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www.nead.unama.br<br />
Muito lhe faltava ainda para merecer o nome de rua, que nem toda a gente<br />
lhe dava, dizendo simplesmente: "Para as bandas do Aleixo Manuel". Teria então<br />
meia dúzia de casas; o mais eram cercas ou quintais.<br />
Próximo à Travessa do Sucussara, via-se ainda a antiga loja do mercador que<br />
primeiro ali morara e donde lhe viera o nome; e fronteiras umas casas de taipa com<br />
dois lanços, e quatro janelas de rótulas, como eram quase todas naquele tempo.<br />
O lanço que ficava à direita, para o lado da esquina, era ocupado na frente por<br />
um repartimento espaçoso, vestido de alto a baixo, com panos de prateleiras<br />
carregadas de autos. Como não bastassem as paredes para acomodar toda a<br />
papelada, saíam do meio delas outros renques de prateleiras atravessados, formando<br />
uns cubículos estreitos, onde viam-se bancas apinhadas de rimas de processos. Por<br />
detrás dessas muralhas de autos arrumadas à guisa de torre, ouvia-se ranger a pena<br />
no papel, sinal infalível de que aí estava a rabiscar um escrevente do cartório.<br />
Em uma espécie de nicho que havia para o fundo do aposento, contra a<br />
parede interior assentava uma longa banca de pau-santo, sobre seis pés torneados,<br />
cada qual mais grosso do que a viga da casa. Como as outras, servia esta mesa de<br />
sapata a um castelo de papelório; mas aqui as ameias eram feitas não só com<br />
muralhas de autos, mas com baterias de formidáveis bacamartes encadernados em<br />
camurça vermelha.<br />
No meio da banca, dentro da cava aberta para acomodar o corpo, surgia um<br />
busto de homem, coberto de tabaco e poeira, com um chinó tão escandalosamente<br />
ruivo, que já frisava com o vermelho.<br />
Óculos de asas de estanho, trepados no respeitável cavalete, envidraçavam<br />
de verde uns olhinhos redondos, vivos, espertos, que pulavam das órbitas como a<br />
pupila do molusco. O queixo fino e agudo, à feição do gume de uma fouce revirada,<br />
bem como as faces chatas e batidas, pareciam chanfradas em carão de pau,<br />
coberto de velho pergaminho.<br />
Constantemente sorvida, certo indício de concentração do espírito, a boca<br />
não passava de uma ligeira comissura, que seria imperceptível, se a conformação<br />
do rosto não indicasse naquele ponto o hiato da gula.<br />
Às orelhas que não invejariam as de um perdigueiro, no tamanho e nas<br />
ouças, servia-lhes de ornato duas penas de ganso que lançando as longas ramas<br />
sobre as espáduas, espetavam-lhe na testa os bicos rombos e cobertos com<br />
espessa crosta de tinta.<br />
Quando sucedia escarrapachar-se a que estava de serviço ia substituir uma<br />
tias duas de reserva nas cantoneiras, provavelmente a mais repousada; assim<br />
revezando-se, despejavam-se as três sobre o almaço por modo que as folhas e<br />
cadernos de papel desapareciam devorados pelo infatigável gregotim<br />
A parte de mais nota era a mão, que poderia servir de bitola ao palmo<br />
craveiro, pois assentando o punho embaixo da página, alcançava-lhe o tope com os<br />
bicos da pena encravada nos três dedos, que a apertavam como os cientes de uma<br />
tenaz de aço. Encolhendo-se à medida que desciam as regras tia escrita, a tal mão<br />
de tarracha só levantava-se da banca para virar a folha com um piparote,<br />
enxumbrado da saliva, que o dedo mínimo furtava à boca, mas com a rapidez de um<br />
tiro de bodoque. Nestas ocasiões o beiço em constante sinalefa, desabrochava da<br />
cesura, graciosamente estofado, como a fava de um chichá.<br />
Era este o dono do cartório, Sebastião Ferreira Freire, tabelião do público,<br />
judicial e notas, da cidade de São Sebastião, morador qualificado não só pela<br />
importância do cargo, como pelos mais predicados de sua pessoa.<br />
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