Sofrimentos NarcÃsicos - Instituto de Psicologia da UFRJ
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Teresa Pinheiro<br />
O mo<strong>de</strong>lo melancólico e os sofrimentos <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> 31<br />
lancólico tem sido nossa principal tarefa. Alguns passos importantes<br />
foram possíveis nesse sentido: <strong>de</strong>ntre eles cabe<br />
ressaltar a positivação <strong>da</strong>s instâncias i<strong>de</strong>ais como distintas<br />
<strong>da</strong> neurose, mas plenamente atuantes na dinâmica psíquica<br />
<strong>de</strong>sses pacientes, aprofun<strong>da</strong>r uma compreensão do mo<strong>de</strong>lo<br />
fantasmático que opera na melancolia e, ain<strong>da</strong>, melhor discernir<br />
i<strong>de</strong>alização <strong>de</strong> sublimação. Esses aspectos estão apresentados<br />
no texto “Em busca <strong>de</strong> uma metapsicologia <strong>da</strong> melancolia”<br />
(Pinheiro, 1999), fruto <strong>da</strong>s discussões realiza<strong>da</strong>s no<br />
Grupo <strong>de</strong> pesquisa.<br />
Freud não inventou o conceito <strong>de</strong> histeria, embora tenha<br />
operado nele sensíveis transformações. Ele apenas se mostrou<br />
capaz <strong>de</strong> perceber as novas questões que o tipo clínico prevalente<br />
na cultura <strong>de</strong> sua época lhe colocava. Perceber novas questões<br />
<strong>de</strong> tipos clínicos em permanente transformação, este é o principal<br />
ofício do psicanalista. O fato <strong>de</strong> Freud ter her<strong>da</strong>do diversas<br />
concepções <strong>da</strong> psiquiatria e outros saberes em na<strong>da</strong> <strong>de</strong>smereceu<br />
a revolução opera<strong>da</strong> por ele. Receber elementos factuais e epi<strong>de</strong>miológicos<br />
<strong>de</strong> outras disciplinas e levá-los em consi<strong>de</strong>ração é<br />
uma prática que se confun<strong>de</strong> com a história <strong>da</strong> psicanálise. Levar<br />
em consi<strong>de</strong>ração a <strong>de</strong>pressão como principal sintoma cultural <strong>de</strong><br />
nossa época, época que se caracteriza pelo homem insuficiente<br />
(Erhenberg, 1998), e buscar novos contextos teóricos capazes<br />
<strong>de</strong> alcançar alguma incidência sobre ele é tarefa prioritária para<br />
qualquer psicanalista. Nessa perspectiva, para avançar em nossa<br />
investigação sobre o mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> melancolia e os sofrimentos<br />
<strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, propomos tomar o pensamento <strong>de</strong> um<br />
psicanalista contemporâneo <strong>de</strong> Freud que trabalhou com o que<br />
chamava <strong>de</strong> casos difíceis e concebeu uma teoria do trauma (Ferenczi,<br />
1933/1992). Sua obra sem dúvi<strong>da</strong> po<strong>de</strong> fornecer subsídios<br />
à nossa discussão, posto que o perfil dos pacientes com que trabalhamos<br />
tem por características principais a <strong>de</strong>pressão e a angústia,<br />
tal como a <strong>de</strong>scrição apresenta<strong>da</strong> por Ferenczi.<br />
A teoria do trauma em Ferenczi<br />
O <strong>de</strong>senho final <strong>da</strong> teoria do trauma <strong>de</strong> Ferenczi encontra-<br />
-se traçado sobretudo nos últimos textos <strong>de</strong> sua obra. Para<br />
apresentá-la, Ferenczi (1933/1992) constrói um mito que terá<br />
por eixo a violência sexual <strong>de</strong> um adulto sobre uma criança. A<br />
história seria aproxima<strong>da</strong>mente a seguinte: uma criança procura<br />
seduzir um adulto numa linguagem lúdica (que Ferenczi<br />
<strong>de</strong>signa como linguagem <strong>da</strong> ternura). Ternura é aqui entendi<strong>da</strong><br />
não como ausência <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas como anterior à<br />
sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> sob o primado do genital. O adulto, por sua vez,<br />
não reconhece a linguagem <strong>da</strong> ternura <strong>da</strong> criança e a toma<br />
como um igual, ou seja, toma a linguagem <strong>da</strong> ternura como<br />
sendo uma sedução <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m do genital, gerando assim uma<br />
confusão <strong>de</strong> línguas. A violência sexual em si não aparece aqui<br />
como fator traumático, mas como prova real do evento que<br />
tem como consequência a i<strong>de</strong>ntificação com o agressor. Esta<br />
i<strong>de</strong>ntificação, segundo Ferenczi, seria produto não <strong>da</strong> violência<br />
pratica<strong>da</strong>, mas do fato <strong>de</strong> o adulto agressor sentir culpa logo<br />
após praticar a violência, sentimento incompreensível para a<br />
criança. Seria por conta do enigma <strong>da</strong> culpa que a i<strong>de</strong>ntificação<br />
com o agressor teria lugar. A historinha conta<strong>da</strong> por Ferenczi<br />
continua: a criança iria então à procura <strong>de</strong> um outro adulto que<br />
pu<strong>de</strong>sse <strong>da</strong>r sentido ao que não fez sentido. Esse adulto, por<br />
sua vez, não suportando o relato <strong>da</strong> criança, a <strong>de</strong>sacredita (Cf.<br />
Floresta <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong>, 2011 1 ), consi<strong>de</strong>rando <strong>de</strong> maneira radical<br />
e unívoca que o escutado não passa <strong>de</strong> uma fabulação infantil.<br />
1<br />
Comunicação pessoal e texto publicado neste mesmo volume.