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Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas ... - OpenDrive

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E continuaram em silêncio no serviço. A água <strong>do</strong> rio corria quase que num fio, os juncos cobriam o leito de um<br />

verde-escuro. O vento zunia nos juncos que caíam para um canto como um parti<strong>do</strong> de cana. Ouvia-se a cantoria<br />

de um homem mais para o la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Santa Fé. Era Passarinho, no serviço de uma vazante, no trabalho que para<br />

êle era um fim de mun<strong>do</strong>. A cantoria era triste, como de quarto de defunto. O negro largava a alma na beira <strong>do</strong><br />

rio:<br />

Quem matou meu passarinho<br />

É judeu, não é cristão,<br />

Meu passarinho tão manso<br />

Que comia em minha mão.<br />

A voz <strong>do</strong> cachaceiro tocara os corações das mulheres. A velha Sinhá batia com fôrça na pedra branca. A môça<br />

deixava cair os seios <strong>do</strong> cabeção desabotoa<strong>do</strong>. Não podia falar. José Passarinho gemia na toada<br />

Quan<strong>do</strong> eu vim da minha terra<br />

Muita gente me chorou<br />

E a danada de uma velha<br />

Muita praga me rogou.<br />

-Tem até sentimento a cantoria dele - disse a môça.<br />

-Coita<strong>do</strong> de Seu José, que vida êle tem - respondeu-lhe Dona Sinhá. E depois, como queren<strong>do</strong> corrigir-se -Pode<br />

ser até mais feliz que muita gente.<br />

O sol já ia quebran<strong>do</strong>. A môça estendera os seus panos para enxugar. Brilhavam os encarna<strong>do</strong>s, os azuis, os<br />

amarelos, pelos juncos, pelas cabreiras, estendi<strong>do</strong>s como uma festa. Havia uma <strong>do</strong>r tremenda no coração da<br />

velha que batia furiosamente os seus panos. Não olhava para a môça que, deitada na areia, escondia o rosto <strong>do</strong><br />

sol.<br />

Era um corpo sadio, uma energia de carnes rijas. José Passarinho cantava <strong>por</strong>que era feliz, <strong>por</strong>que o mun<strong>do</strong> para<br />

êle não tinha mágoa para lhe dar. Bebia e cantava.<br />

E o seu mari<strong>do</strong>, e a vida, a cara, os arrancos, as esquisitices <strong>do</strong> seu mari<strong>do</strong>? Por que inventava o povo uma coisa<br />

daquela? Até de sua filha, da sua pobre Marta, inventavam uma desgraça daquela. Já tinha acaba<strong>do</strong> de bater os<br />

seus panos. Podia estendê-los <strong>por</strong> ali mesmo como fazia sempre. Mas teve vergonha de ficar junto daquela<br />

môça.<br />

Era como se fôsse culpada de uma crime, de um ato mau. Arrumou a roupa molhada e fêz a trouxa. A môça<br />

levantou-se para ajudá-la.<br />

-A senhora me per<strong>do</strong>e, eu não sabia. José Passarinho, quan<strong>do</strong> a viu com o correu para ela.<br />

-Dona Sinhá, eu levo.<br />

-Não precisa, não, Seu José.<br />

-Eu levo, não senhora, eu levo.<br />

E o negro tomou a trouxa e saiu na frente, com os pés camba<strong>do</strong>s, o corpo banzeiro. No fun<strong>do</strong>, ela bem que<br />

queria ter aquêle pêso na cabeça. A roupa molhada era como chumbo. Andaram um pedaço cala<strong>do</strong>s, até que<br />

Passarinho falou<br />

-Sabe, Dona Sinhá, o negro Salva<strong>do</strong>r está de mãos estouradas. Foram dizer ao tenente que êle vendia bicho para<br />

o Capitão Antônio Silvino. Quero ver agora é a cara daquele negro farofeiro.<br />

Já estavam na <strong>por</strong>ta de casa. Lá estava o mestre José Amaro que nem levantou a cabeça para olhar quem<br />

chegara. Parecia entreti<strong>do</strong> num serviço capricha<strong>do</strong>.<br />

-Boa tarde, mestre Zé. Trabalho muito?<br />

Olhou para Passarinho que havia bota<strong>do</strong> a trouxa no chão, e sem responder continuou no serviço.<br />

-Já soube da desgraça que a tropa anda fazen<strong>do</strong> <strong>por</strong> aí, Seu Mestre?<br />

Ficou cala<strong>do</strong>. Passarinho conheceu que não estava para muitos amigos e <strong>foi</strong> lá para dentro a chama<strong>do</strong> da mulher<br />

<strong>do</strong> seleiro.<br />

-Não precisa, Dona Sinhá.<br />

-Ora, Seu José, fazen<strong>do</strong> cerimônia.<br />

Era um prato de feijão com batata-<strong>do</strong>ce. Passarinho passou-o nos peitos, e de seu canto ouvia o bater <strong>do</strong> martelo<br />

<strong>do</strong> mestre. Sem dúvida êle estava nos seus azeites.<br />

Passarinho sabia que o povo falava <strong>do</strong> seleiro. Por tôda a parte corria aquela história de lobisomem, aquela fama<br />

de andar êle corren<strong>do</strong> de noite para beber sangue de gente. Passarinho não tinha cabeça para medir as coisas.<br />

Éle via o mestre com aquela cara aborrecida, e tinha mê<strong>do</strong>. Sim, mê<strong>do</strong> de chegar-se para perto. Dona Sinhá

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