Sofrimentos NarcÃsicos - Instituto de Psicologia da UFRJ
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Teresa Pinheiro<br />
O mo<strong>de</strong>lo melancólico e os sofrimentos <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> 35<br />
em “Alice através do espelho” quando Alice, após ler o poema<br />
Jabberwocky, conclui que alguém matou alguma coisa como<br />
a única i<strong>de</strong>ia clara que extraiu do texto (Aulagnier, 1985) 2 . Na<br />
melancolia, algo foi perdido; o que é não se sabe, mas <strong>de</strong> uma<br />
coisa po<strong>de</strong>-se ter certeza: foi perdi<strong>da</strong> a própria possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> se constituir dialeticamente.<br />
Se algo foi perdido na melancolia, entretanto tudo parece<br />
estar nos <strong>de</strong>vidos lugares. Aparentemente há uma constituição<br />
do aparato egoico — na psicose, em geral, é fácil verificar<br />
a sua ina<strong>de</strong>quação. O melancólico parece ter um supereu que<br />
Freud chamou inclusive <strong>de</strong> cruel. Se o futuro está ausente há,<br />
no entanto, um enca<strong>de</strong>amento lógico no seu discurso para<br />
essa ausência. É que o melancólico, ao contrário do neurótico,<br />
parece si<strong>de</strong>rado pela castração, diante <strong>de</strong>la ele não recua: ao<br />
contrário, a olha <strong>de</strong> frente sem aparentar qualquer receio. Desprovido<br />
<strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se iludir.<br />
I<strong>de</strong>ntificação com o agressor e i<strong>de</strong>ntificação<br />
melancólica<br />
Se tomarmos a teoria do trauma ferencziano sob a ótica <strong>da</strong><br />
metapsicologia <strong>da</strong> melancolia freudiana, po<strong>de</strong>mos dizer que<br />
a i<strong>de</strong>ntificação com o agressor em na<strong>da</strong> difere <strong>da</strong> <strong>de</strong>scrição<br />
<strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação melancólica. Através <strong>da</strong> análise <strong>de</strong> M. Torok<br />
(1978/1995) é possível estabelecer a distinção metapsicológica<br />
entre a i<strong>de</strong>ntificação melancólica ou com o agressor e as<br />
outras i<strong>de</strong>ntificações. Seu argumento principal é feito através<br />
do conceito <strong>de</strong> introjeção. Torok toma este conceito tal qual<br />
formulado por Ferenczi em 1909, ou seja, na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pro-<br />
2<br />
A autora reporta o leitor ao texto “Alice através do espelho”, a tradução francesa <strong>de</strong><br />
Henri Parisot.<br />
cesso psíquico, como sendo o próprio modo <strong>de</strong> funcionamento<br />
<strong>da</strong> libido, enquanto que a i<strong>de</strong>ntificação melancólica ou com<br />
o agressor seria produto <strong>de</strong> um mecanismo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong><strong>da</strong> a<br />
impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a introjeção se realizar. Diante <strong>da</strong> diferença<br />
metapsicológica dos dois mecanismos, Torok (1978/1995) propõe<br />
chamar a i<strong>de</strong>ntificação melancólica <strong>de</strong> incorporação em<br />
contraposição à introjeção.<br />
A i<strong>de</strong>ntificação com o agressor também será toma<strong>da</strong> por<br />
Ferenczi como estabelecendo uma clivagem em que as partes<br />
não se comunicam por diferença <strong>de</strong> linguagem. A parte<br />
i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> com o agressor <strong>de</strong>tém a linguagem <strong>da</strong> paixão e<br />
a outra parte, ignora<strong>da</strong>, <strong>de</strong>tém a linguagem <strong>da</strong> ternura. Se alguma<br />
alusão é feita por Ferenczi como sendo o agressor o representante<br />
do supereu, há, no entanto, uma total inversão na<br />
proposta metapsicológica <strong>de</strong> Freud em relação à i<strong>de</strong>ntificação<br />
melancólica. Na metapsicologia do trauma, o que foi colocado<br />
no limbo foi justamente o Eu <strong>da</strong> ternura, foi ele que per<strong>de</strong>u a<br />
vez e a voz.<br />
É, portanto, incompatível, na teoria do trauma, pensar as<br />
primeiras i<strong>de</strong>ntificações como correlatas à i<strong>de</strong>ntificação com<br />
o agressor. Assim como se torna mais evi<strong>de</strong>nte nessa abor<strong>da</strong>gem<br />
<strong>de</strong> Ferenczi a fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> narcísica <strong>da</strong> metapsicologia do<br />
traumatizado, pois, na teoria do trauma, é a própria organização<br />
<strong>da</strong> couraça narcísica que se vê <strong>de</strong>smantela<strong>da</strong> com a i<strong>de</strong>ntificação<br />
com o agressor.<br />
Ferenczi atribui ao <strong>de</strong>scrédito a condição necessária para<br />
a metapsicologia do trauma. O <strong>de</strong>scrédito impediria a inscrição<br />
psíquica, ou seja, que o processo <strong>de</strong> introjeção (condição<br />
<strong>de</strong> constituição <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>) seja realizado, gerando com<br />
isso tanto uma marcação no corpo quanto o mecanismo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação com o agressor.