BOLETIM ARQUITETOS 229.indd - Ordem dos Arquitectos
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MACAU<br />
E O LUGAR DA ARQUITECTURA<br />
RUI LEÃO<br />
Vice-Presidente do CIALP<br />
Em Macau a arquitectura foi e é um factor primordial e<br />
definidor do estabelecimento da cidade. A sua invenção<br />
e história foram variavelmente um braço-de-ferro, um<br />
convite à relação, um gesto de entrega, um compromisso impossível<br />
e um tiro no escuro. Durante os seus cinco séculos de<br />
presença Portuguesa, a arquitectura e o urbanismo em Macau<br />
tiveram uma função de reciprocidade e mediação, ao informar<br />
o território, coser compromissos com o desconhecido e reinterpretar<br />
no sítio e na circunstância a relação constante e intencional<br />
entre o Corpo, o Lugar e o Outro.<br />
A ideia instauradora de Macau como uma cidade de duas faces,<br />
anteriormente dissertada por outros autores, contém uma<br />
mensagem de universalismo para os tempos que correm: a<br />
mestiçagem intelectual.<br />
O desejo criativo de assimilar estes dois universos transforma-se<br />
num tapete individual de trans-textualismo disléxico e<br />
complexo. A Arquitectura afirma-se gigante, na resolução destes<br />
universos quase paralelos.<br />
A cada acto a cidade também se fez contra a ideia matriz que deveria<br />
reproduzir por opção, por se ter que cumprir um outro projecto,<br />
aquele que não era uma repetição nem uma imposição de princípio,<br />
aquele projecto que passa a ser prioritário, híbrido e fecundo: o projecto<br />
de cidade suscitado pela descoberta do outro, pela descoberta<br />
de uma oportunidade de resolver dois mun<strong>dos</strong> numa esquina.<br />
Os lugares de marginalidade (cultural) são naturalmente mais propícios<br />
à diversidade e ao pluralismo. Macau é uma lição contemporânea<br />
de arquitectura: um processo de globalização avant la lettre.<br />
A arquitectura como forma de expressão cultural é um constante<br />
acto de transformação ou tradução do real. A ancoragem<br />
a universos culturais tão distintos como o Português e o Chinês<br />
(que se sobrepõem extraordinariamente em Macau) terá mais a<br />
ver com a ideia de uma mestiçagem intelectual: produto do fascínio<br />
por um corpo (cultura) que deixa de ser estranho por estar<br />
fisicamente tão próximo um do outro. Um fascínio que não<br />
tem uma origem nem intelectual nem de domínio: um fascínio<br />
que parte do transpiro e do olhar, a partir de uma teoria de acção<br />
que simultaneamente comprova e refuta a teoria que a antecede<br />
e que define um ou outro corpo cultural.<br />
A paisagem urbana de Macau, as pressões da densidade urbana devidas<br />
a exiguidade do território e ao acelerado ritmo de desenvolvimento<br />
urbano associa<strong>dos</strong> a uma cultura local altamente pragmáti-<br />
ca e a um compromisso simbiótico entre o Governo e os interesses<br />
priva<strong>dos</strong> na produção rápida de conteú<strong>dos</strong> urbanos, são alguns <strong>dos</strong><br />
factores que levaram e levam a que em Macau haja uma concentração<br />
da arquitectura em temas bastantes diferentes <strong>dos</strong> debati<strong>dos</strong><br />
em Portugal, na escola e nos ateliers. A sua escala é muitas vezes o<br />
tema com que se debate Hong Kong, Cantão e as grandes cidades<br />
da região.<br />
Os últimos cinquenta anos de arquitectura de matriz portuguesa<br />
produzi<strong>dos</strong> em Macau procuram uma vertente mais<br />
empírica, experimental e permissiva, com uma recorrência a<br />
ordens geométricas mais explícitas e a macro-temas mais internacionais.<br />
A transição para a República Popular da China<br />
não interrompeu essa prática, mas o tipo de encomenda pública<br />
tem vindo a ganhar escalas e complexidade de programa que<br />
novamente apontam para uma reorganização do tipo de resposta<br />
que a arquitectura pode oferecer.<br />
Macau também é um caso extremo, onde o limite da cidade, o limite<br />
do Território e o limite do nosso imaginário coincidem, como<br />
um perfeito e redondo aquário: permitindo que a ideia de distância<br />
seja mesmo assim uma proximidade, e, nesse sentido, a expansão<br />
do território por meio de aterros pode ganhar conotações<br />
de propaganda: um contínuo acto de ampliar o aquário, sempre<br />
mais denso e concentrado em si mesmo, a cidade que se desdobra<br />
na água, o vício e o charme de se ir emparedando em si mesma<br />
enquanto se abre. E retirando-se do mar, territorializando-se.<br />
Esta obsessiva condensação do território leva a que, na sua cultura<br />
urbana, o campo visual seja exaustivamente ocupado, usado,<br />
representado, e que todas as manifestações sociais de excesso ou<br />
desvio sejam vistas como um estado de normalidade.<br />
A densidade e insistência da arquitectura na cidade levou-a a<br />
transformar-se num acto de fatalidade cultural. A arquitectura<br />
impõe-se (na situação, no lugar, no programa, na cidade) mesmo<br />
em casos de extrema impossibilidade: a linha que vacila enquanto<br />
atravessa o vazio que procura a ordem, enquanto desfaz os malentendi<strong>dos</strong><br />
(entre estes mun<strong>dos</strong> diferentes) e os refaz com outros<br />
mal-interpreta<strong>dos</strong> ou bem-entendi<strong>dos</strong> que se passam a tocar<br />
na forma da arquitectura que através do desenho vai finalmente<br />
dando forma aos valores e senti<strong>dos</strong> que o lugar e sua língua procuram<br />
e que em muitas instâncias o verbo não encontra.