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Sofrimentos Narcísicos - Instituto de Psicologia da UFRJ

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22<br />

Teresa Pinheiro<br />

O mo<strong>de</strong>lo melancólico e os sofrimentos <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> 23<br />

é o mundo do tempo presente, <strong>da</strong> realização instantânea do<br />

<strong>de</strong>sejo, do invólucro que vale mais que o conteúdo, do corpo<br />

que não po<strong>de</strong> mostrar as marcas do tempo. Uma forma <strong>de</strong><br />

subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> diferente <strong>da</strong>quela do mundo introspectivo, her<strong>de</strong>iro<br />

do romantismo. Será que po<strong>de</strong>mos continuar dizendo<br />

que os pacientes do mundo <strong>de</strong> hoje — que segundo Kristeva<br />

(2002) estão per<strong>de</strong>ndo a sua alma — são her<strong>de</strong>iros <strong>da</strong> invenção<br />

shakespeariana? Fechado na exigência narcísica imposta<br />

pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo, o sofrimento psíquico do homem<br />

contemporâneo parece preso ao corpo. “Sem i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> sexual,<br />

subjetiva ou moral, este anfíbio é um ser <strong>de</strong> fronteira, um<br />

‘bor<strong>de</strong>rline’ ou um ‘falso self’” (Kristeva, 2002: 14). Se é assim,<br />

será que po<strong>de</strong>mos continuar a olhar essas formas <strong>de</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

lançando mão, apenas, <strong>da</strong>s lentes <strong>da</strong> histeria?<br />

Nas últimas déca<strong>da</strong>s presenciamos uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira revolução<br />

<strong>da</strong> relação dos sujeitos com o tempo e o espaço. Vaz (2003:<br />

77) nos aponta como “as novas tecnologias <strong>de</strong> informação transformam<br />

o modo como nascemos, apren<strong>de</strong>mos, sonhamos, lutamos<br />

e morremos — vi<strong>de</strong> as fecun<strong>da</strong>ções in vitro, a educação<br />

à distância, os vi<strong>de</strong>ogames, o sexo virtual, mísseis <strong>de</strong> precisão<br />

cirúrgica”. Os avanços <strong>da</strong> medicina <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o advento <strong>da</strong> pílula anticoncepcional,<br />

que <strong>de</strong>sarticulou a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> função reprodutiva,<br />

até a clonagem <strong>de</strong> Dolly, assim como o encurtamento<br />

<strong>da</strong>s distâncias com os avanços <strong>da</strong>s telecomunicações — que torna<br />

possível qualquer pessoa se comunicar com uma outra em<br />

tempo real através <strong>de</strong> uma web câmera — e o acesso às informações<br />

que a Internet disponibiliza <strong>de</strong>mocraticamente, enfim,<br />

todos esses incrementos tecnológicos e biotecnológicos operaram<br />

sensíveis mu<strong>da</strong>nças nas posições subjetivas e consequentemente<br />

operam mu<strong>da</strong>nças nas formas <strong>de</strong> sofrimento psíquico<br />

do homem contemporâneo. Se a histeria foi o modo <strong>de</strong> sofrimento<br />

mais evi<strong>de</strong>nte no final do século XIX e início do século<br />

XX, a <strong>de</strong>pressão sem dúvi<strong>da</strong> é a marca mais pregnante do fim do<br />

século XX e no nascimento do século XXI. Um crescente avanço<br />

<strong>de</strong> casos <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão vem sendo constatado nos consultórios<br />

<strong>de</strong> psicanalistas, psiquiatras e nas uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> atendimento <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong> mental. A relação <strong>de</strong>sses pacientes com o tempo está presente<br />

em muitos dos sintomas que apresentam. Há neles uma<br />

aversão ao convívio com o <strong>de</strong>sejo. Po<strong>de</strong>ríamos dizer que as <strong>de</strong>scrições<br />

clínicas <strong>de</strong> Freud sobre a neurose também apontam na<br />

direção <strong>de</strong> que o aparelho psíquico se organiza para se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />

do <strong>de</strong>sejo. A própria postulação sobre o recalque iria nessa direção.<br />

Mas na neurose temos essa organização sempre fracassando;<br />

a neurose obsessiva, melhor exemplo <strong>da</strong> or<strong>de</strong>nação contra<br />

o <strong>de</strong>sejo, esta então, está fa<strong>da</strong><strong>da</strong> ao fracasso. No final <strong>da</strong>s contas,<br />

mesmo organizando-se contra o <strong>de</strong>sejo, as neuroses só po<strong>de</strong>m<br />

ter o seu quinhão <strong>de</strong> prazer na domesticação <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sejo. Já<br />

nos pacientes <strong>da</strong> clínica <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> o que vemos é o<br />

<strong>de</strong>sejo como um sofrimento quase insuportável. Talvez porque,<br />

na cultura contemporânea, <strong>de</strong>sejar leva necessariamente a uma<br />

equação diferente <strong>da</strong> que remete à parciali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Desejar não é<br />

mais conviver com aquilo que não se tem e que se almeja obter<br />

no futuro. A dimensão <strong>de</strong> futuro, por sua vez, pressupõe uma<br />

concepção <strong>de</strong> temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> que implica passado e presente.<br />

Para esses pacientes, conforme assinalamos acima, representar-<br />

-se no futuro é quase impossível (Pinheiro, 1993, 1995; Verztman<br />

et al., 2007). Em seus relatos observa-se que não existe uma linha<br />

<strong>de</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong> entre o presente e o futuro.<br />

Winnicott foi o autor que melhor explorou a noção <strong>de</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Segundo ele, a integração do self só é possível a partir<br />

<strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong>. O <strong>de</strong>sejar, como vemos nas neuroses,<br />

implica em perceber o tempo como contínuo e também

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