You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
da hierarquia eclesiástica (CHAUNU, 1993: 217), e sua principal característica seria a<br />
ideia de que existe mais na vida interior pessoal do que na liturgia. A devotio moderna,<br />
como salienta Chaunu, está próxima do Cristo da Dor e vive a pietá: “O seu Cristo é<br />
homem e desceu do vitral” (CHAUNU, 1993: 217). No âmbito de uma perspectiva<br />
análoga, nos Países Baixos, por volta de 1280, fazem-se notar também os “Irmãos da<br />
vida comum”. Mas talvez um dos símbolos mais característicos da devotio moderna<br />
seja Tomás de Kempis (1380-1471), que é considerado o possível autor da famosa<br />
Imitação de Jesus Cristo, um dos livros mais difundidos em sua época, que acabara de<br />
ser beneficiada com a invenção da imprensa.<br />
8 Wycliff<br />
A base do pensamento de Wycliff (1324-1384) – professor de Teologia em Oxford –<br />
reside na franca oposição à ideia do poder divino “delegado” à Igreja enquanto<br />
instituição. O poder de Deus é “retido”, e não “delegado” (para utilizar as próprias<br />
noções desenvolvidas por Wycliff).<br />
Neste sentido, nenhuma instituição terrestre, inclusive a Igreja comandada pela Santa<br />
Sé, poderia reivindicar para si direitos baseados na ideia de que o poder de Deus lhe<br />
teria sido delegado, fazendo dela o intermediário necessário entre os homens e Deus.<br />
Em relação a isto, seu primeiro tratado – o De domínio divino –, redigido em 1376, já<br />
apresenta embrionariamente todo o sistema de pensamento que seria desenvolvido em<br />
obras posteriores – como, por exemplo, o De civili domínio (1377), que começa por<br />
extrair do princípio geral algumas consequências relacionadas com o governo.<br />
Nos primeiros tratados de Wycliff já veremos bem desenvolvida a ideia – que seria de<br />
importância fulcral tanto para o movimento hussista como para o protestantismo de<br />
modo geral – de que o padre não tem qualquer poder delegado de Deus, cuja ação é<br />
sempre direta. Vale dizer, a Igreja já não seria aqui a instituição responsável por todas<br />
as mediações relacionadas a Deus, e na verdade o próprio conceito de “mediação” é<br />
questionado para este caso. Wycliff está se opondo aqui a uma ideia de mediação que<br />
constituíra até então a base da eclesiologia medieval, e que será também contestada,<br />
a seu tempo, por todas as linhas que de algum modo derivam dele até desembocarem<br />
mais tarde no protestantismo.<br />
O anticlericalismo de Wycliff expressa simultaneamente uma síntese das posições<br />
que nos dois séculos anteriores haviam constituído a mais ferrenha crítica à instituição<br />
eclesiástica – como a crítica à riqueza da Igreja, a declaração de uma superioridade da<br />
vida ativa sobre a vida contemplativa, e a afirmação da escritura como único guia – e<br />
uma síntese das proposições básicas que estariam por vir. Se de um lado Wycliff<br />
recusa à Igreja-instituição o seu tradicional papel de mediadora, no De officio Regis ele<br />
reconhece no poder real o único indício tangível do poder visível de Deus (CHAUNU,<br />
1993: 221). Os dois tratados de 1378 – De veritate Scripturae sancta e De Ecclesia –<br />
já prefiguram aspectos que seriam básicos para a Reforma Protestante.