Graciliano ramos - vidas secas (livro completo)
Graciliano ramos - vidas secas (livro completo)
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situações humanas e literárias se desdobram de tal maneira<br />
que logo identificamos esta obra como um autêntico romance.<br />
Em S. Bernardo e Vidas Secas, novelas, a substância e a forma<br />
estão concentradas numa única direção, disposta para a<br />
revelação de um só drama ou episódio. Angústia, ao contrário,<br />
desdobra-se em vários episódios, que circulam o drama<br />
principal, ou com ele se cruzam em múltiplas direções, de<br />
modo que a ação se processa em diversos planos, dando-lhe a<br />
extensão e a amplitude de um romance. Ao lado de Luís da<br />
Silva, surgem Julião Tavares e a criada Vitória, que provocam<br />
rapidamente o nosso interesse como tipos humanos.<br />
Tal como já acontecera em Caetés e S. Bernardo, o romance<br />
Angústia está escrito na primeira pessoa, com o personagem<br />
principal como narrador. Mas enquanto João ( Viu-se preso e<br />
violentado <strong>Graciliano</strong> Ramos como objeto de especial<br />
perseguição do general Newton Cavalcanti, uma espécie<br />
de guarda de campo de concentração nazi-fascista, em quem,<br />
todavia, apuseram no Brasil, como em alguns outros de igual<br />
feitio e mentalidade no Exército, Marinha e Aeronáutica, os<br />
bordados das mais altas patentes militares).<br />
Valério, um incapaz absoluto, e Paulo Honório, um bandido<br />
rústico, não têm verossimilhança como imaginários autores<br />
daqueles dois primeiros <strong>livro</strong>s, Luís da Silva, no terceiro,<br />
em nada se choca com as boas regras do jogo literário nessa<br />
debatida e complexa questão do personagem-narrador. E: certo<br />
que ele se classifica, logo na primeira página, como um<br />
pobre-diabo, mas toda a ação do romance, ao contrário do que<br />
se observa quanto a João Valério e Paulo Honório, demonstra<br />
que existe adequação entre ele e a história que nos oferece<br />
como protagonista. Além disso, Angústia exigia realmente a<br />
narração na primeira pessoa, enquanto S. Bernardo, a meu ver,<br />
se tomaria mais verossímil e melhor estruturado com uma<br />
narração impessoal. Assim, uma certa desordem, que se observa<br />
em Angústia, com uma linha condutora em ziguezague, não é um<br />
defeito, mas um caráter do <strong>livro</strong>. Defeito de técnica, talvez,<br />
será que a primeira parte se tenha alongado demais em<br />
prejuízo da segunda. De orientação, porém, nenhum defeito.<br />
Aquela desordem aparente é a conseqüência lógica e perfeita<br />
do estado de espírito do personagem-narrador, por ele próprio<br />
assim caracterizado: Há nas minhas recordações estranhos<br />
hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois, um<br />
esquecimento quase <strong>completo</strong>. As minhas ações surgem<br />
baralhadas e esmorecidas como se fossem de outra pessoa.<br />
Penso nelas com indiferença. Certos atos parecem<br />
inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por<br />
onde transitei perdem a nitidez.