SÉRIE ANTROPOLOGIA 275 UM PANORAMA DA MÚSICA ... - NRE
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I. <strong>MÚSICA</strong> AFRO-BRASILEIRA: <strong>UM</strong>A VISÃO GERAL<br />
Tentarei apresentar aqui uma visão geral das várias tradições musicais de origem africana<br />
que se desenvolveram no Brasil a partir das primeiras décadas seguintes à chegada de escravos<br />
trazidos do continente africano ao país. As discussões incluirão formas ritualísticas e seculares<br />
de música afro-brasileira.<br />
Escritos como orientação para uma série de palestras, os argumentos tiveram de ser aqui<br />
apresentados de forma muito sintética. Espero que o leitor possa captar a perspectiva teórica geral<br />
parcialmente implícita nas análises e interpretações dos exemplos musicais que apresento. Não<br />
obstante, acredito que, ao término do texto, ficarão estabelecidos os contornos da abordagem que<br />
utilizo. Em poucas palavras, esta abordagem tenta extrair sentido de uma tradição musical tal<br />
como a afro-brasileira (onde praticamente todos os gêneros musicais são ao mesmo tempo<br />
gêneros cantados) pela articulação de pelo menos três das múltiplas dimensões de um texto<br />
cultural: textura musical das canções, textura poética das letras e inscrição oral da história social.<br />
Esta última dimensão é entendida aqui no sentido amplo do conjunto geral de condições práticas<br />
que moldaram aqueles gêneros musicais que conseguiram alcançar uma estabilidade formal, a<br />
qual lhes permitiu desenvolver uma vida parcialmente desvinculada das circunstâncias sociais<br />
e históricas iniciais que elas comentam por meio de signos estéticos.<br />
Interessa-me especialmente desenvolver um modelo conceitual que permita compreender<br />
como os gêneros são criados, ampliados e transformados no curso do tempo, e como certas peças<br />
de um repertório são recriadas quando passam de um gênero para outro. Isso implica a hipótese<br />
de uma unidade subjacente à experiência musical afro-brasileira. Existe um espaço nacional que,<br />
em determinada medida, forçou um processo de intertextualidade, mesmo que baseado nas<br />
condições de crueldade e horror características da escravidão. Contudo, tenho fortes motivos para<br />
acreditar que a música afro-brasileira experimentou, muito claramente, uma enorme expansão<br />
após a segunda metade do século XIX e especialmente no início do século XX – logo após a<br />
nação se consolidar e ter seus limites definidos e fechados. Só muito recentemente, no final do<br />
século XX, as religiões e a música afro-brasileiras estão transcendendo as fronteiras nacionais<br />
e expandindo-se para a Argentina e o Uruguai, onde provavelmente novos processos de fusões,<br />
sincretismos e cruzamentos – provavelmente muito diferentes dos que conhecemos até agora −<br />
estão ocorrendo e precisam ser estudados em relação às tradições musicais argentina e uruguaia.<br />
Existem dois modelos bem distintos de tradições religiosas afro-brasileiras que refletiram<br />
duas organizações musicais diferentes. O primeiro modelo, que identifico em uma palavra como<br />
o modelo do candomblé (nome dos cultos afro-brasileiros tradicionais preservados na Bahia, dos<br />
quais o culto xangô do Recife é um equivalente), tem se mantido extraordinariamente coeso e<br />
fechado a influências externas. Altamente aristocráticos e elitizantes, com um processo de<br />
iniciação muito elaborado e exigente, os cultos de candomblé e xangô tentaram de certa forma<br />
congelar a expressão musical tornando-a cativa de sua liturgia. Consequentemente, a ortodoxia<br />
e o conservadorismo são sua grande força. O resultado é um fascinante mundo de símbolos,<br />
organizado internamente com tal controle por parte dos líderes que convida a uma análise<br />
estrutural. Por se tratar de um universo ideologicamente fechado, é possível ir à busca de<br />
transformações, oposições e equivalências estruturais, mantendo-se uma unidade no final da<br />
interpretação. Nesse modelo, portanto, a teoria mais próxima será de uma natureza que permita<br />
amplo espaço para argumentos funcionalistas e estruturalistas. Uma análise sensível ao contexto,<br />
para utilizar uma expressão cara a John Blacking (1974), será praticamente inevitável. Isso não<br />
significa uma crítica a esse tipo de análise, mas antes uma observação sobre o fato de que a teoria<br />
que se exercita depende da questão que colocamos ao material que tentamos compreender; e,<br />
mais ainda, depende sobretudo da resposta que damos aos desafios intelectuais e estéticos<br />
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