Graciliano ramos - vidas secas (livro completo)
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servira muito: haviam caminhado léguas quase sem sentir. De<br />
repente veio a fraqueza. Devia ser fome. Fabiano ergueu a<br />
cabeça, piscou os olhos por baixo da aba negra e queimada do<br />
chapéu de couro.<br />
Meio-dia, pouco mais ou menos. Baixou os olhos encandeados,<br />
procurou descobrir na planície. uma sombra ou sinal de água.<br />
Estava realmente com um buraco no estômago. Endireitou o saco<br />
de novo e, para conservá-lo em equilíbrio, andou pendido, um<br />
ombro alto, outro baixo. O otimismo de Sinha Vitória já não<br />
lhe fazia mossa. Ela ainda se agarrava a fantasias. Coitada.<br />
Armar semelhantes planos, assim bamba, o peso do baú e da<br />
cabaça enterrando-lhe o pescoço no corpo.<br />
Foram descansar sob os garranchos de uma quixabeira,<br />
mastigaram punhados de farinha e pedaços de carne, beberam na<br />
cuia uns goles de água. Na testa de Fabiano o suor secava,<br />
misturando-se a poeira que enchia as rugas fundas, embebendose<br />
na correia do chapéu. A tontura desaparecera, o estômago<br />
sossegara. Quando partissem, a cabaça não envergaria o<br />
espinhaço de Sinha Vitória. Instintivamente procurou no<br />
descampado indício de fonte. Um friozinho agudo arrepiou-o.<br />
Mostrou os dentes sujos num riso infantil. Como podia ter<br />
frio com semelhante calor? Ficou um instante assim besta,<br />
olhando os filhos, a mulher e a bagagem pesada. O menino<br />
mais velho esbrugava um osso com apetite. Fabiano lembrou-se<br />
da cachorra Baleia, outro arrepio correu-lhe a espinha, o<br />
riso besta esmoreceu.<br />
Se achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam<br />
cheios, arrastando os pés. Fabiano comunicou isto a Sinha<br />
Vitória e indicou uma depressão do terreno. Era um bebedouro,<br />
não era? Sinha Vitória estirou o beiço, indecisa, e Fabiano<br />
afirmou o que havia perguntado. Então ele não conhecia<br />
aquelas paragens? Estava a falar variedades? Se a mulher<br />
tivesse concordado, Fabiano arrefeceria, pois lhe faltava<br />
convicção; como Sinha Vitória tinha dú<strong>vidas</strong>, Fabiano<br />
exaltava-se, procurava incutir-lhe coragem. Inventava o<br />
bebedouro, descrevia-o, mentia sem saber que estava mentindo.<br />
E Sinha Vitória excitava-se, transmitia-lhe esperanças.<br />
Andavam por lugares conhecidos. Qual era o emprego de<br />
Fabiano? Tratar de bichos, explorar os arredores, no lombo de<br />
um cavalo. E ele explorava tudo. Para lá dos montes afastados<br />
havia outro mundo, um mundo temeroso; mas para cá, na<br />
planície, tinha de cor plantas e animais, buracos e pedras.<br />
Os meninos deitaram-se e pegaram no sono. Sinha Vitória<br />
pediu o binga ao companheiro e acendeu o cachimbo. Fabiano<br />
preparou um cigarro. Por enquanto estavam sossegados. O<br />
bebedouro indeciso tornara-se realidade. Voltaram a cochichar<br />
projetos, as fumaças do cigarro e do cachimbo misturaram-se.