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O Garatuja - Unama

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www.nead.unama.br<br />

Quando se tornavam por demais insuportáveis, a senhora Miquelina mandava<br />

pela filha chamar o tabelião, o qual tomando a competente pitada, sobraçava o seu<br />

espadim de cerimônia, encaixava na cabeça o enorme tricórnio, e saía fora<br />

flanqueado dos escreventes armados de réguas, cunhetes e cabos de vassouras.<br />

Com a aparição daquele piquete, desaparecia o bando dos minorenses, que se<br />

ocultava no canto da casa, à espera de vez para outra investida.<br />

A princípio mordia-se o Ivo com a maganeira dos minorenses; porém mais<br />

tarde, cogitando melhor, se consolou da perseguição que faziam à moça, pelas<br />

ocasiões que lhe davam de vê-la no cartório, quando ia ao pai com recado da<br />

senhora Miquelina.<br />

Além dessas rápidas entrevistas, arranjara o Ivo um meio engenhoso de<br />

comunicar-se inocentemente com Marta.<br />

Tinham as casas antigas uma particularidade, de que nunca me deram cabal<br />

explicação. Havia nas portas interiores junto ao solo, uma pequena aberta em meialua,<br />

de palmo de altura. Se era para não impedir ao bichano a caça dos ratos; se<br />

para dar a estes passagem franca, evitando que roessem a tábua ou esburacassem<br />

o soalho, é ponto este de arqueologia que ainda não foi decidido, e espera a<br />

profunda investigação dos que desenterraram os ossos de Estácio de Sá.<br />

O certo é que na porta da serventia interior do cartório havia um rombo<br />

daqueles; e que uma galinha com a sua ninhada de pintos, abusando da liberdade,<br />

que as donas de casa costumam deixar nesse período interessante da criação, todas<br />

as manhãs se introduzia no santuário forense; e faltando com o respeito devido à<br />

veneranda poeira daquela arca, levava a ciscá-la por baixo das mesas e prateleiras.<br />

Foi essa visita uma fortuna para o Ivo, que sentia a sua jovial mocidade<br />

sufocada pelo silêncio espesso e polvorento daquela atmosfera de alfarrábios.<br />

Desde o primeiro dia em que apareceu-lhe a ninhada no cartório, buscou ele entrar<br />

na privança e ganhar a amizade daquela família galinácea. Mas a poedeira mostrouse<br />

arisca, lembrada sem dúvida dos pontapés que lhe disparavam o tabelião e seus<br />

escreventes, quando ela passava-lhes por baixo da mesa.<br />

Mudaram essas disposições logo ao outro dia, pelo cuidado que teve o rapaz<br />

de levar no bolso do gibão uma broa seca de milho, a qual lhe servia não só para ir<br />

merendando enquanto copiava, mas também para familiarizar-se com a ninhada,<br />

espalhando as migas, que ela vinha comer a seus pés.<br />

A cabo de uma semana estavam íntimos, a ponto que em toda confiança<br />

deixava a galinha ao Ivo apanhar-lhe algum dos pintainhos, e alisar-lhe a penugem<br />

dourada. Então levou o rapaz de casa certo papelinho, onde havia pintado um<br />

coração com asas que voava pelos ares, como se fora um pombinho, e que era de<br />

súbito trespassado por uma seta cruel.<br />

Esse papelinho feito em rolo e atado com um fio de seda cor-de-rosa,<br />

guardara-o ó rapaz no peito da véstia com todo o resguardo porque nem o perdesse,<br />

nem o amarrotasse.<br />

Na volta do meio-dia, vinda que foi a ninhada ao cheiro da broa, apanhou o<br />

Ivo um dos pintainhos, e pondo-lhe no pescoço à guisa de colar o papelinho<br />

enrolado, guardou-o na gaveta, tendo o cuidado de o regalar de migas, para evitar<br />

que piasse muito forte e avisasse o tabelião.<br />

Não tardou que assomasse à porta o rostinho de camafeu da Marta, que<br />

vinha a recado da mãe, por causa das perseguições dos rapazes do prelado. Como<br />

os olhos da menina, embora com disfarce, de curiosos que eram, todas às vezes se<br />

enfrestavam pelo vão dos armários, viram o pintainho, que lhes mostrava o Ivo, e<br />

mais a redoma de papel que tinha ao pescoço.<br />

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