07.05.2013 Views

Catia Alves De Senne - SBHC

Catia Alves De Senne - SBHC

Catia Alves De Senne - SBHC

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

O papel do Serviço Sanitário na implantação de sistemas de abastecimento de água e de<br />

coleta de esgotos no Estado de São Paulo (1892-1902)<br />

CATIA ALVES DE SENNE 1<br />

Introdução<br />

Este trabalho procura entender a contribuição do Serviço Sanitário, órgão responsável<br />

pelas políticas de saúde pública, no desenvolvimento e implantação da infraestrutura de<br />

saneamento no Estado de São Paulo, mais especificamente sistemas de abastecimento de água<br />

e coleta de esgotos na primeira década do período republicano 2 .<br />

Os serviços públicos de abastecimento de água e coleta de esgotos no estado de São<br />

Paulo começaram a ser estruturados e implantados na segunda metade do século XIX por<br />

iniciativa da administração pública. Esse processo ocorreu em um contexto em que uma série<br />

de intervenções urbanas transformou a cidade de São Paulo e algumas cidades do interior,<br />

como consequência do desenvolvimento da economia cafeeira.<br />

Paul Singer relata algumas dessas transformações, com a criação de infraestrutura<br />

urbana e de diversos serviços públicos na capital paulista, fruto do crescimento populacional<br />

advindo da imigração e das receitas com o café, como a iluminação pública, serviços de<br />

telefonia, obras viárias, transporte público e serviços de água e esgotos (SINGER, 1977: 39).<br />

A partir de 1850 o abastecimento de água se tornou uma preocupação do governo da<br />

cidade de São Paulo. Foram executadas obras como a construção de chafarizes públicos e<br />

estabelecidos contratos para estudos e elaboração de projetos de adução e distribuição de<br />

água. O tema estava presente no debate político da época 3 , devido o crescimento da cidade, e<br />

já em 1856, a pedido do presidente da província dois estudos foram elaborados para aumentar<br />

o fornecimento de água na cidade (CAMPOS, 2005:195). Vários outros estudos foram<br />

1 Estudante de mestrado no Programa de História Social, do <strong>De</strong>partamento de História da Faculdade de Filosofia,<br />

Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Maria Amélia Dantes.<br />

Trabalha no Núcleo de Documentação do Instituto Butantan.<br />

2 Esse texto contém os primeiros resultados da pesquisa de mestrado, onde procuramos delinear as iniciativas e<br />

discussões envolvidas nesse processo, quem foram seus agentes e quais foram as concepções técnicas e<br />

científicas envolvidas, em um trabalho de resgate da atuação dos responsáveis pelo saneamento na última década<br />

do século XIX no estado de São Paulo.<br />

3 Sant’anna relata que o debate sobre a necessidade de aumento da quantidade de água que era distribuída à<br />

cidadeestava presente nos relatórios de presidente da província (SANT’ANNA, 2007:167).


executados, no entanto, a implantação dos serviços de abastecimento de água e coleta de<br />

esgotos só ocorreu em 1877 com a criação da Companhia Cantareira e Esgotos, uma empresa<br />

privada que obteve a concessão dos serviços, tendo o Estado como fiscalizador da<br />

regularidade na prestação dos serviços e das condições estabelecidas em contrato 4 . Essa<br />

empresa atuaria até 1892, ano em que foi encampada pelo Estado.<br />

Cidades do interior, como Santos e Campinas, também tiveram os serviços de<br />

abastecimento de água implantados por companhias privadas ainda no período imperial<br />

(BERNARDINI, 2007:386; 437;455). Outras cidades somente iriam implantar serviços de<br />

água e esgotos na última década do século XIX com o apoio do governo republicano.<br />

Os serviços criados nesse momento atenderam a uma demanda pequena, que logo<br />

cresceu, com o processo de urbanização e crescimento populacional nas cidades,<br />

impulsionado com a chegada de imigrantes. E em pouco tempo se tornaram deficientes. Eram<br />

constantes as queixas da população com relação à falta de água. Na cidade de São Paulo, a<br />

distribuição de água atendia alguns bairros mais centrais e os despejos dos esgotos eram feitos<br />

nos córregos e rios, ou utilizadas fossas, procedimento muito criticado pelos sanitaristas e que<br />

começou a se tornar um grave problema urbano (SANTOS, 2006:36;99).<br />

Uma questão colocada com relação aos serviços de saneamento nesse período era a<br />

dificuldade que as empresas tinham para importar materiais para a construção das redes, levar<br />

a rede de distribuição para os novos bairros que estavam surgindo e ampliar a adução de água.<br />

Segundo Bernardini os serviços de saneamento colocavam questões difíceis de serem geridas<br />

pela iniciativa privada, não proporcionando um retorno financeiro lucrativo compatível com<br />

os recursos investidos. Tratava-se de projetos com resultados em longo prazo, e que<br />

necessitavam de uma articulação com o poder público, para encaminhamentos das obras e<br />

manutenção das redes:<br />

“O controle e a atuação direta do Governo sobre essas políticas foram definidos,<br />

historicamente, não só pelo interesse público em si, mas também pela<br />

impossibilidade da iniciativa privada atuar como operadora destes serviços. Os<br />

trabalhos de HOCHMAN (1998) e BUENO (1994) o demonstraram. As tentativas<br />

4 A autora Cristina de Campos analisa esse processo. Para ela o Estado Imperial atuava como promotor das ações<br />

de saneamento, ao conceder a investidores privados a implantação e administração dos serviços públicos de água<br />

e esgotos, exercendo o papel de fiscalizador sobre o que era executado pela iniciativa privada. No período<br />

republicano há uma mudança com a encampação da Cia. Cantareira e Esgotos pelo Estado, que passa à condição<br />

de produtor das ações de saneamento, ao assumir a responsabilidade pela implantação e administração das redes<br />

de água e esgotos (CAMPOS, 2005:215).<br />

2


fracassadas de outorgar à iniciativa privada a construção e a gestão dos sistemas<br />

sanitários, como vimos em relação à Companhia de Melhoramentos de Santos, à<br />

Companhia Cantareira e Esgotos e outras demonstram que tais empreendimentos<br />

geravam externalidades que não eram capazes de gerir.” (BERNARDINI,<br />

2007:466) 5 .<br />

Com o advento da República os serviços públicos de abastecimento de água e coleta<br />

de esgotos da cidade de São Paulo foram encampados pelo Estado, quando foi criado um<br />

complexo e amplo aparato institucional para dar conta desses serviços. Esse processo ocorreu<br />

graças ao contexto proporcionado pelo federalismo, que deu autonomia na gestão política e<br />

financeira aos estados, possibilitando-os a “decretarem impostos de importação, de serem<br />

regidos por suas próprias constituições, bem como de terem corpos militares e códigos<br />

eleitorais e judiciários próprios” (TELAROLLI JR., 1996:76).<br />

A República trouxe um contexto favorável para o processo de implantação de uma<br />

infraestrutura urbana de saneamento, com a criação de instituições específicas voltadas para<br />

esse fim, sob a responsabilidade do Estado. Em 1891, a Lei n. 15 criou três secretarias: a<br />

Secretaria de Justiça, a Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas e a Secretaria do<br />

Interior. As duas últimas dividiam a responsabilidade pelas questões de saneamento, porém<br />

cada uma com atribuições específicas em sua área de atuação (BERNARDINI, 2007: 224) 6 .<br />

A Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas respondia pelas questões<br />

ligadas à agricultura, serviço de imigração, serviço de discriminação de terras públicas e<br />

particulares, comércio, indústria e obras públicas, sendo responsável então pela criação,<br />

manutenção ou fiscalização de infraestrutura urbana, como estradas de rodagem, pontes,<br />

viadutos, ferrovias, transportes, comunicação e saneamento, correspondente aos serviços de<br />

água, esgoto e drenagem (BERNARDINI, 2007: 83).<br />

A Secretaria do Interior, por sua vez, era responsável pelo encaminhamento das<br />

políticas de saúde pública e de educação. Analisaremos nesse texto o papel desenvolvido pelo<br />

5 Os trabalhos citados são: HOCHMAN, G. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no<br />

Brasil. São Paulo: Editora Hucitec; ANPOCS, 1998 e BUENO, Laura Machado de Mello. O saneamento da<br />

urbanização de São Paulo. Dissertação de mestrado – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade<br />

de São Paulo. São Paulo, 1994.<br />

6 Bernardini em sua tese de doutorado realiza um profundo trabalho de análise da atuação da Secretaria de<br />

Agricultura, durante o período de 1892 a 1926, nas suas diversas funções, agricultura, serviço de imigração,<br />

política territorial, viação, obras públicas, dando um enfoque mais exaustivo para a questão do saneamento. Ver<br />

BERNARDINI, 2007.<br />

3


Serviço Sanitário, órgão ligado à Secretaria do Interior, no processo de implantação das redes<br />

de abastecimento de água e esgotos.<br />

O Serviço Sanitário do Estado de São Paulo e a implantação das redes de abastecimento<br />

de água e esgotos<br />

Em linhas gerais a Secretaria do Interior era responsável pela condução das políticas<br />

de saúde pública e instrução pública. A institucionalização e organização dos serviços de<br />

saúde pública na República ocorreram com a criação do Serviço Sanitário do Estado, por<br />

meio da Lei n. 12, de 28 de outubro de 1891 7 .<br />

O Serviço Sanitário era responsável por ações e estudo das questões relativas à saúde<br />

pública do estado, saneamento das localidades e das habitações, prevenção de epidemias,<br />

socorros públicos, serviços de vacinação, inspeção sanitária em edifícios públicos,<br />

fiscalização de alimentos, exercício da medicina e da farmácia, política sanitária, fiscalização<br />

dos trabalhos de utilidade pública e organização dos serviços de estatística demógrafo-<br />

sanitária 8 .<br />

A política de saúde desenvolvida pelo Serviço Sanitário era baseada em ações de<br />

combate a epidemias, fiscalização e intervenção sobre o espaço físico por meio de<br />

desinfecções, saneamento do meio, polícia sanitária e campanha sanitária (RIBEIRO,<br />

1993:28) 9 . Nas cidades e vilas assoladas por epidemias atuava por meio de comissões<br />

sanitárias, formadas por médicos, inspetores sanitários e desinfectadores, que partiam da<br />

capital e ficavam o tempo que fosse necessário para debelar as doenças. Essas comissões<br />

7 O Serviço Sanitário foi criado a partir de uma reorganização das atribuições da antiga Inspetoria de Higiene do<br />

Estado de São Paulo, extinta em 1891. A Inspetoria de Higiene foi criada no ano de 1884, tendo como primeiro<br />

inspetor de higiene o dr. Marcos de Oliveira Arruda. Trata-se do primeiro órgão de saúde pública do estado de<br />

São Paulo que, segundo Mascarenhas atuou com funções muito limitadas, “restringiam-se à estatística<br />

demógrafo-sanitária (principalmente da Capital), fiscalização das profissões médica e farmacêutica, fiscalização<br />

sanitária, combate a epidemias, principalmente à varíola” (MASCARENHAS, 1973:435).<br />

8 A Lei Estadual n. 43, de 18 de julho de 1892, que organiza o Serviço Sanitário do Estado, definiu suas<br />

atribuições. <strong>De</strong>ntro da fiscalização dos serviços de utilidade pública estavam enquadrados os serviços de<br />

abastecimento de água e esgotos.<br />

9 Merhy em um precioso trabalho sobre a política de saúde pública em São Paulo, estabelece um quadro de<br />

relação entre as correntes tecnológicas e os modelos tecno-assistenciais que embasariam as concepções e ações<br />

por detrás das políticas de saúde a partir da República. <strong>De</strong> acordo com a sua análise o período que estamos<br />

estudando (1892-1902) é referente ao modelo “campanhista-policial” que “valoriza a contaminação como causa<br />

geral e usa como instrumentos de ação a engenharia, a polícia e a campanha sanitária, verticalmente<br />

administradas” (MERHY, 2006:29).<br />

4


atuavam junto às Câmaras locais, para obterem o apoio que fosse necessário para<br />

encaminhamento de suas ações, como montagem de um hospital do isolamento, caso a<br />

localidade não possuísse, transporte de doentes, inspeção de casas, saneamento do solo,<br />

desinfecções em encanamentos, drenagem de pântanos, ações que os inspetores não poderiam<br />

encaminhar sem a ajuda das Câmaras. Muitas vezes, essas intervenções causaram conflitos,<br />

entre as Câmaras e os inspetores, ou entre os médicos que já trabalhavam na localidade<br />

(TELAROLLI JR., 1996:82). Ribeiro comenta que a legislação foi modificada algumas vezes<br />

procurando diminuir esses conflitos entre o poder local e o estado. (RIBEIRO, 1993:47)<br />

O Serviço Sanitário sofreu uma primeira reorganização em 1893, por meio da Lei n.<br />

240. Essa lei definiu as atribuições do Estado e dos Municípios. Caberia aos municípios a<br />

fiscalização sanitária do meio, dos ambientes particulares e públicos e a organização e direção<br />

dos serviços de assistência pública, no qual se enquadravam os serviços de água e esgotos.<br />

Esses serviços seriam custeados pelos municípios, cabendo ao Estado subvencionar as cidades<br />

que comprovassem insuficiência de recursos (MASCARENHAS, 1949:44). Telarolli Jr.<br />

considera que com estas mudanças se criou um modelo dúbio, entre as atribuições das duas<br />

esferas políticas, Estado e Municípios (TELAROLLI JR., 1996:183).<br />

Em 1896 o Serviço Sanitário é novamente reestruturado pela Lei n. 432. Nessa<br />

legislação a descentralização dos serviços de saúde continua, mas foi incluído um artigo pelo<br />

qual o Estado passaria a ficar incumbido de fiscalizar os serviços executados pelos<br />

municípios. O saneamento básico do meio, serviços de água, esgotos e drenagem,<br />

policiamento sanitário e fiscalização, continuavam a cargo dos municípios, seguindo as<br />

normas presentes no Código Sanitário, regulamentado em 1894.<br />

Tendo em vista as atribuições do Serviço Sanitário, qual seria então a sua atuação com<br />

relação à implantação da infraestrutura de saneamento? Vimos que o Serviço Sanitário<br />

baseava sua política em uma série de ações sobre o espaço visando conter epidemias. Mas na<br />

prática, qual foi o papel que desempenhou na concepção e criação da infraestrutura de<br />

saneamento no estado de São Paulo? Qual era a natureza de sua atuação?<br />

Visando responder essas questões realizamos dois tipos de análise. Primeiramente nos<br />

debruçamos na legislação sanitária, no principal instrumento utilizado pelo Serviço Sanitário,<br />

o Código Sanitário; e também nos relatórios anuais da Secretaria do Interior e do Serviço<br />

Sanitário no período proposto.<br />

5


O Código Sanitário de 1894 e a questão do saneamento<br />

A relação entre as obras de água e esgotos com as políticas de saúde pública no final<br />

do século XIX é a questão central para entendermos a implantação desses serviços como uma<br />

política pública desenvolvida pelo Serviço Sanitário. Diversos estudos nos mostram que no<br />

meio científico acreditava-se que a realização de obras públicas, como a drenagem do solo nas<br />

áreas de várzea, a criação de uma rede de abastecimento de água e de coleta e afastamento dos<br />

esgotos, reduziria a incidência de doenças (BUENO, 1994:43).<br />

Como vimos, em 1894 foi promulgado o primeiro Código Sanitário que reunia normas<br />

de higiene e saúde pública e regulamentava os espaços públicos e privados. Era composto de<br />

520 artigos regulando o funcionamento das cidades e instituindo normas de salubridade para a<br />

população (TELAROLLI JR, 1996:199). Estabelecia que em épocas de epidemias houvesse a<br />

presença do inspetor sanitário, do fiscal e do desinfetador para controle e estabelecimento das<br />

normas de higiene, prevendo uma rigorosa atuação da polícia sanitária (RIBEIRO, 1993:28).<br />

Esses profissionais atuavam muitas vezes em comissões sanitárias que eram montadas pelo<br />

Serviço Sanitário para atuar nas cidades assoladas por epidemias. Algumas cidades possuíam<br />

comissões sanitárias fixas como a Comissão Sanitária de Santos, criada em 1893<br />

(BERNARDINI, 2007:385).<br />

Além de ser uma ferramenta de controle, o Código se colocava também como “uma<br />

fórmula para se pensar o formato das cidades e como elas deveriam se constituir em sua<br />

feição material”. Bernardini coloca que para a cidade de São Paulo o Código foi o principal<br />

instrumento de controle dos espaços públicos. Nas cidades do interior o Código serviu como<br />

referência de normas a serem seguidas na execução de projetos e obras, pois o grande<br />

problema era planejar um sistema de abastecimento de água e coleta de esgotos para cidades<br />

que cresciam descontroladamente. (BERNARDINI, 2007:306).<br />

Com relação ao abastecimento de água e coleta de esgotos, o Código estabelecia<br />

normas e regulamentações que iam desde o formato das redes, até especificações técnicas<br />

referentes às tubulações e aparelhos sanitários. Para as habitações em geral estabelecia, por<br />

meio de diversos artigos, o saneamento do solo antes das construções, como deveriam ser os<br />

encanamentos, a instalação dos aparelhos hidráulicos, etc. Para as habitações coletivas, hotéis<br />

e casas de pensão estabelecia a necessidade de abastecimento de água potável em grande<br />

6


quantidade, assim como limites para o uso de latrinas. As habitações das classes pobres, os<br />

cortiços, eram terminantemente proibidos, e para os que existiam, cabiam às normas das<br />

habitações em geral (SÃO PAULO, 1894).<br />

Com relação às especificações para o estabelecimento e manutenção do sistema<br />

público de abastecimento de água, o Código previa que as águas para distribuição deveriam<br />

ser originadas, sempre que possível, de mananciais localizados em serras, sendo proibido o<br />

uso de águas de açudes, ou seja, águas represadas, paradas. As águas deveriam ser conduzidas<br />

pela rede de distribuição por gravidade. Previa também a preservação das matas existentes nas<br />

regiões de cabeceira destinadas ao abastecimento público, assim como eram proibidas<br />

habitações nessas regiões, ou seja, já continha uma preocupação com a preservação do meio<br />

ao redor dos mananciais, para evitar a sua poluição e comprometimento do abastecimento<br />

público.<br />

Nesse período, as águas para abastecimento público passavam por um tratamento<br />

simples, por isso a preocupação em se preservar as regiões de cabeceiras. O Código<br />

estabelecia a existência de caixas de areia, para servir como filtro, junto ao ponto de captação<br />

das águas e que as águas estariam sujeitas a análises químicas. Previa a quantidade de litros<br />

diários por habitante de acordo com o tamanho das cidades, o sistema de distribuição e<br />

pagamento pelo serviço. E, por fim, não permitia a ligação de casas à rede de distribuição de<br />

água que não estivessem também ligadas à rede de esgotos (SÃO PAULO, 1984).<br />

Percebe-se que com relação ao abastecimento de água as normas eram bem definidas,<br />

o que dificultava a aprovação de projetos que não seguissem os critérios de adução e<br />

distribuições previstos no regulamento. Esses critérios norteavam a elaboração de estudos<br />

visando a implantação dos sistemas de abastecimento por parte das municipalidades e<br />

regulamentavam a forma como as obras deveriam ser executadas. Bernardini considera que a<br />

preocupação do Estado com o Código era regular as alternativas possíveis de abastecimento,<br />

já que não conseguiria garantir a inspeção de todas as redes a serem implantadas. O<br />

estabelecimento do Código acabou trazendo diferentes resultados para a capital e para as<br />

cidades do interior, ao estabelecer “no art. 77 que, na falta de galeria de esgotos, seriam<br />

toleradas fossas fixas e no art. 89 que, nas localidades onde não houvesse água nascente<br />

potável e canalizada, deveriam ser permitidas cisternas ou poços” (BERNARDINI, 2007:306-<br />

307).<br />

7


Com relação aos esgotos o Código estabelecia a preferência pelo sistema tout á<br />

l’egout, que se destinava a receber todos os líquidos e materiais sólidos, ou seja, promovia a<br />

remoção dos esgotos e das águas pluviais em uma única tubulação. A tubulação devia possuir<br />

declividade suficiente, garantindo o perfeito escoamento dos esgotos. A galeria de esgotos<br />

devia ser ventilada e possuir caixas de água para lavagens periódicas da tubulação. O material<br />

utilizado nos encanamentos devia ser sólido, resistente e impermeável. E o Código garantia o<br />

despejo dos esgotos em mares e rios, depois de depurados, material que poderia ser utilizado<br />

também para fertilizar campos devidamente preparados.<br />

Garantir a aplicação dessas normas de higiene era a responsabilidade do Serviço<br />

Sanitário, por meio de fiscalização, polícia sanitária e cobrança dos responsáveis<br />

(TELAROLLI JR., 1996: 89). <strong>De</strong>ssa forma, podemos dizer que esse órgão teve uma<br />

importante participação na implantação dos serviços públicos e infraestrutura de<br />

abastecimento de água e coleta de esgotos, ao estabelecer os preceitos, as normas a serem<br />

seguidas e os critérios para execução das obras, presentes no Código Sanitário e ao executar o<br />

papel de fiscalizador das normas estabelecidas na legislação de saúde pública, sendo o<br />

principal agente de controle dos espaços públicos e privados, tendo a responsabilidade de<br />

garantir condições para identificar problemas e encaminhar soluções.<br />

O saneamento nos Relatórios anuais de gestão do Serviço Sanitário<br />

O Serviço Sanitário possuía uma estrutura de trabalho baseada na fiscalização e<br />

intervenção sobre o espaço, “com o predomínio de ações para a prevenção do contágio, como<br />

isolamento dos doentes nos lazaretos, desinfecções domiciliares, além de medidas gerais de<br />

higiene urbana” (TELAROLLI JR, 1996:96). Essas ações mesclavam as teorias miasmática e<br />

microbiológica para explicação dos agentes causais das doenças, e revelavam o momento de<br />

transição que vivia o conhecimento médico. (RIBEIRO, 1993:32). A teoria microbiológica,<br />

ligada às novas descobertas da medicina, creditava a agentes causais próprios e únicos a<br />

incidência de doenças e a teoria miasmática, a emanações pestilenciais que exalavam da<br />

matéria orgânica em decomposição, presentes no solo, subsolo, água e ar a incidência de<br />

doenças (TELAROLLI JR, 1996:93).<br />

<strong>De</strong>ssa forma, a prática das desinfecções era uma das principais políticas do Serviço<br />

Sanitário, tendo o Serviço Geral de <strong>De</strong>sinfecções um lugar importante em sua estrutura<br />

8


administrativa, consumindo uma parcela substancial dos recursos destinados à saúde. Sua<br />

estrutura contava em tempos normais com um corpo de 178 funcionários, mas que em<br />

períodos de epidemia era reforçado com a contratação de mais fiscais desinfectadores, que<br />

atuavam na capital e no interior por meio de comissões, pois os existentes não davam conta de<br />

atender aos pedidos de todo o estado (RIBEIRO, 1993: 28).<br />

Encontramos no relatório anual de 1893 pedidos do Serviço Sanitário ao Intendente da<br />

Câmara da cidade de São Paulo e ao diretor da Superintendência de Obras Públicas<br />

solicitando a conclusão da rede de esgotos em algumas ruas, a obstrução de poços existentes<br />

em residências, encaminhamentos para a falta de água no mercado da Rua 25 de março e<br />

conclusão das obras pela Repartição de Águas e Esgotos. O relatório comenta também que a<br />

cidade de Campinas, por ser uma das primeiras cidades a sofrer com a epidemia de febre<br />

amarela, recebeu a atenção do governo, que ali executou a rede de esgotos e a regular<br />

distribuição de água encanada, e que graças a essas obras não sofreria mais desse mal.<br />

O Relatório anual de 1894 descreve a atuação de comissões sanitárias devido a<br />

epidemias de cólera que haviam ocorrido na Capital, na cidade de Cachoeira e em Santos. Na<br />

Capital, o relatório do Serviço Geral de <strong>De</strong>sinfecções, chefiado pelo dr. Diogo Teixeira de<br />

Faria, relata a falta de funcionários para atender a todos os pedidos e que as ações foram<br />

voltadas em especial para o bairro do Brás, local afetado pela epidemia, a fim de conter o seu<br />

avanço. <strong>De</strong>ssa forma, foram realizadas desinfecções nas instalações higiênicas das habitações,<br />

limpeza de ruas e casas, remoção de doentes e inutilização de poços de abastecimento de água<br />

(SÃO PAULO, 1894:3).<br />

O responsável pela Comissão Sanitária de Cachoeira, o inspetor sanitário dr. Vital<br />

Brazil, relata que já se sabendo que o gérmen causador da cólera era de veiculação hídrica,<br />

foram condenadas a utilização das águas do Rio Paraíba e de poços, lançando-se mão de<br />

educação sanitária. Como essas ações não surtiram o efeito desejado foi requisitado da<br />

autoridade competente o policiamento do Rio Paraíba e organizado um serviço de distribuição<br />

de água, coletada em outros rios da região e distribuída por meio de pipa cedida pelo Corpo<br />

de Bombeiros. Segundo o relatório as ações surtiram o efeito desejado e a epidemia foi<br />

contida.<br />

Em Santos a Comissão Sanitária era permanente, chefiada pelo Dr. Tolentino<br />

Filgueiras. A cidade foi dividida em três distritos, cada um coordenado por um inspetor<br />

sanitário. Foram feitas reclamações contra a morosidade dos trabalhos de assentamento e<br />

9


ligações de esgotos e latrinas por parte da Companhia disso incumbida e o levantamento dos<br />

edifícios que possuíam ligações de esgotos. O foco das desinfecções foram bocas de lobo,<br />

latrinas, mictórios e esgotos. Do número de desinfecções realizadas de acordo com a<br />

necessidade, de 3.447, 3.202 eram referentes ao mal estado dos esgotos. Ainda em Santos um<br />

pedido de requisição para ligação de casas à rede de esgotos feitos pelo inspetor em<br />

Comissão, ligou 31 casas em uma única rua. O inspetor do 3° distrito relata que com relação<br />

aos cortiços tinha obrigado o abastecimento de água em abundância e a colocação de latrinas<br />

e ralos, além de exigir que a área fosse cimentada para que não se formassem lamaçais com as<br />

águas servidas. Comenta que as condições da cidade de Santos se modificariam desde que<br />

houvesse abundante abastecimento de água e esgotos por toda a cidade e diz que para isso<br />

indispensável um bem combinado sistema de posturas que obrigassem os proprietários o<br />

respeito aos preceitos de higiene.<br />

No relatório de 1896 constam muitos encaminhamentos para auxílio e início de obras<br />

de implantação de sistemas de abastecimento de água em diversas cidades do interior, sendo a<br />

Secretaria do Interior, na figura do Serviço Sanitário, a intermediária entre as Câmaras e a<br />

Secretaria de Agricultura. Tinha sob sua responsabilidade o encaminhamento das cidades que<br />

seriam atendidas, a fiscalização dos projetos, das obras, a transferência de recursos e os<br />

pedidos para a execução das obras para a Secretaria de Agricultura.<br />

Percebemos que as comissões sanitárias, visando conter epidemias, tinham uma<br />

atuação direta e sistemática no processo de implantação de uma infraestrutura urbana de<br />

saneamento. Faziam cobranças aos responsáveis pelo assentamento das redes, seja a Câmara<br />

ou a empresa responsável, como no caso de Santos, promovia a inutilização de poços ou uma<br />

distribuição de água provisória, por meio de carros pipas, como ocorreu na cidade de<br />

Cachoeira. Isso era devido a sua estrutura de trabalho de vigilância e polícia sanitária,<br />

fiscalizando o estado sanitário das habitações, espaços públicos, rede de esgoto, formas de<br />

abastecimento de água, e os serviços de desinfecção, aliados a uma campanha pela limpeza de<br />

espaços públicos e privados.<br />

O Serviço Sanitário era responsável por fazer notificações de casos de incidência de<br />

doenças, realizava visitas domiciliares, encaminhava os doentes para o Hospital do<br />

Isolamento e realizava inspeções, por meio de uma polícia sanitária fiscalizadora. <strong>De</strong>ssa<br />

forma, realizava o levantamento das casas abastecidas ou não pelas redes (água e esgotos) e,<br />

dependendo da situação em que se encontravam, realizava desinfecções, fazia notificações aos<br />

10


proprietários para melhoria das condições de suas casas, e no caso de obras públicas,<br />

encaminhava pedidos à Secretaria de Agricultura, para a realização das obras necessárias.<br />

A Secretaria de Agricultura, por meio da Repartição de Águas e Esgotos, era<br />

responsável pelo encaminhamento das obras de assentamento e manutenção das redes de água<br />

e esgotos, assim como pelo saneamento das várzeas de rios e córregos. Sendo assim, o<br />

Serviço Sanitário dividia a incumbência pela desinfecção ou limpeza dos esgotos com a<br />

Secretaria de Agricultura, ao realizar o diagnóstico das necessidades de desinfecção nos<br />

sistemas públicos e ao realizar as desinfecções domiciliares como parte de suas ações. Essas<br />

ações se sobrepunham em muitos momentos.<br />

Com relação às obras nas cidades do interior, o Serviço Sanitário fazia muitas vezes a<br />

intermediação das cidades que seriam atendidas por obras de saneamento e a Secretaria de<br />

Agricultura, por meio das ações de suas comissões sanitárias, que atuavam in loco dando<br />

assistência aos municípios, no combate a doenças. <strong>De</strong>ssa forma, como uma de suas<br />

atribuições era o levantamento de dados, como notificações de doentes, tinha condições para<br />

estabelecer as prioridades das obras a serem executadas, ou seja, podemos dizer que tinha um<br />

papel central na administração de uma política de criação e manutenção das redes de<br />

abastecimento de água e coleta de esgotos no Estado de São Paulo.<br />

Considerações finais<br />

O advento da República favoreceu a implantação de serviços de abastecimento de<br />

água e esgotos nas cidades paulistas. Esses serviços foram encaminhados, em sua maioria,<br />

pela administração pública, com o Estado assumindo o papel de produtor das ações de<br />

saneamento, ao assumir a responsabilidade pela produção e administração das redes<br />

(CAMPOS, 2005:190).<br />

O governo do Estado de São Paulo criou, a partir de 1892, um aparato institucional<br />

amplo para lidar com os diversos ramos da administração pública, incentivando<br />

principalmente os que estavam relacionados diretamente ao complexo cafeeiro, como foi o<br />

caso da saúde pública, que teve grandes investimentos nesse período inicial. O avanço de<br />

epidemias como a de febre amarela ameaçava as atividades da “cafeicultura em diferentes<br />

etapas, da produção à exportação, e as demais atividades econômicas urbanas, como a<br />

incipiente indústria” (TELAROLLI JR., 1996:237). A implantação, supervisão e<br />

11


administração dos sistemas de abastecimento de água e coleta de esgotos podem ser<br />

entendidas como parte de uma política de saúde pública, que visava conter o surgimento e<br />

avanço de doenças nas cidades do estado de São Paulo na última década do século XIX.<br />

Podemos dizer que a Secretaria do Interior, responsável pelos serviços de saúde<br />

pública, desempenhado pelo Serviço Sanitário, teve um papel proeminente e fundamental na<br />

condução de uma política de criação e gestão de uma infraestrutura urbana de saneamento, em<br />

especial, de sistemas de abastecimento de água e coleta de esgotos no Estado de São Paulo.<br />

Esse papel foi desempenhado devido ao seu trabalho de fiscalização e intervenção no espaço<br />

urbano, obtendo informações privilegiadas sobre as necessidades e prioridades das obras a<br />

serem executadas pela Secretaria de Agricultura.<br />

O Serviço Sanitário, por meio do Código Sanitário, criou um amplo regulamento que<br />

estabelecia normas de higiene a serem seguidas na implantação das redes, além de executar o<br />

papel de fiscalizador das normas estabelecidas na legislação, sendo o principal agente de<br />

controle dos espaços públicos e privados no final do século XIX no estado de São Paulo.<br />

Bibliografia<br />

Fontes primárias<br />

SÃO PAULO. Lei Estadual n. 12, de 28 de outubro de 1891, organizando o Serviço Sanitário<br />

do Estado.<br />

SÃO PAULO. Lei Estadual n. 15, 1891, orça a receita e despesa do Estado para o exercício de<br />

1892.<br />

SÃO PAULO. <strong>De</strong>creto Estadual n. 28, de 1 de março de 1892, organiza as Secretarias do<br />

Interior, da Justiça e da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, criadas pela Lei n. 15 de 11<br />

de Novembro de 1891.<br />

SÃO PAULO. Lei Estadual n. 43, de 18 de julho de 1892, organiza o Serviço Sanitário do<br />

Estado.<br />

SÃO PAULO. <strong>De</strong>creto Estadual n. 233, de 2 de março de 1894, estabelece o Código<br />

Sanitário.<br />

SÃO PAULO. Relatório apresentado ao Dr. Secretário do Interior, pelo Diretor Geral do<br />

Serviço Sanitário, Dr. Joaquim José da Silva Pinto Júnior, 1893.<br />

SÃO PAULO. Relatório apresentado ao Dr. Secretário do Interior, pelo Diretor Geral do<br />

Serviço Sanitário, Joaquim José da Silva Pinto Júnior, 1894.<br />

12


SÃO PAULO. Relatório apresentado ao Presidente do Estado pelo Secretario de Estado de<br />

Negócios do Interior e Instrução Pública, Alfredo Pujol, 1896.<br />

Fontes secundárias<br />

BERNARDINI, Sidney Piochi. Construindo infraestruturas, planejando territórios: A<br />

Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Governo Estadual Paulista<br />

(1892-1926). Tese de doutorado. São Paulo, FAU-USP, 2007.<br />

BUENO, Laura Machado de Mello. O saneamento na urbanização de São Paulo.<br />

Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU-USP, 1994.<br />

CAMPOS, Cristina de. “A promoção e a produção das redes de águas e esgotos na cidade de<br />

São Paulo, 1875-1892”. Anais do Museu Paulista, vol. 13, n. 2, p. 189-232, jul./dez. 2005.<br />

MASCARENHAS, Rodolfo dos Santos. “História da saúde pública no estado de São Paulo”.<br />

In: Revista de Saúde Pública, vol. 7, n. 4, pp. 436-446, out./dez. 1973.<br />

_______________________________Contribuição para o estudo da administração<br />

sanitária estadual em São Paulo. Livre docência. Faculdade de Higiene e Saúde Pública -<br />

USP. São Paulo, janeiro de 1949.<br />

MERHY, Emerson Elias. A saúde pública como política: São Paulo, 1920-1948: os<br />

movimentos sanitários, os modelos tecno-assistenciais e a formação de políticas<br />

governamentais. São Paulo: Editora Hucitec, 2006.<br />

OSEKI, Jorge Hajime. Pensar e viver a construção da cidade: canteiros e desenhos de<br />

pavimentação, drenagem de águas pluviais e rede de esgotos em São Paulo. Tese de<br />

doutorado. São Paulo, FAU-USP, 1992.<br />

RIBEIRO, Maria Alice Rosa. História sem fim... Inventário da saúde pública. São Paulo:<br />

Editora da Unesp, 1993.<br />

SANT’ANNA, <strong>De</strong>nise Bernuzzi de. Cidade das águas – usos de rios, córregos, bicas e<br />

chafarizes em São Paulo (1822-1901). São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007.<br />

SANTOS, Fábio Alexandre dos. Domando as águas: salubridade e ocupação do espaço na<br />

cidade de São Paulo, 1875-1930. Tese de doutorado. Campinas: Instituto de Economia da<br />

UNICAMP, 2006.<br />

SINGER, Paul. <strong>De</strong>senvolvimento econômico e evolução urbana: análise da evolução<br />

econômica de São Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. São Paulo:<br />

Editora Nacional, 1977.<br />

TELAROLLI Jr., Rodolpho. Poder e saúde: as epidemias e a formação dos serviços de<br />

saúde em São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 1996.<br />

13


TEIXEIRA, Luís Antônio. Na arena do esculápio: A Sociedade de Medicina e Cirurgia de<br />

São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2007.<br />

14

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!