Graciliano ramos - vidas secas (livro completo)
Graciliano ramos - vidas secas (livro completo)
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almas, nos caracteres, nos pensamentos. E isto constitui a<br />
forma superior da ficção, tanto mais estimável no Brasil<br />
quanto o nosso temperamento não se mostra muito propício ao<br />
que ela exige de concentração espiritual, densidade<br />
psicológica e complexidade literária. Com S. Bernardo, o Sr.<br />
<strong>Graciliano</strong> Ramos apresentou a sua primeira obra de análise<br />
psicológica, de iluminação interior de personagens, na linha<br />
de um processo que daria em seguida todos os seus resultados<br />
em Angústia. Acompanhando os assuntos para esse terreno<br />
subjetivo, o estilo do romancista adquiriu, por sua vez, a<br />
propriedade, a elegância e o vigor que fazem do Sr.<br />
<strong>Graciliano</strong> Ramos um dos escritores que melhor manejam<br />
atualmente a língua portuguesa. As vezes, em certos trechos,<br />
ele me desagrada pela secura e dureza, como pela ausência de<br />
vibração e dinamismo, mas isto talvez decorra em grande parte<br />
daquela limitação de assuntos e de problemas, acima sugerida.<br />
O principal defeito de S. Bernardo já tem sido apontado<br />
mais de uma vez: é a inverossimilhança de Paulo Honório como<br />
narrador, é o contraste entre o <strong>livro</strong> e seu imaginário<br />
escritor, o que se já verificara em Caetés. De certo modo,<br />
em todos os romances escritos na primeira pessoa, concede-se<br />
uma margem para a inverossimilhança. Contudo, em S. Bernardo<br />
ela é excessiva e inaceitável. Uma novela de tanta densidade<br />
psicológica, elaborada com tantos requintes de<br />
arte literária, não suporta o artifício de ser apresentada<br />
como escrita por um personagem primário, rústico, grosseiro,<br />
ordinário, da espécie de Paulo Honório. Mesmo com um narrador<br />
impessoal, aliás, ainda subsistiria alguma inverossimilhança,<br />
pois aquele personagem, como aparece no romance, não podia<br />
ter a vida interior que lhe atribui o romancista. É a<br />
inverossimilhança que se verificará, embora sob outro<br />
aspecto, em Vidas Secas.<br />
Nota-se a princípio uma certa hesitação na marcha do<br />
enredo de S. Bernardo. Os primeiros capítulos se lançam em<br />
várias direções, como se o próprio romancista não estivesse<br />
ainda no domínio da linha central do desenvolvimento<br />
dramático. Há mesmo alguns trechos que parecem enxertados,<br />
podendo figurar ou não no conjunto, indiferentemente, como o<br />
capítulo VII, com a história independente de seu Ribeiro.<br />
Como ficção, rigorosamente, o <strong>livro</strong> só se afirma e define a<br />
partir do casamento de Paulo Honório com Madalena. E seu<br />
núcleo central, com efeito, é a existência desses dois<br />
seres, o patético do não entendimento entre eles, o jogo de<br />
contraste e separação daquelas duas criaturas dentro de uma<br />
mesma casa. Através dessas situações, o romancista desvenda e<br />
analisa o caráter de Paulo Honório, o que constitui a maior<br />
atração de S. Bernardo. Tratado com uma sobriedade, que às