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Revoltas dos Quebra-Quilos. Levantes contra a imposição do ...

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<strong>Revoltas</strong> <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>Quebra</strong>-<strong>Quilos</strong>. <strong>Levantes</strong> <strong>contra</strong> a <strong>imposição</strong> <strong>do</strong> Sistema Métrico Decimal.<br />

Resumo:<br />

Viviane de Oliveira Lima *<br />

Na segunda metade <strong>do</strong> século XIX percebemos a tentativa <strong>do</strong> governo imperial em<br />

modernizar o Brasil. Essa tentativa surgiu a partir da necessidade de colocar a recém-criada<br />

nação à altura das nações européias, ditas civilizadas. No entanto, um grande obstáculo se pôs<br />

nesse caminho, já que o Brasil ainda concentrava a maior parte de suas riquezas na área rural,<br />

o que fazia <strong><strong>do</strong>s</strong> grandes latifundiários os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> poder, também, possuía a grande maioria<br />

da população de escravos e homens livres e pobres. Diante da <strong>imposição</strong> <strong>do</strong> novo sistema<br />

métrico decimal, vários grupos de homens livres e pobres se levantaram <strong>contra</strong> o governo<br />

imperial. Este artigo discute não apenas as causas das revoltas, mas também sua importância<br />

como manifestação popular <strong>contra</strong>s as instituições governamentais, seus aspectos econômicos<br />

e sociais no meio rural nas últimas décadas <strong>do</strong> império.<br />

Palavras-chave: Império <strong>do</strong> Brasil, Sistema de Pesos e Medidas, <strong>Quebra</strong>-quilos, Cultura.<br />

Resumé:<br />

Dans la seconde moitié du XIXe siècle, nous voyons la tentative du gouvernement<br />

impérial en vue de moderniser le Brésil. Cette tentative est née de la nécessité de mettre la<br />

nation nouvellement créée à la hauteur des nations européennes, soi-disant civilisé. Toutefois,<br />

un obstacle majeur se de cette façon, puisque le Brésil a concentré la plupart de leur richesse<br />

dans les zones rurales, ce qui fait les grands propriétaires terriens possèdent le pouvoir, lui<br />

aussi, avait l'immense majorité de la population d'esclaves et de libre et pauvre. Avant<br />

l'imposition du système métrique nouvelle, plusieurs groupes d'hommes libres et les pauvres<br />

se sont élevés contre le gouvernement impérial. Cet article discute non seulement les causes<br />

des émeutes, mais aussi son importance en tant que manifestation populaire contre les<br />

* Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense com a dissertação “<strong>Revoltas</strong> <strong>do</strong> <strong>Quebra</strong>-quilos –<br />

<strong>Levantes</strong> populares <strong>contra</strong> o Sistema Métrico Decimal”, defendida em 2006.


2<br />

institutions gouvernementales, leurs aspects économiques et sociaux dans les zones rurales au<br />

cours des dernières décennies de l'empire.<br />

Mots-clés: Empire du Brésil, du système des poids et mesures, les Casse-Kilos, de la culture.<br />

Os quebra-quilos.<br />

O ano de 1874 seria comum na história das províncias de Pernambuco, Paraíba, Rio<br />

Grande <strong>do</strong> Norte e Alagoas se, em seus últimos meses, não tivessem ocorri<strong>do</strong> manifestações<br />

de insatisfação popular <strong>contra</strong> novas leis criadas pelo governo Imperial.<br />

Estava tu<strong>do</strong> pronto para as feiras começarem, até que surgiram os primeiros sinais de<br />

desagra<strong>do</strong> à utilização de um novo sistema de pesos e medidas. Manifestantes gritavam que<br />

naquele dia ninguém compraria ou venderia com os novos padrões <strong>do</strong> sistema métrico e que<br />

não pagariam os impostos. A força pública en<strong>contra</strong>va-se presente para manter a “ordem” e a<br />

“tranqüilidade” <strong>do</strong> andamento da feira, porém, não conseguiram impedir que os revoltosos<br />

destruíssem os instrumentos de medição e se dirigissem para outros estabelecimentos<br />

comerciais fazen<strong>do</strong> o mesmo, invadiram as coletorias, Câmaras Municipais e cartórios para<br />

destruírem <strong>do</strong>cumentos ali existentes, como listas de impostos, hipotecas e etc. Além de<br />

invadirem também as cadeias para soltar os presos.<br />

Estes atos, de aparente vandalismo, refletiam a insatisfação das camadas populares<br />

com a implantação <strong>do</strong> Sistema Métrico Francês, substituin<strong>do</strong> o antigo sistema de pesos e<br />

medidas no Brasil. Os governantes tinham a intenção de, com esta medida, “ordenar” e<br />

“civilizar” o território, porém, os homens livres e pobres não compartilhavam desta idéia, uma<br />

vez que o comércio, as relações pessoais, e o seu dia-a-dia possuíam uma ordem própria.<br />

Portanto, eles não aderiram ao ideal das elites de ordenar um espaço que, no entender deles, já<br />

estava ordena<strong>do</strong>.<br />

Desconfia<strong><strong>do</strong>s</strong> das mudanças impostas pelo governo, esses homens se revoltaram.<br />

Iniciou-se então o movimento, que consistia na quebra <strong><strong>do</strong>s</strong> novos instrumentos de medição, o<br />

que lhes rendeu o nome de <strong>Quebra</strong>-<strong>Quilos</strong>.


3<br />

Para compreender os motivos que levaram a Coroa Brasileira a substituir o antigo<br />

sistema de pesos e medidas pelo sistema métrico decimal, é preciso entender que ao se tornar<br />

independente, a necessidade de modernização nos moldes conserva<strong>do</strong>res se tornou latente, e o<br />

Brasil, que no perío<strong>do</strong> colonial era obriga<strong>do</strong> a executar as medidas impostas pela metrópole<br />

portuguesa, passava a voltar seus olhos para a França. Um exemplo disso vem <strong>do</strong> campo<br />

jurídico, com a influência exercida pelo Código Napoleônico de 1804 (o código civil francês),<br />

aos juristas brasileiros, como afirmam Gizlene Neder e Gisálio Cerqueira em Os Filhos da<br />

Lei.<br />

Transpon<strong>do</strong> esta idéia também para o campo administrativo, tivemos a mudança <strong>do</strong><br />

sistema de pesos e medidas vigente para o sistema métrico decimal que foi cria<strong>do</strong> logo após a<br />

Revolução Francesa. O novo sistema métrico decimal passou a ser o único sistema aceito na<br />

França a partir de 1837. Os franceses tinham o objetivo de criar um sistema de pesos e<br />

medidas confiável e avalia<strong>do</strong> cientificamente, para que pudessem assim, romper com o<br />

passa<strong>do</strong> de um sistema marca<strong>do</strong> por regionalismos que impediam o cálculo exato das<br />

medidas. Para isso, o novo sistema se embasou nas dimensões terrestres e logo em seguida foi<br />

a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> por outros países que compartilhavam <strong><strong>do</strong>s</strong> interesses franceses de criar um sistema<br />

universal que facilitasse o comércio internacional. (DIAS, 1998: 13-15)<br />

Além disso, a novidade <strong>do</strong> sistema métrico se unia a uma série de transformações e<br />

inovações ocorridas na sociedade francesa, deixan<strong>do</strong> implícito que essas inovações<br />

significavam quase o mesmo que as palavras de ordem <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>: “progresso” e<br />

“modernização”.<br />

Foi preciso criar medidas complementares, devi<strong>do</strong> às inovações da ciência, porém,<br />

naquele momento, um sistema único de medidas era necessário para que a comunicação das<br />

novas descobertas e idéias modernas fossem facilitadas. A sofisticação <strong>do</strong> sistema métrico<br />

representava um avanço das teorias científicas, se enquadran<strong>do</strong> bem aos ideais propostos no<br />

perío<strong>do</strong> e deixan<strong>do</strong> para trás as heranças <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> feudal, sinônimo de atraso científico,<br />

intelectual e econômico.<br />

No Brasil, a idéia foi a<strong>do</strong>tada também com o objetivo de modernizar o país e, segun<strong>do</strong><br />

seus defensores, traria o progresso e a civilização.


4<br />

As dificuldades em organizar o sistema de pesos e medidas no país eram muitas, como<br />

a falta: de instrumentos de medição, de fiscalização, de pessoas habilitadas para fazerem as<br />

aferições ou <strong>do</strong> próprio regimento de medição. To<strong><strong>do</strong>s</strong> esses motivos e a variedade <strong><strong>do</strong>s</strong> padrões<br />

utiliza<strong><strong>do</strong>s</strong> contribuíam ainda mais para a corrupção no momento da aferição.<br />

Uma Comissão composta por Antonio Gonçalves Dias, Giacomo Raja Gabaglia e<br />

Guilherme Schuch de Capanema obteve contato com o sistema métrico francês, o que<br />

possibilitou o início das conversas para a<strong>do</strong>ção desse sistema no Brasil, que realmente acabou<br />

acontecen<strong>do</strong> em 1862 após valiosas discussões na Câmara <strong><strong>do</strong>s</strong> Deputa<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Assim em 26 de junho de 1862 foi decretada a Lei nº 1.157 onde era substituí<strong>do</strong> em<br />

to<strong>do</strong> o Império, o atual sistema de pesos e medidas pelo Sistema Métrico Francês e,<br />

estabelecen<strong>do</strong> o prazo de 10 anos para o aprendiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> novo sistema.<br />

Permean<strong>do</strong> o pensamento <strong><strong>do</strong>s</strong> deputa<strong><strong>do</strong>s</strong> que discutiam a questão estava a idéia de<br />

modernização, se <strong>contra</strong>pon<strong>do</strong> a preocupação com as tradições e costumes da população que<br />

já se en<strong>contra</strong>va adaptada ao antigo sistema de pesos e medidas.<br />

Dez anos depois de aprovada a lei, exatamente no término <strong>do</strong> prazo de adaptação e<br />

quan<strong>do</strong> esta ia entrar definitivamente em vigor, vimos ressurgir a discussão na Associação<br />

Comercial <strong>do</strong> Rio de Janeiro, que também criou uma comissão para estudar o assunto, já que<br />

a medida afetaria as transações comerciais e, principalmente, ao seu ramo mais importante, o<br />

comércio de exportação. Além disso, os custos com os novos pesos seriam de<br />

responsabilidade <strong>do</strong> comerciante e até aquela data eles ainda não estavam prepara<strong><strong>do</strong>s</strong> para o<br />

uso no novo sistema métrico.<br />

O ensino <strong>do</strong> uso e conversão de um sistema para outro previsto pela lei, ao que<br />

podemos perceber, não foi exemplarmente realiza<strong>do</strong>. En<strong>contra</strong>mos alguns manuais cria<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

para o ensino <strong>do</strong> novo sistema em escolas primárias <strong>do</strong> Rio de Janeiro, contu<strong>do</strong>, aqueles que<br />

não tinham acesso às escolas estavam automaticamente excluí<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> dito aprendiza<strong>do</strong>. Nos<br />

jornais que circulavam pelo Rio de Janeiro, o Jornal <strong>do</strong> Comércio, por exemplo, en<strong>contra</strong>mos<br />

anúncios de pessoas oferecen<strong>do</strong> aulas sobre o novo sistema, e obviamente estas aulas não<br />

seriam gratuitas. Isso, já no ano de 1873, ou seja, após o prazo instituí<strong>do</strong> pela lei para o<br />

ensino <strong>do</strong> sistema métrico à população. Portanto, o sistema métrico francês, além de difícil<br />

compreensão, era também ensina<strong>do</strong> a alguns em detrimento da maioria da população.


5<br />

Os próprios comerciantes, que utilizariam diretamente os novos padrões <strong>do</strong> sistema só<br />

tiveram acesso a eles no ano de 1872. Portanto, podemos dizer que o Governo impôs o<br />

sistema métrico repentinamente, não houve ensinamento, nem conscientização da população<br />

sobre sua necessidade, e o prazo de dez anos para que a lei entrasse em vigor, simplesmente<br />

esqueci<strong>do</strong>, ou melhor, ignora<strong>do</strong>.<br />

Contu<strong>do</strong>, destacamos que esta reivindicação partiu de uma instituição organizada<br />

como a Associação <strong>do</strong> Comércio <strong>do</strong> Rio de Janeiro, localizada na Corte, centro <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

acontecimentos. Se pensarmos nos pequenos comerciantes <strong>do</strong> Norte <strong>do</strong> Império, não é<br />

demais, calcular que tais inovações não tenham si<strong>do</strong> discutidas, muito menos incentivadas ou<br />

ensinadas, lembran<strong>do</strong> a dificuldade de que as notícias, as idéias e até mesmo as leis, tinham<br />

de chegar à “periferia” <strong>do</strong> Império. Demonstran<strong>do</strong> a despreocupação <strong><strong>do</strong>s</strong> governantes com os<br />

pequenos comerciantes, além da população de baixa renda que poderia ter dificuldades com a<br />

conversão. Como a população livre e pobre se fazia representar? Principalmente, como se<br />

comportava o comércio fora da capital <strong>do</strong> império?<br />

Acreditamos que estes pequenos comerciantes, alia<strong><strong>do</strong>s</strong> aos homens livres pobres, é<br />

que motivaram as revoltas <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>Quebra</strong>-<strong>Quilos</strong>, em nome de seus costumes e tradições há<br />

muito adquiri<strong><strong>do</strong>s</strong>. E que em vários locais <strong>do</strong> país, o antigo sistema de pesos e medidas<br />

continuou a ser utiliza<strong>do</strong>.<br />

Este recém-independente país era habita<strong>do</strong> por pessoas abastadas e homens livres e<br />

pobres que viviam em mun<strong><strong>do</strong>s</strong> muito distintos, não geograficamente, mas ideologicamente.<br />

Por isso, seus objetivos, vez por outra se chocavam. O progresso para os homens livres não<br />

significava se tornar uma nação bem vista internacionalmente, essa não era sua intenção, o<br />

que estes homens reivindicavam era melhores condições de vida.<br />

Consideramos que as revoltas aconteceram, principalmente, por causa da insatisfação<br />

popular com a mudança <strong>do</strong> sistema de pesos e medidas, já que o antigo sistema en<strong>contra</strong>va-se<br />

bastante enraiza<strong>do</strong> em seus costumes, e fazia parte <strong>do</strong> cotidiano destas pessoas. A <strong>imposição</strong><br />

<strong>do</strong> sistema métrico francês representava a invasão direta <strong>do</strong> Governo na vida <strong><strong>do</strong>s</strong> brasileiros.<br />

No entanto, as revoltas partiram <strong><strong>do</strong>s</strong> nordestinos que se sentiam esqueci<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo governo, pois<br />

este não tomava medidas para melhorar as suas condições de vida.


6<br />

Não queremos com isso, induzir o leitor a pensar que a revolta possuía um caráter<br />

conserva<strong>do</strong>r que buscava apenas à volta aos velhos costumes, e nem a idéia de que a<br />

população não aceitaria nenhum tipo de transformação. As mudanças, por mais que assustem,<br />

são possíveis em qualquer sociedade, desde que aconteçam paulatinamente e com a<br />

conscientização de seus habitantes, para que eles entendam a sua necessidade e os benefícios<br />

que trará.<br />

Destacamos as questões culturais, os hábitos e costumes da população, que sofreram a<br />

repentina interferência <strong>do</strong> governo sem que houvesse uma preparação para isso. O ensino <strong>do</strong><br />

novo sistema em escolas primárias e a distribuição de tabelas de conversão, previstos na lei de<br />

1862, não foram suficientes, uma vez que não abrangeu toda a população, que era de maioria<br />

analfabeta segun<strong>do</strong> o censo de 1872. Além disso, as medidas tomadas na Corte nem sempre<br />

eram exemplarmente executadas no “Norte <strong>do</strong> Império”. Sen<strong>do</strong> assim, as manifestações mais<br />

violentas das revoltas ocorreram na região, pois toda a insatisfação da população <strong>contra</strong> o<br />

governo foi reunida nas manifestações <strong><strong>do</strong>s</strong> quebra-quilos.<br />

Além <strong><strong>do</strong>s</strong> fatores já menciona<strong><strong>do</strong>s</strong>, as revoltas entrelaçam questões políticas, religiosas,<br />

militares, econômicas e sociais, no contexto <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>. Mostra uma certa relação<br />

com os fatores que levaram ao fim <strong>do</strong> Império, partin<strong>do</strong> da análise <strong>do</strong> pensamento <strong>do</strong> homem<br />

comum que sofria as conseqüências das mudanças e, sem ter como se expressar começou a<br />

reagir <strong>contra</strong> o sistema.<br />

Uma revolta por si só possui um caráter to<strong>do</strong> especial, uma vez que reflete a<br />

insatisfação não só de um único indivíduo, mas de vários, <strong>contra</strong> as medidas impostas de<br />

“cima para baixo” pelo Governo. Trataremos o tema como as <strong>Revoltas</strong> <strong>do</strong> quebra-quilos, pois<br />

as revoltas ocorreram em províncias diferentes e em momentos distintos. Não se trata de uma<br />

revolta que se iniciou em outubro de 1874 e terminou no início <strong>do</strong> ano de 1875, mas sim de<br />

várias revoltas que ocorreram neste intervalo de tempo, e que não possuíam nenhum<br />

programa a ser segui<strong>do</strong> e nem um líder específico, apenas as mesmas reivindicações.<br />

Considerações finais


7<br />

De fato, o antigo sistema de pesos e medidas que vigorava no Brasil era um mistura<br />

das unidades de medidas portuguesas e inglesas com toques particulares, que sofriam<br />

variações de uma região para outra. Porém, a mudança total na hora da aferição possibilitava<br />

aos vende<strong>do</strong>res, aproveitan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> fato da população de baixa renda ser na sua grande<br />

maioria analfabeta, enganar os valores e cobrar mais caro pelos produtos. Além disso, mesmo<br />

a aferição sen<strong>do</strong> feita corretamente, a redução da quantidade <strong><strong>do</strong>s</strong> produtos causava a sensação<br />

de estarem sen<strong>do</strong> ludibria<strong><strong>do</strong>s</strong> pelos vende<strong>do</strong>res.<br />

O que gostaríamos de explicitar é que to<strong><strong>do</strong>s</strong> os fatores econômicos e sociais,<br />

menciona<strong><strong>do</strong>s</strong>, têm uma parcela de importância nas causas das revoltas. Porém, a junção <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

valores culturais é essencial para a compreensão delas.<br />

Não podemos negar que a crise econômica, o aumento <strong><strong>do</strong>s</strong> impostos e a miséria em<br />

que se en<strong>contra</strong>va a população são fatores que exerceram grande motivação para as revoltas.<br />

No entanto, a defesa de seus direitos e costumes tradicionais compartilha<strong><strong>do</strong>s</strong> pela comunidade<br />

é o que causava maior incentivo na população, pois aglutinava to<strong><strong>do</strong>s</strong> esses fatores.<br />

O governo imperial já estava sen<strong>do</strong> visto como o inimigo principal da região, pelo seu<br />

descaso quanto à crise econômica que atravessava, mas de certa forma, ele mantinha-se<br />

distante de seu cotidiano. Porém, a mudança <strong>do</strong> sistema de pesos e medidas representou a<br />

interferência direta <strong>do</strong> governo no dia-a-dia da população, na sua forma de comerciar, nos<br />

seus valores, na sua cultura.<br />

A cultura torna-se, então, um aspecto crucial, a gota d’água nesse mar de insatisfação<br />

popular. Se toda essa comunidade não compartilhasse das mesmas noções morais, de uma<br />

tradição, hábitos e costumes, esta mesma comunidade não se aglutinaria para a revolta.<br />

Concordan<strong>do</strong> com os estu<strong><strong>do</strong>s</strong> de E. P. Thompson, na perspectiva de que os aspectos<br />

culturais como hábitos e costumes tradicionais demasiadamente arraiga<strong><strong>do</strong>s</strong>, é que levariam as<br />

pessoas a reivindicar <strong>contra</strong> seus opressores, a permanência da ordem existente.<br />

Seria incorreto admitir a existência de uma muralha, uma barreira entre o material e o<br />

cultural, pois atrás de um conflito de conteú<strong>do</strong> material há necessariamente um valor; no seio<br />

de cada necessidade há uma consciência, um costume que deve ser respeita<strong>do</strong> enquanto algo<br />

há muito adquiri<strong>do</strong>, ou experiência, vivência da população.


8<br />

Como já foi exposto aqui, não pretendemos sugerir que a população se negaria a<br />

qualquer mudança, ou que a maioria das resistências populares possuiria um conteú<strong>do</strong><br />

conserva<strong>do</strong>r, sempre reivindican<strong>do</strong> a volta <strong><strong>do</strong>s</strong> antigos costumes. Apenas acreditamos que<br />

uma mudança desse porte deveria acontecer aos poucos, respeitan<strong>do</strong> os limites da população,<br />

sen<strong>do</strong> também necessária à conscientização sobre a sua importância e como ela ocorreria,<br />

para não gerar a desconfiança, a insatisfação e a resistência <strong>contra</strong> a mudança abrupta, como<br />

ocorreu na Revolta <strong>do</strong> <strong>Quebra</strong>-<strong>Quilos</strong>.<br />

A modernização que foi imposta era fruto da visão <strong><strong>do</strong>s</strong> próprios governantes, ou seja,<br />

da elite imperial, que importava e imitava os padrões europeus. A Revolta <strong>do</strong> <strong>Quebra</strong>-quilos<br />

aconteceu, acima de tu<strong>do</strong>, em nome <strong><strong>do</strong>s</strong> valores e <strong><strong>do</strong>s</strong> costumes, a partir <strong>do</strong> momento que os<br />

homens livres pobres perceberam a interferência direta <strong>do</strong> governo em seu cotidiano. Os<br />

revoltosos reagiam “<strong>contra</strong> um governo que feria seus valores, suas tradições, seus costumes<br />

seculares, corporifica<strong><strong>do</strong>s</strong> na Igreja, que lhes dava a medida <strong>do</strong> espírito, e no sistema de pesos,<br />

que lhes dava a medida das coisas.” (CARVALHO, 1998:113)<br />

Sem dúvida, é muito mais difícil para a população aban<strong>do</strong>nar o antigo sistema, uma<br />

vez que este fazia parte sua cultura, ou seja, das “normas de comportamento (...),<br />

historicamente produzidas por sucessivas gerações, assimila<strong><strong>do</strong>s</strong> e seleciona<strong><strong>do</strong>s</strong> pela<br />

comunidade humana que o transmite de geração em geração.” (CARDOSO, 2003: 44)<br />

Mesmo com toda dificuldade e com as divergências de quantidades <strong>do</strong> antigo sistema<br />

de pesos e medidas, dentro <strong>do</strong> próprio Brasil, as pessoas já estavam habituadas a ir aos<br />

merca<strong><strong>do</strong>s</strong> e feiras e comprar medidas de aguardente <strong>do</strong> reino, arrobas de toucinho ou açúcar e<br />

alqueires de batatinhas, e tinha a noção <strong>do</strong> quanto desses produtos iriam levar para casa. Com<br />

a mudança, a população fica perdida, pois agora os novos metros, quilos e litros equivaliam à<br />

quantidades diferentes, com nomes diferentes, e sem saber fazer a conversão para comprová-<br />

la, ficavam naturalmente desconfiadas. Pois, o uso que se fazia desse sistema pelos homens<br />

livres e pobres, é que legitimava sua existência.<br />

Nossa inquietação não se limita em saber se o sistema de pesos era ou não justo e<br />

legaliza<strong>do</strong>, mas sim analisar a relação que essas pessoas tinham com ele. Pois, como o sistema<br />

estava há muito instituí<strong>do</strong> e enraiza<strong>do</strong> no cotidiano das pessoas, podemos pensar que os


9<br />

consumi<strong>do</strong>res já possuíam formas de agir, táticas para se adaptar a sua utilização. Como dito<br />

por De Certeau, “essas práticas colocam em jogo um ratio“popular”, uma maneira de pensar<br />

investida numa maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar.”<br />

(De CERTEAU, 1994: 42)<br />

Ou seja, o sistema de pesos e medidas já havia conquista<strong>do</strong> um espaço simbólico na<br />

vida da população. Assim, ela estava adaptada e já conhecia manobras para o seu uso de<br />

acor<strong>do</strong> com suas necessidades.<br />

A mudança para o sistema métrico francês representava um rompimento com esses<br />

costumes, com a maneira de agir. Implicava na criação de uma forma completamente nova de<br />

lidar com ele, além das dificuldades técnicas de aprender a converter os pesos de um sistema<br />

para outro, numa população de maioria analfabeta.<br />

A população vai buscar uma forma de resistir à mudança traçan<strong>do</strong> uma estratégia que<br />

consistia em não permiti-la, tinha o objetivo de resistir à mudança <strong>do</strong> antigo sistema de pesos<br />

e medidas para o sistema métrico francês. A tática en<strong>contra</strong>da foi a revolta. A destruição <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

padrões de medição <strong>do</strong> novo sistema aconteceu no momento da realização das feiras,<br />

aproveitan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> fato das forças policiais serem bastante escassas. Tu<strong>do</strong> isso, em nome da<br />

permanência de seus costumes. (De CERTEAU, 1994: 55)<br />

Sen<strong>do</strong> assim, a resistência ocorreu muito mais pelo choque que essas pessoas tiveram<br />

com um sistema métrico estranho, novo e desconheci<strong>do</strong>, que não fazia parte de seu arcabouço<br />

simbólico, nem de seus hábitos e costumes e que lhes estava sen<strong>do</strong> imposto pelo Governo<br />

Imperial, sem nenhum trabalho de tentar adaptar a população a ele. O “mun<strong>do</strong> da desordem”,<br />

nos aproprian<strong>do</strong> da definição criada por Ilmar Mattos, não era tão desorganiza<strong>do</strong> assim,<br />

possuía suas regras e uma lógica própria. As pessoas que viviam entre varas, arrobas e<br />

alqueires, sabiam bem como lidar com este sistema de pesos e medidas, suas táticas e<br />

estratégias de uso, que faziam parte de seus costumes e cultura transmiti<strong><strong>do</strong>s</strong> de geração em<br />

geração, legitiman<strong>do</strong> sua existência.<br />

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