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Quando a arte sobe o morro: o surgimento de um grupo de teatro na ...

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<strong>Quando</strong> a <strong>arte</strong> <strong>sobe</strong> o <strong>morro</strong>: o <strong>surgimento</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>grupo</strong> <strong>de</strong> <strong>teatro</strong> <strong>na</strong> favela do Vidigal<br />

Um Encontro que produziu Encontros<br />

Letícia Miranda Paula ∗<br />

No fi<strong>na</strong>l dos anos setenta o fundador e diretor geral do Nós do Morro, Guti Fraga, vai<br />

morar no Vidigal em <strong>um</strong> dos prédios situados logo <strong>na</strong> entrada do <strong>morro</strong>, que formavam o<br />

conjunto Pedra Bonita 1 . Apesar <strong>de</strong> morar <strong>na</strong> p<strong>arte</strong> mais baixa do Vidigal, o diretor também<br />

frequentava bares, rodas <strong>de</strong> samba, bailes e outros espaços <strong>de</strong> lazer situados <strong>na</strong> p<strong>arte</strong> média e<br />

alta do <strong>morro</strong>, o que favorecia seu contato com moradores mais h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>s.<br />

Percebendo que entre eles a frequência ao <strong>teatro</strong> não era <strong>um</strong>a ativida<strong>de</strong> muito com<strong>um</strong><br />

e que alguns jovens até tinham <strong>um</strong> talento <strong>na</strong>tural para as <strong>arte</strong>s cênicas, mas careciam <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

espaço para mostrá-lo, ele começa a amadurecer a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> criar <strong>um</strong> projeto cultural no<br />

Vidigal:<br />

Eu já vivia <strong>na</strong> comunida<strong>de</strong>, eu já conhecia as pessoas que eu queria trabalhar, eu<br />

conhecia as pessoas que tinham talento, que a gente ficava horas <strong>na</strong> esqui<strong>na</strong>, eu era<br />

<strong>um</strong> cara que eu relacio<strong>na</strong>va com a comunida<strong>de</strong>, eu não tinha barreira <strong>na</strong><br />

comunida<strong>de</strong>, eu frequentava Largo do Santinho, eu frequentava <strong>grupo</strong> <strong>de</strong> roda (...).<br />

Além do mais, eu tá vivendo aqui <strong>de</strong>ntro do Vidigal com todos esses acessos que eu<br />

tinha e começava a entrar em contato com os jovens da comunida<strong>de</strong> e ver como<br />

tantas pessoas com talento e que não tinham oportunida<strong>de</strong>, isso foi me<br />

incomodando <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>a forma. (...) E em Nova York eu ia pra off Broadway,<br />

conhecendo gran<strong>de</strong>s trabalhos, trabalhos em salas peque<strong>na</strong>s e tal e via<br />

manifestações maravilhosas <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> e tal e falei, cara, é isso que eu quero, é<br />

isso que eu quero. (...) Aí, voltei <strong>de</strong> Nova York, <strong>de</strong>finido a mudar minha vida,<br />

quando eu convi<strong>de</strong>i meu amigo Fred Pinheiro [il<strong>um</strong>i<strong>na</strong>dor, participou das<br />

ativida<strong>de</strong>s do <strong>grupo</strong> da fundação até o seu falecimento em 2009] eu convi<strong>de</strong>i no<br />

avião mesmo, eu falei pra ele “Fred, se eu fundar <strong>um</strong> projeto no Vidigal, assim,<br />

∗ Mestra em História Social pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fl<strong>um</strong>inense.<br />

1 O conjunto habitacio<strong>na</strong>l chamado Pedra Bonita foi construído nos anos setenta, logo <strong>na</strong> subida do Vidigal. A<br />

vista <strong>de</strong>sl<strong>um</strong>brante para o mar atraiu não só moradores com <strong>um</strong> po<strong>de</strong>r aquisitivo maior como profissio<strong>na</strong>is do<br />

<strong>teatro</strong>, do cinema, da música, televisão, entre eles, alguns já conhecidos pelo gran<strong>de</strong> público, como Gal Costa,<br />

Lima Du<strong>arte</strong>, Arlete Sales, Zizi Possi, Kadú Moliterno, José Lewgoy, entre outros, o que tornou o Vidigal<br />

conhecido como “<strong>morro</strong> <strong>de</strong> artista”.


assim, assado, você topa me dar <strong>um</strong> apoio?” Ele falou “claro”. Eu voltei e cheguei<br />

e já sabia as pessoas que eu queria trabalhar, fui convidando “eu to com <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia,<br />

assim, assim, assado” e assim veio. (FRAGA, entrevista concedida a autora em<br />

16/06/2010).<br />

Não é nossa intenção <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar a importância <strong>de</strong> Fraga <strong>de</strong>ntro da trajetória do<br />

<strong>grupo</strong>, no entanto, não po<strong>de</strong>mos nos limitar, para citar Elias (1995:18), a “incomparáveis<br />

realizações individuais” 2 , e abrir mão da análise <strong>de</strong> outros fatores sociais que também<br />

contribuíram para o <strong>surgimento</strong> do Nós do Morro. Tentaremos então, fazer <strong>um</strong>a breve análise<br />

das “experiências coletivas compartilhadas”, para evitarmos, assim, nos ater somente a<br />

singularida<strong>de</strong> do indivíduo frente às mesmas 3 . <strong>Quando</strong> Guti Fraga diz que ficava inquieto com<br />

o fato <strong>de</strong> ser artista, e morar em <strong>um</strong> local on<strong>de</strong> o acesso à <strong>arte</strong> era limitado, sua inquietu<strong>de</strong> não<br />

é algo que se explica pelo fato ape<strong>na</strong>s <strong>de</strong> ser artista, durante muito tempo, ele foi alfabetizador<br />

do Movimento Brasileiro <strong>de</strong> Alfabetização, o MOBRAL, criado em 1967 pelo governo<br />

militar, com o intuito <strong>de</strong> promover a alfabetização <strong>de</strong> jovens e adultos.<br />

Embora o MOBRAL tenha sido <strong>um</strong>a instituição <strong>de</strong> caráter mais emergencial, que não<br />

se preocupava com <strong>um</strong>a formação escolar e h<strong>um</strong>anística à longo prazo, Fraga utilizava o<br />

método <strong>de</strong> Paulo Freire no processo <strong>de</strong> alfabetização. Pressupomos que o método <strong>de</strong> Freire,<br />

no tocante ao papel do educador como <strong>um</strong> mediador, on<strong>de</strong> <strong>um</strong> novo saber po<strong>de</strong> ser<br />

<strong>de</strong>senvolvido a partir do contato entre realida<strong>de</strong>s sócio culturais distintas 4 , tenha influenciado<br />

2<br />

Para Norbert Elias (1995), o <strong>de</strong>stino individual, a si<strong>na</strong> do ser h<strong>um</strong>ano consi<strong>de</strong>rado único e genial, é influenciada<br />

por sua situação social, pelas pressões que os indivíduos encontram em suas vidas. Neste estudo, po<strong>de</strong>mos ver<br />

como é difícil separar o indivíduo das estruturas sociais da época, neste caso, <strong>um</strong> artista do século XVIII, Mozart<br />

e sua inter<strong>de</strong>pendência com outras figuras sociais do período. Elias nos permite compreen<strong>de</strong>r a trajetória<br />

individual inserida n<strong>um</strong>a perspectiva histórica, as forças sociais que agiam sobre Mozart, como ele se comportou<br />

em relação a elas, e em que medida elas influenciaram em sua produção musical. Educado pelo pai para seguir<br />

carreira <strong>de</strong> músico da corte e se sujeitar aos caprichos <strong>de</strong>la, Mozart acaba se rebelando contra tal situação e com<br />

as formalida<strong>de</strong>s que a profissão <strong>de</strong> funcionário real exigia. Essa ruptura com o esquema socialmente prescrito <strong>de</strong><br />

sua profissão acabou afetando sua obra como compositor, pois antecipou as atitu<strong>de</strong>s e os sentimentos <strong>de</strong> <strong>um</strong> tipo<br />

posterior <strong>de</strong> artista.<br />

3<br />

Bourdieu compartilhando <strong>de</strong>ssas premissas, também alerta para os perigos do estudo biográfico se sobrepondo<br />

ao processo histórico. O sociólogo coloca como indispensável a reconstrução do contexto, da superfície social<br />

em que age o indivíduo. Em seu texto clássico, A Ilusão Biográfica (in AMADO E FERREIRA, 2002:183-191)<br />

chama a atenção para o cuidado <strong>na</strong> relação entrevistado/entrevistador para que se evite ou então se fique atento<br />

para a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a criação artificial <strong>de</strong> sentido do <strong>de</strong>poimento oral. No caso <strong>de</strong>ste estudo que enfoca<br />

aspectos da trajetória <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>grupo</strong>, po<strong>de</strong>mos utilizar essas consi<strong>de</strong>rações para ilustrar seus riscos: a ilusão da<br />

singularida<strong>de</strong> do indivíduo frente às experiências coletivas compartilhadas com pessoas da mesma geração.<br />

4<br />

Paulo Freire ao criar o conceito <strong>de</strong> invasão cultural faz <strong>um</strong>a clara referência ao papel <strong>de</strong>sempenhado pelos<br />

artistas e intelectuais dos anos 60 que ao tentar obter a a<strong>de</strong>são do povo <strong>na</strong> luta por transformações sociais,<br />

acabou por frear seu impulso criador e participativo. O educador polariza duas vertentes <strong>de</strong> ação cultural: a que<br />

2


<strong>na</strong> proposta do Nós do Morro. Como já dissemos <strong>na</strong> introdução do presente artigo, o <strong>grupo</strong> foi<br />

criado a partir do contato entre artistas com os jovens da comunida<strong>de</strong> do Vidigal, e como<br />

veremos mais adiante se os primeiros ofereciam sua experiência no meio teatral, os segundos<br />

ofereciam sua cultura, sua vivência, seu dia a dia, fonte <strong>de</strong> inspiração para diversas peças<br />

ence<strong>na</strong>das pela companhia ao longo <strong>de</strong> sua trajetória.<br />

Além do método Paulo Freire outras influências <strong>de</strong>spertaram Guti Fraga para <strong>um</strong>a<br />

perspectiva <strong>de</strong> <strong>arte</strong> que ultrapassa o sentido puramente estético, embora ele sublinhe que<br />

nunca foi <strong>um</strong>a pessoa politicamente “engajada”. Nas palavras <strong>de</strong> Fraga:<br />

Eu tive sim influência <strong>de</strong> pessoas muito importantes, que são muito importantes <strong>na</strong><br />

minha vida, tipo Amir Haddad, tipo Augusto Boal, é <strong>de</strong> convivência mesmo, <strong>de</strong> ter<br />

<strong>um</strong>a relação próxima, pessoal com eles, mas tive <strong>um</strong> princípio <strong>de</strong> estudo do meu<br />

trabalho. Eu comecei em Goiás fazendo <strong>teatro</strong> e tinha <strong>um</strong> cara muito engajado<br />

politicamente coisa que eu nunca fui ... engajado politicamente, eu fui seduzido pela<br />

“<strong>arte</strong> pela <strong>arte</strong>” mas nunca me preocupei politicamente, o que é que eu estava<br />

fazendo em relação a fazer isso ou aquilo, não, eu sempre tive <strong>um</strong>a atração pela<br />

<strong>arte</strong>. E é claro que você termi<strong>na</strong> <strong>na</strong>s suas atitu<strong>de</strong>s, nos seus caminhos, termi<strong>na</strong><br />

criando caminhos alter<strong>na</strong>tivos porque a política também não tem como não te<br />

influenciar, né? Se eu era <strong>um</strong> cara que foi criado n<strong>um</strong> <strong>teatro</strong> mambembe, que a<br />

gente mambembava pelos interiores do país n<strong>um</strong>a Kombi, acreditando em po<strong>de</strong>r<br />

levar a <strong>arte</strong>, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> gra<strong>na</strong> e tal, então você automaticamente, você tá<br />

n<strong>um</strong>a atitu<strong>de</strong> política, né? Então eu não sentia o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> tá ban<strong>de</strong>irando, ficar<br />

levantando ban<strong>de</strong>ira, <strong>na</strong> verda<strong>de</strong>, eu não nem pensava nisso, a própria atitu<strong>de</strong><br />

levava a isso. Agora, essas pessoas me influenciaram muito, quando eu vim pro Rio<br />

eu trabalhei com Amir Haddad, tive boas relações com o Boal, tudo antes <strong>de</strong> fundar<br />

o Nós do Morro. E tinha, eu tinha <strong>um</strong>a paixão pelo Paulo Freire, também em termos<br />

metodológicos, o Paulo Freire foi <strong>um</strong> guia muito forte <strong>na</strong> minha vida. E aí, você<br />

pegava em <strong>um</strong> <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do momento, você termi<strong>na</strong> encontrando, estudando os<br />

gran<strong>de</strong>s mestres do <strong>teatro</strong>, do Stanislavski mesmo, quando eu pegava o Stanislavski,<br />

imagi<strong>na</strong> você, eu só viajava no Stanislavski pela metodologia, mas não pela<br />

política, pela Revolução Russa. (FRAGA, op. cit.).<br />

inva<strong>de</strong>, que impõe, que não reconhece o contexto cultural do “outro” e aquela que não oferece nenh<strong>um</strong> esquema<br />

prescrito, mas que sintetiza, que pensa a ação cultural <strong>de</strong> forma coletiva, criando <strong>um</strong> novo saber a partir <strong>de</strong><br />

saberes, a partir <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s sócio culturais distintas. Ver FREIRE, 1983: 99-211.<br />

3


Mesmo admitindo que não faça do <strong>teatro</strong> <strong>um</strong>a ban<strong>de</strong>ira política, o fato é que da<br />

mistura dos princípios pedagógicos <strong>de</strong> Paulo Freire com o método <strong>de</strong> Stanislavsky 5 , foi criado<br />

em 1986 no Vidigal <strong>um</strong>a associação cultural <strong>de</strong>dicada ao <strong>teatro</strong> amador “sem fins lucrativos,<br />

com fi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> cultural e recreativa” (Estatuto do Grupo Nós do Morro, 10 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong><br />

1987). O projeto, a princípio, gerou <strong>de</strong>sconfiança, se os jovens da comunida<strong>de</strong> ficavam<br />

empolgados com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem artistas, difícil era convencer os pais <strong>de</strong>sses jovens<br />

<strong>de</strong> que o filho não iria virar “homossexual ou drogado” 6 . O morador do Vidigal, João<br />

Marques, pon<strong>de</strong>ra, lembrando que como qualquer empreendimento novo, a i<strong>de</strong>ia causou<br />

estranheza aos moradores:<br />

Ele [Guti Fraga] começou a implantar <strong>um</strong>a coisa nova que até então era totalmente<br />

<strong>de</strong>sconhecida pra todo mundo lá da comunida<strong>de</strong> tanto é que eu pensei que não iria<br />

a frente <strong>de</strong>vido a dificulda<strong>de</strong> que isso ia surgir mesmo, que era as pessoas acreditar<br />

que realmente isso iria dar certo, as pessoas se <strong>de</strong>dicar <strong>de</strong>pois, conversar sobre as<br />

peças que <strong>de</strong>pois foram elaboradas, foram planejadas e levadas ao palco. Isso tudo<br />

requer muito trabalho e as pessoas <strong>de</strong>sconfiam porque o resultado não é imediato,<br />

isso requer trei<strong>na</strong>mento, requer estudo, então cria <strong>um</strong>a certa <strong>de</strong>sconfiança até<br />

porque era <strong>um</strong>a coisa nova, graças a Deus <strong>de</strong>u tudo certo. (MARQUES, entrevista<br />

concedida a autora em 03/09/2010).<br />

A primeira peça do <strong>grupo</strong>, Encontros, autoria <strong>de</strong> Luiz Paulo Corrêa e Castro e Tino<br />

Costa, fora criada a partir <strong>de</strong> improvisações sobre o cotidiano dos jovens do Vidigal. Temas<br />

como a gravi<strong>de</strong>z in<strong>de</strong>sejada, a <strong>de</strong>scoberta amorosa, os bailes funks, a relação com os pais,<br />

além da tentativa <strong>de</strong> diálogo <strong>na</strong> praia com os turistas que se hospedam no Hotel Sheraton,<br />

localizado <strong>na</strong> subida da Avenida Niemeyer, são assuntos abordados. A peça não foi publicada<br />

em forma <strong>de</strong> texto, também não existem registros escritos, mas o ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> cultura do jor<strong>na</strong>l<br />

Tribu<strong>na</strong> da Imprensa, <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1987, assim comenta sua estréia:<br />

5<br />

Constantin Stanislavski foi ator, diretor e criador <strong>de</strong> técnicas teatrais. Seu método consistia <strong>na</strong> busca pelo ator da<br />

emoção específica do perso<strong>na</strong>gem, sentir as ações como o perso<strong>na</strong>gem sente. Isso inclui, também, <strong>um</strong> mergulho<br />

<strong>na</strong> visão <strong>de</strong> mundo do autor da obra.Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Constantin_Stanislavski, ,consultado em<br />

17/05/2011.<br />

6<br />

Cf. CORREA E CASTRO, entrevista concedida a autora em 30/06/2010.<br />

4


Vinte jovens com ida<strong>de</strong>s entre 11 e 20 anos começaram a c<strong>um</strong>prir então <strong>um</strong><br />

programa <strong>de</strong> trabalho em que, ao lado das aulas <strong>de</strong> interpretação, todos pu<strong>de</strong>ram<br />

participar do processo <strong>de</strong> criação e montagem <strong>de</strong> <strong>um</strong> espetáculo. Sempre partindo<br />

<strong>de</strong> improvisações <strong>de</strong> ce<strong>na</strong>s, Guti foi aos poucos fazendo surgir <strong>um</strong> roteiro, no qual<br />

vários aspectos da vida dos moradores do Vidigal, sobretudo dos adolescentes,<br />

foram enfocados. Em <strong>um</strong>a das ce<strong>na</strong>s, duas garotas com ida<strong>de</strong>s em torno dos 13 anos<br />

discutem o drama da gravi<strong>de</strong>z in<strong>de</strong>sejada, o medo, a reação violenta dos pais. “Isto<br />

acontece no Vidigal. Mas <strong>de</strong> certa forma a peça universaliza vivências <strong>de</strong> pessoas<br />

pertencentes a classes menos favorecidas”, alega Fraga. Mesmo incluindo questões<br />

sérias e importantes o espetáculo é levado n<strong>um</strong> clima <strong>de</strong> muita <strong>de</strong>scontração e bom<br />

h<strong>um</strong>or. N<strong>um</strong>a ce<strong>na</strong> <strong>de</strong> praia, os atores mostram <strong>um</strong> pouco como é a relação dos<br />

moradores do <strong>morro</strong> com os gringos que se hospedam no Hotel Sheraton, <strong>um</strong> cinco<br />

estrelas construído entre o mar e o pé do <strong>morro</strong>. Lances vividos por estudantes do<br />

<strong>morro</strong> que vão a escola sem se alimentar, os encontros <strong>na</strong> porta do colégio, as<br />

reuniões <strong>de</strong> pais e mestres, os bailes funks, que ajudam a animar a vida no <strong>morro</strong><br />

são outros pontos enfocados no espetáculo. “Na peça, não abordamos a questão da<br />

droga e da violência porque são assuntos que todos os dias estão nos jor<strong>na</strong>is.<br />

Preferi abordar coisas vividas pelos adolescentes do <strong>morro</strong>, que não são mostradas,<br />

como a dificulda<strong>de</strong> do relacio<strong>na</strong>mento com os pais e a própria poesia do<br />

adolescente”, observa Fraga. (Tribu<strong>na</strong> da Imprensa, Ca<strong>de</strong>rno Tribu<strong>na</strong> Bis,<br />

11/06/1987, p. 6)<br />

O espetáculo teve apoio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a loja em Ipanema, <strong>de</strong> <strong>um</strong> bar local e do Centro<br />

Comunitário <strong>de</strong> <strong>um</strong> padre missionário, o Padre Leeb. Como não podia rezar missa <strong>de</strong>vido a<br />

problemas com a Arquidiocese, o padre acabava ce<strong>de</strong>ndo a igreja para ensaios e apresentação<br />

<strong>de</strong> espetáculos. A criativida<strong>de</strong>, neste período, também foi à chave para a falta <strong>de</strong> recursos:<br />

refletores eram fabricados com latas <strong>de</strong> óleo, sem dinheiro para a compra <strong>de</strong> figurinos, o jeito<br />

era apren<strong>de</strong>r a costurar ou trazer o próprio figurino <strong>de</strong> casa.<br />

A partir da experiência <strong>de</strong> profissio<strong>na</strong>is do <strong>teatro</strong> como do il<strong>um</strong>i<strong>na</strong>dor já falecido Fred<br />

Pinheiro, do cenógrafo Fer<strong>na</strong>ndo Mello da Costa e do próprio Fraga, os integrantes do projeto<br />

vão apren<strong>de</strong>ndo diversas ativida<strong>de</strong>s ligadas ao fazer teatral. As técnicas <strong>de</strong> <strong>teatro</strong> trazidas por<br />

estes artistas foram fundamentais para driblar as dificulda<strong>de</strong>s fi<strong>na</strong>nceiras <strong>na</strong> montagem<br />

iniciais já que se tratava <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>grupo</strong> amador, sem qualquer ajuda <strong>de</strong> custo. Por outro lado, a<br />

5


profissão <strong>de</strong> alguns jovens facilitava no aprendizado <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong> il<strong>um</strong>i<strong>na</strong>ção e cenografia,<br />

como relata Tino Costa:<br />

O Xan<strong>de</strong> [Xan<strong>de</strong> Alves, <strong>um</strong> dos primeiros integrantes] fazia vitrine, trabalhava com<br />

silk screen, sempre gostou <strong>de</strong> pintar, essas coisas. Eu já era eletricista quando<br />

entrei no <strong>grupo</strong>, eu sou eletricista <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quatorze anos, então eu fui até por <strong>um</strong>a<br />

questão até, assim, <strong>de</strong> teoria, <strong>de</strong> calcular amperagem, calcular voltagem, essas<br />

coisas. Não adianta só você saber ligar <strong>um</strong> fio, né, tem que saber calcular a carga<br />

que você vai usar (COSTA, entrevista concedida a autora em 17/06/2011).<br />

O projeto inicial era formar além <strong>de</strong> atores, técnicos <strong>de</strong> <strong>teatro</strong> e <strong>um</strong>a platéia local,<br />

como forma <strong>de</strong> atrair os moradores, os integrantes levavam até suas casas convites para que<br />

eles pu<strong>de</strong>ssem assistir gratuitamente ao espetáculo ou pagar ape<strong>na</strong>s <strong>um</strong> valor simbólico. Além<br />

disso, no momento <strong>de</strong> fundação a montagem dos gran<strong>de</strong>s clássicos da literatura <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l,<br />

como Torturas <strong>de</strong> <strong>um</strong> Coração, <strong>de</strong> Ariano Suassu<strong>na</strong> ou O Dois ou o Inglês Maquinista, <strong>de</strong><br />

Martins Pen<strong>na</strong>, eram intercalados com peças que falassem da comunida<strong>de</strong>. São essas peças<br />

que nos interessam aqui, <strong>na</strong> medida em que preten<strong>de</strong>mos discutir como a proposta do Nós do<br />

Morro visava se legitimar em <strong>um</strong> primeiro momento <strong>na</strong> comunida<strong>de</strong> do Vidigal.<br />

“Birosca também é cultura” 7 , a formação <strong>de</strong> plateia no Vidigal<br />

Com <strong>um</strong>a temática mais adulta que Encontros, a peça Biroska, <strong>de</strong> Luiz Paulo Corrêa,<br />

foi apresentada pela primeira vez em 1989, no Centro Comunitário Padre Lebb, e conta a<br />

história <strong>de</strong> Neguinho, <strong>um</strong> morador do <strong>morro</strong> que acredita ter ganho no jogo do bicho, mas, <strong>na</strong><br />

verda<strong>de</strong>, ele é vítima <strong>de</strong> <strong>um</strong> trote, só <strong>de</strong>scobrindo a farsa <strong>de</strong>pois que já pagou cerveja pra todo<br />

mundo. Em <strong>um</strong> cenário reproduzindo <strong>um</strong>a birosca no alto do <strong>morro</strong>, a peça apresenta o<br />

cotidiano da comunida<strong>de</strong> através dos perso<strong>na</strong>gens: Vilma Caroço, a mulher alegre e festeira,<br />

<strong>um</strong> casal <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos e a perso<strong>na</strong>gem Margarida, <strong>um</strong>a catadora <strong>de</strong> lixo. Assim como<br />

Encontros, Biroska também não possui registros escritos, porém o jor<strong>na</strong>l <strong>de</strong> bairros O Globo –<br />

Ipanema nos dá <strong>um</strong>a dimensão do impacto da peça:<br />

7 Título da matéria <strong>de</strong> A<strong>na</strong> Paula Araripe , publicada no Ca<strong>de</strong>rno D – Jor<strong>na</strong>l O DIA, <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1989, p.6<br />

6


A platéia (80 ca<strong>de</strong>iras, 110 lugares no total) está invariavelmente repleta. Para<br />

facilitar o acesso da população, o ingresso é cobrado com base no preço <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

garrafa <strong>de</strong> cerveja. Para os atores do Nós do Morro, que nunca se apresentaram<br />

fora da comunida<strong>de</strong> – on<strong>de</strong> são recebidos com entusiasmo -, a perspectiva <strong>de</strong><br />

ganhar os palcos da cida<strong>de</strong> é <strong>um</strong> <strong>de</strong>safio que provoca alegria e ansieda<strong>de</strong>. Todos<br />

revelam o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se tor<strong>na</strong>rem atores profissio<strong>na</strong>is, mas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> seus<br />

empregos em outras ativida<strong>de</strong>s – como telefonista ou recepcionista – para<br />

sobreviver. As escolas <strong>de</strong> <strong>teatro</strong> e a <strong>de</strong>dicação exclusiva ainda são sonhos para<br />

esses jovens. - Eu não conhecia <strong>na</strong>da <strong>de</strong> <strong>teatro</strong>; como todo mundo da comunida<strong>de</strong>,<br />

queria entrar para o <strong>grupo</strong>. Estou adorando ser atriz, mas no momento não posso<br />

largar meu emprego para me <strong>de</strong>dicar ape<strong>na</strong>s ao <strong>teatro</strong> – conta Martha Braga, 19<br />

anos. (O Globo– Ipanema, 05/06/1989, p. 37).<br />

Embora o <strong>grupo</strong> possua, por esta época, <strong>um</strong> caráter amador, os fundadores já começam<br />

a esboçar <strong>um</strong>a preocupação em formar profissio<strong>na</strong>is <strong>de</strong> <strong>teatro</strong>, realizando aulas e laboratórios,<br />

todos os dias, no período da noite. O ator e diretor Guti Fraga, o il<strong>um</strong>i<strong>na</strong>dor Fred Pinheiro, a<br />

coreógrafa Iva<strong>na</strong> Barreto e o dramaturgo Luiz Paulo Corrêa e Castro, <strong>um</strong> dos primeiros jovens<br />

a fazer p<strong>arte</strong> do projeto, ajudaram a formar <strong>um</strong> corpo técnico, com figurinistas, il<strong>um</strong>i<strong>na</strong>dores e<br />

operadores <strong>de</strong> som. Em Biroska, para compensar a falta <strong>de</strong> recursos, o cenário foi todo<br />

construído com ripas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e zinco, a il<strong>um</strong>i<strong>na</strong>ção novamente feita com latas <strong>de</strong> Neston e<br />

o patrocínio veio dos donos das biroscas locais, como informa o ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> cultura do jor<strong>na</strong>l<br />

O Dia:<br />

Quem pensa que as biroscas se restringem a ven<strong>de</strong>r cerveja, cachaça e apetitosos<br />

tira gostos para boêmios teimosos está redondamente enga<strong>na</strong>do. Pelo menos do<br />

<strong>morro</strong> do Vidigal elas estão ampliando sua área <strong>de</strong> atuação, investindo em outro<br />

mercado talvez não tão lucrativo, mas nem por isto menos divertido: o Teatro.<br />

Graças à generosida<strong>de</strong> dos comerciantes da comunida<strong>de</strong>, o Grupo Nós do Morro<br />

conseguiu colocar em cartaz no Centro Comunitário Padre Leeb o espetáculo<br />

Biroska, <strong>um</strong>a criação coletiva, dirigida pelo ator Guti Fraga. A saída para driblar a<br />

crise e a falta <strong>de</strong> recursos foi encontrada pelo próprio diretor da peça, Guti colocou<br />

o seu exército <strong>na</strong>s ruas à cata <strong>de</strong> patroci<strong>na</strong>dores. A experiência parece ter dado<br />

certo. Todas as <strong>de</strong>z biroscas da região concordaram em colaborar. “Eles me<br />

pediram três garrafas <strong>de</strong> cerveja por sema<strong>na</strong>. Acho que é importante a comunida<strong>de</strong><br />

ajudar, pois afi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> contas o <strong>teatro</strong> é muito bom para os nossos filhos”, assi<strong>na</strong>la<br />

7


Tia Déia, 45 anos, proprietária há dois <strong>de</strong> <strong>um</strong>a birosca <strong>na</strong> Rua Major Toja. (Jor<strong>na</strong>l<br />

o Dia, Ca<strong>de</strong>rno D, 22/04/1989, p.6).<br />

A matéria traz também o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> <strong>um</strong>a moradora, Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Nogueira,<br />

do<strong>na</strong>, <strong>na</strong> época, <strong>de</strong> <strong>um</strong>as das biroscas do Vidigal, que acabou contemplada com <strong>um</strong> papel <strong>na</strong><br />

peça. Sobre a i<strong>de</strong>ntificação dos moradores com o espetáculo Guti Fraga disse à época ao<br />

jor<strong>na</strong>l: “90% do nosso público foi ao <strong>teatro</strong> pela primeira vez para ver <strong>um</strong>a peça nossa. Eles<br />

<strong>de</strong>liram, aplau<strong>de</strong>m em ce<strong>na</strong> aberta, riem e comentam, têm <strong>um</strong>a espontaneida<strong>de</strong> e <strong>um</strong><br />

entusiasmo muito gran<strong>de</strong>. É emocio<strong>na</strong>nte.” (O Globo - Ipanema, 08/05/1989).<br />

Rose Haagensen, foi seduzida a entrar para o <strong>grupo</strong> por causa dos filhos, os atores<br />

Phelippe e Jo<strong>na</strong>than, apesar disso já ac<strong>um</strong>ula diversos trabalhos, como os curtas metragens<br />

premiados Mi<strong>na</strong> <strong>de</strong> Fé (2004), <strong>de</strong> Lucia<strong>na</strong> Bezerra e Neguinho e Kika (2005), <strong>de</strong> Luciano<br />

Vidigal. Mas antes <strong>de</strong> se tor<strong>na</strong>r atriz, Rose era <strong>um</strong>a expectadora assídua das peças do Nós do<br />

Morro. Sobre seu envolvimento com o projeto, relata Rose:<br />

As pessoas ficavam encantadas, né, que era <strong>um</strong>a coisa diferente. O pessoal não tem<br />

como ver peça <strong>de</strong> <strong>teatro</strong> lá fora, né, tem muita gente também, tipo, que tem medo <strong>de</strong><br />

se misturar com rico, agora a gente vai assistir peça, vai ao cinema (...) Eu ví<br />

Biroska, vi quando tinha o Show das Sete, vi Abalou, então nesse tempo <strong>de</strong> Biroska<br />

pra cá eu já era mais assim, envolvida em termos, enten<strong>de</strong>u. Eu ía assistir as peças,<br />

<strong>de</strong>pois é que eu fiquei muito envolvida, <strong>de</strong>pois eu comecei também a fazer aula,<br />

<strong>de</strong>pois eu trabalhei lá também, enten<strong>de</strong>u, eu sempre tenho que tá envolvida com<br />

alg<strong>um</strong>a coisa (HAAGENSEN, entrevista concedida a autora em 21/06/2011).<br />

Tino Costa lembra que, <strong>na</strong> época, saía pelo Vidigal, fantasiado <strong>de</strong> palhaço, tentando<br />

chamar a atenção por meio da roupa espalhafatosa, apesar <strong>de</strong> salientar que não havia palhaço<br />

alg<strong>um</strong> <strong>na</strong>s primeiras peças do <strong>grupo</strong>. Megafone <strong>na</strong> mão, ele contava com outra forma <strong>de</strong> atrair<br />

os moradores mais h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>s: enfatizar a gratuida<strong>de</strong> dos espetáculos. A estratégia, segundo<br />

relata, dava certo, com previsão <strong>de</strong> permanecer alg<strong>um</strong>as sema<strong>na</strong>s em cartaz, o espetáculo fez<br />

temporada <strong>de</strong> cinco meses, com a “casa” sempre lotada:<br />

Depois, você via as pessoas já vindo <strong>na</strong> sexta, no sábado, no domingo, e <strong>na</strong> outra<br />

sema<strong>na</strong>, <strong>na</strong> outra sexta, no outro sábado, no outro domingo, enten<strong>de</strong>. De você tá<br />

falando o texto no palco e você vê o pessoal já vindo junto contigo, porque já<br />

8


<strong>de</strong>coravam o texto também, enten<strong>de</strong> (...). Era <strong>um</strong>a linguagem que dava pro pessoal<br />

enten<strong>de</strong>r, gostar e criar a curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vim ver o próximo [espetáculo], as<br />

pessoas <strong>de</strong>coravam o texto. Antes <strong>de</strong> eu falar o meu texto, o cara já tava falando,<br />

enten<strong>de</strong> “agora ele vai fazer isso, agora ele vai fazer aquilo” falando pro outro que<br />

ainda não tinha visto (COSTA, op. cit).<br />

Sobre o fato da plateia se manifestar, o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Luís Paulo Corrêa<br />

complementa a fala <strong>de</strong> Tino Costa. Segundo Luiz Paulo Corrêa, tentando evitar <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>dos<br />

comportamentos por p<strong>arte</strong> <strong>de</strong> quem, muito provavelmente, estava indo ao <strong>teatro</strong> pela primeira<br />

vez, era feita <strong>um</strong>a introdução antes <strong>de</strong> cada peça: “Eu lembro que o Guti antes sempre fazia<br />

<strong>um</strong>a preleção: ‘vou começar, não vai po<strong>de</strong>r ir ao banheiro, quem já viu não po<strong>de</strong> contar`”<br />

(CORRÊA E CASTRO, entrevista concedida a autora em 30/06/2010).<br />

No entanto, a tentativa <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a plateia que se a<strong>de</strong>quasse às regras <strong>de</strong><br />

apreciação 8 <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>teatro</strong> convencio<strong>na</strong>l esbarrava em <strong>um</strong>a questão: a i<strong>de</strong>ntificação com a<br />

linguagem dos espetáculos. O fato <strong>de</strong> se reconhecer em ce<strong>na</strong> favorecia a interação do público<br />

com a peça. Esta constatação serve para discutimos o que <strong>de</strong>limitamos como o primeiro<br />

momento <strong>de</strong> reconhecimento do trabalho <strong>de</strong>senvolvido pelo Nós do Morro, on<strong>de</strong> o <strong>grupo</strong> vai<br />

atrair a população do Vidigal por meio <strong>de</strong> espetáculos que versassem sobre seu cotidiano.<br />

Sobre esse ethos com<strong>um</strong> 9 , que aproxima produtores e receptores no campo da<br />

literatura, são interessantes para nosso <strong>de</strong>bate as formulações <strong>de</strong> Pierre Bourdieu (1996) e<br />

8<br />

Em seu estudo sobre a <strong>arte</strong> e o cons<strong>um</strong>o artístico, Pierre Bourdieu (2007) aponta que os bens culturais possuem<br />

diferentes maneiras <strong>de</strong> apropriação, embora exista <strong>um</strong> modo <strong>de</strong> apropriação, reputado como legitimo, que<br />

exigem <strong>um</strong> patrimônio cognitivo e <strong>um</strong>a chamada competência cultural. O patrimônio cognitivo e a competência<br />

cultural são o produto da educação, ou seja, a freqüência aos museus, concertos, exposições, leituras e as<br />

preferências em matéria <strong>de</strong> literatura, pintura ou música, estão estreitamente associadas ao nível <strong>de</strong> instrução<br />

escolar ou ao peso relativo da educação familiar. De modo que, segundo o autor, a produção e o cons<strong>um</strong>o<br />

<strong>de</strong>sempenham <strong>um</strong>a função <strong>de</strong> legitimação das diferenças sociais, a hierarquia socialmente reconhecida das <strong>arte</strong>s<br />

correspon<strong>de</strong> à hierarquia social dos cons<strong>um</strong>idores, eis o que predispõe os gostos a funcio<strong>na</strong>r como marcadores<br />

privilegiados da "classe".<br />

9<br />

Marcos Napolitano usa essa expressão para colocar a discussão da formação <strong>de</strong> público no âmbito da chamada<br />

“<strong>arte</strong> engajada” dos anos 60. Seu trabalho propõe <strong>um</strong>a revisão da visão monolítica que limitava esse público,<br />

segundo a qual todos eram "jovens, intelectuais e <strong>de</strong> esquerda”, constatando que “a educação política, estética e<br />

sentimental <strong>de</strong> <strong>um</strong>a elite (o jovem estudante <strong>de</strong> esquerda) e das massas (o camponês, o operário, a classe média)<br />

eram duas faces <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mesma moeda, pensada sob perspectivas diferentes” (2001:106). Para Napolitano, o<br />

problema se colocava em dois níveis: no primeiro, o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> consolidar <strong>um</strong> público mais próximo, que<br />

compartilhasse com os artistas espaços (movimento estudantil, universida<strong>de</strong>) e valores i<strong>de</strong>ológicos comuns para<br />

constituir <strong>um</strong> <strong>grupo</strong> social que <strong>de</strong>veria conduzir o processo reformista-revolucionário. N<strong>um</strong> segundo nível,<br />

buscava-se ampliar esse público, abrir espaço pelo qual a <strong>arte</strong> engajada circulava, esse era o maior <strong>de</strong>safio <strong>na</strong><br />

medida em que o acesso às massas era bastante problemático, como exemplifica a tentativa do CPC da UNE,<br />

9


Antonio Gramsci (1986). Conforme <strong>de</strong>monstra o sociólogo francês, a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

obra <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do “encontro com seu público”. Para <strong>de</strong>monstrar tal afirmativa, Bourdieu<br />

exemplifica que <strong>um</strong> diretor <strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l como o Fígaro vai escolher <strong>um</strong> crítico literário que<br />

possua não só as mesmas i<strong>de</strong>ias transmitidas pelo jor<strong>na</strong>l, mas que compartilhe categorias <strong>de</strong><br />

apreciação <strong>de</strong> seu público leitor 10 .<br />

Gramsci já chama atenção não para o encontro, mas para o distanciamento entre<br />

escritores e leitores, centrando sua discussão <strong>na</strong> Itália, da década <strong>de</strong> 30, ele aponta não existia<br />

<strong>um</strong>a literatura popular que agradasse aos “populares”. Ao trabalhar o conceito <strong>de</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l<br />

popular, Gramsci aponta que o termo <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, <strong>na</strong> Itália era exclu<strong>de</strong>nte e se relacio<strong>na</strong>va<br />

ape<strong>na</strong>s com os interesses <strong>de</strong> <strong>um</strong>a “única casta” e, portanto, as i<strong>de</strong>ias elaboradas em torno do<br />

conceito <strong>de</strong> <strong>na</strong>ção, bem como a produção literária, não se aproximavam do povo. Havia <strong>na</strong><br />

Itália <strong>um</strong>a falta <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> concepção <strong>de</strong> mundo entre escritores e povo, ou seja, os<br />

sentimentos populares não eram vividos como próprios pelos escritores que:<br />

não se sentem ligados ao povo, não o conhecem e não percebem suas necessida<strong>de</strong>s,<br />

aspirações e seus sentimentos difusos; em relação ao povo são algo <strong>de</strong>stacado, sôlto<br />

no ar, ou seja, <strong>um</strong>a casta, não <strong>um</strong>a articulação - com funções orgânicas – do<br />

próprio povo. (GRAMSCI, 1986:106 e 107).<br />

Para Rogério Silva <strong>de</strong> Souza, morador do Vidigal, 43 anos, a primeira peça do Nós do<br />

Morro foi <strong>um</strong> sucesso justamente porque as pessoas se viam <strong>na</strong>queles perso<strong>na</strong>gens que<br />

contavam <strong>um</strong> pouco da história do Vidigal. Rogério chegou a ensaiar <strong>um</strong>a peça com a<br />

companhia, mas problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> o impediram <strong>de</strong> levar adiante o sonho <strong>de</strong> ser ator, apesar<br />

bastante eficaz para se aproximar <strong>de</strong> <strong>um</strong> público acadêmico ou informado dos processos políticos e artísticos que<br />

ocorriam no país, mas impotente <strong>na</strong> tentativa <strong>de</strong> popularizar sua mensagem política através <strong>de</strong> "espetáculos <strong>de</strong><br />

rua" ou <strong>de</strong> "porta <strong>de</strong> fábrica". Cf. NAPOLITANO, in Estudos Históricos, 28, 2001: 103-124.<br />

10<br />

Bourdieu (1996: 163-186) aponta que o <strong>teatro</strong> foi o campo artístico que sempre <strong>de</strong>limitou com mais clareza<br />

esta diferença em suas bases i<strong>de</strong>ológicas, o autor utiliza a diferença entre o <strong>teatro</strong> “burguês” e o “<strong>teatro</strong> <strong>de</strong><br />

vanguarda”, <strong>na</strong> França, do séc. XIX, para classificar os autores, as obras, os estilos, os temas e as características<br />

sociais do público dos diferentes <strong>teatro</strong>s parisienses (ida<strong>de</strong>, profissão, residência, frequência, preço <strong>de</strong>sejado).<br />

Aos gran<strong>de</strong>s <strong>teatro</strong>s, o sociólogo opõe os pequenos <strong>teatro</strong>s parisienses, empresas econômica e culturalmente<br />

arriscadas, cujos valores eram relativamente reduzidos. No primeiro caso, trataram-se <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iras empresas<br />

comerciais ordinárias, preocupadas com a rentabilida<strong>de</strong> econômica, que propõem espetáculos testados ou<br />

concebidos, seguindo temáticas <strong>de</strong> acordo com os gostos <strong>de</strong> seu público “burguês”, disposto a pagar preços<br />

elevados para assistir peças <strong>de</strong> simples divertimento. Já o <strong>teatro</strong> <strong>de</strong> vanguarda, estava em franca ruptura com as<br />

convenções, seja no conteúdo ou <strong>na</strong> ence<strong>na</strong>ção, e, eram <strong>de</strong>sti<strong>na</strong>dos a <strong>um</strong> público jovem e intelectual, i<strong>de</strong>ntificado<br />

com valores reformistas.<br />

10


disso, salienta que mais do que formar atores, o <strong>grupo</strong> acabou formando cidadãos, o que<br />

<strong>de</strong>monstra a importância social do projeto cultural <strong>de</strong>senvolvido <strong>na</strong> comunida<strong>de</strong>. Ele, no<br />

entanto discorda <strong>de</strong> que a plateia precisava ser “educada” para assistir aos espetáculos:<br />

Consi<strong>de</strong>rações fi<strong>na</strong>is<br />

As pessoas riam pra caramba, achavam engraçado e também viam a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> amigo nosso tá atuando: “alí fulano, ele tá fazendo a peça”, inclusive tinha<br />

<strong>um</strong>a meni<strong>na</strong> do elenco que era minha prima, a Adria<strong>na</strong>, tinha a irmã da Adria<strong>na</strong>,<br />

minha prima mais nova, enfim Popia, Rômulo, Marco, eu conhecia todos eles, daí<br />

que tinha <strong>um</strong>a brinca<strong>de</strong>ira ou outra durante o espetáculo, mas <strong>na</strong>da que<br />

atrapalhasse (SOUZA, entrevista concedida a autora em 09/11/2011).<br />

No presente artigo, tentei a<strong>na</strong>lisar a proposta primeira do Nós do Morro em chamar<br />

atenção da comunida<strong>de</strong> mais h<strong>um</strong>il<strong>de</strong> do Vidigal para o <strong>teatro</strong>. A proposta <strong>de</strong> formar <strong>um</strong>a<br />

plateia dita popular não é algo inédito, como exemplificam o trabalho <strong>de</strong> <strong>grupo</strong>s da década <strong>de</strong><br />

sessenta, como o Teatro <strong>de</strong> Are<strong>na</strong> e o Centro <strong>de</strong> Popular <strong>de</strong> Cultura, ligado a União Nacio<strong>na</strong>l<br />

dos Estudantes, o CPC da UNE. No entanto, percebemos <strong>um</strong>a mudança <strong>de</strong> paradigma, pois se<br />

o Are<strong>na</strong> e o CPC buscavam levar cultura ao povo, no caso da proposta do Nós do Morro, a<br />

cultura está no próprio povo, daí resulta a tentativa <strong>de</strong> enraizamento do projeto a partir <strong>de</strong><br />

peças elaboradas, ence<strong>na</strong>das e voltadas para os moradores do Vidigal.<br />

Acrescento que o <strong>grupo</strong> durante toda a sua trajetória também encenou os gran<strong>de</strong>s<br />

clássicos da dramaturgia <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Porém, busquei centrar minha discussão em<br />

peças que acreditei serem mais representativas neste momento inicial <strong>de</strong> busca <strong>de</strong><br />

legitimida<strong>de</strong> no Vidigal. Também saliento que mesmo após esta fase, os espetáculos<br />

apresentados pelo Nós do Morro continuaram a chamar atenção para a realida<strong>de</strong> local, como<br />

comprovam as premiadas peças Abalou - Um musical funk, <strong>de</strong> 1997, e Noites do Vidigal, <strong>de</strong><br />

2002, ambas <strong>de</strong> Luiz Paulo Corrêa e Castro, <strong>um</strong> dos primeiros jovens a fazer p<strong>arte</strong> do Nós do<br />

Morro e atualmente, <strong>um</strong> dos coor<strong>de</strong><strong>na</strong>dores do projeto.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

11


BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Tradução Daniela Kern e<br />

Guilherme Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007.<br />

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Moraes (orgs.). Usos e abusos da história oral. 5ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora FGV, 2002, p.<br />

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_________________. As regras da <strong>arte</strong>: gênese e estrutura do campo literário. Tradução<br />

Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.<br />

ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia <strong>de</strong> <strong>um</strong> gênio. Tradução Sérgio Goes <strong>de</strong> Paula e Michael<br />

Scrhöter. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.<br />

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 13ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1983.<br />

GRAMSCI, Antonio. Literatura e Vida <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 3ªed.<br />

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Janeiro: 22/04/1989, p.6<br />

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Ca<strong>de</strong>rno Tribu<strong>na</strong> Bis. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 11/06/1987, p.6.<br />

NAPOLITANO, Marcos. “A <strong>arte</strong> engajada e seus públicos”. In: Estudos Históricos, nº 28.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: FGV, 2001, p. 103-124.<br />

“Nós do Morro apresenta Biroska no Vidigal”. O GLOBO – Ipanema, Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

08/05/1989.<br />

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BEZERRA, Lucia<strong>na</strong>. Mi<strong>na</strong> <strong>de</strong> Fé, Brasil, 2004, 15 min. Produzido pelo núcleo audiovisual do<br />

Grupo Nós do Morro. Links para consulta: http://youtu.be/iB2i0Jv5PgU e<br />

http://youtu.be/C43G5A5tRPc. Acessado em 17/05/2011.<br />

12


VIDIGAL, Luciano. Neguinho e Kika, Brasil, 2005, 17 min. Produzido pelo núcleo<br />

audiovisual do Grupo Nós do Morro. Links para consulta: http://youtu.be/X0j2Qb65QGU e<br />

http://youtu.be/EruR_MIsufA. Acessado em 17/05/2011.<br />

FONTES ESCRITAS<br />

Estatuto do Grupo Nós do Morro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 10 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1987.<br />

FONTES ORAIS<br />

CORRÊA E CASTRO, Luiz Paulo. Rio <strong>de</strong> Janeiro/RJ, Brasil, 30 jun. 2010. Mp3, 3 horas, 10<br />

minutos e 9 segundos. Entrevista concedida a Letícia Miranda Paula.<br />

COSTA, Tino. Rio <strong>de</strong> Janeiro/RJ, Brasil, 17 jun. 2011. Mp3, 1 hora, 2 minutos e 30 segundos.<br />

Entrevista concedida a Letícia Miranda Paula.<br />

FRAGA, Guti. Rio <strong>de</strong> Janeiro/RJ, Brasil, 16 jun. 2010. Mp3, 43 minutos e 48 segundos.<br />

Entrevista concedida a Letícia Miranda Paula.<br />

HAAGENSEN, Rose. Rio <strong>de</strong> Janeiro/RJ, Brasil, 21 jun. 2011. Mp3, 24 minutos e 33<br />

segundos. Entrevista concedida a Letícia Miranda Paula.<br />

MARQUES, João. Rio <strong>de</strong> Janeiro/RJ, Brasil, 03 set. 2010. Mp3, 17 minutos e 35 segundos.<br />

Entrevista concedida a Letícia Miranda Paula.<br />

SOUZA, Rogério Silva <strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro/RJ, Brasil, 09 nov. 2011. Mp3, 56 minutos e 25<br />

segundos. Entrevista concedida a Letícia Miranda Paula.<br />

SITES CONSULTADOS<br />

Wikipédia. http://pt.wikipedia.org/wiki/Constantin_Stanislavski, acessado em 17/05/2011.<br />

Nós do Morro. www.nosdo<strong>morro</strong>.com.br, acessado em 17/05/2011.<br />

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