6923913 - Rumo ao ITA - Sousa Nunes - Português.indd
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Projeto rumo <strong>ao</strong> ita<br />
Um texto remete a duas concepções diferentes: aquela que<br />
ele defende e aquela em oposição à qual ele se constrói.<br />
Nele, ressoam duas vozes, dois pontos de vista. Sob as palavras<br />
de um discurso, há outras palavras, outro discurso, outro ponto<br />
de vista social. Para constituir sua concepção sobre um dado<br />
tema, o falante leva sempre em conta a de outro, que, de certa<br />
forma, está, pois, também presente no discurso construído.<br />
Essa heterogeneidade, isto é, esses dois pontos de vista,<br />
não está marcada no fio do discurso, as duas perspectivas em<br />
oposição não estão mostradas no interior do texto. Na passagem<br />
que contém o ponto de vista do velho do Restelo sobre a<br />
expansão colonial portuguesa, por exemplo, ele não diz que está<br />
em desacordo com o discurso de sua exaltação. No entanto, nossa<br />
memória discursiva leva-nos a perceber que ele se constrói nessa<br />
relação polêmica. Lemos, no início de Os lusíadas, o discurso de<br />
glorificação dos grandes descobrimentos e, quando chegamos<br />
<strong>ao</strong> trecho que considera as descobertas um empreendimento<br />
funesto, verificamos que um se opõe <strong>ao</strong> outro. Quando lemos<br />
um texto a favor da abolição da escravatura, percebemos<br />
que ele só pode ter surgido numa formação social em que há<br />
discursos a favor da escravatura; um discurso antirracista só<br />
pode constituir-se numa sociedade em que existe um discurso<br />
racista; um discurso feminista só pode ser gerado num tempo<br />
em que existe um discurso machista.<br />
Esses pontos de vista são sociais, são as posições<br />
divergentes que se estabelecem numa dada sociedade sobre<br />
determinada questão. Como uma sociedade é sempre dividida<br />
em grupos sociais com interesses divergentes, não há uma<br />
perspectiva única sobre uma dada questão. Os indivíduos,<br />
em seus textos, defendem uma ou outra posição gerada no<br />
interior da sociedade em que vivem. O discurso é sempre a<br />
arena em que lutam esses pontos de vista em oposição. Um<br />
deles pode ser dominante, isto é, pode contar com a adesão de<br />
um número maior de pessoas. Isso, no entanto, não elimina o<br />
fato de que concepções contrárias se articulam sobre o mesmo<br />
assunto. Um discurso é sempre, pois, a materialização de uma<br />
maneira social de considerar uma questão.<br />
Ao longo da história de uma sociedade, estabelecem-se<br />
esses pontos de vista contraditórios. Por isso, os discursos<br />
estão em relação polêmica uns com os outros. Nesse sentido,<br />
todo discurso é histórico. Num texto, está o outro em<br />
oposição <strong>ao</strong> qual, num dado momento, ele se constituiu.<br />
A historicidade de um texto é estudada analisando-se essa<br />
relação polêmica em que ele se construiu.<br />
SATÉLITE<br />
Fim de tarde.<br />
No céu plúmbeo<br />
A Lua baça<br />
Paira<br />
Muito cosmograficamente<br />
Satélite.<br />
Desmetaforizada,<br />
Desmitificada,<br />
Despojada do velho segredo de melancolia,<br />
Não é agora o golfão de cismas,<br />
O astro dos loucos e dos enamorados.<br />
Mas tão somente<br />
Satélite.<br />
Ah Lua deste fim de tarde,<br />
Demissionária de atribuições românticas,<br />
Sem show para as disponibilidades sentimentais!<br />
Fatigado de mais-valia,<br />
Gosto de ti assim:<br />
Coisa em si,<br />
– Satélite. Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira.<br />
Comentário<br />
Nos versos de 1 a 6, o poeta constrói uma figura<br />
da lua, situando-a num fim de tarde, num céu plúmbeo<br />
(cor de chumbo), atribuindo-lhe a qualidade de baça, isto<br />
é, “fosca”, “embaçada”, e dizendo que ela paira muito<br />
cosmograficamente. Como cosmografia é a astronomia<br />
descritiva, principalmente referente <strong>ao</strong> sistema solar, o que<br />
o poeta quer dizer com paira muito cosmograficamente<br />
é que a lua está no alto pura e simplesmente como<br />
um astro. O poeta sintetiza essa imagem numa palavra:<br />
Satélite. Com essa figura, o poeta pretende enfatizar o<br />
conceito “puro” de lua, despojado de qualquer tipo de<br />
associação paralela, sem as impressões sentimentais que<br />
evoca.<br />
O uso reiterado do prefixo des, que indica ação<br />
contrária (desmetaforizada, desmitificada, despojada), e<br />
a afirmação de que a lua não é agora o astro dos loucos<br />
e dos enamorados pressupõem que, no passado, ela foi<br />
metaforizada, mitificada, considerada como o depósito do<br />
velho segredo de melancolia, como um golfão de cismas,<br />
como o astro dos loucos e enamorados. A negação, tanto<br />
a indicada pelo prefixo des, quanto a feita pelo advérbio<br />
não, implica a presença de duas vozes, dois pontos de<br />
vista a respeito da lua: um que a vê como uma fonte e<br />
um repositório de sentimentos, de mitos e de metáforas;<br />
outro que a vê em sua realidade nua indicada pela palavra<br />
satélite.<br />
Uma negação implica duas perspectivas distintas<br />
sobre uma dada questão, pois ela se opõe a uma afirmação<br />
anterior, refuta a posição afirmativa correspondente. Em nosso<br />
texto, quando se diz, por exemplo, que a lua agora não é o<br />
golfão de cismas, o astro dos loucos e enamorados, o poeta<br />
nega um ponto de vista anterior, de que a lua é o golfão de<br />
cismas, o astro dos loucos e enamorados. Diferentemente<br />
do texto de Camões em que não havia marcas linguísticas<br />
a delimitar as duas concepções implicadas no texto, mas<br />
elas eram percebidas apenas pelo nosso conhecimento<br />
a respeito das diferentes opiniões que circulavam numa<br />
determinada sociedade sobre uma dada questão, nesse texto<br />
de Manuel Bandeira, os operadores linguísticos da negação<br />
(o prefixo des e o advérbio não) demarcam os dois pontos de<br />
vista, as duas vozes mostradas no texto.<br />
Apesar de essas duas perspectivas estarem delimitadas pela<br />
negação, precisamos ainda nos valer de nossa memória discursiva,<br />
de nosso conhecimento dos textos literários, para entender bem o<br />
que o poeta está refutando. As expressões “golfão de cismas” e<br />
“astros dos loucos e enamorados” remetem-nos a uma estrofe do<br />
poema “Plenilúnio”, de Raimundo Correia:<br />
Há tantos anos olhos nela arroubados,<br />
No magnetismo do seu fulgor!<br />
Lua dos tristes e enamorados,<br />
Golfão de cismas fascinador.<br />
Raimundo Correia. Poesia. 4. ed. Rio de Janeiro. Agir, 1976. p. 65.<br />
Ao opor-se a uma concepção a respeito da Lua,<br />
atribuída a um literato do passado, podemos concluir não que<br />
o poeta esteja lamentando o fim dos bons tempos românticos<br />
e criticando a frieza do mundo moderno, mas que é avesso<br />
<strong>ao</strong>s exageros sentimentais de certa literatura em torno da Lua.<br />
Quando ele diz sem show para as disponibilidades sentimentais,<br />
quer dizer que a Lua à qual dirige seus versos não está mais a exibir-se<br />
para pessoas predispostas a vê-Ia de maneira sentimental.<br />
<strong>ITA</strong>/IME – Pré-Universitário 20