01.05.2013 Views

Eu e o Mundo - Feevale

Eu e o Mundo - Feevale

Eu e o Mundo - Feevale

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

No final do terceiro mês, estavam tão familiarizados, que o jovem vinha<br />

visitá-lo quase todos os dias, e quando não vinha, sempre ligava. Algumas<br />

vezes, trazia-lhe presentes, sementes de plantas, vasinhos novos, garrafas<br />

de vinho e discos antigos. Às vezes, sequer conversavam, passando a tarde<br />

ouvindo os discos e bebendo o vinho em silêncio.<br />

Estava acabando o prazo para Martins entregar a matéria ao editor. Não<br />

havia começado a escrever uma só palavra e não o faria até ter o desfecho.<br />

“Será minha obra-prima”, disse certa vez, com um ar de arrogância que<br />

desagradou o senhor Scharnowski. “Bah, filho”, retrucou-lhe, “te entreguei<br />

minha vida e tu vais fazer dela um espetáculo”. O jovem desculpou-se, a<br />

contragosto, e pôs os olhos sobre o volume de O velho e o mar na estante.<br />

– Todo mundo deveria ler Hemingway – disse. – Na faculdade, só se liam<br />

livros didáticos e nada que se pudesse levar para a vida.<br />

– Não gostei do final – protestou o senhor Scharnowski.<br />

– Por que não?<br />

– Aquele velho é um idiota.<br />

– E do que gostou então?<br />

– Só do título.<br />

Certo dia, o senhor Scharnowski contou-lhe sobre seu problema com<br />

uísque. Contou como estragara sua vida por causa da “maldita aguinha cor<br />

de xixi”, e que podia tomar vinho à vontade, que seu alcoolismo não voltava,<br />

mas que, se colocasse na boca um gole de qualquer outra bebida, ou mesmo<br />

sentisse o cheiro, não poderia mais responder por si. Falou sobre o assalto<br />

que sua Mila Chazit sofrera há alguns anos e que terminara por acabar com<br />

sua vida, e falou sobre como as ruas eram perigosas, as pessoas cruéis, o<br />

mundo perverso. “A vida é pavorosa”, disse ele, num momento de reflexão,<br />

“não existe uma forma de viver sem que se esteja condenado ao corredor da<br />

morte”. Mas o jovem o contradisse: “Mesmo assim, não posso acreditar que<br />

isso nos baste para sentir medo; se eu passar tantos anos pensando na morte,<br />

não terei vivido um minuto sequer”. Estavam escorados sobre o parapeito<br />

da sacada, observando a movimentação lá embaixo, e então Martins lhe<br />

perguntou: “essa é a sua relação com o mundo?”. E o senhor Scharnowski<br />

respondeu sem ao menos pensar: “eu e o mundo somos uma relação que<br />

nunca deu certo”, disse.<br />

81

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!