />
52.<br />
4
Cristã, fixa preceitos para o senhor tratar seu escravo, criando um modelo que deveria ser<br />
seguido.<br />
No discurso II – “Em que se trata da segunda obrigação dos senhores para com os<br />
servos”, vemos o esforço do jesuíta italiano, em constituir um molde no trato com o cativo, o<br />
que a nosso ver enquadra-se na constituição do seu projeto missionário, não apenas pela<br />
construção de uma família-cristã, mas pela tentativa de organização da cristandade colonial.<br />
“Como os servos são criaturas racionais, que constam de corpo e alma, não deve só o<br />
senhor dar-lhes o sustento corporal para que não pareçam seus corpos, mas também o<br />
espiritual para que não desfaleçam suas almas” (<strong>BENCI</strong>, 1977: 84), depois de propor o que o<br />
senhor deve dar o sustento ao cativo, como conservação de vida humana, no que tange<br />
alimentação, vestuário e cuidado com as enfermidades, que são preocupações com o corpo do<br />
servo, Benci afirma a alma do cativo, e que esta alma precisa ser alimentada, assim como o<br />
corpo.<br />
E se me perguntam em que consiste o alimento espiritual? Digo que em três coisas,<br />
que correspondem às três coisas, que correspondem três vezes que mandou Cristo a<br />
S. Pedro.[...] Mas que três coisas são estas? O Concílio Tridentino as declara, e diz<br />
que são a Doutrina Cristã, o uso dos Sacramentos, e o bom exemplo da vida (m) . E<br />
suposto que neste lugar fala o Concílio particularmente com os Párocos e Pastores<br />
de Almas, não deixa contudo de falar também com os senhores, pois também são<br />
Curas das almas de seus servos. (<strong>BENCI</strong>, 1977: 83-84)<br />
Benci utilizando-se do texto bíblico de João 21 5 , e das determinações do Concílio de<br />
Trento, denota a quem fala o seu projeto missionário, fala aos párocos “pastores de almas” e<br />
aos senhores de escravos, que juntamente com os religiosos são responsáveis pela alma dos<br />
cativos.<br />
5 João 21: 15-17 - “Depois de comerem, Jesus disse a Simão Pedro: “Simão, filho de João, tu me amas mais do<br />
que estes?”Ele lhe respondeu: “Sim, Senhor, tu sabes que te amo”. Jesus lhe disse: “Apascenta meus cordeiros”.<br />
Segunda vez disse-lhe: “Simão, filho de João, tu me amas? – “Sim, Senhor”, disse ele, “tu sabes que te amo”.<br />
Disse-lhe Jesus: “Apascenta minhas ovelhas”. Pela terceira vez lhe disse: “Simão, filho de João, tu me amas?”<br />
Entristeceu-se Pedro porque pela terceira vez lhe perguntara “Tu me amas?” e disse-lhe: “Senhor tu sabes tudo;<br />
tu sabes que te amo”. Jesus lhe disse: “Apascenta minhas ovelhas”.” In: Bíblia de Jerusalém. Op. Cit. p.1894.<br />
5
Entendemos que o discurso, por mais particular que seja, está inserido em um contexto<br />
maior e partindo do pressuposto que não há discurso sem sujeito, nem sujeito sem visão de<br />
mundo; entendemos que Benci está inserido em uma sociedade escravista colonial.<br />
No item um do discurso II, intitulado de: “Da Doutrina Cristã, que os senhores são<br />
obrigados [a] ensinar a seus servos”, Benci nos diz; “Bem sabeis que a maior parte dos<br />
servos deste Brasil vem da Gentilidade da Guiné [e] mais partes da África, tão rudes dos<br />
mistérios de nossa Santa Fé” (<strong>BENCI</strong>, 1977: 84), nessa assertiva Benci mostra sua concepção<br />
Cristã, na qual gentil são todos aqueles que não são cristãos, logo na visão de mundo de<br />
Benci, a África é gentil, e todos que de lá saem também são, pois não se alimentam da sua<br />
concepção de fé. Por isso afirma: “Devem primeiramente os senhores alimentar as almas de<br />
seus servos com a Doutrina Cristã, para que saibam os mistérios da Fé, que devem crer, e os<br />
preceitos da Lei de Deus, que hão de guardar” (<strong>BENCI</strong>, 1977: 84), os senhores de escravos e<br />
religiosos coloniais têm a obrigação de alimentar a alma dos escravos com a religião Católica.<br />
O senhor de escravos peca quando tem um escravo recém-convertido a Fé (muitos<br />
escravos tinham o batismo, que era realizado antes do embarque para o Brasil ou no percurso<br />
da viagem) e que não cuidam da doutrinação cristã deste.<br />
Benci indaga “Em que se funda esta tão precisa obrigação, que têm os senhores de<br />
catequizar os servos? Digo que no poder e domínio que tem sobre eles; porque o doutrinar aos<br />
rudes é consequência de quem tem neles o senhorio” (<strong>BENCI</strong>, 1977: 85), sendo Jesus Cristo,<br />
filho de Deus, ao qual foi dado todo poder sobre o Céu e a Terra 6 , Benci afirma: “Entendeis<br />
muito bem, senhores, que tendes domínio e poder sobre os escravos; entendei também que a<br />
consequência deste poder e deste domínio é a obrigação de ensinar e instruir nos mistérios da<br />
Fé e preceitos da Lei de Deus” (<strong>BENCI</strong>, 1977: 86), deste modo o senhor que afirma, que os<br />
escravos são brutos e que não conseguem aprender a fé, erra e peca, pois Jesus Cristo é o<br />
senhor de todas as gentes, por isso a gente da África deve aprender a doutrina Católica.<br />
6 Mateus 28:18 - “Todo poder foi me dado no céu e sobre a terra.” In: Bíblia de Jerusalém. Op., Cit. p.1758.<br />
6
O senhor que ensina a doutrina cristã a seu servo deve considerar-se “um ministro<br />
deputado por Cristo”, na concepção de Santo Agostinho (<strong>BENCI</strong>, 1977: 87) como afirma<br />
Jorge Benci, por que:<br />
Pregando o nome de Cristo e ensinando a doutrina a todos que puder. Pois com<br />
quem melhor o podes e deveis fazer, que com aqueles que Deus vos sujeitou,<br />
fazendo-os vossos escravos, para que sejais seus Mestres na Cristandade. (<strong>BENCI</strong>,<br />
1977: 88)<br />
Benci afirma que a conversão do servo em nada abala a autoridade do senhor e que ao<br />
doutrinar um escravo no Cristianismo o senhor torna-se seu mestre na cristandade.<br />
Fazendo referências a Roma, ao Imperador Marco Crasso, Benci questiona se no Império<br />
Romano, aonde os imperadores eram gentis, estes tinham o cuidado de um pai com os seus<br />
servos, como pode no Brasil Cristão, os senhores não cuidarem bem de seus servos?<br />
Afirmando que quando o senhor não puder ou não quiser doutrinar o escravo, este deve o<br />
levá-lo para os Colégios e Casas da Companhia de Jesus ou para outras casas religiosas, para<br />
os clérigos doutriná-los, pois não se pode permitir que o escravo passasse a vida na<br />
gentilidade.<br />
Para a conversão do cativo o senhor deve ter paciência, pois ela não é automática, ela leva<br />
tempo, e muitas vezes os senhores não querem esperar, por isso o italiano afirma: “Deixai<br />
pois a disposição do Missionário gastar o tempo, que julgar conveniente, na instrução do<br />
escravo; e daí graças a Deus de haver quem vois alivie da obrigação que tender de dar o pão<br />
da Doutrina Cristã ao vosso servo.” (<strong>BENCI</strong>, 1977: 90)<br />
Percebemos o ideal de missão na tentativa de afirmação de uma cristandade colonial, que<br />
alcança os considerados como gentis, transformando-os em escravos cristãos. Realizando uma<br />
tentativa da normatização do trato ao cativo, na qual a todo o tempo Jorge Benci respalda-se<br />
em referências bíblicas e da Antiguidade para a construção de seu discurso.<br />
No item dois do discurso II, intitulado de: “Digressão exortatória aos Párocos para que<br />
ensinem a Doutrina Cristã aos escravos, com têm de obrigação”, Benci nos diz que:<br />
7
A doutrina e a instrução dos seus escravos no que toca à sua salvação e bem de suas<br />
almas, deva correr por conta de seus Curas e Párocos, só o poderia duvidar quem<br />
ignorasse a obrigação precisa, que têm os Pastores de Almas de dar o pão espiritual<br />
a suas Ovelhas. (<strong>BENCI</strong>, 1977: 91)<br />
Sendo todos os homens filhos de Deus, os religiosos são pastores dos cativos, tanto pelo<br />
direito canônico quanto pelo divino, e é obrigação destes religiosos doutrinarem os servos,<br />
“pela maior necessidade que há neles de doutrina, por causa de sua natural rudeza e<br />
ignorância”. (<strong>BENCI</strong>, 1977: 91)<br />
Entretanto de acordo com Benci, existem religiosos que só ministram a Doutrina para os<br />
brancos e livres, pois esperam recompensas materiais em troca, e os negros cativos nada<br />
podem dar em troca. Esses religiosos são condenados ao Inferno, pois não são verdadeiros<br />
cristãos.<br />
Mostrareis, que sois verdadeiros Pastores, e não mercenários, que olham somente<br />
para o interesse e a conveniência própria e não para o bem de suas Ovelhas: e<br />
justamente seguires o verdadeiro exemplar de todos os pastores, Jesu Cristo, que<br />
disse, falando se si mesmo, que o enviara o Eterno Padre e mandara ao mundo<br />
doutrinar e evangelizar unicamente os pobres. (<strong>BENCI</strong>, 1977:92- 93)<br />
Se Jesus Cristo foi missionário enviado por Deus para evangelizar todos, como os<br />
religiosos coloniais se negavam a tal? Era necessário que estes religiosos se desfizessem de<br />
interesses materiais e se focassem na missão de deputados de Cristo, escolhidos por Deus para<br />
doutrinar os cativos.<br />
Não só no tempo da Quaresma, mas em todos Domingos e Dias Santos, como<br />
manda o Concílio Tridentino; e vereis que com essa continuação e repetição se há-de<br />
abrandar e quebrar a dureza dessas pedras, e se transformarão em bons e verdadeiros<br />
Cristãos. (<strong>BENCI</strong>, 1977: 96)<br />
Esse ensinamento aos cativos não deve ser superficial, só com perguntas sobre a<br />
Quaresma, ou sobre os Mandamentos e Orações para poder receber os Sacramentos, como diz<br />
Benci, pois muitos destes escravos rezam, mas não sabem ou não entendem o que rezam. É<br />
preciso que os servos “entendam o que dizem, percebam os mistérios que hão-de-crer, e<br />
penetrem bem os preceitos que hão-de guardar” (<strong>BENCI</strong>, 1977: 94). Os religiosos devem dar<br />
o pão da doutrina Cristã aos sevos, ensiná-los com paciência, ensinando-os quantas vezes<br />
8
forem necessárias, dando exemplos palpáveis e entendíveis aos cativos. Se o escravo for rude,<br />
o jesuíta nos diz que deve ensiná-lo mesmo assim, para este possa deixar de ser rude.<br />
Não adianta ensinar a doutrina uma vez ao ano apenas, às pressas, o ensino deve ser um<br />
processo contínuo. No texto Benci fala que é uma ignorância isto que ocorre no Brasil,<br />
“ignorância tão geral e comum” (<strong>BENCI</strong>, 1977: 94), fazendo uma analogia bíblica ao Livro<br />
de Isaías 7 , no que tange o Destino do Povo de Israel, com as Invasões Holandesas 8 no período<br />
colonial, Benci constata que tanto povo de Israel quanto o povo do Brasil foram castigados.<br />
Para evitar pois todos esses castigos e gerais destroços , apliquem os Párocos e<br />
Senhores o maior de seus cuidados em dar o pasto espiritual às almas dos Pretos,<br />
inculcando-lhes, uma e muitas vezes, a Doutrina Cristã e os mistérios da Fé.<br />
(<strong>BENCI</strong>, 1977: 98)<br />
No discurso de Benci percebemos o castigo de Deus aquelas nações que não o obedecem.<br />
E o povo do Brasil peca quando não doutrina seus cativos como manda a lei cristã, desta<br />
maneira para evitar punições Divinas os senhores de escravos e os religiosos devem dar o<br />
alimento espiritual aos escravos.<br />
Compreendemos que o intuito de missão vindo do ideal de Portugal como povo escolhido<br />
por Deus, para defender e lutar pela Cristandade serve como suporte para mensagem passada<br />
pelo jesuíta, pois ao propor dar o alimento espiritual aos escravos, vemos este ideal de missão<br />
e de Cristandade, atrelados e não ditos no discurso de forma literal e clara.<br />
No Brasil Cristão os religiosos devem praticar a doutrinação continuadamente, sem querer<br />
nada em troca, pois estes são enviados diretos de Deus para tal missão, os que não o fazem,<br />
serão castigados com a ida para o inferno e o povo do Brasil também será castigado como foi<br />
o de Israel. A todo o momento as narrativas bíblicas servem de aporte para a construção do<br />
texto Benciano, respaldado pelo ideal de missão e pela pelo ideal de construção de uma<br />
7<br />
Isaias 5:13- “Eis porque meu povo foi exilado: por falta de conhecimento; seus ilustres são homens famintos” .<br />
In: Bíblia de Jerusalém. Op., Cit. p. 1261.<br />
8<br />
Ressaltamos que esta não é a primeira referência de Benci sobre as Invasões Holandesas, em sua obra.<br />
Independente de qual discurso ele esteja dissertando, ele sempre usa a invasão Holandesa como um castigo<br />
divino ao povo do Brasil.<br />
9
Cristandade colonial, o jesuíta comporta em seu texto, a obrigação dos senhores de escravos<br />
de dar o pão espiritual aos cativos coloniais.<br />
Conclusão<br />
Essa breve análise do discurso Benciano, nos dá pistas sobre o funcionamento da ideia de<br />
missão no centro da Companhia de Jesus, partindo da premissa que em nenhum momento a<br />
relação senhor/escravo foi colocada em questão, A mensagem do discurso de Benci, é aos<br />
proprietários de escravos do Brasil Colonial, que haviam se afastado dos preceitos morais da<br />
Igreja, e por isso não conseguiam governar de forma correta seus escravos. Ressaltamos que<br />
mesmo com modelo de trato com o cativo Benciano, o trabalho e a punição eram inerentes a<br />
escravidão. O escravo tinha a função de trabalhar e o senhor tinha a obrigação de cuidar das<br />
necessidades básicas de seu escravo, o alimentando, o vestindo, cuidando da doutrinação da<br />
Fé Católica e cuidando de sua saúde, deste modo, deveria haver uma reciprocidade de deveres<br />
entre senhores e escravos. O discurso de Benci e de outros jesuítas do período que abordaram<br />
a temática da escravidão, como Antonio Vieira, Antonil e Manoel Ribeiro da Rocha, definem<br />
lugares sociais na lógica da sociedade escravista colonial.<br />
Fontes<br />
ANTONIL, João André. Cultura e Opulência do Brasil. Texto confrontado com o da edição<br />
de 1711. Editora: Itatiaia. 3° Edição. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro, 1997.<br />
<strong>BENCI</strong>, Jorge. Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. Livro Brasileiro de<br />
1700. Editora: Grijalbo. São Paulo, 1977.<br />
<strong>BENCI</strong>, Jorge. Sermam de S. Felippe Neri. Pregado em Recife, em 1701. Publicado em<br />
Lisboa, 1702.<br />
<strong>BENCI</strong>, Jorge. Sermaõ do Mandato. Pregado na Bahia. Publicado em Lisboa, 1701.<br />
Bíblia de Jerusalém. Nova edição revisa e ampliada. Editora: Paulus. São Paulo, 2002.<br />
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VIII – ESCRITORES: de<br />
A a M (Suplemento Bibliográfico – I). Instituto Nacional do Livro; Livraria Portugália. Rio<br />
de Janeiro; Lisboa. 1949.<br />
10
Bibliografia<br />
CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre práticas e representações. 2° Edição. Rio de<br />
Janeiro: Difel, 2002.<br />
________. O Mundo como Representação. Revista Annales – Novembro/Dezembro de 1989.<br />
n.6. P.P:1505-1520.<br />
CERTAU, Michel De. A Escrita da História. 2° Edição. Editora: Forense Universitária. Rio<br />
de Janeiro, 2010.<br />
_________. A Linguagem da Violência. In: CERTAU, Michel De. A Cultura no Plural. 6°<br />
Edição. Editora: Papirus. São Paulo, 2010.<br />
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente – Senhores, letrados<br />
e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1680. Editora: Companhia das Letras. São<br />
Paulo, 2004.<br />
NEVES, Guilherme Pereira. Verbete: Padre Jorge Benci SJ. In: VAINFAS, Ronaldo<br />
(Direção). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Editora: Objetiva. Rio de Janeiro.<br />
2001. p.456-457.<br />
NEVES, Luiz Felipe Baêta. Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios –<br />
Colonialismo e Repressão Cultural. Editora: Forense Universitária. Rio de Janeiro, 1978.<br />
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial.<br />
Editora: Companhia das Letras. São Paulo, 2005.<br />
VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e Escravidão: Os Letrados e a Sociedade Escravista no Brasil<br />
Colonial. Editora: Vozes. Coleção: História Brasileira 8. Petrópolis, 1986.<br />
ZERON, Carlos Alberto de M. R. O governo dos escravos nas Constituições Primeiras do<br />
Acerbispado da Bahia e na Legislação Portuguesa: Separação e complementaridade entre<br />
pecado e delito. In: FEITLER, Bruno; SOUZA, Everton Sales. A Igreja no Brasil: Normas e<br />
Práticas durante a Vigência das Constituições Primeiras do Acerbispado da Bahia. Eitora:<br />
Unifesp. São Paulo, 2011.<br />
11