SÉRIE ANTROPOLOGIA 275 UM PANORAMA DA MÚSICA ... - NRE
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o padrão rítmico original, mas usou um tipo de ritmos binários generalizados de umbanda, tais<br />
como o barravento, que ouvimos em casas de umbanda, macumba e jurema por todo o país.<br />
1. Vissungo (canto de escravo da área de mineração de Minas Gerais)<br />
Cantado por Clementina de Jesus<br />
Êi ê covicará iô bambi<br />
tuara uassage ô atundo mera<br />
covicara tuca tunda<br />
Dona Maria de Ouro Fino<br />
criola bonita num vai na venda<br />
chora chora chora só<br />
chora chora chora só<br />
A lingüista Yeda Pessoa de Castro, especialista em idiomas bantos, ofereceu-me a<br />
seguinte provável tradução da primeira parte do texto: “Está chovendo, de manhã cedo, e as<br />
galinhas estão ciscando o chão.”<br />
Nesse canto pode-se realizar o exercício típico da audição errada; muitas vezes o ouvinte<br />
acrescenta seu próprio desejo e muda o que escuta em uma letra de canção. Aqui, por exemplo,<br />
Clementina de Jesus deixa a energia da voz cair quase ao silêncio nas palavras “na venda”. Por<br />
muito tempo entendi que ela dizia “não vai nascer”: uma linda mulata não vai nascer.<br />
Para começar, o texto revela uma cena muito prosaica e doméstica, ligada aos arredores<br />
de uma vila da Minas Gerais colonial: de manhã cedo (geralmente as galinhas acordam com a<br />
aurora), está chovendo e por isso a mulatinha não pode ir à venda. Contudo, como todos os<br />
vissungos transmitem um significado esotérico, podemos arriscar alguma interpretação com base<br />
nas informações acessórias disponíveis. Os dois conjuntos de significantes, a saber, sua<br />
incapacidade de sair de casa e as pesadas gotas de chuva, ambas formam uma cadeia de<br />
significado coerente com a imagem das lágrimas derramando de seus olhos. E o nome ‘Dona<br />
Maria de Ouro Fino’, que poderia ser de uma sinhá, parece contrapor-se à imagem da mulata sem<br />
nome, quem sabe indicando a incapacidade da geração de uma beleza negra feminina em<br />
circunstâncias tão desumanas.<br />
Nesse vissungo, Clementina inspira o ar num momento que pode ser considerado<br />
"errado", do ponto de vista da música popular comercial. Numa gravação comercial, o produtor<br />
provavelmente teria pedido a ela para repetir a passagem. Contudo, sua respiração "errada" pode<br />
ser ouvida como simbolicamente correta, pois torna-se icônica do texto, que diz: ele chora, ele<br />
chora, sozinho. O defeito na voz, a respiração errada, pode ser ouvido iconicamente como o<br />
choro do escravo que não teve a oportunidade de fugir para o quilombo junto com o rapaz.<br />
2. Vissungo (canto de escravo da região de mineração de Minas Gerais) - cantado por Clementina<br />
de Jesus<br />
Muriquinho piquinino,<br />
ô parente<br />
muriquinho piquinino<br />
de quissamba na cacunda.<br />
Purugunta onde vai,<br />
ô parente.<br />
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