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3. Ciclo Pascal 3.1. Evolução dos quatro primeiros séculos

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<strong>3.</strong> <strong>Ciclo</strong> <strong>Pascal</strong><br />

Bibliografia:<br />

− Normas Gerais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário<br />

− CCD, Carta circular sobre a preparação e a celebração das festas pascais<br />

− D. BOROBIO (ed.), La celebración en la Iglesia III. Ritmos y tiempos de la celebración, (Lux<br />

Mundi 59) Sígueme, Salamanca 1994 2 , 99-170.<br />

− R. CANTALAMESSA R., La Pasqua della nostra salvezza. Le tradizioni pasquali della Bibbia e<br />

della Chiesa primitiva, Marietti 1820, Genova – Milano 2007 2 .<br />

− R. CANTALAMESSA R., La Pasqua nella Chiesa antica, (Traditio Christiana 3) SEI, Torino 1978.<br />

− SNL, A celebração do Mistério <strong>Pascal</strong>. Tríduo <strong>Pascal</strong> [VIII ENPL], Boletim de Pastoral Litúrgica n.<br />

29-31 (1983).<br />

− SNL, A celebração do Mistério <strong>Pascal</strong>. Tempo <strong>Pascal</strong> [IX ENPL], Boletim de Pastoral Litúrgica n.<br />

33-36 (1984); depois reeditado como: O Tempo <strong>Pascal</strong>, Fátima 1996.<br />

− SNL, A celebração do Mistério <strong>Pascal</strong>. Quaresma [X ENPL], Boletim de Pastoral Litúrgica n. 37-40<br />

(1985).<br />

“Houve um período na vida da Igreja em que a Páscoa era tudo, por assim dizer, não só<br />

porque comemorava, somente ela e sem concorrência de nenhuma outra festa, toda a história da<br />

salvação, da criação à parusia, mas também porque era o lugar em que se elaboraram certos<br />

componentes essenciais da vida da comunidade, tais como a liturgia, a exegese tipológica, a<br />

catequese, a teologia e mesmo o cânon das Escrituras” 1 .<br />

Iniciamos agora a abordagem ao <strong>Ciclo</strong> <strong>Pascal</strong>, aquele que nos ocupará mais tempo, dada a<br />

sua importância e centralidade no Ano Litúrgico. Começamos por abordar a sua evolução histórica,<br />

da Páscoa judaica à Páscoa cristã e do período apostólico ao século IV. Num segundo momento,<br />

trataremos do Tríduo <strong>Pascal</strong>, e, sucessivamente, do Tempo <strong>Pascal</strong> e da Quaresma, vendo sempre a<br />

sua evolução histórica e actual configuração litúrgica.<br />

<strong>3.</strong>1. <strong>Evolução</strong> <strong>dos</strong> <strong>quatro</strong> <strong>primeiros</strong> <strong>séculos</strong><br />

<strong>3.</strong>1.1. A Páscoa judaica 2<br />

Não se pode precisar com exactidão o significado etimológico da palavra. A palavra<br />

“páscoa” é a transliteração (e não a tradução) grega da palavra aramaica paschá e hebraica pesah,<br />

do verbo pasah, cujo sentido original seria provavelmente o de “passar”, “saltar”.<br />

A Páscoa era a primeira e mais importante festa anual <strong>dos</strong> judeus: a sua celebração está no<br />

centro e no coração da experiência bíblica, já que está relacionada com o acontecimento fundador<br />

do povo de Deus, o êxodo. Era a celebração da acção salvífica de Deus, que “passara” pelo meio do<br />

Seu povo para o tirar da escravidão do Egipto para a liberdade. O texto fundamental sobre a Páscoa<br />

judaica é Ex 12-13 (mais concretamente Ex 12, 1 – 13, 16), que apresenta a Páscoa como<br />

“passagem”, que tem Deus por protagonista: foi Deus que “passou” pelo meio do seu povo, ferindo<br />

os primogétinos <strong>dos</strong> egípcios e salvando os hebreus. Um outro texto fundamental é Dt 16, mas aí<br />

sublinha-se não tanto o protagonismo de Deus, mas sobretudo as consequências para o povo: a<br />

libertação.<br />

1 R. CANTALAMESSA, La Pasqua nella Chiesa antica, (Traditio Christiana 3) SEI, Torino 1978, XIII.<br />

2 Cf. R. FABRIS, «Pascua», em P. ROSSANO, G. RAVASI, A. GIRLANDA (dir.), Nuevo Diccionario de Teologia<br />

Biblica, EP, Madrid 1990, 1409-1418; J. CARREIRA DAS NEVES, «A Eucaristia no contexto do mistério pascal de<br />

Jesus», em 3º Congresso Eucarístico Nacional – Actas, Faculdade de Teologia de Braga (UCP) - Conferência<br />

Episcopal Portuguesa, Braga 1999, 44-52.<br />

21


O judaísmo palestinense acentuou sobretudo a dimensão teológica e sacrificial da Páscoa.<br />

Ritualmente a celebração centrou-se na imolação do cordeiro pascal, elemento fundamental da<br />

refeição festiva. Pelo contrário, nas comunidades da diáspora, que não podiam celebrar a Páscoa em<br />

Jerusalém e, consequentemente, não podiam imolar o cordeiro, foi a dimensão moral e espiritual da<br />

Páscoa que ganhou particular relevo, sobretudo por influência de Fílon (Filão) de Alexandria.<br />

Nestes meios helenistas, a Páscoa era vista quase exclusivamente como “passagem” do homem da<br />

escravidão à liberdade, do vício à virtude.<br />

Em suma 3 , o AT e a tradição judaica apresentam 2 interpretações da Páscoa:<br />

a) Páscoa é a passagem de Deus pelo meio do seu povo para o libertar; nesta interpretação, o<br />

protagonista é Deus; valoriza-se sobretudo o aspecto ritual e celebrativo, como memorial do<br />

acontecimento dessa passagem salvífica de Deus.<br />

b) Páscoa é passagem do povo da escravidão à liberdade; nesta interpretação, o protagonista é o<br />

povo; valoriza-se, não tanto a celebração, mas sobretudo a conversão, a passagem da escravidão<br />

à liberdade, do vício à virtude.<br />

Embora os textos bíblicos liguem esta festa à saída do Egipto, a Páscoa não era algo<br />

completamente novo quando se verificou esse acontecimento fundamental: o êxodo.<br />

Originariamente, a Páscoa era um sacrifício de pastores nómadas. Israel, inicialmente um povo de<br />

pastores, praticava já este ritual, na primeira lua cheia da primavera. Nesta festa imolava-se um<br />

cordeiro, primícias do rebanho, para a refeição ritual; com o sangue desse cordeiro marcariam as<br />

tendas para obter a protecção divina. Também os agricultores celebravam, no início da primavera,<br />

uma festa distinta, em que se comiam pães ázimos, confecciona<strong>dos</strong> com as primícias da colheita da<br />

cevada. Mais tarde, as duas festas - páscoa e ázimos - fundiram-se numa só. Quando os israelitas,<br />

oprimi<strong>dos</strong> no Egipto, se preparavam para celebrar a Páscoa e para comer os ázimos, teve lugar uma<br />

poderosa acção de Deus que livrou da morte os primogénitos daquele povo e conseguiu que o povo<br />

saísse do Egipto. O que acontecera naquela Páscoa fora excepcional e providencial, o que fez com<br />

que, a partir daí, a Páscoa fosse celebrada em relação com a libertação da escravidão, acontecimento<br />

que marcou o início de uma nova etapa da história de Israel, o Povo de Deus. O ritual manteve-se,<br />

mas com um novo conteúdo. As tradições já existentes, ligadas a festas agrícolas e pastoris, são<br />

reinterpretadas à luz do acontecimento central do Êxodo.<br />

O momento fundamental da celebração judaica da Páscoa é a refeição pascal, de carácter<br />

familiar. Dos diversos elementos da ceia pascal, é importante destacar:<br />

− o cordeiro, que é símbolo do sacrifício e da oferenda a Deus, com valor salvífico para o<br />

perdão <strong>dos</strong> peca<strong>dos</strong>; símbolo também do Messias;<br />

− o pão ázimo, que representa o pão da pressa e da fuga... e também o fruto da terra<br />

prometida;<br />

− o vinho, obrigatório na refeição pascal, que é símbolo da alegria e da festa pelo dom da<br />

salvação<br />

− os <strong>quatro</strong> cálices, que recordam os gestos libertadores, assinala<strong>dos</strong> em Ex 6,6.<br />

A data da festa é o dia 14 do primeiro mês do ano (Ex 12, 2.6), chamado Abib e mais tarde<br />

Nisan (que corresponde à época de Março/Abril no nosso calendário.<br />

<strong>3.</strong>1.2. A Páscoa cristã 4<br />

Em todo o Novo Testamento, há apenas um texto em que a referência à Páscoa designa o<br />

acontecimento salvífico cristão: “Cristo, nosso cordeiro pascal, foi imolado”(1 Cor 5, 7b – de notar<br />

que esta carta é o escrito neotestamentário mais antigo). Paulo não testemunha propriamente a<br />

existência de uma celebração cristã da Páscoa anual, mas sim que Cristo substituiu o cordeiro pascal<br />

3 Cf. R. CANTALAMESSA, Il mistero pasquale, Ancora, Milano 5 1999, 5-21.<br />

4 Cf. FABRIS, «Pascua», 1409-1418; CARREIRA DAS NEVES, «A Eucaristia... », 52-65; F.-X. DURRWELL, La<br />

Résurrection de Jésus, mystère de salut, Cerf, Paris 11 1982; VON BALTHASAR, Pâques, le Mystére, Cerf, Paris 1996.<br />

22


da antiga Páscoa. Apesar de esta ser a única referência explícita a um sentido cristão da Páscoa,<br />

todo o Novo Testamento está cheio de alusões ao paralelismo entre a antiga e a nova Páscoa, entre o<br />

cordeiro pascal e Jesus Cristo. A Páscoa judaica foi interpretada pelos cristãos como prefiguração da<br />

Páscoa de Jesus Cristo.<br />

Segundo as esperanças judaicas, o messias libertador deveria manifestar-se em Jerusalém,<br />

numa noite de Páscoa. Não é, pois, mera casualidade o facto de Jesus terminar a sua vida histórica<br />

em Jerusalém, no contexto de uma festa de Páscoa <strong>dos</strong> anos trinta.<br />

É inegável o ambiente pascal em que tem lugar quer a última ceia de Jesus com os seus<br />

discípulos, quer a sua paixão e morte. É no contexto da ceia pascal judaica que os três Sinópticos<br />

apresentam a última ceia. Mas também o relato da última ceia de João conserva alguns elementos<br />

claramente pascais. Esta ceia, nos relatos evangélicos, está intimamente ligada à memória do<br />

acontecimento fundante da história de Israel - a libertação do Egipto.<br />

O tema pascal volta a aparecer nos relatos da paixão e morte de Jesus. No Evangelho de<br />

João, o “pano de fundo” do relato da paixão e morte de Jesus é o cordeiro pascal: Jesus é o<br />

verdadeiro cordeiro pascal que, com a Sua entrega, liberta o mundo do pecado e estabelece um novo<br />

povo. Neste Evangelho, Jesus morre no momento em que se sacrificavam os cordeiros no Templo<br />

para a celebração da Páscoa judaica. A morte de Jesus é interpretada como cumprimento das<br />

esperanças messiânicas, representadas pelo cordeiro pascal.<br />

Estas breves referências neotestamentárias manifestam não apenas a centralidade da Páscoa<br />

no cristianismo primitiva: não já da páscoa judaica, mas da Nova páscoa da morte e ressurreição de<br />

Jesus Cristo, que passou deste mundo para o Pai. Esta centralidade teológica da Páscoa explica que<br />

a Igreja primitiva não conhecesse nenhuma outra celebração além da celebração pascal: a ceia do<br />

Senhor, o Baptismo como participação na páscoa de Cristo, o Domingo, Páscoa semanal.<br />

<strong>3.</strong>1.<strong>3.</strong> Do período apostólico ao século IV<br />

Vimos já que a Igreja primitiva celebrava a Páscoa cada semana, na Eucaristia dominical.<br />

Junto a essa Páscoa semanal, vai desenvolver-se uma outra celebração: a Páscoa anual, que está na<br />

origem de todo o Ano Litúrgico. Na tradição ocidental, a Páscoa anual não é senão a solenização da<br />

Páscoa semanal no Domingo seguinte à Páscoa Judaica; mas, como veremos, havia também uma<br />

corrente oriental que não seguia este princípio. Trataremos destas questões de seguida. De qualquer<br />

modo, o desenvolvimento de todo o Ano Litúrgico a partir deste núcleo, que é a celebração anual da<br />

Páscoa, põe em evidência que todo ele é percorrido por uma profunda dimensão pascal.<br />

Não é fácil determinar a data em que a Igreja começou a celebrar a Páscoa, uma vez por ano,<br />

assim como não é fácil afirmar se essa celebração começou em to<strong>dos</strong> as Igrejas na mesma época, ou<br />

se se desenvolveu a partir de comunidades judeo-cristãs.<br />

O primeiro testemunho claro sobre a observância de uma Páscoa anual aparece no século II:<br />

trata-se da Epistula Apostolorum (Carta <strong>dos</strong> Apóstolos). A Carta <strong>dos</strong> Apóstolos, apresentada como<br />

um colóquio de Jesus com os seus Apóstolos depois da ressurreição, foi escrita na Ásia Menor ou<br />

no Egipto, entre os anos 140 e 170. Aí se lê:<br />

Quando Eu voltar para o meu Pai, celebrareis então a memória da minha morte, isto é, a<br />

Páscoa. Nesse dia, um de entre os que estais agora comigo será lançado na prisão por<br />

causa do meu nome e ficará cheio de tristeza porque, enquanto vós celebrais a Páscoa,<br />

ele não a celebrará convosco por estar na prisão. Mas Eu enviarei o meu poder sob a<br />

forma do meu Anjo, e as portas da cadeia abrir-se-ão. Ao sair da prisão virá ter convosco,<br />

para velar e descansar durante a noite até ao cantar do galo. E quando tiverdes realizado<br />

o meu ágape e a minha memória, será de novo encarcerado em testemunho, até que saia<br />

dali e proclame o que vos transmiti. (AL 429) Neste texto, a Páscoa seria provavelmente<br />

celebrada de 14 para 15 de Nisan como memorial da morte e ressurreição do Senhor. A celebração<br />

consistia numa vigília que durava toda a noite e terminava de madrugada com a Eucaristia.<br />

23


A data da Páscoa. Uma primeira questão tinha que ver com a data da Páscoa. O problema<br />

não era meramente de datas, mas de mo<strong>dos</strong> diferentes de conceber a própria Páscoa. Na Ásia<br />

Menor, os cristãos seguiam a cronologia de João e celebravam a Páscoa no dia 14 de Nisan, por ser<br />

a data da morte do Senhor, independentemente do dia da semana em que caisse. Toda a celebração<br />

estava centrada na Paixão, mas o jejum terminava no final desse dia com a Eucaristia, a celebração<br />

da ressurreição. Destas comunidades chegaram até nós as duas mais antigas homilias pascais: a de<br />

melitão de Sardes (Cf Melitão de Sardes, Homilia sobre a Páscoa: AL 441-444) e outra anónima<br />

(por isso atribuída a um Anónimo Quartodecimano).<br />

No Ocidente, a Páscoa celebrava-se no Domingo seguinte ao 14 de Nisan judaico. Deste<br />

modo, mantinham o jejum durante o sábado, enquanto o Senhor estava no sepulcro, e celebravam a<br />

Eucaristia na madrugada do Domingo, o dia da ressurreição. Acentuava-se sobretudo a ressurreição<br />

do Senhor, mais do que a sua paixão e morte. Esta divergência deu origem, no século II, a uma<br />

violenta polémica entre os partidários da tradição quartodecimana e os partidários da tradição<br />

ocidental. Dessa polémica nos dá conta Eusébio de Cesareia (História Eclesiástica, V, 23-25: AL<br />

1243-1246). O Papa Vítor não chegou a declarar a excomunhão e, no século III, a celebração da<br />

Páscoa anual ao Domingo tornara-se já prática geral. Por isso, é preciso atenção para não ligar o<br />

decreto do Concílio de Niceia (325) à questão quartodecimana, há muito resolvida. Afirma o<br />

decreto de Niceia:<br />

Foi decidido o que pareceu bem a to<strong>dos</strong> os que se reuniram no santo Sínodo, nos dias do<br />

pie<strong>dos</strong>o e grande imperador Constantino. Este, não só reuniu na unidade os bispos acima<br />

menciona<strong>dos</strong>, procurando a paz para a nossa gente, mas também, participando nas suas<br />

reuniões, discutiu com eles sobre aquilo que era útil para a Igreja católica. Examinou-se o<br />

problema da necessidade de toda a Igreja que há debaixo do céu celebrar a Páscoa com<br />

unanimidade e descobriu-se que três partes do mundo agiam de acordo com os Romanos<br />

e os Alexandrinos e que uma só região, o Oriente, estava em desacordo. Decidiu-se então<br />

que, posta de parte toda a contestação e contradição, mesmo os irmãos do Oriente<br />

fizessem como os Romanos, os Alexandrinos e to<strong>dos</strong> os outros, de modo que to<strong>dos</strong>,<br />

unanimemente, no mesmo dia, elevassem as suas orações no santo dia da Páscoa.<br />

To<strong>dos</strong> os orientais, que estavam em desacordo com os outros, subscreveram. (AL 2227)<br />

Aqui o problema eram as diferentes técnicas usadas para o computo da data da Páscoa. Niceia<br />

decidiu adoptar uma forma única de computo, que permitisse uma data comum de celebração,<br />

sempre ao Domingo: o Domingo depois da primeira lua cheia depois do equinócio da primavera (o<br />

que significa uma variação entre 22 de Março e 25 de Abil).<br />

O sentido da Páscoa e o seu conteúdo.<br />

Os Padres da Igreja interpretaram a Páscoa cristã, a partir <strong>dos</strong> textos do NT, de dois mo<strong>dos</strong><br />

distintos, tal como acontecera no judaismo:<br />

a) Páscoa-paixão: “Páscoa”, segundo alguns Padres, significaria “paixão” (a partir de uma falsa<br />

etimologia da palavra); daí que a Páscoa cristã fosse interpretada como celebração da paixão e<br />

morte de Jesus, enquanto acontecimento salvífico; o protagonista é Cristo.<br />

b) Páscoa-passagem: “Páscoa”, segundo outros Padres, significaria “passagem”; e sobretudo a<br />

escola alexandrina, na sequência de Orígenes, interpretava a Páscoa cristã como passagem do<br />

“homem velho” ao “homem novo”; o protagonista seria então o homem.<br />

Foi posteriormente S. Agostinho a fazer a síntese entre as duas interpretações, sublinhando que se<br />

trata sobretudo de duas dimensões do mesmo mistério, e não duas interpretações que se excluíssem<br />

mutuamente. “Páscoa é a passagem de Jesus deste mundo para o Pai; passagem que se faz pela<br />

paixão e morte de Jesus”. Tendo Cristo morrido e ressuscitado para nossa salvação, também nós<br />

passamos da morte à vida, na medida em que participamos do seu Mistério <strong>Pascal</strong>. Tomemos o<br />

exemplo de dois textos significativos do bispo de Hipona.<br />

24


Pessoas mais atentas e mais doutas descobriram que Páscoa é uma palavra hebraica,<br />

que não significa paixão, mas passagem. O Senhor passou, pela paixão, da morte à vida,<br />

e fez-Se caminho <strong>dos</strong> que crêem na sua Ressurreição, para que também nós passemos<br />

da morte à vida. Não é coisa de grande vulto crer que Cristo morreu. Isso também o<br />

crêem os pagãos, os Judeus e os ímpios. To<strong>dos</strong> crêem que Cristo morreu. A fé <strong>dos</strong><br />

cristãos consiste em crer na Ressurreição de Cristo. Consideramos coisa muito<br />

importante acreditar que Cristo ressuscitou. Foi então, quando passou, isto é, quando<br />

ressuscitou, que Ele quis deixar-Se ver. Quis que acreditássemos n’Ele quando passou,<br />

porque foi entregue por causa <strong>dos</strong> nossos peca<strong>dos</strong> e ressuscitou para nossa justificação.<br />

(Comentários aos Salmos, Salmo 120, 6: AL 3206)<br />

Irmãos, a palavra Páscoa não é, como alguns julgam, uma palavra grega, mas é hebraica.<br />

Todavia deu-se no emprego desta palavra uma coincidência providencial nas duas<br />

línguas. Em grego, sofrer diz-se pasxein, pelo que pascha foi interpretado no sentido de<br />

«paixão», como se Páscoa viesse de passio. Mas, na língua original, isto é em hebraico,<br />

Páscoa significa passagem. Com efeito, o povo de Deus celebrou pela primeira vez a<br />

Páscoa quando, ao fugir do Egipto, «passou» através do mar Vermelho. Aquela figura<br />

profética já teve a sua realização, quando Cristo foi conduzido como cordeiro ao<br />

matadouro e quando os nossos dintéis foram ungi<strong>dos</strong> com o seu sangue, ou seja, quando<br />

o sinal da cruz foi colocado como selo na nossa fronte, e, assim, fomos liberta<strong>dos</strong> da<br />

escravidão e da ruína do Egipto e realizámos a mais libertadora das passagens, quando<br />

passámos do Demónio para Cristo, do tempo passado para o seu reino futuro. Passemos,<br />

pois, para Deus que é imutável, para não passarmos (ao nada) com o mundo que passa.<br />

Louvando a Deus por esta graça que nos foi concedida, o Apóstolo diz: Foi Ele que nos<br />

libertou do poder das trevas e nos transferiu para o Reino do seu amado Filho12. O santo<br />

Evangelista, explicando-nos, por assim dizer, a nós, aquela palavra Páscoa, que em latim,<br />

como já disse, significa passagem, diz: Antes da festa da Páscoa, Jesus, sabendo bem<br />

que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai, etc. Eis a Páscoa, eis a<br />

passagem. Donde e para onde? Deste mundo para o Pai. Na cabeça foi dada aos<br />

membros uma esperança: a de seguirem com certeza Aquele que passou.<br />

(Trata<strong>dos</strong> sobre o Evangelho de João 55, 1: AL 3302)<br />

Apesar das divergências quanto à data da celebração e quanto à origem do termo Páscoa, é<br />

forçoso reconhecer uma grande concordância no que diz respeito ao sentido global da Páscoa. “O<br />

conteúdo da celebração é a totalidade da obra da redenção: a encarnação, a paixão, a ressurreição e<br />

a glorificação, tudo acontecimentos centra<strong>dos</strong> na Cruz como lugar do triunfo de Cristo” 5 . Isto é, na<br />

Páscoa anual celebrava-se o Mistério <strong>Pascal</strong> de Jesus em toda a sua amplitude. Isto mesmo é<br />

evidente na homilia pascal de Melitão de Sardes. A paixão de Jesus não é considerada como um<br />

acontecimento distinto da sua glorificação. “A Páscoa primitiva celebrava o memorial da morte de<br />

Jesus como a festa total da nossa redenção em Cristo, incluindo não só a sua glorificação, mas<br />

também a encarnação” 6 . O conteúdo ultrapassa largamente a própria morte e ressurreição para<br />

proclamar o mistério total da Cruz em todas as suas dimensões, da encarnação à parusia. E isto<br />

porque a morte e a ressurreição não são encaradas pela Igreja antiga como aspectos ou momentos<br />

separa<strong>dos</strong>, independentes, da experiência pascal; são, sim, acentuações do único mistério.<br />

Até ao século IV, a Páscoa foi a única festa anual; festa em que se celebrava, tal como na<br />

Eucaristia, todo o mistério de Cristo, mistério de morte e ressurreição. Tudo o que nós, hoje,<br />

celebramos ao longo de um ano, era então celebrado numa única festa: a Páscoa. Somente a partir<br />

do século IV se detecta uma certa tendência a “fragmentar” o Mistério <strong>Pascal</strong> de Jesus Cristo, o que<br />

dará origem ao Ano Litúrgico, com a estrutura que hoje lhe conhecemos.<br />

5 Th.J. TALLEY, Les origines de l’Année Liturgique, Cerf, Paris 1990, 19.<br />

6 TALLEY, Les origines de l’Année Liturgique, 26.<br />

25


A celebração. Quanto à celebração da Páscoa, como se deduz do que foi dito a propósito da<br />

data da festa, era constituída por dois momentos: o jejum e a solene e festiva vigília. Os<br />

testemunhos mais antigos já apresentavam esta estrutura celebrativa. No século III, a Didascália <strong>dos</strong><br />

Apóstolos (cerca de 230) descreve deste modo a celebração:<br />

É necessário, irmãos, que observeis diligentemente o dia de Páscoa e façais o vosso<br />

jejum com toda a diligência. [...] A sexta-feira e o sábado passai-os integralmente no<br />

jejum, sem tomar nada. Durante toda a noite, permanecei reuni<strong>dos</strong> uns com os outros,<br />

despertos e em vigília, suplicando e orando, lendo os Profetas, o Evangelho e os Salmos,<br />

com temor e tremor e com aclamações solenes, até à terceira hora da noite depois do<br />

sábado e então ponde fim ao vosso jejum... Depois levai as vossas oferendas, e a seguir<br />

comei e alegrai-vos, enchei-vos de júbilo e exultai, pois Cristo, penhor da nossa<br />

ressurreição, ressuscitou. Isto será para vós uma lei perpétua até ao fim do mundo. Com efeito,<br />

para aqueles que não crêem no nosso Salvador, Ele morreu, porque a esperança que têm<br />

n’Ele também morreu; mas para vós, os crentes, o nosso Kyrios e Salvador ressuscitou,<br />

porque a vossa esperança n’Ele é imortal e vive eternamente... (AL 854-856)<br />

Como se passou, então, de uma Vigília ao Tríduo (= 3 dias)? Sobretudo por influência da<br />

liturgia de Jerusalém. De facto, em Jerusalém, lugar onde aconteceram os factos celebra<strong>dos</strong>, no<br />

século IV começaram a seguir-se as indicações evangélicas sobre a paixão, morte e ressurreição do<br />

Senhor, celebrando cada acontecimento no lugar e dia indicado pelos evangelistas. Chegou até nós<br />

o testemunho de uma peregrina da Península Ibérica, Etéria ou Egéria, que no século IV foi em<br />

peregrinação à Terra Santa por volta do ano 38<strong>3.</strong> Ora, esta peregrina só relata o que era diferente<br />

daquilo que ela conhecia. Por exemplo, quando chega à Vigília <strong>Pascal</strong>, diz apenas: “As vigílias<br />

pascais fazem-se como entre nós” (38, 1: AL 1680). Assim, graças ao seu testemunho, sabemos que<br />

foi de Jerusalém que partiu o costume de celebrar com ramos a entrada de Jesus na Cidade Santa,<br />

no Domingo de Ramos. Quanto ao Tríduo <strong>Pascal</strong>, na noite da quinta para a sexta-feira santa os<br />

cristãos faziam uma vigília itinerante: à meia-noite subiam ao monte da Ascensão (Inbomon) e daí<br />

desciam, com círios acesos e cantando hinos, para o Getsémani, onde se lia a passagem do<br />

Evangelho referente à prisão de Jesus. Diz a nossa peregrina que<br />

“Mal termina a leitura, são tais os gritos e gemi<strong>dos</strong> de todo o povo em lágrimas,<br />

que talvez até na cidade se ouçam as lamentações de todo o povo. Depois disso,<br />

parte-se para a cidade a pé com hinos, e chega-se à porta à hora em que se<br />

começa quase a distinguir uma pessoa da outra” (36, 3: AL 1678)<br />

Já na manhã de sexta-feira dirigem-se à Cruz, ao Gólgota. Aí se fazia a adoração da Cruz e a<br />

narração da morte de Jesus:<br />

“O bispo, sentado, segura com as suas mãos as extremidades do santo lenho [...]<br />

Assim, pois, todo o povo passa, um a um; to<strong>dos</strong> se inclinam, um de cada vez,<br />

tocando primeiro com a fronte e depois com os olhos a cruz e o título, e, beijando a<br />

cruz, afastam-se; mas ninguém estende a mão para a tocar. Mais ou menos da<br />

segunda até à sexta hora (meio-dia) todo o povo desfila, entrando por uma porta e<br />

saindo pela outra [...] Entretanto, chegada a hora sexta (meio-dia), vai-se até diante<br />

da Cruz [...] Ali, pois, é que se reúne todo o povo, de tal forma que nem se pode<br />

abrir caminho. Coloca-se então uma cadeira para o bispo diante da Cruz e, da<br />

sexta até à nona hora (das doze às quinze), nada mais se faz senão ler as leituras<br />

[...] E assim, desde a hora sexta até à hora nona (das doze às quinze), fazem-se<br />

continuamente leituras ou dizem-se hinos, para mostrar a todo o povo que tudo<br />

quanto os Profetas predisseram da Paixão do Senhor se realizou, como se vê tanto<br />

pelos Evangelhos como pelos escritos <strong>dos</strong> Apóstolos. E assim, durante estas três<br />

horas, ensina-se a todo o povo que nada aconteceu que não tivesse sido<br />

anteriormente anunciado, e que nada foi anunciado que não se tivesse<br />

26


inteiramente cumprido. E vão-se intercalando sempre orações, e estas orações são<br />

apropriadas ao dia. [...] Depois disto, começada já a nona hora (quinze horas), lêse<br />

então o trecho do Evangelho segundo João, onde o Senhor entregou o espírito;<br />

após esta leitura, faz-se logo uma oração e a despedida.” (37, 2-7: AL 1679)<br />

No sábado santo, os cristãos reúnem-se para a oração das horas de tércia e sexta, mas já não para a<br />

hora de nona, pois estão já ocupa<strong>dos</strong> na preparação da Vigília. Terminada a Vigília, já no Domingo<br />

de Páscoa de manhã, os cristãos vão ainda à Anastasis (igreja da Ressurreição), onde se lê o<br />

Evangelho da ressurreição e se celebra a Eucaristia.<br />

A referência ao testemunho de Etéria ajuda a perceber como se passou da celebração da<br />

Vigília ao Tríduo: por influência desta liturgia de Jerusalém. Os peregrinos que alí iam ficavam<br />

impressiona<strong>dos</strong> com aquele modo de celebrar a Páscoa – pois como Etéria, só conheciam a Vigília<br />

pascal – e, regressando à suas terras, levaram pouco a pouco à adopção do mesmo ritmo<br />

celebrativo. É verdade que nas outras partes não tinham os locais, mas adaptaram as celebrações,<br />

dando origem ao Tríduo.<br />

O que levou a prolongar a celebração da Vigília até ao actual Tríduo foi um certo movimento<br />

de “dramatização” da Páscoa de Jesus Cristo, acompanhando celebrativamente os dias da sua morte<br />

e ressurreição, à imagem do que se fazia em Jerusalém, o lugar onde os acontecimentos se<br />

verificaram. Diga-se que este movimento não está isento de dificuldades: se ajuda,<br />

pedagogicamente, a aprofundar o sentido de cada momento, também corre o risco de fazer perder o<br />

sentido de unidade da celebração do Tríduo. Desde mea<strong>dos</strong> do século XX, tornou-se habitual ouvir<br />

a crítica de que foi um movimento “historicizante” este que conduziu a celebração pascal da Vigília<br />

ao Tríduo. Ora, a liturgia é anamnesis e não mimesis do mistério pascal, pelo que a interpretação<br />

tendia a ser negativa em relação a esta evolução. Nesta linha de crítica, iniciada pelo benedictino<br />

anglicano Gregory Dix, se coloca, por exemplo, J.M. Bernal, sublinhando que se passou de uma<br />

perspectiva escatológica e unitária na celebração do mistério pascal, para uma perspectiva<br />

historicizante e fragmentada (p. 159-160). E. Aliaga faz uma interpretação mais moderada, mas<br />

também em termos negativos. Posição diferente assumem nomes importantes como o de Th. Talley<br />

(p. 56-58; cf. ID., «Le temps liturgique dans l'Église ancienne. État de la recherche», LMD n. 147<br />

[1981] 29-60) e de R. Taft («Storicismo rivisitato», in ID., Oltre l'oriente e l'occidente, Roma 1999,<br />

31-50; também in LMD n. 147 [1981] 61-83). Estes autores provam que a dicotomia e oposição<br />

entre escatologia e história, na Igreja primitiva, é uma falsa dicotomia, que efectivamente não<br />

existiu. Pelo que, esta evolução não foi propriamente uma “degeneração”, provocada pela<br />

consciência histórica da época pós-constantiniana (impossível de se verificar no período do<br />

escatologismo pré-niceno), mas foi uma natural evolução litúrgica, motivada pela consciência<br />

histórica e escatológica, que acompanhara a Igreja desde a sua origem. Em suma, uma evolução<br />

natural, mas que levanta problemas a nível da compreensão unitária do mistério celebrado. A<br />

compreensão unitária do mistério ficará verdadeiramente comprometida posteriormente, quando se<br />

perde a consciência da unidade do Tríduo.<br />

A consciência da unidade do Tríduo surge logo na designação de “Tríduo”. Orígenes parece<br />

ter sido o primeiro a usar esse termo. Mais tarde, Ambrósio fala do “Triduum sacrum”. Depois,<br />

Agostinho usa a expressão “sacratissimum triduum” para designar o conjunto destes dias festivos;<br />

Leão Magno fala de “paschalis festivitas” ou do “sacramentum paschale”. A existência destas<br />

designações para esse núcleo celebrativo manifesta que se conservava a consciência da sua unidade.<br />

Posteriormente, estas designações vão desaparecendo do uso; a sexta-feira santa começa a ser<br />

considerada parte da Quaresma; a celebração de quinta-feira santa vai ganhando relevo e ofuscando<br />

o significado do “Tríduo”.<br />

27


<strong>3.</strong>2. Tríduo <strong>Pascal</strong><br />

Antes de mais, o nome: a designação “Tríduo <strong>Pascal</strong>”, como designação global para os dias<br />

santos da celebração pascal, é uma novidade na linguagem eclesiástica oficial. Aparece, pela<br />

primeira vez, no Missal Romano promulgado por Paulo VI, em 1970. Na Antiguidade conheciam-se<br />

as expressões de “Tríduo Sacro”, mas não a qualificação “pascal”. Foi Ildefonso Schuster o<br />

primeiro autor a cunhar a expressão “Tríduo <strong>Pascal</strong>” (em 1929, na primeira edição do seu Liber<br />

Sacramentorum). A expressão entrou no uso <strong>dos</strong> liturgistas e, mais tarde, foi assumida nos livros<br />

litúrgicos.<br />

As NGALC apresentam o Tríduo <strong>Pascal</strong> da seguinte forma:<br />

18. O sagrado Tríduo da Paixão e Ressurreição do Senhor é o ponto culminante de<br />

todo o ano litúrgico, porque a obra da redenção humana e da perfeita glorificação<br />

de Deus foi realizada por Cristo especialmente no seu mistério pascal, pelo qual,<br />

morrendo destruiu a nossa morte e ressuscitando restaurou a vida. A proeminência<br />

que na semana tem o domingo tem-na no ano litúrgico a solenidade da Páscoa.<br />

19. O Tríduo <strong>Pascal</strong> da Paixão e Ressurreição do Senhor inicia-se com a Missa da<br />

Ceia do Senhor, tem o seu centro na Vigília <strong>Pascal</strong> e termina nas Vésperas do<br />

Domingo da Ressurreição.<br />

<strong>3.</strong>2.1. Missa Vespertina da Ceia do Senhor (Quinta-feira Santa)<br />

A Missa vespertina da ceia do Senhor assinala o início do Tríduo, na noite de quinta-feira<br />

santa. Note-se que a sexta-feira santa é o primeiro dia do Tríduo; a celebração vespertina da quintafeira<br />

pertence já ao dia litúrgico da sexta-feira. Como atrás se referiu, na tradição judaica, o dia<br />

começava ao anoitecer (e não ao amanhecer) e a liturgia conservou esse modo de contar o tempo<br />

nos Domingos e solenidades. O mesmo acontece com a Vigília <strong>Pascal</strong>: é já a primeira celebração do<br />

Domingo de Páscoa. O Tríduo pascal é um verdadeiro tríduo: sexta-feira, sábado e domingo de<br />

Páscoa.<br />

Historicamente, esta celebração é a última do Tríduo a aparecer: o primeiro testemunho que<br />

temos é do século IV, em Jerusalém. Segundo o relato de Egéria, esta celebração não se destacava,<br />

pois fazia parte integrante da longa vigília nocturna. É posteriormente que vai adquirindo sempre<br />

maior relevo como comemoração da instituição da eucaristia e do sacerdócio.<br />

Este dia, a partir do século VII, em Roma, era assinalado por 3 missas: de manhã, a missa de<br />

reconciliação <strong>dos</strong> penitentes; ao meio-dia, a missa de bênção <strong>dos</strong> santos óleos, necessários para a<br />

noite da Vigília <strong>Pascal</strong>; e ao entardecer, a missa vespertina da ceia do Senhor. Como a regra do<br />

jejum não admitia excepções, para comungar na missa vespertina era necessário não ter comido<br />

nada nesse dia. Com a passar do tempo, essa missa passou para a manhã e na mesma celebração o<br />

bispo fazia a bênção <strong>dos</strong> óleos e a comemoração da instituição da Eucaristia.<br />

A missa vespertina da ceia do Senhor vai conhecendo progressivamente desenvolvimentos<br />

vários. Insere-se a trasladação do Santíssimo Sacramento e a desnudação do altar (este gesto<br />

prático, até ao século VII, fazia-se sempre que se celebrava a eucaristia, em qualquer dia; mais<br />

tarde, começou a ser interpretado simbolicamente, como figura de Cristo, despojado das suas<br />

vestes). Por fim, o gesto do lava-pés. Este gesto era conhecido em Jerusalém desde o século V. Daí<br />

irradiou para as outras liturgias, mas muitas conservam-no ainda hoje como gesto a realizar fora da<br />

eucaristia. Em Roma, foi inserido dentro da própria celebraçao eucarística.<br />

Em 1955, o Papa Pio XII fez a reforma da semana santa e separou as duas celebrações da<br />

manhã da quinta-feira santa: a missa crimal, de manhã e que ainda faz parte da Quaresma, e à tarde<br />

ou noite a missa vespertina da ceia do Senhor.<br />

28


Os Evangelhos contam-nos que na última tarde, antes da paixão e morte, Jesus reuniu-se<br />

com os seus discípulos para uma refeição festiva e de despedida: a última ceia. Foi o próprio Jesus<br />

que deu as indicações sobre a preparação do lugar da ceia. Os relatos da paixão e morte têm aí o seu<br />

início. É logo a antífona de entrada que nos chama a atenção para o facto de não se tratar de uma<br />

representação teatral sagrada, pois em cada celebração, embora a atenção se centre num aspecto, é<br />

todo o mistério pascal que é celebrado: “Toda a nossa glória está na cruz de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo. N’Ele está a nossa salvação, vida e ressurreição. Por Ele fomos salvos e<br />

livres” (Missal).<br />

A celebração tem carácter festivo. A Quaresma termina quando se inicia esta celebração. Por<br />

isso, se canta o hino de Glória e tocam campaínhas e sinos. Não se canta ainda o Aleluia porque<br />

este é o canto por excelência da ressurreição e se quer reservar para a Vigília <strong>Pascal</strong>.<br />

A Missa vespertina da Ceia do Senhor não é nem mais nem menos que uma eucaristia<br />

celebrada com toda a dignidade e autenticidade, por se celebrar na noite em que Jesus instituiu a<br />

Eucaristia, foi entregue e preso. Contudo, deve ter-se sempre presente que a Eucaristia central, para<br />

a qual esta se orienta, é a da Vigília. A importância desta celebração da eucaristia é a sua ligação<br />

íntima com o mistério da entrega de Jesus, consumado em sexta-feira santa: esta celebração da<br />

quinta-feira santa comemora e antecipa no sacramento eucarístico o gesto de entrega cruento e<br />

dramático da Sexta-feira Santa.<br />

“«Nesta Missa [...] a Igreja [...] propõe-se comemorar aquela última Ceia na qual o<br />

Senhor Jesus na noite em que ia ser entregue, tendo amado até ao fim os seus<br />

que estavam no mundo, ofereceu a Deus Pai o seu Corpo e Sangue sob as<br />

espécies do pão e do vinho, os entregou aos Apóstolos para que os tomassem, e<br />

lhes mandou, a eles e aos seus sucessores no sacerdócio, que os oferecessem<br />

também». Toda a atenção da alma deve estar orientada para os mistérios, que<br />

sobretudo nesta Missa são recorda<strong>dos</strong>, a saber, a instituição da Eucaristia, a<br />

instituição da Ordem sacerdotal e o mandamento do Senhor sobre a caridade<br />

fraterna: tudo isto seja explicado na homilia.” (Carta circular n. 44-45: EDREL 3154-<br />

3155)<br />

Ora, são estes temas que aparecem quer nas leituras, quer nas orações da missa vespertina da ceia<br />

do Senhor. Os textos bíblicos e das orações realçam que Cristo, com a instituição da Eucaristia, nos<br />

faz participar na sua Páscoa, na sua Paixão, morte e ressurreição; sublinham a instituição do<br />

sacerdócio, sem o qual não há Eucaristia; e sublinham ainda o nexo existente entre a celebração da<br />

Eucaristia e a caridade fraterna.<br />

[Liturgia da Palavra]. Assim, a primeira e a segunda leitura centram a nossa atenção no<br />

mistério eucarístico. Aliás, a segunda leitura transmite-nos o mais antigo relato da instituição da<br />

Eucaristia. Já o texto do Evangelho apresenta o episódio do Lava-pés. São João é o único<br />

evangelista que não nos transmite o relato da instituição da eucaristia. Ao falar da última ceia, no<br />

lugar onde os outros evangelistas contam a instituição da eucaristia, São João apresenta este<br />

episódio. O gesto de Jesus, que lava os pés ao discípulos, é um gesto que sublinha a entrega de<br />

Jesus, consumada em sexta-feira santa: o pão e o vinho, que expressam a entrega amorosa de Jesus,<br />

completam-se com este gesto de serviço humilde e de entrega aos seus. “Ao substituir a instituição<br />

eucarística pelo lava-pés, João quer manifestar que o dom de Si feito por Jesus para nos unir a Si,<br />

tanto é simbolizado pelo gesto do lava-pés como pelo dom do pão e do cálice. Um e outro apontam<br />

para a comunhão com Jesus nosso Salvador” 7 . O mandato “Fazei isto em memória de Mim” não<br />

pode ser separado do “dei-vos o exemplo, para que, assim como eu fiz, vós façais também”. “Ao<br />

discípulo de Jesus são pedidas duas formas de memória: «Fazei isto em minha memória», isto é,<br />

uma memória que se traduz na acção celebrativa, e «fazei como eu fiz», que se traduz num<br />

7 X. LEON-DUFOUR, La fracción del pan. Culto y existencia en el Nuevo Testamento, Cristiandad, Madrid 1983, 35<strong>3.</strong><br />

29


comportamento de serviço mútuo” 8 .<br />

Para o momento da Apresentação <strong>dos</strong> Dons, o Missal Romano prevê que se faça procissão<br />

<strong>dos</strong> dons e que nela se incluam ofertas <strong>dos</strong> fiéis para os pobres. A acompanhar tal procissão,<br />

excepcionalmente, o Missal propõe um cântico: o hino Ubi Caritas (ou em Português Onde haja<br />

caridade e amor, Onde há caridade verdadeira).<br />

“É recomendável que o sacerdote, no momento da Comunhão, entregue, da mesa<br />

do altar, a Eucaristia aos diáconos ou acólitos ou outros ministros extraordinários,<br />

os quais a levarão depois aos enfermos que comungam em sua casa” (Missal).<br />

Esta celebração é ainda marcada pela solene trasladação do Santíssimo Sacramento para<br />

um lugar conveniente: “Terminada a oração depois da Comunhão, organiza-se a procissão,<br />

com círios e turíbulo fumegante, indo à frente o cruciferário, e leva-se o Santíssimo<br />

Sacramento, através da igreja, para o lugar da reposição” (Carta Circular n. 54: EDREL<br />

3164). Durante muito tempo, esta trasladação entendeu-se como o levar o Senhor para o sepulcro. E<br />

deu-se mesmo a forma e o nome de túmulo ou sepulcro aos sacrários provisórios para onde se fazia<br />

a trasladação. Ora, a presença eucarística é sempre presença do Senhor ressuscitado. Por isso se<br />

proibe esse costume: “O tabernáculo ou o cibório não deve ter a forma de sepulcro. Evite-se<br />

mesmo a expressão «sepulcro»: com efeito, a capela da reposição é preparada não para<br />

representar «a sepultura do Senhor», mas para conservar o pão eucarístico para a<br />

Comunhão, que será distribuída na Sexta-feira da Paixão do Senhor” (Carta circular n. 55:<br />

EDREL 3165).<br />

Os fiéis são convida<strong>dos</strong> a ficar em adoração durante algum tempo.<br />

Terminada a celebração, desnuda-se o altar, porque a Eucaristia só voltará a celebrar-se<br />

naquele altar na Vigília <strong>Pascal</strong>.<br />

<strong>3.</strong>2.2. Celebração da Paixão do Senhor - Sexta-feira Santa<br />

A designação latina deste dia é «feria VI in Passione Domini». Como o nome indica, a<br />

sexta-feira santa é um dia inteiramente centrado na Cruz e na morte de Cristo. A sexta-feira santa é<br />

um dia alitúrgico: dia em que não se celebra a Eucaristia e que nunca conheceu celebração<br />

eucarística. Aliás, na sexta-feira santa e no sábado santo não há celebração de nenhum sacramento,<br />

com excepção da Penitência e Unção <strong>dos</strong> doentes: É estritamente proibido celebrar neste dia<br />

qualquer sacramento, excepto os da Penitência e da Unção <strong>dos</strong> doentes (Carta circular 61:<br />

EDREL 3171). A principal celebração da Sexta-feira Santa – a celebração da paixão - é,<br />

fundamentalmente, uma ampla Liturgia da Palavra, que culmina com a adoração da Cruz e termina<br />

com a Comunhão. É importante ter esta estrutura presente, para percebermos o que é mais<br />

importante: a leitura da Palavra de Deus, sobretudo da Paixão, e a adoração da Cruz.<br />

A nível histórico, vimos atrás o relato de Etéria (Egéria), que mostra a forma como em<br />

Jerusalém, no século IV, se celebrava este dia. Tratava-se fundamentalmente de uma liturgia da<br />

Palavra, a que se seguia a veneração da cruz. Ora em Roma, onde se conservava parte do santo<br />

lenho da Cruz introduziu-se posteriormente um costume semelhante ao descrito por Egéria, como<br />

testemunha o Ordo XXIII (700-750). A descrição desse Ordo manifesta a influência oriental na<br />

introdução deste rito na liturgia romana, o que não será de estranhar, uma vez que os Papas<br />

contemporâneos da entrada deste rito na liturgia romana eram orientais: de João V (685-686) ao<br />

pontificado de Zacarias (741-752). A questão histórica mais complexa não é contudo a introdução<br />

da adoração da Cruz nesta celebração, mas a questão da comunhão, que veremos no momento<br />

próprio.<br />

8 X. BASURKO, Para compreender a Eucaristia, Gráfica de Coimbra 2, Coimbra s.d., 134.<br />

30


Ao contrário do que se diz com frequência, este não é o dia de luto pela morte de Cristo.<br />

“Neste dia, em que «Cristo, nosso cordeiro pascal, foi imolado», a Igreja, meditando a<br />

Paixão do seu Senhor e Esposo e adorando a Cruz, comemora o seu nascimento do lado<br />

de Cristo que repousa na Cruz, e intercede pela salvação do mundo inteiro” (Carta circular<br />

n. 58: EDREL 3168). Este é o dia da contemplação do amor de Deus pela humanidade e do extremo<br />

a que esse mesmo amor levou Jesus Cristo. A morte de Cristo celebra-se sempre na perspectiva da<br />

ressurreição: é a morte do Ressuscitado que celebramos, motivo pelo qual falar de luto é<br />

inadequado.<br />

“Recomenda-se a celebração comunitária do Ofício de leitura e das Laudes<br />

matutinas na Sexta-feira da Paixão do Senhor” (Carta circular n. 40: EDREL 3150). Depois,<br />

pelas 3 horas da tarde ou a outra hora conveniente, faz-se a solene celebração da paixão do Senhor.<br />

A entrada faz-se em silêncio. Não há cântico de entrada nem qualquer outra palavra antes<br />

da oração colecta: “O sacerdote e os ministros dirigem-se para o altar em silêncio, sem<br />

canto. No caso de haver alguma palavra de introdução, deve ser dita antes da entrada<br />

<strong>dos</strong> ministros. O sacerdote e os ministros, feita a devida reverência ao altar, prostram-se;<br />

esta prostração, que é um rito próprio deste dia, conserve-se diligentemente” (Carta<br />

circular n. 65: EDREL 3175). No entanto, em vez da prostração, pode optar-se pela oração de<br />

joelhos, se parecer mais conveniente. Quanto à comunidade, permanece de pé durante a procissão<br />

de entrada e ajoelha-se em oração quando o sacerdote se prostra ou ajoelha (cf. Carta circular n. 65:<br />

EDREL 3175).<br />

Segue-se a liturgia da Palavra, centrada na leitura da Paixão e morte de Jesus, segundo S.<br />

João. Este é o elemento central e fundamental da celebração de sexta-feira santa: a proclamação da<br />

Palavra de Deus. “A acção litúrgica da Sexta-Feira da Paixão do Senhor atinge o seu ponto<br />

culminante no relato, segundo São João, da Paixão d’Aquele que, como o Servo do<br />

Senhor anunciado no livro de Isaías [1ª leitura], Se tornou realmente o único sacerdote,<br />

oferecendo-Se a Si mesmo ao Pai” (OLM 99).<br />

A Oração Universal é o último momento da Liturgia da Palavra propriamente dita. Trata-se<br />

da forma mais antiga da oração <strong>dos</strong> fiéis na liturgia romana, mas só se conservou neste dia (trata-se<br />

da lei 9 da evolução das liturgias, segundo A. Baumstark: as celebrações mais solenes tendem a<br />

conservar os elementos mais antigos). Esta oração faz-se do seguinte modo: “o diácono, se está<br />

presente, ou, na falta dele, um ministro leigo, do ambão diz a exortação com que é<br />

indicada a intenção da oração. Em seguida, to<strong>dos</strong> oram em silêncio durante uns<br />

momentos. Finalmente, o sacerdote, da sua sede, ou, conforme as circunstâncias, do<br />

altar, diz, de braços abertos, a oração” (Missal).<br />

Segue-se a veneração da Cruz, que surge como resposta plástica e gestual de toda a<br />

assembleia à proclamação da Paixão. Esse gesto não é de adoração de um símbolo de morte, mas<br />

adoração de Cristo, vencedor da morte. Neste ponto, a reforma litúrgica introduziu uma mudança:<br />

onde antes havia um único modo de apresentação da cruz, descobrindo-a progressivamente, agora<br />

figura uma alternativa: fazer a apresentação da cruz já descoberta, partindo do fundo da igreja para<br />

o presbitério. “Apresente-se a Cruz à adoração <strong>dos</strong> fiéis um por um, porque a adoração<br />

pessoal da Cruz é um elemento muito importante nesta celebração e só devido a grande<br />

afluência do povo se deve usar o rito da adoração feita simultaneamente por to<strong>dos</strong>. A<br />

Cruz exposta à adoração deve ser uma só, tal como o requer a verdade do sinal” (Carta<br />

circular n. 69: EDREL 3179). Durante a adoração, cantam-se os impropérios, hinos ou outros<br />

cantos apropria<strong>dos</strong>. Estes cantos surgiram, na liturgia romana, a partir do século VIII e<br />

conservaram-se até à actualidade.<br />

31


A comunhão, neste dia, teve uma história movimentada. A comunhão, neste dia, em Roma,<br />

é atestada apenas no século VII. O problema é que a comunhão rompia o jejum pascal (ainda hoje,<br />

no Oriente, o jejum na sua forma mais radical implica sempre também o jejum da eucaristia). Mas<br />

as fontes históricas testemunham-nos práticas muito diversas. No já citado Ordo XXIII (700-750)<br />

afirma-se que nem o Papa nem os Bispos comungavam, mas os fiéis podiam fazê-lo. O problema é<br />

que a comunhão era sempre sob as duas espécies, o que implicava conservar, da quinta-feira santa,<br />

vinho consagrado suficiente; mais tarde, começou a conservar-se apenas um cálice, que era depois<br />

derramado para outros cálice com vinho não consagrado; a partir do ano 800 é testemunhada a<br />

prática de lançar nos cálices pão consagrado, para fazer consagração “por contágio” (o Pontifical<br />

Romano-Germânico, do século X, testemunha esta prática). O Pontifical da Cúria Romana do<br />

século XIII mostra que, nessa época, já só o Pontífice é que comungava nesta celebração. Depois<br />

foi-se estabelecendo a norma de que, além do sacerdote, ninguém comungasse, situação que se<br />

manteve até ao Pontificado de Pio XII. Pio XII, em 1955, restabeleceu a comunhão do povo, apesar<br />

da posição contrária de alguns teólogos, que defendiam a justeza do impedimento da comunhão,<br />

pelo facto de, nesse dia, não haver celebração eucarística, pelo que se justificava melhor o «jejum»<br />

pascal total deste dia, reservando a comunhão de todo o Tríduo – celebrado como um único dia –<br />

para a Eucaristia da noite pascal. Na última reforma, foi, novamente, confirmada a comunhão para<br />

to<strong>dos</strong>, a chamada «Comunhão de pré-santifica<strong>dos</strong>», porque se comunga do Pão consagrado no dia<br />

anterior, na Quinta-Feira Santa.<br />

Quanto ao rito da Comunhão, deverá ser muito simples e discreto. O altar está despido e só<br />

neste momento é coberto com a toalha. O Missal Romano diz que se pode cantar um cântico que<br />

acompanhe a Comunhão <strong>dos</strong> fiéis. Mas pode também optar-se pelo silêncio.<br />

Não há cântico final: tal como a entrada, a saída é também em silêncio.<br />

“Depois da celebração, desnuda-se o altar, deixando-se porém a Cruz com [dois<br />

ou] <strong>quatro</strong> candelabros. Prepare-se na igreja um lugar adequado para colocar aí a Cruz<br />

do Senhor, a fim de que os fiéis possam adorá-la e beijá-la e permanecer em meditação“<br />

(Carta circular n. 71: EDREL 3181).<br />

Na piedade popular, este é o dia das procissões do enterro do Senhor, muito marcadas pela<br />

emotividade. Dia em que as igrejas se enchem, mas estranhamente, em muitos lugares, são menos<br />

de metade as pessoas que depois estão presentes na celebração pascal da ressurreição. Sinais<br />

preocupantes. O Directório sobre a piedade popular e a Liturgia refere a conveniência de manter os<br />

exercícios de piedade, próprios deste dia, como a via sacra, a procissão do enterro do Senhor ou as<br />

representações da Paixão. Mas não as misturar com a celebração central deste dia e ajudando a<br />

comunidade a perceber que o mais importante é a celebração.<br />

O jejum pascal. Na Sexta-Feira da Paixão do Senhor e, conforme as circunstâncias,<br />

no Sábado santo até à Vigília <strong>Pascal</strong>, celebra-se em toda a parte o sagrado jejum pascal<br />

(NGALC 20). É sagrado o jejum pascal destes dois <strong>primeiros</strong> dias do Tríduo, nos quais,<br />

segundo a tradição primitiva, a Igreja jejua «porque o esposo lhe foi tirado». Na Sextafeira<br />

da Paixão do Senhor, há-de guardar-se em toda a parte o jejum juntamente com a<br />

abstinência, e aconselha-se a prolongá-lo também no Sábado Santo, de modo que a<br />

Igreja, com elevação e largueza de espírito, chegue às alegrias do domingo da<br />

Ressurreição (Carta circular 39: EDREL 3149)<br />

<strong>3.</strong>2.<strong>3.</strong> Sábado Santo<br />

O sábado santo, tal como a sexta-feira santa, é um dia dito “alitúrgico”, isto é, sem<br />

celebração da Eucaristia ou de outros sacramentos: Neste dia a Igreja abstém-se absolutamente<br />

do sacrifício da Missa. A sagrada Comunhão só pode ser dada como Viático. Não é<br />

permitida a celebração do matrimónio nem <strong>dos</strong> outros sacramentos, excepto os da<br />

32


Penitência e da Unção <strong>dos</strong> doentes. (Carta circular n. 75: EDREL 3185). As várias horas da<br />

oração da Igreja convidam a contemplar o repouso de Cristo no sepulcro, na expectativa da<br />

celebração da sua ressurreição. Recomenda-se muito a celebração do Ofício de leitura e das<br />

Laudes matutinas com a participação do povo. Onde isso não for possível, prepare-se<br />

uma celebração da palavra de Deus ou um exercício de piedade adequado ao mistério<br />

deste dia (Carta circular n. 73: EDREL 3183).<br />

Este é o dia mais propício para os ritos que antecedem imediatamente a iniciação cristã <strong>dos</strong><br />

adultos:<br />

Como preparação próxima para os sacramentos:<br />

1) Aconselhem-se os eleitos a que, no Sábado Santo, se abstenham, na medida do<br />

possível, das suas ocupações habituais, consagrem o tempo à oração e ao recolhimento<br />

espiritual e observem o jejum, segundo as suas forças.<br />

2) Neste mesmo dia, no caso de se fazer alguma reunião <strong>dos</strong> eleitos, podem celebrar-se<br />

alguns <strong>dos</strong> ritos de preparação próxima, por exemplo: a «redição» do Símbolo, o<br />

«Effathá», a escolha do nome cristão e, se ela se fizer, a unção com o Óleo <strong>dos</strong><br />

catecúmenos. (RICA 26).<br />

Este é o dia do “grande silêncio”. A leitura patrística do Ofício de Leitura do sábado santo<br />

começa assim: “Um grande silêncio reina hoje sobre a terra; um grande silêncio e uma<br />

grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei dorme; a terra estremeceu e ficou<br />

silenciosa, porque Deus adormeceu segundo a carne e despertou os que dormiam há<br />

século”. O que mais chama a atenção é precisamente o aparente “vazio” deste dia: o silêncio <strong>dos</strong><br />

sinos, o silêncio <strong>dos</strong> cânticos, os altares nus, os sacrários abertos e vazios, a ausência de<br />

celebrações... “No Sábado Santo, a Igreja permanece junto do sepulcro do Senhor,<br />

meditando na sua Paixão e Morte, e na sua descida aos infernos, e esperando na oração<br />

e no jejum a sua Ressurreição” (Carta circular n. 73: EDREL 3183).<br />

Eis outras indicações que são dadas para a vivência deste dia:<br />

Podem ser expostas na igreja, à veneração <strong>dos</strong> fiéis, a imagem de Cristo<br />

crucificado ou repousando no sepulcro ou descido aos infernos, que ilumine o<br />

mistério do Sábado Santo, bem como a imagem de Nossa Senhora das Dores.<br />

Os fiéis devem ser instruí<strong>dos</strong> acerca da natureza particular do Sábado Santo. Os<br />

usos e tradições festivos liga<strong>dos</strong> a este dia, em virtude da celebração pascal<br />

outrora antecipada para o Sábado Santo, reservem-se para a noite e o dia de<br />

Páscoa.”<br />

(Carta circular n. 74 e 76: EDREL 3184-3186)<br />

A Igreja vive o silêncio do sábado santo, preparando-se assim para a festiva celebração da<br />

Vigília <strong>Pascal</strong>, da ressurreição do Senhor.<br />

<strong>3.</strong>2.4. Domingo da Páscoa<br />

Vigília <strong>Pascal</strong><br />

Esta vigília é, de certo modo, a mãe de todas as santas vigílias, e na qual vigia todo o<br />

mundo [matrem omnium sanctarum vigiliarum in qua totus vigilat mundus] (Santo Agostinho,<br />

Sermão 219: Al 3857).<br />

Esta noite pertence, como é sabido, ao dia seguinte, que nós consideramos o dia do<br />

33


Senhor. E não há dúvida de que devia ressuscitar de noite, já que pela sua Ressurreição<br />

iluminou as nossas trevas e não podia ser frustrado o canto que com tanta antecedência<br />

Lhe foi consagrado: Vós, Senhor, sois a luz da minha lâmpada, Vós,meu Deus, dissipais<br />

as minhas trevas... A vigília desta noite é de tal grandeza, que só ela pode reivindicar para<br />

si o nome comum dado às outras vigílias. [...] Qual é, pois, a razão por que os cristãos se<br />

mantêm de vigia nesta festa anual? Esta é a nossa maior vigília, e ninguém pensa noutra<br />

celebração de aniversário quando, com impaciência, perguntamos ou dizemos: Quando é<br />

a Vigília? É daqui a tantos dias, responde-se, como se, em comparação com esta, as<br />

outras não merecessem tal nome... (Santo Agostinho, Sermão 221 [Guelf. V, 1-2]: Al 3859-<br />

3860).<br />

A Vigília <strong>Pascal</strong>, na noite santa em que o Senhor ressuscitou, é considerada como “a mãe<br />

de todas as santas vigílias”, na qual a Igreja espera em vigília a ressurreição de Cristo e a<br />

celebra nos sacramentos. Por conseguinte, toda a celebração desta sagrada Vigília deve<br />

fazer-se durante a noite, de modo que ou comece depois do anoitecer ou termine antes<br />

da aurora do domingo (NGALC 21).<br />

Ao anunciar a Vigília pascal, não se apresente como o último momento do Sábado Santo.<br />

Diga-se, antes, que a Vigília pascal se celebra «na noite da Páscoa», e como um único<br />

acto de culto. Recomenda-se encarecidamente aos pastores que, na catequese a dar aos<br />

fiéis, insistam na importância de se participar em toda a Vigília pascal (Carta circular 95:<br />

EDREL 3205).<br />

Esta é a noite mais importante de todo o Ano Litúrgico. Apesar de tudo, não tem ainda, na<br />

consciência popular, o relevo que lhe é devido. O símbolo da luz, a Palavra, a água baptismal e o<br />

pão e o vinho eucarísticos, anuncia<strong>dos</strong> na Quaresma, alcançam a sua realização nesta noite pascal.<br />

Não foi por acaso que a renovação litúrgica, mesmo antes do Concílio, começou<br />

precisamente com a reforma e renovação da Vigília <strong>Pascal</strong>, que estava muito descaracterizada.<br />

Actualmente, a estrutura da celebração, muito simplificada e expurgada de elementos estranhos,<br />

consta de <strong>quatro</strong> grandes momentos: - Liturgia da Luz; - Liturgia da Palavra; - Liturgia Baptismal; -<br />

Liturgia Eucarística.<br />

To<strong>dos</strong> estes momentos são importantes, mas nem to<strong>dos</strong> têm a mesma importância. É<br />

fundamental que a Vigília decorra em crescendo, orientando-se toda a celebração para o ponto<br />

máximo: a Liturgia Eucarística. Deverá ser na Liturgia Eucarística, ponto alto da celebração, que a<br />

celebração permitirá a explosão jubilosa de alegria pascal.<br />

Historicamente, a Vigília <strong>Pascal</strong> foi a primeira celebração do Tríduo a ser organizada pela<br />

comunidade cristã, como uma noite de vigilância, em oração e escuta da Palavra, concluindo com a<br />

celebração da Eucaristia.<br />

Nos <strong>primeiros</strong> <strong>séculos</strong>, esta Vigília era composta por três momentos principais: uma<br />

abundante liturgia da Palavra, a liturgia baptismal e a liturgia eucarística. A estes elementos<br />

fundamentais acrescentaram-se, posteriormente: a bênção do lume/fogo e a procissão com o Círio e<br />

o canto do laus cerei.<br />

A celebração desta Vigília sofreu, ao longo <strong>dos</strong> <strong>séculos</strong>, uma clara decadência. Basta<br />

recordar que, até que Pio XII empreendesse a reforma da Semana Santa, a Vigília celebrava-se na<br />

manhã de Sábado Santo. Já a partir do século VII que, em Roma, a Vigília se celebrava na tarde do<br />

sábado, procurando-se, porém, que a liturgia eucarística tivesse lugar já noite; porém, o início da<br />

Vigília, com o rito do Círio, fazia-se em pleno dia. A tendência a antecipar para a manhã as<br />

34


celebrações eucarísticas, por causa do jejum, agravou a situação. Mais tarde, já no período<br />

moderno, Urbano VIII suprimiu a Vigília do número das festas de preceito, manifestando a<br />

completa perda da consciência da importância e especificidade desta celebração. Não admira, pois,<br />

a dificuldade sentida hoje em revalorizar a Vigília: pesam sobre nós <strong>séculos</strong> de uma prática<br />

diferente, na qual a Vigília não tinha, efectivamente, importância. Foi o Papa Pio XII que, em 1951,<br />

restituiu a Vigília pascal ao seu lugar primitivo: a noite de sábado para domingo.<br />

A hora: «Toda a celebração da Vigília pascal se faz de noite, mas de maneira a não<br />

começar antes do início da noite e a terminar antes da aurora do domingo». Esta regra<br />

deve ser interpretada estritamente. Qualquer abuso ou costume contrário, que vai<br />

surgindo por aqui e ali, de celebrar a Vigília pascal nas horas para as quais é costume<br />

antecipar as Missas dominicais, deve ser reprovado. (Carta circular 78: EDREL 3188)<br />

1. Liturgia da luz<br />

A Vigília inicia-se com a bênção do fogo, no qual se acende o Círio <strong>Pascal</strong>, símbolo de<br />

Cristo ressuscitado. O Círio é solenemente apresentado e é ele que guia e ilumina a entrada da<br />

comunidade na igreja. Segue-se o Precónio <strong>Pascal</strong>.<br />

Como se referiu, este momento não pertence ao núcleo mais antigo da Vigília. Acender o<br />

fogo junto à entrada das igrejas era a única forma de iluminar o espaço sagrado: os fiéis levavam<br />

archotes que acendiam nesse fogo e que iluminavam a igreja nas vigílias. Porém, só tardiamente,<br />

nos século VIII e IX surgem as orações de bênção do fogo, o que mostra que se começou a fazer<br />

uma interpretação simbólica daquele facto prático. Já o uso do Círio pascal como elemento<br />

celebrativo é bem mais antigo. A Tradição Apostólica já testemunha a existência deste rito do<br />

lucernário, mas não necessarimente ligado à Vigília pascal (ainda hoje, a Liturgia Ambrosiana<br />

mantem a prática do Lucernário nas vésperas I das solenidades e <strong>dos</strong> Domingos). Já quanto ao canto<br />

que se segue, o Precónio <strong>Pascal</strong>, exige uma exposição mais detalhada. Antes de mais, as<br />

designações:<br />

− Exsultet : (Alegre-se, exulte) é a primeira palavra do Precónio <strong>Pascal</strong> (Exsultet iam angelica<br />

turba caelorum - «alegre-se a multidão celeste <strong>dos</strong> anjos»)<br />

− Também se chama «Precónio <strong>Pascal</strong>». Do latim, præ-conium (anúncio solene ou pregão) de<br />

um acontecimento importante, proclamado diante da comunidade. Um pregão pode ser<br />

notificação oficial de parte da autoridade, ou inauguração solene de umas festas populares.<br />

Na Liturgia, diz-se sobretudo do anúncio gozoso que, na Vigília <strong>Pascal</strong>, faz o diácono, no<br />

começo da celebração, proclamando os louvores da noite enternecedora que a comunidade<br />

começa a celebrar, e na qual se anunciará, a seu tempo (no Evangelho), a grande notícia da<br />

Ressurreição do Senhor.<br />

− Benedictio cerei (bênção do Círio).<br />

− Laus cerei (louvor do Círio)<br />

De autor desconhecido, deve ser da primeira metade do século IV, porque já é citado por<br />

Santo Ambrósio, São Jerónimo e por Santo Agostinho. É um hino de louvor à noite, a Cristo, ao<br />

Círio. É como um lucernário gozoso ou um Prefácio solene da grande Festa <strong>Pascal</strong>, cheio de<br />

lirismo, convidando à alegria e ao louvor, pelo que esta noite significa para a comunidade cristã. É a<br />

noite em que Deus tirou os Israelitas da escravidão do Egipto. E, sobretudo, a noite do êxodo e<br />

libertação verdadeiros, realiza<strong>dos</strong> por Cristo para to<strong>dos</strong> nós. Noite ditosa, iluminada pela Luz que é<br />

Cristo. O Círio é o símbolo simples e expressivo da festa pascal, em que to<strong>dos</strong> participam da<br />

libertação salvadora da Páscoa. O Precónio canta-se solenemente, na sua versão mais longa ou na<br />

abreviada, do ambão – reservado, normalmente, para a Palavra revelada de Deus – depois de ter<br />

35


incensado o Círio. A comunidade escuta-o com as velas, acesas no Círo <strong>Pascal</strong>, na mão. «As<br />

Conferências Episcopais podem introduzir no precónio certas aclamações para serem<br />

ditas pelo povo» (Carta circular 84: EDREL 3194).<br />

2. Liturgia da Palavra<br />

A liturgia da Palavra da Vigília tem um carácter eminentemente baptismal: falam-nos da<br />

criação e da promessa da nova criação, figuras do Baptismo; falam-nos do homem novo;<br />

apresentam-nos o Baptismo como participação pessoal na paixão, morte e ressurreição de Cristo.<br />

O rito renovado da Vigília tem sete leituras do Antigo Testamento, tomadas <strong>dos</strong> livros da<br />

Lei e <strong>dos</strong> Profetas, já utilizadas com frequência pela mais antiga tradição tanto oriental<br />

como ocidental, e duas do Novo Testamento, tomadas das Cartas <strong>dos</strong> Apóstolos e do<br />

Evangelho. Assim a Igreja, «começando por Moisés e seguindo pelos Profetas»,<br />

interpreta o mistério pascal de Cristo. Portanto, na medida em que for possível, leiam-se<br />

todas as leituras de modo que se respeite completamente a natureza da Vigília pascal,<br />

que exige uma certa duração. Todavia, onde as circunstâncias de natureza pastoral<br />

exigem que se reduza ainda o número das leituras, leiam-se pelo menos três do Antigo<br />

Testamento, a saber, <strong>dos</strong> livros da Lei e <strong>dos</strong> Profetas; nunca se deve omitir a leitura do<br />

capítulo 14 do Êxodo, com o seu cântico. (Carta circular 85: EDREL 3195).<br />

A Liturgia da Palavra desta celebração é particularmente rica e abundante. Depois de cada<br />

leitura do A.T., há um Salmo e uma oração. Os Salmos deveriam ser canta<strong>dos</strong>.<br />

Depois da última leitura do A.T. e antes da Epístola, canta-se o Glória. É de toda a<br />

conveniência que seja cantado este hino e cantado na totalidade. Durante o canto podem tocar-se<br />

campainhas e os sinos.<br />

Depois da Epístola, canta-se o Aleluia pascal. É necessário dar-lhe um relevo especial, uma<br />

vez que esteve ausente da Liturgia na Quaresma. Este é o canto por excelência da Páscoa, que deve,<br />

por isso, merecer uma atenção especial. O Missal Romano determina que seja cantado três vezes e<br />

em crescendo, para lhe dar maior destaque.<br />

<strong>3.</strong> Liturgia Baptismal<br />

Quer haja celebração de baptismos, quer não, a Vigília <strong>Pascal</strong> tem sempre uma liturgia<br />

baptismal. Quando não há baptismos, fica empobrecida, mas a assembleia faz a renovação das<br />

promessas baptismais.<br />

A Páscoa de Cristo e nossa é agora celebrada no sacramento. Isto pode ser expresso de<br />

maneira mais completa nas igrejas que têm fonte baptismal, e sobretudo quando se<br />

realiza a iniciação cristã <strong>dos</strong> adultos ou, pelo menos, o baptismo de crianças. Mesmo que<br />

não haja baptizan<strong>dos</strong>, nas igrejas paroquiais deve fazer-se a bênção da água baptismal.<br />

Quando esta bênção não é feita na fonte baptismal mas no presbitério, a água baptismal<br />

leva-se a seguir ao baptistério, onde será conservada durante todo o tempo pascal. Se<br />

não houver baptizan<strong>dos</strong> nem bênção da fonte baptismal, a memória do Baptismo é feita<br />

na bênção da água destinada à aspersão do povo.<br />

Em seguida tem lugar a renovação das promessas baptismais [...] Os fiéis, de pé e com<br />

as velas acesas na mão, respondem às interrogações. Depois são aspergi<strong>dos</strong> com a<br />

água: deste modo, gestos e palavras recordam-lhes o Baptismo que receberam. O<br />

sacerdote celebrante asperge o povo passando pela nave da igreja, enquanto to<strong>dos</strong><br />

cantam a antífona «Vidi aquam» ou outro cântico de carácter baptismal. (Carta circular 88-<br />

89: EDREL 3198-3199)<br />

Esta é uma celebração toda ela de carácter profundamente baptismal. O nome mais antigo do<br />

Baptismo é “iluminação”; ora é com a liturgia da luz que a celebração se inicia. A liturgia da<br />

36


Palavra fala-nos do Baptismo. O terceiro momento da celebração é precisamente uma liturgia<br />

baptismal. A liturgia eucarística, se houver baptismos, é a primeira participação <strong>dos</strong> neófitos na<br />

Eucaristia (se são adulto), completando assim a sua iniciação cristã.<br />

O Baptismo “é a própria páscoa do cristão (...) O Baptismo é uma libertação paralela à do êxodo e à<br />

do Gólgota, cuja eficácia salvífica desdobra e transmite” 9 . A oração de bênção da água da fonte<br />

baptismal sublinha esta perspectiva, dizendo: “Desça sobre esta água, Senhor, por vosso<br />

Filho, a virtude do Espírito Santo, para que to<strong>dos</strong>, sepulta<strong>dos</strong> com Cristo na sua morte<br />

pelo Baptismo, com Ele ressuscitem para a vida” (Ritual Romano - Celebração do Baptismo,<br />

54).<br />

4. Liturgia Eucarística<br />

A Eucaristia é o sacramento fundamental e central na vida da Igreja e na existência cristã.<br />

Nela se “actualiza continuamente o mistério pascal de Cristo entre os homens” (Preliminares do<br />

Ritual da sagrada Comunhão e culto do mistério eucarístico fora da Missa 23: EDREL 778).<br />

A Eucaristia é, por excelência, o memorial do Mistério <strong>Pascal</strong>, como sublinham os<br />

documentos do Magistério (cf. SC 6, é apenas um exemplo). Diz o Proémio da IGMR: “Para além<br />

da diferença no modo como é oferecido, existe perfeita identidade entre o sacrifício da cruz e a sua<br />

renovação sacramental na Missa”. “A Eucaristia é a Páscoa, e a Páscoa é a Eucaristia” (H. Jenny).<br />

A celebração da Eucaristia é a quarta parte da Vigília e o seu ponto culminante,<br />

dado que é, do modo mais pleno, o sacramento pascal, ou seja, memorial do sacrifício da<br />

Cruz e presença de Cristo ressuscitado, consumação da iniciação cristã e antegozo da<br />

Páscoa eterna. Esta Liturgia eucarística, não deve celebrar-se apressadamente (Carta<br />

circular 90-91: EDREL 3200-3201).<br />

Domingo de Páscoa da Ressurreição<br />

A Missa do dia de Páscoa deve ser celebrada com grande solenidade. Em vez do acto<br />

penitencial, é conveniente fazer hoje a aspersão com a água benzida durante a<br />

celebração da Vigília. Durante a aspersão deve cantar-se a antífona «Vidi aquam» ou<br />

outro cântico de carácter baptismal. (Carta circular 97: EDREL 3207)<br />

A Missa do dia de Páscoa é a segunda missa da Páscoa, já que a primeira e mais importante<br />

é a Vigília <strong>Pascal</strong>. Esta Missa “deve ser celebrada com grande solenidade”. Sugere-se que, em vez<br />

do acto penitencial, se faça a aspersão com a água benzida na Vigília pascal. O Tríduo pascal<br />

termina com as Vésperas do Domingo de Páscoa. A Carta Paschalis Sollemnitatis sugere:<br />

Conserve-se, onde está em vigor, ou restaure-se onde for oportuno, a tradição de celebrar<br />

as Vésperas baptismais do dia de Páscoa, durante as quais, ao canto <strong>dos</strong> salmos, se vai<br />

em procissão até à fonte baptismal. (Carta circular 98: EDREL 3208)<br />

Em muitos países, as vésperas pascais tiveram e continuam a ter grande relevo e importância. Em<br />

Portugal, possivelmente por causa da prática da visita pascal ou compasso, as Vésperas pascais não<br />

têm efectivo relevo.<br />

O círio pascal, colocado junto do ambão ou perto do altar, deve acender-se ao menos em<br />

todas as celebrações litúrgicas mais solenes deste tempo, tanto na Missa como em<br />

Laudes e Vésperas, até ao domingo de Pentecostes. Terminado este tempo, o círio deve<br />

ser conservado com a devida reverência no baptistério, para que, na celebração do<br />

9 C. ROCCHETTA, Os Sacramentos da Fé - Ensaio de Teologia bíblica sobre os sacramentos como “maravilhas da<br />

salvação” no tempo da Igreja, EP, São Paulo 1991, 24<strong>3.</strong><br />

37


Baptismo, se acenda na sua chama a vela <strong>dos</strong> baptiza<strong>dos</strong>. Na celebração das exéquias o<br />

círio pascal deve ser colocado junto do féretro, para indicar que a morte é para o cristão a<br />

sua verdadeira Páscoa. Fora do tempo da Páscoa, o círio pascal nem deve acender-se<br />

nem conservar-se no presbitério. (Carta circular 99: EDREL 3209)<br />

<strong>3.</strong><strong>3.</strong> Tempo <strong>Pascal</strong><br />

José FERREIRA, Os Mistérios de Cristo na Liturgia, SNL, Fátima 1998, p. 126-139 [originalmente<br />

publicado no Boletim de Pastoral Litúrgica n. 33-34 (1984) 9-27].<br />

O TEMPO PASCAL NA TRADIÇÃO DA IGREJA<br />

Introdução<br />

[...] O Tempo <strong>Pascal</strong> é o prolongamento do terceiro dia do Tríduo <strong>Pascal</strong>, o Domingo da<br />

Ressurreição, prolongamento que se estende por oito Domingos, uma verdadeira oitava de<br />

Domingos. É o espaço de 50 dias, o «laetissimum spatium» 10 , o tempo da grande alegria, como o<br />

designaram os nossos antepassa<strong>dos</strong> na fé.<br />

I. – DO PENTECOSTES JUDAICO AO TEMPO PASCAL CRISTÃO<br />

1. Os nomes<br />

[...] O nome primitivo dado pelos cristãos aos 50 dias pelos quais se prolonga a alegria da<br />

Ressurreição, por estranho que isso nos possa parecer, foi Pentecostes, palavra grega que significa<br />

quinquagésimo.<br />

Entre os judeus, a palavra Pentecostes designa, já desde longa data, a festa do<br />

quinquagésimo dia depois da sua festa da Páscoa. Deste modo, Pentecostes é palavra que aparece<br />

com dois senti<strong>dos</strong>: entre os judeus, designa um só dia de festa, a sua festa do Pentecostes, 50 dias<br />

depois da sua Páscoa; entre os cristãos, Pentecostes designava o espaço de 50 dias festivos, desde o<br />

Domingo de Páscoa até ao Domingo que hoje chamamos Domingo de Pentecostes. A designação<br />

«Pentecostes», aplicada apenas ao Domingo de Pentecostes, vem já de há <strong>séculos</strong>, e o Calendário<br />

agora reformado não voltou a aplicá-la ao Tempo <strong>Pascal</strong>; no entanto, ela aparece ainda, por vezes,<br />

para designar todo esse Tempo. [...]<br />

O nome grego «Pentecostes» não foi normalmente traduzido para latim. Todavia, nas Gálias,<br />

usou-se, por vezes, o nome de Quinquagesima, que traduz o grego Pentecostês, porque os cristãos<br />

da Gália não usavam o grego mas o latim. Coisa semelhante viria a acontecer com a palavra<br />

Quadragesima, que, sendo um numeral, veio a significar um tempo de 40 dias, a Quaresma.<br />

2. O Pentecostes judaico<br />

O judaísmo não conheceu, portanto, nada de semelhante ao Tempo <strong>Pascal</strong> da Igreja cristã.<br />

Conheceu, sim, a festa do Pentecostes, festa de um só dia, como vimos, por vezes de dois, celebrada<br />

cinquenta dias depois da Páscoa. É nessa festa que os Actos <strong>dos</strong> Apóstolos colocam a vinda do<br />

Espírito Santo sobre os Apóstolos.<br />

A festa judaica do Pentecostes é referida na Sagrada Escritura em vários lugares, como uma<br />

das grandes festas do calendário de Israel; e nem sempre com a mesma significação:<br />

a) no Êxodo (23, 16), é chamada festa da colheita, festa das primícias do trabalho, «daquilo<br />

que semeaste no campo»;<br />

10 TERTULIANO, De Bapt. 19, 2.<br />

38


) ainda no Êxodo (34, 22), é chamada «festa das semanas», por ser celebrada sete semanas,<br />

ou uma semana de semanas, depois da Páscoa, «no tempo das primícias da colheita do trigo»;<br />

c) no Deuteronómio (16, 9-12) é, de novo, dita «festa das semanas», «sete semanas a partir<br />

do momento em que começares a meter a foice nas searas», ou seja, a partir da festa da Páscoa, em<br />

que se começava a ceifa da cevada, ceifa esta relacionada com a festa <strong>dos</strong> Ázimos, também ela uma<br />

festa de primícias;<br />

d) no Levítico (23, 15-22), fala-se igualmente na festa do quinquagésimo dia como festa de<br />

primícias, acompanhada de sacrifícios vários.<br />

Para os cita<strong>dos</strong> livros do Pentateuco bíblico, a festa das semanas, no quinquagésimo dia após<br />

a Páscoa, é uma festa de primícias da colheita do trigo. [...]<br />

Ao tema da colheita e das primícias, veio juntar-se, na festa do Pentecostes judaico, outra<br />

significação. «No tempo de Cristo, a festa do quinquagésimo dia depois da Páscoa era celebrada, no<br />

judaísmo oficial, como festa da colheita, mas ela tinha tomado já, em certos círculos religiosos, o<br />

sentido de comemoração da teofania do Sinai. O acento era então posto mais sobre a aliança entre<br />

Deus e o seu povo, do que sobre o dom da Lei» 11 .<br />

Alguns destes temas do Pentecostes do Antigo Testamento vieram, por vezes, ao de cima e<br />

foram evoca<strong>dos</strong> na tradição da Igreja, de forma mais ou menos explícita, a propósito do Pentecostes<br />

cristão, sobretudo na pregação <strong>dos</strong> Santos Padres, em particular o tema das primícias, que é<br />

considerado ter sido realizado, de maneira perfeita, na Ascensão do Senhor. [...]<br />

<strong>3.</strong> O Pentecostes cristão<br />

[...] O ambiente festivo, próprio daquele Domingo que nasce na Vigília pascal, o Domingo<br />

da Ressurreição, se vai prolongar pelos Domingos seguintes, e respectivas semanas, até ao oitavo, o<br />

Domingo que hoje chamamos Domingo de Pentecostes. É uma série de oito Domingos, os quais<br />

constituem verdadeira oitava pascal. São os 50 dias (= 7 semanas x 7 dias + o oitavo Domingo), que<br />

formam, desde a origem, uma unidade perfeita, indivisível, que nenhuma outra solenidade pode vir<br />

quebrar. É o «laetissimum spatium», o «tempo da muita alegria», com características litúrgicas e<br />

significação espiritual muito próprias, que os <strong>séculos</strong> seguintes vieram perturbar em parte, mas que<br />

a restauração litúrgica pós-conciliar reconduziu à pureza das suas origens.<br />

O tema da celebração desta Cinquentena é, tal como em cada Domingo, o Mistério pascal,<br />

na sua totalidade e na sua unidade, vivido sacramentalmente pela comunidade cristã, como que em<br />

antegozo da vida celeste, onde Cristo entrou, na glória de Senhor, como primícias da humanidade<br />

nova por Ele remida. [...]<br />

II. – A TRADIÇÃO LITÚRGICA PRIMITIVA<br />

A existência de um espaço de 50 dias, que prolonga a festa do dia da Ressurreição, é referida<br />

logo desde os fins do século II, quase na mesma data em que se fala da celebração da Páscoa anual<br />

na Vigília da noite santa. Quer dizer, o Tempo pascal começou a ser celebrado ao mesmo tempo ou<br />

quase ao mesmo tempo que a Vigília <strong>Pascal</strong>. É por isso o tempo litúrgico mais antigo, e este facto,<br />

só por si, faz pensar como os cristãos entenderam e viveram, logo desde o princípio, o Mistério<br />

<strong>Pascal</strong>. Ele é, na verdade, o fundamento de todo o cristianismo, é ele que constitui o que há de mais<br />

específico na fé cristã, e, por isso, é ele que dá sentido a todas as expressões da vida cristã, quer no<br />

que se crê, como no que se celebra, como no que se vive no dia a dia. É ele o «mistério da fé»,<br />

proclamado em cada celebração da Eucaristia.<br />

Podemos colher vários testemunhos 12 sobre este tempo litúrgico logo a partir do século III:<br />

a) em S. Ireneu, bispo de Lyon, que morreu no ano 202, no princípio do século III;<br />

11 R. CABIÉ, La Pentecôte, Tournai - Paris, 1965, p. 27. Em todo este trabalho nos socorremos desta obra<br />

fundamental.<br />

12 Cf. R. CABIÉ, op. cit., p. 37 ss.<br />

39


) nos Actos de Paulo, obra apócrifa do fim do século II, atribuída a um escritor da Ásia;<br />

c) em Tertuliano, escritor cristão do norte de África († c. 220);<br />

d) em S. Hipólito de Roma, na sua célebre Tradição Apostólica, de cerca do ano 215;<br />

e) em Orígenes, presbítero da Igreja de Alexandria do Egipto († 254).<br />

Escutemos, a título de exemplo, um testemunho de Tertuliano:<br />

«Nós, por nosso lado, segundo a tradição que recebemos, devemos abster-nos disto (o rezar<br />

de joelhos) somente no dia da Ressurreição do Senhor;... igualmente durante o tempo do<br />

Pentecostes, cuja celebração goza do mesmo carácter de alegria» 13 .<br />

[...]<br />

E ainda outra passagem que nos dá mais claramente o conteúdo destes dias pascais:<br />

«O Pentecostes vem em segundo lugar (depois da Páscoa), como o tempo mais feliz<br />

(laetissimum spatium) para conferir o banho sagrado (do Baptismo). É o tempo em que o<br />

Senhor ressuscitado vem frequentemente ao meio <strong>dos</strong> discípulos, o tempo em que foi<br />

comunicada a graça do Espírito Santo e que faz entrever a esperança da vinda do Senhor. Foi<br />

então, depois de ter subido aos céus, que os Anjos disseram aos Apóstolos que Ele havia de<br />

vir como tinha subido aos céus, precisamente no Pentecostes» 14 .<br />

A partir destes testemunhos de Tertuliano, a que seria fácil juntar muitos outros, podemos já<br />

tirar algumas conclusões, que nos podem até dar luz para compreendermos o que a seguir se dirá:<br />

1.ª – Existe desde os fins do século II um tempo de 50 dias, especialmente festivo, a partir da<br />

solenidade da Páscoa;<br />

2.ª – Nele se prolonga a celebração do Mistério <strong>Pascal</strong>;<br />

<strong>3.</strong>ª – Os temas que mais tarde serão objecto de solenidades mais ou menos autónomas, como<br />

sejam a Ressurreição do Senhor, a Ascensão aos céus, a vinda do Espírito Santo, a expectativa da<br />

vinda gloriosa, são ainda celebra<strong>dos</strong>, nesta época, na unidade não diversificada, que dá a todo este<br />

tempo um sentido único;<br />

4.ª – É característica deste tempo a alegria espiritual (laetissimum spatium) e a ausência <strong>dos</strong><br />

tradicionais sinais de penitência, em particular, o rezar de joelhos e o jejum;<br />

5.ª – Por fim, todo este tempo é designado, no princípio, pelo nome de Pentecostes, palavra<br />

que não designa um só dia de festa, mas um tempo festivo.<br />

III. – O «GRANDE DOMINGO»<br />

É de S. Atanásio († 373) a definição do Pentecostes – Tempo pascal como o «Grande<br />

Domingo», expressão que o Calendário, agora renovado depois do Concílio, voltou a utilizar. Isto<br />

significa que o sentido último do tempo pascal deve ir procurar-se ao próprio sentido do Domingo.<br />

1. O «oitavo dia»<br />

[...] A fé cristã assenta precisamente no facto de Jesus, pela sua imolação na Cruz, ter<br />

passado deste mundo para o Pai, agora exaltado com o nome divino de «Senhor». É este o Mistério<br />

<strong>Pascal</strong>, o mistério da passagem do homem para a glória da imortalidade, que é a do Senhor<br />

ressuscitado. No primeiro dia de cada semana, no «Dia do Senhor», os cristãos celebram, «até que<br />

Ele venha», este mistério da passagem da morte à vida gloriosa. Assim dão graças a Deus pelo dom<br />

inefável da salvação e vão alimentando a sua fé e a sua esperança.<br />

Na realidade, o Domingo cristão nada tem a ver com o Sábado judaico. Ele não se define já<br />

pelo descanso depois do trabalho que fatigou, mas como o dia que está para além da fadiga, para<br />

além do trabalho, para além da morte, o dia que ultrapassa o tempo e introduz na vida eterna, na<br />

13 TERTULIANO, De or. 23, 2, in CABIÉ, op. cit., p. 39.<br />

14 Idem, De Bapt. 19, 2, ib. p. 40.<br />

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glória da Ressurreição. É assim que, desde o século II, o Domingo é também chamado «oitavo<br />

dia» 15 , porque é «o dia em que Jesus ressuscitou <strong>dos</strong> mortos e, depois de Se ter manifestado, subiu<br />

ao céu». E S. Justino, cerca do ano 150, afirma que «o primeiro dia, continuando a ser o primeiro de<br />

to<strong>dos</strong> os dias, contando-o de novo depois de to<strong>dos</strong> os dias da semana, é chamado oitavo, sem deixar<br />

por isso de ser o primeiro» 16 . Os sete dias da semana são o símbolo do tempo presente; por isso, o<br />

sábado judaico era o último dia da semana, dia do repouso depois do trabalho. O Domingo cristão,<br />

se é também dia de repouso, já o não é como descanso relacionado principalmente com o trabalho<br />

do homem, mas como figura do repouso eterno em Deus, dia de contemplação e acção de graças,<br />

dia de festa, pela vida nova introduzida neste mundo por Cristo ressuscitado, como agora diz o<br />

Concílio e já o explicava, logo no início do século II, S. Inácio de Antioquia: «Os que viviam<br />

segundo a ordem antiga das coisas (o povo da antiga Aliança) chegaram à nova esperança; não<br />

observam já o sábado, mas o Domingo, dia em que a nossa vida se levantou por Cristo e pela sua<br />

morte» 17 .<br />

Este acesso à vida divina pela fé em Jesus, manifestado «Senhor» pela Ressurreição,<br />

constitui a característica mais própria do Domingo como oitavo dia. Pois, é esta característica pascal<br />

do Dia do Senhor que vai ser estendida a todo o Tempo pascal, o qual é, por isso mesmo, o «grande<br />

domingo».<br />

2. A «semana de semanas»<br />

Não admira, pois, que os <strong>primeiros</strong> cristãos tivessem como único dia de festa o Domingo, o<br />

Dia do Senhor. Nele celebravam todo o Mistério <strong>Pascal</strong> de Jesus, o Senhor. Mas sabemos como<br />

desde cedo apareceu a celebração mais solene do Mistério <strong>Pascal</strong> uma vez em cada ano, no Tríduo<br />

pascal. Não foi a Páscoa anual que se começou a repetir em cada Domingo, mas o mistério do<br />

Domingo que tomou relevo especial na solenidade da Páscoa de cada ano.<br />

É natural que o simbolismo do «oitavo dia» aplicado ao Domingo tenha inspirado o<br />

simbolismo das sete semanas e <strong>dos</strong> oito Domingos, do Domingo da Ressurreição até ao oitavo, ou<br />

seja, os 50 dias do Tempo pascal. O Tempo pascal foi assim um «Pentecostes», uma Cinquentena,<br />

uma semana de semanas, uma oitava de Domingos. S. Hilário de Poitiers († c. 367) assim explicava<br />

o simbolismo deste tempo:<br />

«É a semana de semanas, como o mostra o número setenário, obtido pela multiplicação de<br />

sete por si mesmo (7 x 7 = 49). É, no entanto, o número 8 que o leva à perfeição, pois que é<br />

o mesmo dia que é, ao mesmo tempo, o primeiro e o último, acrescentado à última semana,<br />

conforme a plenitude do Evangelho. Esta semana de semanas é celebrada segundo uma<br />

prática que vem <strong>dos</strong> Apóstolos: nestes dias do Pentecostes ninguém adora com o corpo<br />

prostrado por terra, nem põe obstáculo com o jejum a esta solenidade de alegria espiritual. É<br />

aliás o mesmo que está estabelecido para os Domingos» 18 .<br />

O Tempo pascal é, pois, uma semana de semanas. Não nos interessa a tabuada com que se<br />

possa explicar o número 50 nele contido, mas o mistério que por ele se simboliza e nele é celebrado.<br />

Trata-se da celebração, ampliada até ao oitavo Domingo, do Mistério <strong>Pascal</strong>, celebração que tem o<br />

seu ponto de partida no Tríduo pascal e se conclui no oitavo Domingo, dito hoje de Pentecostes.<br />

Esta perspectiva era bem clara para a Igreja <strong>dos</strong> <strong>primeiros</strong> <strong>quatro</strong> <strong>séculos</strong>. Do século IV, a época da<br />

grande estruturação das Igrejas locais, abundam os testemunhos de muitos <strong>dos</strong> seus bispos, que, por<br />

falta de tempo, não podemos agora citar.<br />

15 Ep, de Barnabé, éd. H. HEMMER, Picard, 1926, p. 88-89, ib., p. 47.<br />

16 S. JUSTINO, I Apol. 67, ib., p. 47.<br />

17 S. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Magn. 9, ib., p. 48.<br />

18 S. HILÁRIO DE POITIERS, Super psalm.<br />

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<strong>3.</strong> Um «único dia de festa»<br />

Por mais que os <strong>séculos</strong> posteriores tenham como que esboroado a unidade do Tempo<br />

pascal, essa unidade esteve sempre subjacente à celebração de to<strong>dos</strong> os 50 dias, e continua a estar,<br />

mas sobretudo agora que o Calendário reformado depois do Concílio assim apresenta o Tempo<br />

pascal: «Os 50 dias que vão do Domingo da Ressurreição até ao Domingo de Pentecostes celebramse,<br />

na alegria e na exultação, como um único dia de festa; mais, como um «grande Domingo» 19 . O<br />

Calendário assumiu, de novo, a expressão «Grande Domingo» de S. Atanásio numa das suas Cartas<br />

Festais, espécie de Cartas Pastorais enviadas to<strong>dos</strong> os anos pelos patriarcas de Alexandria às Igrejas<br />

do Egipto para anunciar as festas pascais, e que terminavam sempre com a indicação da data da<br />

Páscoa e das solenidades que dela dependiam. Na primeira dessas Cartas, do ano 329, escrevia S.<br />

Atanásio: «Como este tempo (o Tempo pascal) é para nós o símbolo do mundo que há-de vir,<br />

celebrá-lo-emos como um grande Domingo» 20 .<br />

Os 50 dias do Tempo pascal são «um grande Domingo», «um único dia de festa», porque<br />

eles celebram o mesmo e único Mistério <strong>Pascal</strong> de Jesus Cristo, que foi crucificado, mas é agora O<br />

ressuscitado, elevado à direita de Deus, recebendo do Pai o Espírito Santo e derramando-O sobre os<br />

seus, «como vedes e ouvis», dizia S. Pedro aos seus ouvintes no dia de Pentecostes (cf. Act. 2, 33).<br />

IV. – A «MARCA» DO ESPÍRITO NA PÁSCOA DE JESUS<br />

Em visão cristã da história, toda ela é manifestação da presença e da acção do Espírito de<br />

Deus. Essa presença e essa acção tornou-se mais palpável em Jesus Cristo, que «foi concebido pelo<br />

Espírito Santo» (Simb.), «sobre quem o Espírito desceu e permaneceu (cf. Jo 1, 32), que foi<br />

conduzido pelo Espírito ao deserto para aí triunfar do Espírito do mal (cf. Mt 4, 1), que pelo Espírito<br />

Se ofereceu a Si mesmo a Deus para obter para os homens uma redenção eterna (cf. Hebr 9, 14),<br />

que, elevado à direita de Deus, d’Ele recebeu o Espírito e O derramou sobre os Apóstolos desde o<br />

próprio dia da Ressurreição (cf. Jo 20, 22) e, por eles, sobre to<strong>dos</strong> aqueles que, do meio de todas as<br />

nações, seriam chama<strong>dos</strong> a formar a sua Igreja (Act 2, 9 ss.).<br />

O dom do Espírito Santo é a «marca» divina na obra da redenção realizada por Jesus Cristo<br />

no seu Mistério <strong>Pascal</strong>, é o selo indestrutível desta nova Aliança, que será eterna, selada por Deus<br />

com os homens em Jesus Cristo, pelo seu Sangue derramado na Cruz. Por isso, a vinda do Espírito<br />

Santo sobre os discípulos de Jesus é parte integrante do seu Mistério <strong>Pascal</strong>. Se a acção do Espírito<br />

de Deus acompanha toda a história da salvação desde o início – «No princípio, quando Deus criou o<br />

céu e a terra,... o Espírito de Deus pairava sobre as águas» (Gén 1, 1-2), era Ele quem falava pelos<br />

profetas e que estava prometido para os tempos messiânicos, – essa acção manifestou-se em<br />

plenitude quando o Senhor foi exaltado na glória da Ressurreição. Antes dessa «sua hora», não se<br />

revelara nunca tão poderosa a presença e a acção do Espírito como se revelou depois da<br />

Ressurreição, pois «o Espírito ainda não viera, porque Jesus não tinha sido ainda glorificado» (Jo 8,<br />

37-39).<br />

Mas, logo que o Senhor foi glorificado, «na tarde desse dia, o primeiro da semana, estando<br />

fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam reuni<strong>dos</strong>, com medo <strong>dos</strong> judeus, veio<br />

Jesus, pôs-Se no meio deles e disse-lhes:... ‘Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes<br />

os peca<strong>dos</strong>, ser-lhes-ão perdoa<strong>dos</strong>; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão reti<strong>dos</strong>’» (Jo 20, 19-<br />

23). Esta descida do Espírito sobre os discípulos, procedendo da boca de Jesus e no próprio dia da<br />

Ressurreição, mostra a ligação íntima e a continuidade necessária entre a Ressurreição do Senhor e<br />

a vinda do Espírito Santo. De facto, a descida do Espírito Santo é o selo divino, posto sobre a<br />

Páscoa de Jesus, a realização perfeita da obra da redenção. Por isso, a evocação da epifania do<br />

Espírito Paráclito, que os Actos <strong>dos</strong> Apóstolos colocam no quinquagésimo dia depois da<br />

Ressurreição, tornou-se, muito naturalmente, o objecto principal do último dia do Tempo pascal, no<br />

19 Cal. Rom. 22.<br />

20 S. ATANÁSIO, Ep. fest. I.<br />

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Domingo que veio a absorver o próprio nome de Pentecostes entre os cristãos, como já entre os<br />

judeus designava a sua festa do quinquagésimo dia depois da Páscoa.<br />

Se, com tudo isto, quisermos chamar também ao Domingo de Pentecostes Domingo do<br />

Espírito Santo, teremos de considerar sempre tal solenidade como uma festa pascal, como a<br />

«clausura», o encerramento da Páscoa, como os antigos lhe chamaram, e não como outra festa<br />

independente daquela. O dom do Espírito Santo é o fruto completo e total da Páscoa do Senhor. [...]<br />

V. – A EXALTAÇÃO DO SENHOR E O MISTÉRIO DA ASCENSÃO<br />

A Ascensão do Senhor é a última aparição do Ressuscitado, e reveste significação particular.<br />

Ela revela que a Ressurreição elevou Jesus à glória do Pai, à direita do Pai, e, com Ele, toda a<br />

humanidade por Ele redimida. A Ascensão é a resposta exaltante à situação degradante do homem<br />

no paraíso perdido. Aí foi dito: «Voltarás à terra donde vieste» (cf. Gén 3, 19); da Ascensão está<br />

escrito: «Subiu às alturas, levou consigo os cativos» (Ef 4, 8).<br />

Há na Sagrada Escritura duas maneiras de falar do Mistério <strong>Pascal</strong> de Jesus: umas vezes,<br />

fala-se de morte e ressurreição; outras vezes, fala-se de humilhação e exaltação. São dois binómios,<br />

que fazem referência ao mesmo acontecimento histórico, mas que o apresentam em duas<br />

perspectivas diferentes, embora complementares. A morte na Cruz é a situação máxima da<br />

humilhação do Filho de Deus, que, «aparecendo como homem, Se humilhou ainda mais,<br />

obedecendo até à morte, e morte de Cruz» (Flp 2, 7-8); a Ressurreição é a exaltação do Crucificado,<br />

a quem «Deus exaltou e deu o nome que está acima de to<strong>dos</strong> os nomes», (ib. 9-10), o nome de<br />

Senhor, o nome que toda a língua proclama, para glória do Pai, ao dizer: «Jesus Cristo é Senhor»<br />

(Cor 12, 3).<br />

Se a Ressurreição manifesta directamente a passagem da morte à vida, a Ascensão sublinha<br />

particularmente a exaltação na glória, em contraste com a descida, o abatimento, a humilhação, a<br />

«quenosis» da Paixão. Assim as referências à Ascensão, quer nos Actos <strong>dos</strong> Apóstolos, quer nos<br />

Evangelhos, não pretenderão tanto fazer a descrição de um facto, como proclamar o mistério, a<br />

exaltação do Senhor ressuscitado. S. Lucas, nos Actos, coloca a Ascensão no quadragésimo dia<br />

depois da Ressurreição, pormenor que o mesmo S. Lucas não refere no seu Evangelho, nem<br />

nenhum <strong>dos</strong> outros evangelistas. O número terá um sentido simbólico, mesmo que o facto narrado<br />

tenha acontecido nesse dia. Isso não traz consigo necessariamente nenhuma implicação litúrgica,<br />

pois que a celebração litúrgica não pretende reproduzir um calendário histórico, como se fora uma<br />

série de efemérides, mas celebrar o mistério da história, da história da salvação, mistério que não é<br />

limitado por nenhum tempo.<br />

Não admira, por isso, que também a Ascensão não tenha sido celebrada, desde o início, com<br />

uma solenidade própria. E, quando o começou a ser, não o foi necessariamente no quadragésimo dia<br />

após a Páscoa. Assim, encontramos até ao século IV, a celebração da Ascensão nalgumas Igrejas,<br />

sobretudo no Oriente, no quinquagésimo dia, ou seja, no último dia do Tempo pascal, aquele que<br />

hoje é o Domingo de Pentecostes. Não é por isso completamente aberrante que hoje, entre nós,<br />

embora por razões diferentes, a Ascensão seja celebrada no VII Domingo da Páscoa.<br />

VI. – A PERDA DE UNIDADE DO TEMPO PASCAL<br />

O Tempo pascal, que nós conhecemos até à reforma do Calendário em vigor desde o 1 de<br />

Janeiro de 1970, tinha perdido muito, quer quanto à organização interna quer mesmo quanto ao<br />

espírito, da concepção do «Pentecostes» primitivo.<br />

Eram estas as principais modificações introduzidas ao longo <strong>dos</strong> <strong>séculos</strong> e que deformavam<br />

aquela unidade primitiva:<br />

l.ª – A Ascensão e o Domingo de Pentecostes passaram a ser considera<strong>dos</strong> como solenidades<br />

autónomas. Cada uma delas recebeu uma vigília, considerada até como penitencial, (a do<br />

43


Pentecostes era então uma das <strong>quatro</strong> vigílias jejuadas do ano!), coisa impensável para os cristãos<br />

do século III dentro do Tempo pascal.<br />

2.ª – Cada uma destas solenidades recebeu a sua oitava, porque se tinha perdido a noção de<br />

que todo o Tempo pascal era uma oitava, a grande oitava da solenidade pascal. Além disso, a oitava<br />

do Pentecostes prolongava o Tempo pascal por mais sete dias além <strong>dos</strong> 50, até à solenidade da S.ma<br />

Trindade. Tínhamos então um Tempo pascal, um «Pentecostes», de 57 dias, contra toda a tradição<br />

anterior e em contradição com o próprio nome de Pentecostes, Cinquentena. Acontecia até que o<br />

jejum das têmporas do verão, que caía sempre na semana a seguir ao Domingo de Pentecostes,<br />

vinha ainda dentro do Tempo pascal! Este jejum era, na origem, o jejum normal das quartas e<br />

sextas-feiras, que os cristãos sempre praticaram desde as origens, excepto precisamente no Tempo<br />

da Páscoa.<br />

<strong>3.</strong>ª – Todo o Tempo <strong>Pascal</strong>, desde que se perdeu a consciência de que ele era a celebração<br />

prolongada da Páscoa, passou a considerar-se «Tempo depois da Páscoa», e assim os Domingos do<br />

Tempo <strong>Pascal</strong> chamavam-se «Domingos depois da Páscoa», até que, a partir de 1970, se voltaram a<br />

chamar «Domingo II, III, IV, etc. da Páscoa».<br />

4.ª – Os três dias imediatamente anteriores à solenidade da Ascensão tornaram-se, desde o<br />

século V, primeiro na Gália, depois em toda a Igreja, dias de Rogações, dias de oração penitencial,<br />

de novo em contradição com o espírito deste Tempo. Acrescia ainda que estas Rogações tinham em<br />

vista, ao menos na origem, as culturas agrícolas, situação que só se verificava no nosso hemisfério<br />

norte, onde o Tempo <strong>Pascal</strong> coincide com a primavera. Por isso, o novo Calendário prevê que as<br />

Rogações sejam adaptadas, na forma e no tempo, às diversas regiões do globo. Em Portugal ficaram<br />

reduzidas a um só dia, mas na quinta-feira da sexta semana, o dia da Ascensão no nosso Calendário<br />

anterior.<br />

5.ª – Em consequência de toda esta perturbação, como causa e, ao mesmo tempo, efeito<br />

dessa situação, o povo cristão quase não dava pelo Tempo <strong>Pascal</strong>. Por isso, ocupou-o com outras<br />

devoções, boas sem dúvida, mas desarticuladas da estrutura e do espírito da Cinquentena pascal, tão<br />

querida das primeiras gerações da Igreja, e tempo em si mesmo tão denso e tão bem definido, como<br />

aconteceu com as devoções <strong>dos</strong> meses de Maio e Junho, quando o tempo litúrgico nunca conheceu<br />

a estrutura <strong>dos</strong> meses.<br />

6.ª – Também em consequência desta perda de visão do que é o Tempo <strong>Pascal</strong>, o tempo de<br />

preparação para a Páscoa, que é a Quaresma, embora com todas as suas deficiências, viu voltar-se<br />

para ele a atenção <strong>dos</strong> cristãos, mais facilmente sensíveis ao seu triste mundo de pecado do que ao<br />

dom misericordioso da novidade pascal, que Deus gratuitamente lhes oferece em Jesus Cristo e no<br />

seu Espírito. Nós somos, de facto, mais facilmente religiosos do que Cristãos!<br />

VII. – A RESTAURAÇÃO DO TEMPO PASCAL<br />

[Em relação ao Tempo <strong>Pascal</strong>] Mais do que uma reforma, o que se fez foi uma verdadeira<br />

restauração, acompanhada até de certos enriquecimentos. De facto, bastava aliviar o Tempo <strong>Pascal</strong><br />

das sobrecargas que, ao longo <strong>dos</strong> <strong>séculos</strong>, ele tinha indevidamente recebido, para reencontrar a sua<br />

estrutura límpida, clara, e o espírito que presidiu à sua organização, que aliás as próprias narrações<br />

bíblicas sugeriram; depois enriquecê-lo talvez com alguns novos elementos. Foi o que, de facto, se<br />

fez.<br />

Agora, basta acolher o mistério deste Tempo como a celebração litúrgica no-lo apresenta, e<br />

deixar-se conduzir pelo seu espírito. São estes os principais pontos daquela restauração:<br />

a) O Tempo <strong>Pascal</strong> voltou a ser, como o Pentecostes primitivo, tempo uno: é a festa única da<br />

Páscoa que se prolonga por cinquenta dias. Neste sentido, é elucidativa a rubrica que o Missal<br />

Romano apresenta, aliás como texto único para esse dia, na página, quase em branco, do Sábado<br />

Santo: «No Sábado Santo, a Igreja permanece junto do sepulcro do Senhor, meditando na sua<br />

Paixão e Morte, e abstendo-se do sacrifício da Missa, até ao momento em que, depois da solene<br />

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Vigília ou expectação nocturna da ressurreição, se dê lugar à alegria pascal, cuja riqueza se<br />

prolongará por cinquenta dias». O Tempo <strong>Pascal</strong> nasce, pois, da Vigília pascal, continua a alegria da<br />

Ressurreição e prolonga-se por cinquenta dias; e não mais por cinquenta e sete. Volta a ter sete<br />

semanas e mais um oitavo Domingo, e não já oito semanas, como anteriormente acontecia. A<br />

Ressurreição nascida da Cruz do Senhor e a alegria que daí resulta é precisamente o tema da grande<br />

expectação da Vigília de que fala a rubrica do Sábado Santo, e é ela que vai encher toda a<br />

cinquentena pascal.<br />

b) A solenidade do oitavo Domingo, o do Pentecostes, deixou de ser precedida de uma<br />

vigília, e, para mais, jejuada, como anteriormente, o que fazia desse dia uma outra solenidade. O<br />

Domingo de Pentecostes é, de novo, o encerramento das solenidades pascais e, de algum modo, o<br />

seu vértice, para o qual toda a cinquentena se encaminhou. Com a vigília, foi suprimido o jejum<br />

desse dia, coisa aberrante no «laetissimum spatium» do Tempo <strong>Pascal</strong>. Por lógica semelhante, foi<br />

suprimida a oitava do Domingo de Pentecostes, que, na realidade, era como que a oitava de uma<br />

oitava. Em consequência, o Tempo <strong>Pascal</strong> já não se prolonga até à solenidade da Santíssima<br />

Trindade, e o jejum das Têmporas poderá reaparecer sem brigar com o Tempo <strong>Pascal</strong>. Em qualquer<br />

caso, com o Domingo de Pentecostes termina o Tempo <strong>Pascal</strong>, e podemos agora regressar, depois<br />

deste quase êxtase celeste que foi o Tempo da Páscoa, ao simples, humilde, mas tão simpático,<br />

porque tão parecido com a nossa vida de cada dia, Tempo Comum.<br />

c) A solenidade da Ascensão foi também, de novo, integrada, demonstrando claramente que<br />

fazia parte do «Pentecostes» pascal; voltou, por isso, a não ter nem vigília nem oitava, com que<br />

tinha sido deformada alguns <strong>séculos</strong> atrás.<br />

d) Suprimindo-se a oitava do Domingo de Pentecostes, os dias feriais entre a Ascensão e o<br />

Pentecostes foram, em contrapartida, valoriza<strong>dos</strong>, e adquiriram especial importância: «foram<br />

enriqueci<strong>dos</strong> com formulários próprios, nos quais se trazem à memória as promessas de Cristo a<br />

respeito da vinda do Espírito Santo» 21 .<br />

e) A primeira semana continua a ser considerada como oitava da Páscoa, semana<br />

tradicionalmente destinada à catequese mistagógica para os neófitos da Vigília pascal. Conserva, no<br />

Missal, os textos anteriores sobre as aparições do Senhor ressuscitado e as primeiras pregações <strong>dos</strong><br />

Apóstolos sobre o mistério da Páscoa de Jesus.<br />

VIII. – O ESPÍRITO DO TEMPO PASCAL<br />

1. O tempo do Espírito<br />

De tudo o que pudemos observar, quer quanto às origens, quer quanto à evolução do Tempo<br />

<strong>Pascal</strong>, poderíamos concluir que ele é o Tempo do Espírito. Do Espírito são to<strong>dos</strong> os tempos [...]<br />

Mas é sobretudo desde que o Senhor foi glorificado que o Espírito de Deus encheu a terra inteira.<br />

Os grilhões da morte, que a ressurreição quebrou, soltaram também o vento do Espírito. É Ele que<br />

traz a este mundo, que o homem semeou e continua a semear de pecado, o sopro vital de Deus,<br />

fonte de vida nova, a vida do Senhor glorificado e glorificador.<br />

2. O tempo da Igreja<br />

Logo na própria Vigília pascal a Igreja celebra os sacramentos da iniciação cristã. Ela sabe<br />

que nasceu do lado do Senhor adormecido na Cruz, donde jorraram os símbolos sacramentais do<br />

Sangue e da Água, e que fez a sua grande epifania no mundo, quando o Espírito desceu e, de to<strong>dos</strong><br />

os povos, fez um só povo, o povo <strong>dos</strong> remi<strong>dos</strong> pelo Sangue de Cristo.<br />

O Tempo <strong>Pascal</strong> foi sempre, e devia voltar a sê-lo, o tempo da redescoberta <strong>dos</strong> sacramentos<br />

da Igreja, particularmente <strong>dos</strong> sacramentos da iniciação cristã, Baptismo, Confirmação e Eucaristia,<br />

também eles entendi<strong>dos</strong> na unidade da mesma acção do Espírito. Por eles, ao longo das idades, o<br />

Espírito de Deus vai tornando presente aos homens o Mistério <strong>Pascal</strong> do Senhor Jesus. Por isso, ele<br />

21 Cal. Rom., Commentarius, 1, 2, A) 3).<br />

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é, por excelência, o tempo da mistagogia.<br />

Faz também parte desta mistagogia pascal a descoberta e o aprofundamento do mistério da<br />

própria Igreja, da vida da comunidade cristã onde nos inserimos. [...]<br />

<strong>3.</strong> Tempo de acção de graças<br />

[...] O Tempo <strong>Pascal</strong> é, por excelência, este tempo de reconhecer, de louvar e dar graças, de<br />

viver da vida pascal do Espírito do Ressuscitado.<br />

Se os antigos punham de parte as formas penitenciais, concretamente o rezar de joelhos e o<br />

jejum, não era por não terem consciência de que a conversão é atitude de to<strong>dos</strong> os dias; era porque<br />

sabiam que cada coisa há-de ter o seu tempo e o seu lugar, e que nestes dias, os dias em que o<br />

Esposo estava com eles, tinham de alegrar-se e viver em festa.<br />

Esta festa nasce do coração encantado com a presença do Ressuscitado, glorioso, dador do<br />

Espírito de Deus. Durante o Tempo <strong>Pascal</strong>, a Igreja parece continuar a atitude de Maria Madalena<br />

na manhã da ressurreição: procura o Senhor, não tira os olhos d’Ele, contempla-O, encanta-se com a<br />

sua presença e só sabe dizer-Lhe palavras de quem está encantado: «Rabuni! Este é o dia que o<br />

Senhor fez! Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom! A sua misericórdia é eterna! A terra inteira<br />

está cheia da sua glória! Cantai um cântico novo! Anunciai até aos confins da terra: ‘O Senhor<br />

libertou o seu povo!’» Contempla-O como o Bom Pastor, que deu a vida por ela; acolhe-O nas suas<br />

aparições; senta-se com Ele à mesa; partilha do mesmo pão. Não fica romanticamente triste no dia<br />

da Ascensão, porque O vê glorificado e n’Ele contempla a sua própria glória, a glória a que também<br />

ela se sabe chamada; e tem consciência de que é agora que Ele está mais com ela, e com ela ficará<br />

até à consumação <strong>dos</strong> <strong>séculos</strong> (cf. Mt. 28, 20).<br />

4. O símbolo do mundo que há-de vir<br />

Não é para admirar que um <strong>dos</strong> aspectos mais sublinha<strong>dos</strong> pela tradição cristã, nos Padres da<br />

Igreja, seja a perspectiva escatológica do Tempo <strong>Pascal</strong>. Ele é ainda «tempo», e, por isso, ainda<br />

deste mundo; mas, pelo mistério que celebra – o Mistério <strong>Pascal</strong> – e até pela sua própria estrutura –<br />

uma semana de semanas mais o oitavo Domingo – o Tempo <strong>Pascal</strong> é o símbolo do «mundo que háde<br />

vir». Um testemunho, entre muitos, de S. Basílio, bispo de Cesareia da Capadócia († 379):<br />

«Todo o Pentecostes nos recorda a ressurreição que esperamos no outro mundo. Na verdade,<br />

este dia um e primeiro, sete vezes multiplicado por sete, completa as sete semanas do santo<br />

Pentecostes, porque ele começa no “primeiro (dia)” e nele termina, desdobrando-se<br />

cinquenta vezes, no intervalo, em dias semelhantes. Por isso, o Pentecostes imita, de certo<br />

modo, a eternidade, porque, à maneira do movimento circular, vem a terminar onde<br />

começou. Nele, é a atitude de pé na oração que as leis da Igreja nos ensinaram a preferir;<br />

esta evocação em acto faz, por assim dizer, emigrar a parte superior do nosso espírito do<br />

presente ao que há-de vir» 22 .<br />

E S. Isidoro de Sevilha, ainda nos fins do século VI ou já no século VII, podia, na nossa península<br />

hispânica, continuar a escrever:<br />

«Sete multiplicado por sete dá cinquenta, se lhe juntarmos uma unidade, que, segundo a<br />

tradição vinda da autoridade <strong>dos</strong> antigos, prefigura o século futuro. Este dia é sempre o<br />

oitavo e o primeiro; mais ainda, ele é sempre único, é o Dia do Senhor» 23 .<br />

[Fim do artigo: J. FERREIRA, «O Tempo <strong>Pascal</strong> na Tradição da Igreja»]<br />

22 S. BASÍLIO DE CESAREIA, De Spir. Sancto, 27, col. Sources Chrétiennes, 17, p. 237 c); cf. CABIÉ, op. cit., p.<br />

51.<br />

23 S. ISIDORO DE SEVILHA, De eccl. Offic., I, 24, in H. CABIÉ, op. cit., p. 51.<br />

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<strong>3.</strong>4. Quaresma<br />

A Quaresma é um período de cerca de 40 dias, que se destina a preparar-nos para a<br />

celebração e vivência da Páscoa. “O Tempo da Quaresma destina-se a preparar a celebração da<br />

Páscoa: a liturgia quaresmal prepara para a celebração do mistério pascal tanto os catecúmenos,<br />

através <strong>dos</strong> diversos graus da iniciação cristã, como os fiéis, por meio da recordação do Baptismo e<br />

das práticas de penitência” (27). Assim, a Quaresma existe por causa da Páscoa e tem uma dupla<br />

característica: baptismal e penitêncial.<br />

As origens da Quaresma não são claras. O seu elemento mais antigo é o jejum. Já desde o<br />

século II que os cristãos se preparavam para a Páscoa com um jejum de dois dias. Tratava-se, é<br />

certo, do jejum pascal. Com o tempo, a duração do jejum foi aumentando. Em finais do século III<br />

ou inícios do IV surge, no Egipto, um jejum de quarenta dias. Não tinha, inicialmente, o sentido de<br />

preparação para a Páscoa, mas sim de celebrar o jejum do Senhor no deserto, ao longo de 40 dias.<br />

Porém, depressa este período de jejum se começou a orientar para preparação da celebração da<br />

Páscoa. E já em 325, o cânon 5 do Concílio de Niceia fala da Quadragesima paschae como de algo<br />

normal e já conhecido de to<strong>dos</strong>.<br />

S. Jerónimo, a quem devemos o mais antigo testemunho da existência da Quaresma em<br />

Roma (numa carta a Marcela, em 384), numa das suas homilias relaciona expressamente essa<br />

prática com os 40 dias de jejum de Jesus no deserto:<br />

Os servos do Senhor devem jejuar sempre, mas mais ainda agora que nos<br />

preparamos para o sacrifício do Cordeiro, para o sacramento do Baptismo, para a<br />

Comunhão do Corpo e do Sangue de Cristo (...) Por isso, irmãos caríssimos, a<br />

partir do momento em que fazemos a nossa preparação para o Sacramento do<br />

Senhor, através de um jejum de quarenta dias, jejuamos em expiação <strong>dos</strong> nossos<br />

peca<strong>dos</strong>, durante tantos dias quantos o próprio Senhor quis jejuar pelas nossas<br />

iniquidades (S. Jerónimo, Homilia sobre a Quaresma).<br />

Historicamente, a Quaresma nasce da conjugação de 3 itinerários distintos:<br />

- Por um lado, uma vez que a Vigília <strong>Pascal</strong> era a grande data da celebração da iniciação cristã, a<br />

noite baptismal por excelência, o período que a antecedia era um tempo de preparação intensa <strong>dos</strong><br />

que iam ser baptiza<strong>dos</strong>. Daí o carácter baptismal deste tempo.<br />

- Por outro lado, esse mesmo período era também o da preparação <strong>dos</strong> penitentes para a<br />

reconciliação, na manhã de quinta-feira santa.<br />

- Por fim, dada a importância das celebrações pascais, sentiu-se a necessidade de proporcionar à<br />

comunidade cristã um tempo de preparação, marcado pelos dois itinerários já indica<strong>dos</strong> - baptismal<br />

e penitencial. O modelo desse tempo vai-se então buscar à passagem de Cristo pelo deserto, durante<br />

40 dias. Daí que esse texto evangélico se tenha fixado para o primeiro domingo da Quaresma<br />

Foi, pois, no decurso do século IV que a Quaresma, como período de 40 dias de jejum de<br />

preparação para a Páscoa, se formou. Em Roma, ainda em mea<strong>dos</strong> do século IV, o jejum de<br />

preparação para a Páscoa era de apenas 3 semanas (isto testemunha Sócrates escolástico, + 450);<br />

nos 3 domingos liam-se as perícopas joaninas da Samaritana, da cura do cego de nascença e da<br />

ressurreição de Lázaro (os grandes textos evangélicos da preparação para o baptismo). Foi no<br />

período entre 354 e 384 que, em Roma, se chegou a um tempo de 40 dias de preparação para a<br />

Páscoa.<br />

A Bíblia associa este número a perío<strong>dos</strong> de espera, de preparação de algo importante, de<br />

humilhação, de esforço, de penitência e de luta. Só no fim <strong>dos</strong> 40 dias ou anos há o encontro, o<br />

prémio, o dom, a vitória. Abundam as referências bíblicas ao número 40. O facto de Jesus se ter<br />

retirado para o deserto durante 40 dias recorda-nos os 40 anos de peregrinação de Israel pelo<br />

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deserto, a caminho da terra prometida; tempo de provação e dificuldade, mas também de<br />

experiência da misericórdia de Deus; tempo de provação e murmuração contra o Senhor, mas<br />

também de Aliança. Os 40 dias no deserto recordam-nos os 40 dias que Moisés esteve no Sinai, em<br />

jejum e na presença do Senhor. Os 40 dias que Elias caminhou pelo deserto, em direcção ao monte<br />

Horeb, onde encontrou o Senhor; caminhada na qual o profeta sentiu fome e cedeu ao cansaço e ao<br />

desânimo, mas também na qual foi fortalecido pelo alimento que Deus lhe enviou e animado a<br />

continuar a marcha. Os 40 dias durante os quais o gigante Golias, o filisteu, desafiou Israel, até ser<br />

derrotado e morto por David. Ainda os 40 dias de penitência <strong>dos</strong> ninivitas, depois da pregação de<br />

Jonas.<br />

O jejum, que tem claro sentido penitêncial, no mundo bíblico, estava profundamente ligado<br />

ao simbolismo do número 40: na travessia do deserto, ao longo de 40 anos, o povo sentiu fome;<br />

Moisés jejuou nos 40 dias no Sinai; Elias sentiu fome na sua caminhada para o Horeb; os ninivitas<br />

fizeram penitência e jejuaram depois da pregação de Jonas.<br />

A Quaresma iniciava-se no VI domingo antes da Páscoa. Disso dá claro testemunho Leão<br />

Magno, nos seus sermões para o primeiro domingo da Quaresma. Porém, em finais do século V,<br />

começam a ganha importância os dias de jejum da quarta e sexta-feira antes desse primeiro<br />

domingo da Quaresma: eram uma espécie de preparação da penitência quaresmal. Este recuo do<br />

início da Quaresma estava ligado ao desejo de completar realmente os 40 dias de penitência: se os<br />

domingos não eram dias penitenciais, então era necessário juntar mais uns dias para completar os 40<br />

(a conta, porém, saí errada, pois se contabilizaram os dias da semana santa, quando a partir de<br />

quinta-feira santa à tarde deixa de ser Quaresma…). O GeV (n. 83) já designa essa quarta-feira<br />

como Caput Quadragesimae.<br />

Nessa quarta-feira antes do primeiro domingo da Quaresma introduziu-se o hábito de impor<br />

cinza sobre a cabeça <strong>dos</strong> penitentes públicos que se preparavam para ser reconcilia<strong>dos</strong> na quintafeira<br />

santa seguinte. Antes de se ter fixado na quarta-feira, esse rito de imposição das cinzas já se<br />

fazia na segunda-feira depois do primeiro domingo da Quaresma. Os penitentes vestiam-se de<br />

vestes grosseira (saco) e impunham cinzas sobre si mesmos, em sinal de luto, de arrependimento e<br />

de penitência. A seguir, com grande dramatismo, eram expulsos da igreja. O gesto de cobrir a<br />

cabeça de cinzas ou de sentar-se na cinza, ou mesmo rebolar na cinza era já bem conhecido do<br />

Antigo Testamento e da Igreja primitiva:<br />

- Indicava a fragilidade da condição humana (o livro do Génesis diz-nos que o homem foi<br />

criado do pó [cinza])<br />

- Indicava arrependimento e penitência (quando os ninivitas ouviram a pregação de Jonas,<br />

vestiram-se de saco, ordenaram um jejum e o rei sentou-se na cinza; Jeremias convida os<br />

habitantes de Jerusalém a cobrirem-se de cinzas, como sinal de arrependimento <strong>dos</strong> seus<br />

peca<strong>dos</strong>)<br />

- Indicava dor (diante de uma grande desgraça ou catástrofe, vestir-se de saco e cobrir-se de<br />

cinza era símbolo da dor dilacerante que se experimentava)<br />

Quando a prática da penitência canónica ou pública entrou em desuso, o rito das cinzas não<br />

se perdeu: passou progressivamente a to<strong>dos</strong> os fiéis, to<strong>dos</strong> convida<strong>dos</strong> a reconhecer a sua condição<br />

de pecadores e a fazer penitência. Esta prática está testemunhada a partir de finais do século XI. Em<br />

1091, o Papa Urbano II estendeu este costume a todas as Igrejas: impunha-se cinza sobre a cabeça<br />

<strong>dos</strong> clérigos e <strong>dos</strong> homens, ao passo que se fazia apenas um sinal da cruz com cinza na testa das<br />

mulheres (porque iam de véu para a celebração). No século XII aparece pela primeira vez a<br />

indicação de que se usassem os ramos benzi<strong>dos</strong> no domingo de ramos do ano anterior para obter as<br />

cinzas. A denominação de “quarta-feira de cinzas” (Feria IV Cinerum) só aparece, porém, no século<br />

XV, sendo depois acolhida no Missal de 1570.<br />

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A partir do século VI e VII, o tempo da Quaresma foi-se alargando com a “pré-quaresma”,<br />

constituida progressivamente pelo VII domingo antes da Páscoa (quinquagesima), pelo VIII<br />

(sexagesima) e pelo IX (septuagesima). Os formulários para estes 3 domingos da pré-quaresma<br />

estão já presentes no GeV (n. 69-72, 73-77 e 84-88). Posteriormente, estes domingos entraram no<br />

Missal de 1570 e mantiveram-se até à reforma litúrgica depois do Vaticano II.<br />

O Vaticano II (SC 109-110) definiu claramente o sentido que deveria tomar a reforma deste<br />

tempo litúrgico:<br />

109. Ponham-se em maior realce, tanto na Liturgia como na catequese litúrgica, os<br />

dois aspectos característicos do tempo quaresmal, que pretende, sobretudo<br />

através da recordação ou preparação do Baptismo e pela Penitência, preparar os<br />

fiéis, que devem ouvir com mais frequência a Palavra de Deus e dar-se à oração<br />

com mais insistência, para a celebração do mistério pascal. Por isso:<br />

a) utilizem-se com mais abundância os elementos baptismais próprios da liturgia<br />

quaresmal e retomem-se, se parecer oportuno, elementos da antiga tradição;<br />

b) o mesmo se diga <strong>dos</strong> elementos penitenciais. Quanto à catequese, inculque-se<br />

nos espíritos, de par com as consequências sociais do pecado, a natureza própria<br />

da penitência, que é detestação do pecado por ser ofensa de Deus; nem se deve<br />

esquecer a parte da Igreja na prática penitenciai, nem deixar de recomendar a<br />

oração pelos pecadores.<br />

110. A penitência quaresmal deve ser também externa e social, que não só interna<br />

e individual. Estimule-se a prática da penitência, adaptada ao nosso tempo, às<br />

possibilidades das diversas regiões e à condição de cada um <strong>dos</strong> fiéis.<br />

São estas orientações que as Normas Gerais do Ano Litúrgico e do Calendário procuram<br />

concretizar.<br />

A Quaresma começa na Quarta-feira de Cinzas, e termina com a celebração da Missa<br />

Vespertina da Ceia do Senhor, que já pertence ao Tríduo <strong>Pascal</strong> (28). Neste tempo, particular<br />

destaque merece a última semana, a Semana Santa: começa com a celebração do “Domingo de<br />

Ramos na Paixão do Senhor”, e “destina-se a comemorar a Paixão de Cristo desde a sua entrada<br />

messiânica em Jerusalém” (31).<br />

Quanto à celebração que dá início à Quaresma, em quarta-feira de cinzas, manteve o gesto<br />

de imposição das cinzas. Antes, a imposição das cinzas era acompanhada da frase “Lembra-te<br />

homem que és pó e que em pó te hás-de tornar” (cf. Gn 3, 19). Agora, alem dessa frase, o Missal<br />

apresenta outra fórmula alternativa, mais evangélica: “Convertei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc<br />

1, 15). As duas orações de bênção das cinzas sublinham que o rito se entende como início da<br />

caminhada quaresmal, pedindo que aqueles que recebemos as cinzas cheguemos purifica<strong>dos</strong> ao fim<br />

da Quaresma, para celebrarmos melhor a grande festa da Páscoa. As leituras deste dia são como que<br />

uma síntese de todo o programa da Quaresma, sublinhando o seu sentido e apresentando as atitudes<br />

que devemos adoptar no caminho de conversão que nos é oferecido.<br />

A palavra que melhor sintetiza a dimensão penitêncial deste tempo é a palavra “conversão”.<br />

A Quaresma é, fundamentalmente, tempo de conversão, para uma melhor celebração da Páscoa. Na<br />

tradição cristã são 3 os meios mais significativos para esta conversão, que são ofereci<strong>dos</strong> a to<strong>dos</strong> os<br />

cristãos: a oração, o jejum e a esmola. Estes três meios por excelência para a conversão quaresmal<br />

são inseparáveis. Não se trata de escolher um deles, mas de os abraçar em conjunto. Di-lo<br />

claramente São Pedro Crisólogo, num sermão (Ofício de Leitura da terça-feira da III semana da<br />

Quaresma):<br />

Há três coisas, irmãos, pelas quais se confirma a fé, se fortalece a devoção<br />

e se mantém a virtude: a oração, o jejum e a misericórdia. O que pede a oração,<br />

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alcança-o o jejum e recebe-o a misericórdia. Oração, jejum e misericórdia: três<br />

coisas que são uma só e se vivificam mutuamente.<br />

O jejum é a alma da oração, e a misericórdia é a vida do jejum. Ninguém<br />

tente dividi-las, porque são inseparáveis. Quem pratica apenas uma das três, ou<br />

não as pratica todas simultaneamente, na realidade não pratica nenhuma delas.<br />

Portanto, quem ora, jejue; e quem jejua, pratique a misericórdia. Quem deseja ser<br />

atendido nas suas orações, atenda as súplicas de quem lhe pede, pois aquele que<br />

não fecha os seus ouvi<strong>dos</strong> às súplicas alheias, abre os ouvi<strong>dos</strong> de Deus às suas<br />

próprias súplicas. [...]<br />

Façamos, portanto, destas três virtudes – oração, jejum, misericórdia – uma<br />

única força mediadora junto de Deus em nosso favor; sejam para nós uma única<br />

defesa, uma única operação sob três formas distintas.<br />

A Palavra de Deus. Quanto aos textos do Evangelho, “no primeiro e segundo Domingos,<br />

conservam-se as narrações da Tentação e da Transfiguração do Senhor” (OLM 97). Nos três<br />

Domingos seguintes, a Quaresma apresenta três itinerários distintos: no ano A um itinerário<br />

baptismal; no ano B um itinerário cristológico; no ano C um itinerário penitencial. “As leituras do<br />

Antigo Testamento referem-se à história da Salvação (...) As leituras do Apóstolo foram escolhidas<br />

de maneira a corresponderem às leituras do Evangelho e do Antigo Testamento e, na medida do<br />

possível, a haver entre elas uma adequada conexão” (OLM 97).<br />

Neste tempo, a Palavra de Deus apresenta-nos Jesus Cristo como o protagonista. Como<br />

tempo de preparação para a Páscoa, a Quaresma nunca nos deixa perder de vista esse horizonte.<br />

Vejamos:<br />

- Jesus aparece como o vencedor do demónio / vencido na cruz / mas vitorioso na Páscoa<br />

- Jesus transfigura-se no monte Tabor / aparece desfigurado na cruz /mas revelar-se-á<br />

definitivamente como o Ressuscitado, o plenamente transfigurado<br />

- Jesus sacia a sede da samaritana / apresenta-se sedento na cruz / e manifesta-se como fonte da vida<br />

nova no Espírito<br />

- Dá luz ao cego de nascença / as trevas marcam a sua morte / mas vive agora como aquele que nos<br />

dá a luz da vida<br />

- Ressuscita Lázaro / mas aceita submergir na morte e descer ao sepulcro / para se converter em<br />

Vida e fonte de vida.<br />

A Quaresma é preparação, mas ao mesmo tempo anúncio do mistério pascal da Paixão, morte e<br />

ressurreição de Jesus.<br />

Jesus, além de protagonista, aparece-nos, neste tempo, como o mestre, aquele que nos guia<br />

nesta caminhada quaresmal. Isso é particularmente evidente nas leituras <strong>dos</strong> dias feriais, que nos<br />

apresentam os temas fundamentais da vida cristã. A conversão surge como o grande apelo feito a<br />

cada cristão, conversão que Jesus concretiza nos caminhos que nos aponta, em ordem a um<br />

seguimento mais radical.<br />

Jesus aparece-nos, na Quaresma, por fim, como o modelo a imitar: assim como Jesus vai<br />

para o deserto 40 dias e vence as tentações, também nós somos desafia<strong>dos</strong> a fazer deste tempo a<br />

imitação de Jesus.<br />

Carácter baptismal da Quaresma. Apesar da caracterização da Quaresma como tempo<br />

baptismal e penitencial, a verdade é que os sinais exteriores da Quaresma apontam sobretudo para a<br />

dimensão penitêncial: a cor roxa, a ausência do Aleluia e do hino de Glória, a ausência de<br />

ornamentação do altar... Note-se, porém, que essa dimensão penitencial não se compreende sem a<br />

dimensão baptismal: o que se pretende com a prática penitencial é recuperar a vida baptismal.<br />

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“Pelos sacramentos da iniciação cristã, o homem recebe a vida nova de Cristo. Ora, esta vida, nós<br />

trazemo-la «em vasos de barro» (2 Cor 4, 7)” (Catecismo 1420). Esta vida nova está, pois, sujeita à<br />

nossa fragilidade e é, muitas vezes, marcada pelo pecado, pela infidelidade.<br />

Por isso, a Carta circular da CCD sobre a preparação e celebração das festas pascais, pede<br />

aos pastores que ajudem os fiéis a compreenderem a importância, para o crescimento da sua<br />

vida espiritual, da profissão de fé baptismal, que eles serão convida<strong>dos</strong> a renovar na<br />

mesma Vigília, «termina<strong>dos</strong> os exercícios da observância quaresmal» (CCD, Carta sobre a<br />

Preparação e a celebração das festas pascais [16 de Janeiro de 1988], n. 8). Assim, durante a<br />

Quaresma, os fiéis, ouvindo de uma forma mais intensa a Palavra de Deus e aplicando-se<br />

mais à oração, preparam-se, pela Penitência, para renovar as promessas do Baptismo»<br />

(CCD, Carta, n. 6).<br />

Também é importante recordar o que o RICA (21-26) determina para o período quaresmal.<br />

“O terceiro tempo, mais breve, que habitualmente coincide com a preparação para as<br />

solenidades pascais e para os sacramentos, é destinado à purificação e à iluminação”<br />

(RICA 7). Esta etapa orienta-se para uma preparação mais intensa da celebração <strong>dos</strong> sacramentos da<br />

iniciação cristã. “Durante este tempo, os catecúmenos são objecto de uma preparação<br />

interior mais intensa. Esta tem mais em vista o recolhimento espiritual do que a<br />

catequese, e destina-se à purificação do coração e da mente, através do exame de<br />

consciência e da penitência, e à sua iluminação por meio do conhecimento mais<br />

aprofundado de Cristo Salvador.” (RICA 25). Trata-se de uma “recolecção espiritual” para os<br />

eleitos e toda a comunidade no tempo da Quaresma, conforme a expressão do próprio ritual (RICA<br />

152).<br />

Este período quaresmal é o mais rico em celebrações. Temos antes de mais os Escrutínios,<br />

que têm como elemento fundamental o exorcismo. Os escrutínios são ritos estritamente dominicais<br />

e têm lugar nos III, IV e V Domingos da Quaresma. Implicam a opção pelo leccionário do Ano A,<br />

onde se encontram as três perícopas evangélicas fundamentais deste conjunto ritual. “Assim os<br />

catecúmenos vão pouco a pouco sendo instruí<strong>dos</strong> sobre o mistério do pecado, do qual o<br />

mundo inteiro e cada homem em particular anseia por ser remido, para se libertar das<br />

suas consequências presentes e futuras; e por outro lado para que o espírito se vá<br />

impregnando do sentido de Cristo Redentor, que é a água viva (Evangelho da<br />

samaritana), a luz (Evangelho do cego de nascença), a ressurreição e a vida (Evangelho<br />

da ressurreição de Lázaro)” (RICA 157).<br />

Além <strong>dos</strong> Escrutínios, neste etapa faz-se a entrega ou “Tradição do Símbolo” (RICA, 183-<br />

187.194-199) e a entrega ou “Tradição da Oração Dominical” (RICA, 188-192). Completada a<br />

instrução <strong>dos</strong> catecúmenos, recebem da Igreja os documentos que são considera<strong>dos</strong> o compêndio da<br />

fé da Igreja ( Símbolo, isto é, o Credo) e da sua oração (a Oração Dominical, o Pai Nosso). Mais<br />

uma vez se insiste na presença da comunidade nestes momentos celebrativos: “É para desejar que<br />

as «tradições» se façam na presença de toda a comunidade <strong>dos</strong> fiéis”.<br />

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