Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas ... - OpenDrive
Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas ... - OpenDrive
Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas ... - OpenDrive
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Era para que o ofendesse, era para que <strong>do</strong>esse na sua carne aquela história de que não gostava de cantoria. E êle<br />
gostava. Cantasse aquêle canário o dia inteiro que lhe agradava aos ouvi<strong>do</strong>s. Não gostava era <strong>do</strong>s cantos da<br />
igreja, <strong>do</strong>s benditos que Marta sabia. A voz de Sinhá chamava a criação para <strong>do</strong>rmir. Uma guiné pulava de la<strong>do</strong>,<br />
corria para a estra na<br />
o poleiro.<br />
cia, arrancan<strong>do</strong> como se quisesse voar, a velha, com um punha<strong>do</strong> de vassourinhas, batia na chão, e chiava,<br />
chaman<strong>do</strong> as galinhas para o poleiro.<br />
0 negro Passarinho apareceu com os olhos vermelhos, para lhe falar:<br />
-Mestre Zé, estou com tenção de lhe encomendar um par de aparagata. Osenhor faz?<br />
Não lhe deu ouvi<strong>do</strong>. Continuou no seu refúgio, na sua gruta de pedra, com o escuro da noite, com o frio da noite<br />
no coração.<br />
-Mestre Zé-insistiu o negro.<br />
Aí acor<strong>do</strong>u. Era como se tivesse visto pela primeira vez o negro, como uma criatura estranha que tivesse<br />
surgi<strong>do</strong> para lhe falar.<br />
-0 que é que você quer, Passarinho?<br />
-É um par de aparagata. Daquela <strong>do</strong>s cangaceiros.<br />
Não lhe disse nada e levantou-se para botar para dentro da casa os seus petrechos de trabalho.<br />
-José Passarinho, onde <strong>foi</strong> que você aprendeu esta história que estava cantan<strong>do</strong>?<br />
-Com um cego de Itambé, mestre Zé. Andei com êste homem feito guia um tempão. Depois me pus homem e<br />
êle não me quis mais.<br />
-Ah! Já sei, era aquêle cego de nascença que mataram para roubar, no Oratório? Era um homem malcria<strong>do</strong><br />
cheio de novidades.<br />
-Não era mau, mestre Zé. Meu pai me deu a êle, quan<strong>do</strong> eu tinha sete anos. Eu digo ao senhor, <strong>foi</strong> homem borre<br />
que me ensinou muita coisa. A gente aprende muita coisa,<br />
mestre, mas só enxada é que dá feijão e farinha. Dei para beber, mestre Zé, para me ver livre duma negra que o<br />
senhor conheceu, aquela Luzia <strong>do</strong> Santa Rosa.<br />
Pararam de falar. A velha Sinhá já estava dentro de casa e conversava outra vez com a filha. Passarinho se<br />
despediu e ganhou a estrada. Agora um vento frio soprava<br />
<strong>do</strong> sul, vento que agitava as cajàzeiras, que sussurrava nas fôlhas miúdas da pitombeira. Podia ser sinal de<br />
chuva. p mestre Amaro ficou com a história de Passarinho.<br />
68 josé lins <strong>do</strong> régo<br />
Nunca pensara que aquêle negro imun<strong>do</strong>, de cara de cachaceiro, tivesse tanta coisa dentro de si, aquela história,<br />
aquêles amôres, aquêle D. Carlos, aquela D. Branca.<br />
Tilintaram as campainhas <strong>do</strong> cabriolé <strong>do</strong> Coronel Lula. As luzes das lâmpadas <strong>do</strong> carro se aproximaram. Parou<br />
a carruagem na sua <strong>por</strong>ta. Pedro Boleeiro veio para falar.<br />
Tinha se parti<strong>do</strong> a correia <strong>do</strong> varal, logo que saíra de casa. Omestre José Amaro, com o candeeiro na mão, <strong>foi</strong><br />
para fora. Viu a família <strong>do</strong> senhor de engenho, e deu<br />
um boa-noite respeitoso.<br />
-É o mestre José Amaro? falou o Coronel. -Sou eu mesmo, Coronel.<br />
-Estamos com pressa para a novena.<br />
As mulheres nos assentos não se mexiam. Omestre com o boleeiro fizeram a emenda. Osenhor de engenho<br />
tossia no sereno da noite.<br />
-Bote o ficou no pescoço, disseram lá de dentro.<br />
0 boleeiro já estava no seu canto e o Coronel Lula deu o seu obriga<strong>do</strong> ao mestre.<br />
0 cabriolé tilintou outra vez na estrada. A luz branca perdia-se pelos matos. Quan<strong>do</strong> o mestre José Amaro voltou<br />
para a casa, a mulher lhe perguntou se a D. Amélia<br />
passara no carro, pois corria que andava muito <strong>do</strong>ente.<br />
-Zeca, estão falan<strong>do</strong> no casamento de D. Neném com o Dr. Luís Viana.<br />
-Não perguntei <strong>por</strong> isto. -Cre<strong>do</strong>, ninguém pode falar venha feito um bicho.<br />
Pouco depois o seleiro saiu de casa. E a mulher ficou com o pensamento na môça <strong>do</strong> rio. Nunca podia imaginar<br />
que o povo estivesse fazen<strong>do</strong> de seu mari<strong>do</strong> um lobisomem.<br />
Era, sem dúvida, <strong>por</strong> causa daquele gênio azucrina<strong>do</strong> de Zeca, <strong>por</strong> causa de sua côr, <strong>do</strong> amarelo <strong>do</strong>s seus olhos.<br />
Disseram o mesmo, <strong>por</strong> muito tempo, <strong>do</strong> pobre Neco Paca