Sonetos, de Luís de Camões Texto-base - Canal do Estudante
Sonetos, de Luís de Camões Texto-base - Canal do Estudante
Sonetos, de Luís de Camões Texto-base - Canal do Estudante
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
<strong>de</strong> ver por quem, Senhora, me trocastes;<br />
mas em tal caso vós só me vingastes<br />
<strong>de</strong> vossa ingratidão, vossos enganos.<br />
Dobrada glória dá qualquer vingança,<br />
que o ofendi<strong>do</strong> toma <strong>do</strong> culpa<strong>do</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> se satisfaz com cousa justa;<br />
mas eu <strong>de</strong> vossos males e esquivança,<br />
<strong>de</strong> que agora me vejo bem vinga<strong>do</strong>,<br />
não o quisera eu tanto à vossa custa.<br />
Julga-me a gente toda por perdi<strong>do</strong>,<br />
ven<strong>do</strong>-me, tão entregue a meu cuida<strong>do</strong>,<br />
andar sempre <strong>do</strong>s homens aparta<strong>do</strong>,<br />
e <strong>do</strong>s tratos humanos esqueci<strong>do</strong>.<br />
Mas eu, que tenho o mun<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong>,<br />
e quase que sobre ele an<strong>do</strong> <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>,<br />
tenho por baixo, rústico, engana<strong>do</strong>,<br />
quem não é com meu mal engran<strong>de</strong>ci<strong>do</strong>.<br />
Vão revolven<strong>do</strong> a terra, o mar e o vento,<br />
busquem riquezas, honras a outra gente,<br />
vencen<strong>do</strong> ferro, fogo, frio e calma;<br />
que eu só em humil<strong>de</strong> esta<strong>do</strong> me contento,<br />
<strong>de</strong> trazer esculpi<strong>do</strong> eternamente<br />
vosso fermoso gesto <strong>de</strong>ntro n'alma.<br />
Leda serenida<strong>de</strong> <strong>de</strong>leitosa, que<br />
representa em terra um paraíso;<br />
entre rubis e perlas <strong>do</strong>ce riso;<br />
<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> ouro e neve, cor-<strong>de</strong>-rosa;<br />
presença mo<strong>de</strong>rada e graciosa,<br />
on<strong>de</strong> ensinan<strong>do</strong> estão <strong>de</strong>spejo e siso<br />
que se po<strong>de</strong> por arte e por aviso,<br />
como por natureza, ser fermosa;<br />
fala, <strong>de</strong> quem a morte e a vida pen<strong>de</strong>,<br />
rara, suave; enfim, Senhora, vossa;<br />
repouso, nela, alegre e comedi<strong>do</strong>;<br />
estas as armas são com que me ren<strong>de</strong><br />
e me cativa Amor; mas não que possa<br />
<strong>de</strong>spojar me da glória <strong>de</strong> rendi<strong>do</strong>.<br />
Lembranças que lembrais meu bem passa<strong>do</strong><br />
para que sinta mais o mal presente,<br />
<strong>de</strong>ixai-me (se quereis) viver contente,<br />
não me <strong>de</strong>ixeis morrer em tal esta<strong>do</strong>.<br />
105<br />
045<br />
113