Guilhermina Jorge - Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Guilhermina Jorge *
ALGUMAS REFLEXÕES EM TORNO DAS EXPRES-
SÕES IDIOMÁTICAS ENQUANTO ELEMENTOS
QUE PARTICIPAM NA CONSTRUÇÃO DE
UMA IDENTIDADE CULTURAL
A identidade gera-se na capacidade em aceitar a diferença. A
identidade de um povo, de uma cultura não pode ser encarada, tendo
em conta a miscegenação dos povos e a universalidade dos valores,
como “o carácter do que é uno, permanente e semelhante” 1 .
Hoje em dia, a identidade constrói-se obrigatoriamente na alteridade,
na convivência do “eu” e do “outro”, idêntico (enquanto ser humano)
e diferente (quanto à raça, à crença, à cor, à língua..., mas também
à personalidade, aos gostos...). A identidade deve pois ser vista como
uma nova realidade emergente das sociedades modernas, que se deve
centrar na humanidade.
O termo de “globalização” 2 acompanha esta mesma evolução e variação.
Novos paradigmas deverão ser encontrados, novas componentes
da identidade cultural deverão ser traçadas. Num tempo em que as
fronteiras tradicionais se esbatem é necessário reconstruir outros
valores, recriar a identidade, e é interessante verificar um renascer, ou
pelo menos, um novo olhar pelo passado, pelos seus valores culturais,
pela pluralidade das suas manifestações.
* Leitora de Francês do Departamento de Linguística Geral e Românica da Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa.
1 Resumo da definição proposta pelo Petit Robert (entrada lexical: ‘identidade’).
2 A entrada de Portugal para a UE trouxe para a língua portuguesa neologismos e
novos sentidos. A ‘globalização’, encarada neste contexto, constitui não um novo
termo mas um alargamento da esfera semântica da palavra, entendida não só na
sua vertente pedagógica (cf. o Dicionário Universal da Língua Portuguesa, on-
-line, 1999), mas também na sua vertente económica e na criação de um espaço
mais abrangente e mais livre (cf. o Dictionnaire Universel Francophone, on-line,
1997).
polifonia, Lisboa, Edições Colibri, n.º 4, 2001, pp. 215-222

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A língua portuguesa, mas isto também é verdade para outras
línguas 3 , viu surgir, nos últimos dez anos, um número importante de
dicionários sobre a fraseologia em geral e mais especificamente sobre
as expressões idiomáticas 4 . Acreditamos que este novo olhar sobre a
cultura popular, sobre a língua do povo, se prende com este novo
contexto globalizante que atravessamos e a necessidade de acentuar as
particularidades intrínsecas a uma cultura, a uma língua, salvaguardando,
assim, pela diferença, a sua própria identidade.
Do mesmo modo, notamos um crescente fervor pela investigação
em torno da idiomaticidade, nas suas várias componentes científicas,
acentuando o seu carácter interdisciplinar e registando uma alteração
na concepção deste objecto enquanto objecto de análise científica.
Note-se que os anos oitenta e noventa foram fundamentais para a
implementação da vertente científica deste objecto que até aí era visto
por alguns linguistas (por exemplo, Guiraud, 1961) como o campo da
heterogeneidade, do desvio, das anomalias e, deste modo, um campo
diverso e pouco propício a análises ditas científicas 5 .
As expressões idiomáticas (EIs) descrevem, pelas imagens que
sugerem, o mundo real, os lugares, as experiências quotidianas, os
sentires... Mantêm intacto o colorido de um povo, constituem uma voz
rica de sabedoria que soube imprimir na linguagem a sua identidade.
Este tipo de estruturas ilustra uma parte desse saber, desse colorido.
Conhecê-las implica conhecer o povo, a cultura que lhes deu vida,
estabelecer entre elas e os homens relações, conhecer mais profundamente
a língua e as múltiplas formas de expressividade. As expressões
integram o melhor sistema de símbolos para representar uma identidade
cultural.
Constituem, pois, um objecto importante de uma língua natural,
uma manifestação de um saber plural, um enriquecimento do idiolecto
do sujeito, facilitam a comunicação, estabelecem conivências e partilhas.
Por outro lado, permitem instituir um diálogo interdisciplinar,
aproximando e salientando interrelações fundamentais, permitindo
3 A literatura em torno da fraseologia em geral aumentou consideravelmente nos
últimos anos. Destaque-se sobre esta questão a relevância da investigação inglesa,
francesa, russa e alemã, entre outras. As áreas da lexicografia, da sintaxe, da semântica
e da psicolinguística foram algumas das áreas mais contempladas nestas
abordagens contemporâneas.
4 Para o português, e sem querermos ser exaustivos, dispomos de cerca de dez dicionários
publicados a partir dos anos oitenta, sendo a maior parte deles publicações
dos anos noventa.
5 Cite-se, a título de exemplo, alguns trabalhos desenvolvidos nos anos 80 para o
francês por Ruwet (1982), Gross (1982), para o alemão Greciano (1983) e para o
inglês Gibbs (1980 e 1985) e Lattey (1986).
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uma interpenetração com a experiência humana, com a sociedade, propiciando
ao saber uma certa humanização.
Campo inesgotável de florilégios da linguagem, as EIs percorreram
um longo caminho e andaram de boca em boca, mantendo, assim, um
elo com os nossos antepassados, próximos ou longínquos. Outras há
que nascem no dia a dia, participando no dinamismo e na mudança da
língua. São também o resultado das miscigenações culturais, dos contactos
entre línguas e das partilhas entre povos – despedir-se à francesa
6 , falar francês como uma vaca espanhola, ver-se grego, perder o
seu latim, ser para inglês ver, ser chinês. Outras ilustram traços intrínsecos
de um povo, de uma cultura, preservando uma identidade geográfico-cultural
– ver navios do alto de Santa Catarina, passar as passas
do Algarve, ser mais antigo/velho que a Sé de Braga, meter o Rossio
na rua da Betesga, mandar para a Casa Pia, ser do tempo dos
Afonsinhos, ser amigo de Peniche 7 , ou traços de alguém – o que fala
demais é um fala barato, o que tem medo anda com o credo na boca,
o que está triste fica com cara de enterro, o distraído é um cabeça de
vento, o maldizente tem a língua afiada...
Mas a identidade de uma língua, de uma cultura, constrói-se
também nas suas diferenças e na capacidade que o homem demonstra
em lidar com esta pluralidade para a construção de um todo. As EIs
ilustram diferenças (lexicais, morfológicas, idiolectais, regionais,
sociais...) e a sua riqueza advém também das suas múltiplas formas de
expressão, das suas variantes (subvertendo parcialmente a sua própria
lexicalização e permitindo algumas substituições num paradigma
sempre finito).
As variantes podem ser de vários tipos:
a) variantes verbais:
atirar areia para os olhos / deitar areia para os olhos
acertar as contas a alguém / ajustar as contas a alguém
afogar-se num copo de água / ferver num copo de água
deitar água na fervura / pôr água na fervura
6 Veja-se o equivalente francês – ‘filer à l’anglaise’ (o equivalente inglês é idêntico
ao português – ‘to take french leave’). Cf. Jorge (1997: 40) “(...) todas as expressões,
embora com referentes diferentes, acabaram por adquirir um mesmo sentido,
o que pressupõe uma interpenetração cultural que ultrapassa as fronteiras nacionais,
criando zonas de miscigenação cultural”.
7 Cf. os seguintes exemplos de francês: ‘se porter comme le Pont-Neuf’, ‘faire une
promesse de gascon’, ‘donner une réponse de normand’, ‘faire son cours à Asnières’,
‘avoir l’air de revenir de Pontoise’, etc.
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b) variantes nominais:
atirar areia para os olhos / atirar poeira para os olhos
custar os olhos da cara / custar os dentes da boca / custar coiro e
cabelo
pintar a manta / pintar a macaca / pintar o diabo
c) variantes do numeral
dar dois dedos de conversa / dar quatro dedos de conversa
receber com duas pedras na mão / receber com sete pedras na mão
meter-se numa camisa de sete varas / meter-se numa camisa de
onze varas
d) variantes do morfema de número:
passar a mão pelo lombo / passar as mãos pelo lombo
andar na boca do mundo / andar nas bocas do mundo
morder no calcanhar / morder nos calcanhares
e) variantes de morfemas derivacionais:
diminutivos:
andar com pés de lã / andar com pézinhos de lã
ser de falas mansas / ser de falinhas mansas
ter macacos no sótão / ter macaquinhos no sótão
tirar o cavalo da chuva / tirar o cavalinho da chuva
aumentativo:
levar um aperto / levar um apertão
f) variantes de determinantes (presença ou ausência)
procurar agulha em palheiro / procurar agulha num palheiro
g) omissão de elementos:
fazer chorar as pedras (da calçada)
pôr (tudo) em pratos limpos
engolir sapos (vivos)
arranjar um (lindo) trinta e um
arranjar um (lindo) molho de bróculos
h) variantes sinonímicas
cair em cesto roto / cair em saco roto
pôr a careca à mostra / pôr a calva à mostra
perder a fala / perder a voz
mentir como um cão / mentir como um cachorro
i) variantes de preposição:
não enxergar um palmo adiante do nariz / não enxergar um palmo
à frente do nariz
pôr a carroça diante dos bois / pôr a carroça à frente dos bois
j) variantes de níveis de língua 8 :
8 Os níveis de língua constituem um elemento importante a ter em conta na abordagem
lexicográfica das expressões idiomáticas. No entanto, esta variação levanta
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meter na cabeça / meter nos cornos
pôr nos píncaros da lua / pôr nos cornos da lua
não dar conversa / não dar cavaco
perder a fala / perder o pio
mentir como um cão / mentir como um cachorro
Como já referimos, a diferença gera-se a vários níveis, tanto a nível
individual 9 como social, e são estas diferenças que acentuam o poder
criativo e expressivo destas estruturas e a sua extrema riqueza, mas ao
mesmo tempo a sua estranheza para o aprendiz de uma língua (no
contexto de uma língua estrangeira ou língua segunda).
Conhecer o léxico de uma língua, não é conhecer uma lista individualizada
e alfabetizada de palavras, pois se assim fosse o dicionário
satisfaria essa necessidade, mas sim conhecer as múltiplas combinatórias
que criam a identidade de uma língua, a sua especificidade. E as
EIs, como os provérbios, as máximas, as sentenças, as frases feitas,
demonstram que as palavras enquanto itens individualizados, constituem
um objecto abstracto, desligado da realidade discursiva, da língua
enquanto todo.
Para ilustrar algumas das observações feitas propomo-nos tecer
algumas considerações sobre a tradutologia das expressões idiomáticas,
realçando dificuldades inerentes a este processo.
Imaginem-se no papel do tradutor que tem de transpor para outra
língua o seguinte excerto de José Sesinando (a partir do Dicionário de
Orlando Neves, Dicionário de Frases Feitas):
Em lugar de ir chatear Camões, o melhor é ir chegando. José Maria Pincel
pode não ser um José Quintolas (...). Mandar para a Casa Pia deve ser
punido com ser mandado para a gaiola. (...). A Maria das Pernas compridas
pode dissolver uma Maria da Fonte. Mata-Grande é Lisboa; Mata-
-Limpa é Coimbra. A menina do olho não é só o singular da menina dos
olhos. Moer torresmos é de fazer moer os fígados(...) 10 .
O tradutor de Italo Calvino, de Eco (entre outros) diz-nos que “um
modelo de tradução é aquele que traz para outra língua e para outro
público as conotações que o autor quis dar, o que implica tentar
inúmeros problemas. É difícil encontrar uma grelha clara e objectiva. Cf. a ‘componente
hierárquica’ proposta por Misri (1990), pp. 143-163.
9 Ruwet (1982: 12) diz-nos: “il n’y a pas deux sujets parlants qui possèdent exactement
le même stock d’expressions idiomatiques, et la familiarité avec telle ou telle,
sa relative transparence, son degré de figement, varient de l’un à l’autre, et
changent avec le temps chez le même sujet (...)”.
10 Artigo de José Sesinando “Refazendo frases feitas”, Jornal de Letras, “debate-
-papo”, 3 de Setembro de 1991.
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escrever como o autor escreveria em português” 11 . Com a tradução da
fraseologia esta posição torna-se problemática. O tradutor propõe uma
transposição por equivalências próprias da língua de chegada. Tradução
ou adaptação? Escrita ou re-escrita? Autor-tradutor? Ou autor –
autor tradutor? 12
G. Misri, ao reflectir sobre a tradução das expressões lexicalizadas
na perspectiva da teoria interpretativa da tradução, rejeita e condena a
tradução palavra a palavra ou tradução literal e constrói um enquadramento
teórico que privilegia a equivalência pensada em termos de
quatro componentes (informativa, hierárquica, colocativa e de conformidade)
13 . A. Berman opõe-se a esta perspectiva e diz-nos que isso leva
à “destruição das expressões”, substituir uma expressão idiomática
pelo seu equivalente é, segundo o autor, um acto de etnocentrismo. Jogar
com a equivalência é atentar contra a matéria falante de uma língua.
Traduzir, na perspectiva do autor, não é procurar equivalências.
Substituir é esquecer que existe dentro de nós uma consciência-da-
-lexicalização que identificará a nova lexicalização como o estrutura-
-irmã de uma lexicalização local. Berman defende não uma simples
palavra a palavra mas um jogo com os significantes, privilegiando os
jogos de palavras, as sonoridades, os efeitos... Atentar contra a matéria
falante de uma língua é, segundo nós, destruir a sua própria identidade
14 .
A tradução deve ser encarada como interacção. Traduzir é estabelecer
um contacto, que está em interacção com outros contactos. Traduzir
é também, por vezes, esbarrar com contextos culturais marcantes
de um povo, de uma cultura, e que, só dificilmente, encontram eco
numa outra cultura, numa outra língua.
Partimos do pressuposto que estes lexemas contêm e ilustram a
sabedoria popular, são repositórios e carregam às suas costas o peso
da história de uma língua, mais ou menos longa, transportando ao
longo desse percurso valores que se foram cristalizando, tornando-se
estáticos e transparentes para o falante dessa língua, mas constituindo
11 Cf. a entrevista de António Cabrita a José Colaço Barreiros (Jornal Expresso,
Janeiro de 1995).
12 Traduzir expressões como ‘passar as passas do Algarve’ ou ‘meter o Rossio na rua
da Betesga’ por expressões equivalentes existentes numa outra língua pressupõe,
do nosso ponto de vista, perda e apagamento do texto de partida de referentes culturais
importantes para a construção do sentido. A procura de equivalentes não deveria
levar a esse apagamento. No entanto, estamos convictos que não existe uma
solução ideal para a tradução das expressões idiomáticas e que a noção de perda
acompanha o acto tradutológico em geral.
13 Cf. Misri (1990), pp. 143-163.
14 Cf. Berman (1985), “La traduction de la lettre ou l’auberge du lointain”, in Les
Tours de Babel.
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Três questões sobre língua e identidade 221
um mistério para o falante de uma outra língua que tenta penetrar, enquanto
‘Outro’, nessa língua. As línguas têm maneiras muito diferentes
de se expressar, de traduzir os seus sentimentos, as suas emoções,
as suas sensações, de denotar ou de conotar certos lexemas...
Tal como Berman defendemos que não existe uma teoria geral da
tradução, mas várias teorias que deveriam ser activadas no acto da
tradução. O binómio experiência/reflexão substituiria o de prática/teoria.
E como Derrida diremos que “rien n’est plus grave qu’une traduction”
15 . Traduzir é correr riscos, traduzir é arriscar. E quando se trata
de expressões idiomáticas, esses riscos aumentam, a experiência aliada
à reflexão estará presente e orientará o tradutor nas suas opções.
E para deitar mais achas à fogueira abrasadora da política actual, e
à fogueira incandescente e inesgotável da fraseologia da língua portuguesa,
deixamos, para simples reflexão tradutológica e fraseológica,
o seguinte receituário:
Antes de mais, o político perfeito tem de saber o terreno que pisa, saber
os cantos à casa, saber o que a casa gasta, conhecer os bois pelos nomes e
saber onde está o gato. Não precisa de saber a potes, mas tem de saber de
que lado lhe chove, saber as linhas com que se cose, saber mexer os cordelinhos,
saber mais a dormir do que muitos acordados, saber levar a
água ao seu moinho e saber vender o seu peixe. Também deve saber
como elas lhe mordem – e saber como elas lhe doem – sempre que lhe sai
o tiro pela culatra. O político perfeito tem, em suma, de ser sabido – astuto,
esperto, manhoso, matreiro e experiente – se não quiser ouvir um dia
alguém dizer: ‘Afinal ele sabe tanto disto como eu de lagares de
azeite!’ 16 .
Com estes breves apontamentos quisemos afirmar que as expressões
idiomáticas, enquanto parte integrante de uma língua natural,
constituem um óptimo veículo de identidade.
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Les tours de Babel, Mauvezin, Trans-Europ-Repress.
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15 Citado in artigo de João Barrento, Jornal Público, 25 de Junho de 1993.
16 Cf. artigo de Alfredo Barroso “A bem da nação”, Jornal Independente, 2 de Fevereiro
de 1996, p. 68.
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