D FATO quatro.cdr - Associação do Ministério Público de Pernambuco
D FATO quatro.cdr - Associação do Ministério Público de Pernambuco
D FATO quatro.cdr - Associação do Ministério Público de Pernambuco
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Artigo<br />
Uma verda<strong>de</strong> inconveniente<br />
O crime como uma opção<br />
antiética no Brasil<br />
* Patricia Ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Melo<br />
Em plena juventu<strong>de</strong> da Constituição<br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988, qual o olhar que os<br />
indivíduos lançam sobre a socieda<strong>de</strong><br />
brasileira <strong>do</strong> século XXI? A verda<strong>de</strong><br />
inconveniente que queremos contar é<br />
uma reflexão para os promotores <strong>de</strong><br />
Justiça corajosos <strong>do</strong> Brasil. Enquanto<br />
nas socieda<strong>de</strong>s antigas a unida<strong>de</strong> básica<br />
era a família, na socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna o<br />
indivíduo centraliza o olhar <strong>do</strong>s<br />
governantes. É para ele que se dirigem<br />
as políticas públicas, ele é o “pivô” das<br />
ações governamentais.<br />
No Brasil, porém, ser indivíduo<br />
parece negativo, a palavra<br />
carrega um senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> estar à<br />
margem. Há uma <strong>de</strong>sconfiança<br />
no Esta<strong>do</strong> e no governo, e uma<br />
confiança na família e nos<br />
parentes. O indivíduo, isola<strong>do</strong>,<br />
<strong>de</strong>stituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma boa re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
relações sociais (o chama<strong>do</strong><br />
know-who,<br />
que po<strong>de</strong>mos<br />
traduzir como quem você<br />
conhece?), é marginal porque<br />
não dispõe <strong>de</strong> relacionamento<br />
com políticos, empresários ou<br />
servi<strong>do</strong>res da lei para facilitar o<br />
“trânsito” social. Assim, ser<br />
brasileiro parece difícil, porque<br />
a Constituição Fe<strong>de</strong>ral não se traduz<br />
igualmente para os <strong>de</strong>stituí<strong>do</strong>s <strong>de</strong> boas<br />
relações.<br />
Falarmos <strong>de</strong> paz e segurança pública<br />
no contexto atual <strong>do</strong> Brasil remete-nos<br />
ao crime <strong>de</strong> rua que nos assusta no<br />
cotidiano. Ao pensarmos no crime, o<br />
senso comum nos força a associá-lo ao<br />
pobre. Este me<strong>do</strong> coletivo <strong>de</strong>corre da<br />
condição <strong>de</strong> ”ninguém” <strong>de</strong>terminada ao<br />
pobre, <strong>de</strong>pois da construção imaginária<br />
que o jogou à marginalida<strong>de</strong>.<br />
Destituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma boa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações,<br />
o pobre é associa<strong>do</strong> ao crime e recebe<br />
esta i<strong>de</strong>ntificação sem que haja<br />
correlação efetiva que a justifique, ele é<br />
o bo<strong>de</strong> expiatório escolhi<strong>do</strong> por aqueles<br />
08<br />
que são “alguém” políticos e<br />
encarrega<strong>do</strong>s das instituições<br />
responsáveis pela or<strong>de</strong>m pública<br />
para pagar por toda sorte <strong>de</strong> crime no<br />
Brasil.<br />
Precisamos refletir: quem tem<br />
po<strong>de</strong>r para <strong>de</strong>finir o que é o agir<br />
<strong>de</strong>linquente e quem é criminoso?<br />
Quan<strong>do</strong> a lei associa significa<strong>do</strong>s<br />
negocia<strong>do</strong>s no Congresso Nacional e<br />
hierarquiza o agir criminoso está, em<br />
tese, aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a um clamor social, a<br />
uma disputa <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que é pior<br />
em termos <strong>de</strong> ação humana.<br />
...Destituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma boa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações, o<br />
pobre é associa<strong>do</strong> ao crime e recebe esta<br />
i<strong>de</strong>ntificação sem que haja correlação efetiva que<br />
a justifique, ele é o bo<strong>de</strong> expiatório escolhi<strong>do</strong> por<br />
aqueles que são “alguém”...<br />
Significa<strong>do</strong>s são negocia<strong>do</strong>s e<br />
hierarquiza<strong>do</strong>s sobre as ações. Estes<br />
agentes autoriza<strong>do</strong>s protegem, <strong>de</strong><br />
alguma forma, o po<strong>de</strong>r e a posição <strong>de</strong><br />
alguns grupos na estrutura social.<br />
Ainda que na socieda<strong>de</strong><br />
contemporânea <strong>de</strong>svios <strong>de</strong> recursos<br />
públicos, sonegação fiscal, frau<strong>de</strong>s e<br />
ações violentas sejam estabelecidas<br />
como crimes, na lógica <strong>de</strong> valor <strong>do</strong><br />
senti<strong>do</strong>, os chama<strong>do</strong>s crimes <strong>de</strong> rua<br />
são mais sérios <strong>do</strong> que os crimes <strong>de</strong><br />
colarinho branco.<br />
Não por acaso, a lei foi aos poucos<br />
<strong>de</strong>scriminalizan<strong>do</strong> e medicalizan<strong>do</strong> o<br />
consumi<strong>do</strong>r <strong>de</strong> drogas normalmente<br />
<strong>de</strong> classes média e alta e<br />
criminalizan<strong>do</strong> o traficante em geral,<br />
<strong>de</strong> classe pobre. Esta competição <strong>de</strong><br />
significação <strong>do</strong> que vem a ser pior fica<br />
clara no caso das drogas com a divisão<br />
<strong>de</strong> senti<strong>do</strong> entre consumo e tráfico após<br />
os anos 60: os consumi<strong>do</strong>res eram<br />
rotula<strong>do</strong>s <strong>de</strong> fracos e tristes,<br />
corrompi<strong>do</strong>s pelos traficantes e<br />
passíveis <strong>de</strong> tratamento. Os traficantes<br />
eram tipos maus que mereciam<br />
punição. Isso foi a pedra fundamental<br />
para anos <strong>de</strong><br />
permissivida<strong>de</strong>, que<br />
fomentou a consequente (e<br />
talvez fracassada) guerra<br />
contra as drogas nos anos<br />
posteriores.<br />
Fala-se que o problema<br />
no Brasil é <strong>de</strong> educação,<br />
mas não é apenas. Na<br />
verda<strong>de</strong>, é <strong>de</strong> ética. Isso<br />
porque ricos e pobres que<br />
têm ética são honestos.<br />
Esta regra não vale para os<br />
<strong>do</strong>utores que sonegam<br />
impostos no Brasil e<br />
aproveitam as<br />
oportunida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> know-who para se<br />
proteger da lei. Vejamos o exemplo da<br />
última semana <strong>de</strong> maio <strong>de</strong>ste ano:<br />
cerca <strong>de</strong> 70 jovens entre 20 e 30 anos<br />
foram presos por crimes <strong>de</strong> roubo<br />
cibernético (acesso a contas correntes e<br />
<strong>de</strong>svio <strong>do</strong> dinheiro). A <strong>de</strong>claração <strong>do</strong><br />
policial fe<strong>de</strong>ral foi a<strong>de</strong>quada: to<strong>do</strong>s<br />
jovens, inteligentes e com formação,<br />
“estão no crime por escolha”. É isso:<br />
pensar no crime como uma opção ética<br />
em verda<strong>de</strong>, antiética.<br />
Explicações simplistas que associam<br />
o crime à pobreza esquecem <strong>de</strong><br />
explicar o crime <strong>de</strong> políticos,<br />
empresários e <strong>de</strong> juízes e advoga<strong>do</strong>s<br />
envolvi<strong>do</strong>s com a criminalida<strong>de</strong>,