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Janeiro/2002<br />
Janeiro/2002<br />
Projeto<br />
Projeto<br />
Pedagógico<br />
edagógico<br />
7- 7- Reunindo Reunindo experiências: experiências: um um trabalho<br />
trabalho<br />
com com a a fase fase inicial inicial do do Ciclo Ciclo I I do do Ensino Ensino Fundamental<br />
Fundamental<br />
comunicavam.<br />
Pedimos às crianças que escrevessem sobre nossa<br />
conversa, agora em um papel. Cada uma escreveria do<br />
seu jeito. O importante era levar uma lembrança deles<br />
e poder recuperar nossa conversa mais tarde. (Era essa<br />
a função da escrita <strong>para</strong> nós.) Todos escreveram e quando<br />
disse à professora que as crianças não tinham problemas,<br />
pois todas já escreviam, ela arregalou os olhos:<br />
“Isso é escrever? Mariana, você está é louca! Veja, está<br />
tudo emendado e letra misturada com sílabas. É por<br />
isso que não aceito essas novidades da CENP”.<br />
Percebemos, claramente, que nossas discussões<br />
de início de ano sobre alfabetização tinham sido em<br />
vão. A cartilha, a cópia, o treino ortográfico, o ditado<br />
e a reprodução reinavam naquele local. Do desespero,<br />
descobrimos um caminho: aquelas crianças não tinham<br />
contato com outro tipo de textos, a não ser os da cartilha!<br />
Convencer a professora, de início, não foi fácil.<br />
Ela queria receitas; nós, reflexão. A monitora de Alfabetização<br />
tentou falar sobre os alunos, mas a professora<br />
só dizia chavões: “Não sou eu apenas quem diz que<br />
essas crianças não têm jeito! Todas as outras professoras<br />
delas já avisaram que eram mesmo crianças péssimas.<br />
Que não aprendem, só vêm à escola <strong>para</strong> comer e,<br />
o que é pior, não adianta chamar os pais, que eles nem<br />
ligam <strong>para</strong> a gente. Largam os filhos aqui e ficam numa<br />
boa”.<br />
Nas fichas descritivas constavam: crianças<br />
indisciplinadas, indiferentes, fracas e com possíveis distúrbios<br />
neurológicos. Encontramos, em algumas, a sugestão<br />
mesmo de encaminhamento <strong>para</strong> classes especiais.<br />
Nesse dia, nossa conversa foi sobre a importância<br />
de estimular a fala das crianças a partir do estágio<br />
em que se encontravam <strong>para</strong> continuar o trabalho. Não<br />
seria no nível ideal da escola ou do corpo docente, mas,<br />
no real, dos alunos. Lemos um trecho do Fala, Maria<br />
Favela, de Antonio Leal, que diz: “A criança da favela<br />
é ativa, criadora por natureza, viva, que se transforma<br />
em elemento passivo, espectador e ouvinte de um professor<br />
onisciente, que pertence a outra classe dominante.<br />
Ao entrar na escola, tem de deixar seu mundo do<br />
lado de fora e criar outros hábitos e atitudes”. A professora<br />
disse que aceitaria trabalhar diferentemente com<br />
seus alunos, desde que lhe déssemos assistência constante.<br />
Elogiamos sua disponibilidade e aceitamos o desafio.<br />
Também não tínhamos respostas. Teriam as teorias<br />
relação com a prática?<br />
A FORMA DE TRABALHO<br />
COM A CLASSE<br />
Nosso projeto tinha por princípio o trabalho com<br />
leitura e produção textual. Não leitura como mera<br />
decodificação dos signos gráficos, nem apenas o trabalho<br />
com fragmentos de trechos literários ou, ainda, com<br />
os não-textos dos livros didáticos dos alunos.<br />
Animadas pelas idéias de Paulo Freire e Maria<br />
Helena Martins sobre leitura, sugerimos o trabalho com<br />
os mais diversos tipos de textos. Vera, como passaremos<br />
a chamar essa professora, não conseguia, inicialmente,<br />
ver outras formas de trabalho que a cópia, o<br />
ditado e outros treinos ortográficos. “Mas, antigamente,<br />
davam certo! Já alfabetizei muita gente boa que agora<br />
é até doutor”. Foi esse gancho que sugeriu o tema da<br />
nossa próxima reunião.<br />
A professora passou a nos receber durante as<br />
duas horas de trabalho pedagógico, que tinha semanalmente.<br />
Esclarecemos que, durante um bimestre, trabalhamos,<br />
nessa escola, apenas com Vera e seus alunos.<br />
Nas outras, o trabalho continuava geral e esporádico.<br />
O desafio nos deixava sem dormir. Quantas vezes<br />
pensamos até em desistir. Será que tínhamos segurança<br />
de nossas leituras? Tivemos e fomos adiante.<br />
Discutimos os valores das práticas tradicionais e<br />
da criança que hoje vinha à escola pública. Foi o início<br />
de nossa marcha. Vera se entusiasmou, embora apresentasse<br />
alguns momentos de angústias e nos telefonasse<br />
dizendo que tiraria licença-médica. Dávamos-lhe a<br />
força que encontrávamos, passando a redobrar a assistência.<br />
Durante uma discussão sobre texto, Vera ficou<br />
admirada por reconhecer que qualquer suporte, onde<br />
pudesse realizar leitura, fosse um texto. Conversamos<br />
sobre a produção textual e propusemos a redação de<br />
textos durante uma reunião, quando, em conjunto, dissemos<br />
de nossas dificuldades de produção, sobretudo<br />
quando desconhecíamos o tema ou ficávamos bloqueadas<br />
com medo da avaliação.<br />
Dessa reunião, Vera é que nos levou a ver que<br />
aquelas crianças não tinham, em seus repertórios, os<br />
assuntos das redações, que ela tirava do próprio livro<br />
didático ou que a experiência anterior sugeriam: “Minhas<br />
férias”, “Como passei meu último Natal”, “Se eu<br />
fosse um urso polar” ou “Meu brinquedo preferido”.<br />
MUDANÇA DE<br />
COMPORTAMENTO<br />
Vera incentivou-nos contando de suas novas propostas<br />
em sala de aula. Conversas sobre o dia-a-dia das<br />
crianças e das famílias, festas comunitárias, fatos da TV,<br />
o trabalho que um deles realizava à tarde e até sobre o<br />
cachorro do Ricardo, que fora atropelado na avenida.<br />
A alegria da professora era um tônico e nos levava a<br />
prosseguir.<br />
Em uma das reuniões, tratamos da dificuldade<br />
de aquelas crianças reconhecerem o valor da escrita,<br />
uma vez que viviam em ambiente ágrafo, onde quase<br />
nunca a escrita era usada a não ser nas ininteligíveis<br />
receitas dos médicos dos Postos de Saúde.<br />
Nosso passo seguinte foi o trabalho com as variantes<br />
lingüísticas. Lemos juntas, Rose, Vera e eu, as<br />
experiências de Eglê Franchi, na Vila de Santana, em<br />
Campinas, SP, procurando pistas <strong>para</strong> o trabalho em<br />
nossa realidade. Lembramos das palavras de Lígia<br />
Chiapini: “...não há receitas; a única receita é a invenção<br />
e a luta contra o medo <strong>para</strong>lisador. Invenção que,<br />
no limite, é reinvenção de nós mesmos a cada momento,<br />
e por isso, sempre prazerosa, mesmo quando dói”.<br />
Vera questionou como os pais e a diretoria agiriam<br />
se trabalhasse com o dialeto das crianças. Como<br />
poderia chegar ao final do semestre sem ter alfabetizado<br />
ou acabado a cartilha?<br />
Naquela sala, escrita era símbolo de decodificação<br />
gráfica. Leitura era o ato individual de traduzir símbolos<br />
escritos em orais e a linguagem era a expressão do<br />
pensamento. Durante mais de uma hora, refletimos sobre<br />
o tema: “Se a linguagem é apenas expressão do<br />
pensamento, então, quem não fala, não pensa? E quando<br />
não se deixa falar?” Discutimos sobre os perigos de<br />
se passar essa leitura de incapacidade aos alunos.<br />
O ponto de partida seria o registro lingüístico<br />
das crianças. Rose disse que daria certo. Coloquei minhas<br />
angústias sobre o valor social de cada dialeto, embora<br />
certa de que todas as variantes tinham equivalentes<br />
poderes de comunicação.<br />
Na semana seguinte, a própria Vera veio nos<br />
dizer que já iniciara o trabalho com as variantes e da<br />
motivação que provocara na classe. Ela própria tomava<br />
consciência de que, a cada situação, procurava usar um<br />
registro lingüístico apropriado. Não é mesmo que não<br />
dava certo explicar do mesmo modo <strong>para</strong> o diretor da<br />
escola e <strong>para</strong> o entregador do açougue por que não estaria<br />
em São Paulo na próxima quinta-feira? Não que<br />
uma variante fosse melhor que a outra, mas o falante é<br />
responsável pela interação com quem conversa e deve<br />
saber adaptar a linguagem às mais variadas situações.<br />
Essa é a característica de quem sabe usar, realmente,<br />
sua língua.<br />
Durante um bimestre, Vera trabalhou com os<br />
mais diversos tipos de textos e suas possíveis e diversas<br />
25<br />
25<br />
leituras. Desde a receita de bolo que as próprias crianças<br />
traziam, passando por instruções de jogos que um<br />
ou outro tinha em casa ou que elaboravam a partir da<br />
própria prática, textos de jornais (anúncios de compra<br />
e venda somente), propagandas, poesias, textos literários<br />
e, sobretudo, textos que aquelas crianças produziam<br />
espontaneamente. Da leitura, surgiam textos e Vera<br />
avaliava o processo todo, uma vez que já assumira as<br />
idéias de Wanderley Geraldi sobre a avaliação.<br />
AVANÇOS<br />
A classe prosperava. Por outro lado, pais e as<br />
próprias colegas de Vera criticavam a “bagunça” que a<br />
classe fazia, pois, inicialmente, todos tentavam falar ao<br />
mesmo tempo. Pais reclamavam que as crianças não<br />
faziam lições, só ficavam recortando e colando. As serventes,<br />
da sujeira deixada pelos recortes e a diretora,<br />
do vai-e-vem das crianças pelos corredores.<br />
Um dia, Vera telefonou-me delirante: “Mariana,<br />
hoje o Robson disse que queria aprender a escrever<br />
porque arrumou uma namorada numa viagem e queria<br />
se corresponder com ela”. Era o estímulo que faltava<br />
ao menino multirrepetente e que, por longos anos, permanecera<br />
no nível silábico-alfabético. Sugerimos algumas<br />
atividades <strong>para</strong> levá-lo à reflexão e ao levantamento<br />
de hipóteses sobre a escrita. Foi um ótimo dia. Robson<br />
fora o nosso prêmio e nosso estímulo <strong>para</strong> prosseguir.<br />
A escola passara a ter significado <strong>para</strong> o aluno.<br />
Lembrei-me do que disse Emília Ferreiro em uma<br />
palestra no Teatro Sérgio Cardoso: “A tão falada prontidão<br />
<strong>para</strong> a leitura e a escrita dependem muito mais<br />
das ocasiões sociais de estar em contato com a língua<br />
escrita que qualquer outro fator”.<br />
Durante aquele bimestre, as crianças levantavam<br />
hipóteses sobre a leitura e a escrita. Descobriram que a<br />
receita de bolo tinha um só significado. Se mandava<br />
pôr 3 colheres de farinha, não poderiam colocar 6.<br />
Quando Vera afirmou isso <strong>para</strong> a classe, Marineide<br />
observou que era só aumentar todos os ingredientes<br />
que o bolo não se estragaria. “E eu dizia que ela nunca<br />
aprenderia matemática”, comentou Vera.<br />
De uma visita à classe, Rose veio com a nova:<br />
“sabe que os alunos da Vera disseram hoje, sobre o<br />
texto da receita de bolo, Mariana? Como era engraçado<br />
escrever duas colheres de chá de fermento!” Brincavam<br />
com as palavras, que agora eram deles! Seria preciso<br />
fazer primeiro um chá de fermento <strong>para</strong>, depois,<br />
pegar duas colheres? E foi uma aula lúdica, que contou<br />
com a participação de todos e com trocas sensacionais<br />
de experiências de vida.<br />
RESULTADOS<br />
Martinha argumentou que no livro A fada que<br />
tinha idéias também havia uma receita de bolo e lá tanto<br />
fazia colocar 3 ou 6 asas de morcego que dava no<br />
mesmo. Não precisava colocar o dobro dos outros ingredientes.<br />
Os alunos haviam descoberto o jogo lúdico da<br />
palavra. Sozinhos, descobriram sua função!<br />
Intertextualizavam, raciocinavam e jogavam ludicamente.<br />
Haviam perdido o medo do livro didático e viram<br />
que não precisavam escrever como estava no livro e,<br />
ainda, poderiam produzir textos geniais! Nas reuniões<br />
seguintes, discutimos: leitura, texto e introduzimos na<br />
conversa o trabalho com as linguagens verbais e nãoverbais.<br />
Vera mostrou-se entusiasmada e começou a<br />
pesquisar (sem nossa assistência) com as crianças atividades<br />
semanais. Da análise de sua prática, forneceunos<br />
conhecimentos preciosos.<br />
Dada a característica deste trabalho, deixaremos<br />
o resto da história de Vera e suas crianças <strong>para</strong> outra<br />
ocasião...