14.10.2012 Views

Graciliano ramos - vidas secas (livro completo)

Graciliano ramos - vidas secas (livro completo)

Graciliano ramos - vidas secas (livro completo)

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

servira muito: haviam caminhado léguas quase sem sentir. De<br />

repente veio a fraqueza. Devia ser fome. Fabiano ergueu a<br />

cabeça, piscou os olhos por baixo da aba negra e queimada do<br />

chapéu de couro.<br />

Meio-dia, pouco mais ou menos. Baixou os olhos encandeados,<br />

procurou descobrir na planície. uma sombra ou sinal de água.<br />

Estava realmente com um buraco no estômago. Endireitou o saco<br />

de novo e, para conservá-lo em equilíbrio, andou pendido, um<br />

ombro alto, outro baixo. O otimismo de Sinha Vitória já não<br />

lhe fazia mossa. Ela ainda se agarrava a fantasias. Coitada.<br />

Armar semelhantes planos, assim bamba, o peso do baú e da<br />

cabaça enterrando-lhe o pescoço no corpo.<br />

Foram descansar sob os garranchos de uma quixabeira,<br />

mastigaram punhados de farinha e pedaços de carne, beberam na<br />

cuia uns goles de água. Na testa de Fabiano o suor secava,<br />

misturando-se a poeira que enchia as rugas fundas, embebendose<br />

na correia do chapéu. A tontura desaparecera, o estômago<br />

sossegara. Quando partissem, a cabaça não envergaria o<br />

espinhaço de Sinha Vitória. Instintivamente procurou no<br />

descampado indício de fonte. Um friozinho agudo arrepiou-o.<br />

Mostrou os dentes sujos num riso infantil. Como podia ter<br />

frio com semelhante calor? Ficou um instante assim besta,<br />

olhando os filhos, a mulher e a bagagem pesada. O menino<br />

mais velho esbrugava um osso com apetite. Fabiano lembrou-se<br />

da cachorra Baleia, outro arrepio correu-lhe a espinha, o<br />

riso besta esmoreceu.<br />

Se achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam<br />

cheios, arrastando os pés. Fabiano comunicou isto a Sinha<br />

Vitória e indicou uma depressão do terreno. Era um bebedouro,<br />

não era? Sinha Vitória estirou o beiço, indecisa, e Fabiano<br />

afirmou o que havia perguntado. Então ele não conhecia<br />

aquelas paragens? Estava a falar variedades? Se a mulher<br />

tivesse concordado, Fabiano arrefeceria, pois lhe faltava<br />

convicção; como Sinha Vitória tinha dú<strong>vidas</strong>, Fabiano<br />

exaltava-se, procurava incutir-lhe coragem. Inventava o<br />

bebedouro, descrevia-o, mentia sem saber que estava mentindo.<br />

E Sinha Vitória excitava-se, transmitia-lhe esperanças.<br />

Andavam por lugares conhecidos. Qual era o emprego de<br />

Fabiano? Tratar de bichos, explorar os arredores, no lombo de<br />

um cavalo. E ele explorava tudo. Para lá dos montes afastados<br />

havia outro mundo, um mundo temeroso; mas para cá, na<br />

planície, tinha de cor plantas e animais, buracos e pedras.<br />

Os meninos deitaram-se e pegaram no sono. Sinha Vitória<br />

pediu o binga ao companheiro e acendeu o cachimbo. Fabiano<br />

preparou um cigarro. Por enquanto estavam sossegados. O<br />

bebedouro indeciso tornara-se realidade. Voltaram a cochichar<br />

projetos, as fumaças do cigarro e do cachimbo misturaram-se.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!