Graciliano ramos - vidas secas (livro completo)
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Do pai e da mãe revê "pedaços deles, rugas, olhos raivosos,<br />
bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e<br />
leves, transparentes".<br />
Porque não se sentiu amado, nem teve uma infância de ternuras<br />
e afagos, o Sr. <strong>Graciliano</strong> Ramos reagiu com sentimentos de<br />
indiferença e desprezo em face de toda a humanidade. Ele não<br />
escreveu estas memórias apenas por motivos literários, antes<br />
para se libertar dessas lembranças opressivas e torturantes.<br />
Escreveu a história da sua infância porque a detesta com<br />
amargura. Não se achou, por isso, obrigado a complacências<br />
para com os outros. Refere-se aos pais com realismo, com<br />
objetividade, como se estivesse. desligado deles. Não<br />
manifesta propriamente ódio a nenhum dos seres que o fizeram<br />
sofrer, mas dá-lhes uma retribuição na frieza, na dureza<br />
implacável com que os revive. E este rigor, este sistema<br />
anti-sentimental de observação, estende-se a si mesmo sem<br />
qualquer condescendência. Verificamos nestas memórias que a<br />
atitude do Sr. <strong>Graciliano</strong> Ramos em face da vida não é bem a<br />
do humour, mas a do sarcasmo, produto da revolta de uma<br />
sensibilidade vibrátil e tensa. Sensibilidade que,<br />
maltratada, macerada, sufocada, reagiu depois por intermédio<br />
da criação de um mundo de ficção em que se projetaram as<br />
sombras e as sensações de um pavoroso mundo infantil.<br />
Literariamente, o Sr. <strong>Graciliano</strong> Ramos encontrou no gênero<br />
memórias uma forma de rara adequação para a sua arte de<br />
escritor, para o seu estilo. Creio que este é o mais bem<br />
escrito de todos os seus <strong>livro</strong>s. Percebe-se aqui o apuro do<br />
trabalho de composição e estilo, o seguro artesanato<br />
literário. A secura, a frieza dessas impressões de infância<br />
encontra a devida correspondência no seu estilo sóbrio,<br />
ascético, livre de adornos. A prosa do Sr. <strong>Graciliano</strong> Ramos é<br />
moderna, no seu aspecto desnudado, no vocabulário, no gosto<br />
das palavras e das construções sintáticas, e é clássica pela<br />
correção, pelo tom como que hierático das frases. O que a<br />
valoriza propriamente não é a beleza, no sentido hedonístico<br />
da palavra, mas a sua precisão, a sua capacidade de<br />
transmitir sensações e impressões com um mínimo de metáforas<br />
e imagens, quase só com o jogo e o atrito de vocábulos,<br />
principalmente de adjetivos. Destacaria em Infância, pelo<br />
conteúdo dramático e pela arte literária, capítulos como.<br />
"O Moleque José", "O Cinturão", "Minha Irmã Natural", "Um<br />
Enterro", "Venta-Romba", "A Criança Infeliz". Nenhum deles,<br />
porém, chega a superar o capítulo final, "Laura", em cujas<br />
páginas descreve a passagem da infância para a adolescência,<br />
com as primeiras inquietações da carne e do sexo. Ao lado<br />
destes, certos capítulos como "O Fim do Mundo", "O Inferno" e<br />
"Antônio do Vale" tornam-se mais ou menos insignificantes.