Sofrimentos NarcÃsicos - Instituto de Psicologia da UFRJ
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Jurandir Freire Costa<br />
Os sobrenomes <strong>da</strong> vergonha: melancolia e narcisismo 11<br />
noção basilar, vai revelar seu parentesco com duas outras noções<br />
do vocabulário psicanalítico: a <strong>de</strong>pressão e o narcisismo.<br />
Para propósitos didáticos <strong>de</strong> introdução à leitura, diria que a<br />
sequencia expositiva se <strong>de</strong>sdobra <strong>da</strong> seguinte maneira.<br />
Primeiro, temos a etapa <strong>de</strong>scritiva <strong>da</strong> noção. O sentimento<br />
<strong>de</strong> vergonha é apresentado em dois dos principais aspectos<br />
fenomênicos: o medo <strong>da</strong> exposição ao outro e o medo <strong>de</strong> ser<br />
ignorado pelo outro. O sujeito <strong>de</strong>seja ser reconhecido como<br />
objeto <strong>de</strong> investimento do outro, teme, porém, não possuir os<br />
predicados que o outro, supostamente, <strong>de</strong>sejaria que ele tivesse.<br />
Resultado: nem quer ser visto nem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser visto. O<br />
paradoxo é o cerne do conflito envergonhado; é esse paradoxo<br />
que os estudos <strong>da</strong> coletânea visam eluci<strong>da</strong>r.<br />
Vem, então, a segun<strong>da</strong> etapa, a etapa explicativa. Na montagem<br />
fantasmática <strong>da</strong> vergonha, estariam implícitos a <strong>de</strong>pressão<br />
e o narcisismo. Na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão, o tópico sublinhado<br />
é a ausência <strong>de</strong> culpa. Explicitando, a <strong>de</strong>pressão <strong>da</strong> vergonha<br />
não é correlata à culpa por um <strong>da</strong>no real ou imaginário causado<br />
ao outro e sim ao sentimento <strong>de</strong> insuficiência diante do <strong>de</strong>sejo<br />
atribuído ao outro. O sujeito não se sente à altura do que<br />
o outro pretensamente espera <strong>de</strong>le e, por isso, se apropria <strong>de</strong><br />
marcas pessoais como motivo e justificação <strong>da</strong> insuficiência.<br />
A marca é o traço “vergonhoso” <strong>de</strong>stinado a encampar a vi<strong>da</strong><br />
subjetiva como uma sombra maligna imposta ao ego, homóloga<br />
à sombra do objeto que cai sobre o sujeito melancólico,<br />
na célebre <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Freud. Digo homóloga, pois não se trata<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar a vergonha à melancolia. Melancolia, na teoria<br />
freudiana, é uma <strong>de</strong>sorganização mental grave, que po<strong>de</strong><br />
caminhar para o suicídio ou para a paralisia total <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
psíquica. Na vergonha, o estranho e peculiar é a aparente<br />
<strong>de</strong>sproporção entre a natureza dos mecanismos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa e os<br />
efeitos sintomáticos. Do lado <strong>da</strong>s <strong>de</strong>fesas temos algo similar à<br />
melancolia, mas a reverberação sintomática é bem mais próxima<br />
<strong>da</strong>s neuroses fóbicas ou <strong>da</strong>s <strong>de</strong>pressões por culpabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Esse é o enigma clínico abor<strong>da</strong>do pelos textos.<br />
Feita a ressalva, a primeira constatação. O monopólio <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> mental pelo emblema <strong>da</strong> vergonha — como seria <strong>de</strong> esperar<br />
— tem no corpo físico um teatro privilegiado para sua<br />
expressão. A imagem corporal é submeti<strong>da</strong> à mais cruel inspeção<br />
persecutória, racionaliza<strong>da</strong> como prova <strong>de</strong> “inferiori<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
real”. As razões po<strong>de</strong>m ser as mais diversas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> lesões ou<br />
disfunções anatômicas visíveis até <strong>de</strong>svios mínimos do i<strong>de</strong>al-<br />
-padrão <strong>da</strong> cultura somática contemporânea. A consequência<br />
é <strong>de</strong>sastrosa. Preso ao dilema <strong>de</strong> querer ser visto e não po<strong>de</strong>r<br />
ser visto, o sujeito lança mão <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> “recusa <strong>da</strong> intenção”.<br />
Recusa <strong>da</strong> intenção é um conceito criado por Lambotte a partir<br />
<strong>da</strong> literatura fenomenológica. Na fenomenologia filosófica ou<br />
psicológica, a intenção ou “intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong>” é a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
por excelência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> mental. On<strong>de</strong> existe ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica<br />
existe intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Recusar, portanto, a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> intencional<br />
é sinônimo <strong>de</strong> calar o psiquismo. A recusa <strong>da</strong> intenção,<br />
como se vê, vai além do recalque, pois constrange o sujeito<br />
a encenar para si e para os outros a pantomima <strong>da</strong> morte <strong>da</strong><br />
alma. A vergonha se assemelha à <strong>de</strong>fesa melancólica, mas o<br />
alvo do ódio pulsional é o próprio sujeito e não o objeto incorporado,<br />
na acepção ferencziana <strong>da</strong> palavra incorporação.<br />
Para revelar os labirintos <strong>da</strong> dinâmica melancólica <strong>da</strong> vergonha,<br />
os autores recorrem à economia narcísica. Na raiz do<br />
processo <strong>de</strong> envergonhamento estaria o olhar materno sem<br />
intenção <strong>de</strong> amor. As teses <strong>de</strong> Lambotte, uma vez mais, são utiliza<strong>da</strong>s<br />
para <strong>de</strong>screver metaforicamente o regime narcísico <strong>da</strong><br />
vergonha como uma “moldura vazia do <strong>de</strong>sejo do outro”. Em