Sofrimentos NarcÃsicos - Instituto de Psicologia da UFRJ
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18<br />
Teresa Pinheiro<br />
O mo<strong>de</strong>lo melancólico e os sofrimentos <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> 19<br />
seu conjunto, só po<strong>de</strong>m ser compreendi<strong>da</strong>s e trata<strong>da</strong>s se operarmos<br />
uma inversão teórica no sentido <strong>de</strong> fornecer à noção <strong>de</strong><br />
narcisismo to<strong>da</strong> a sua potência. Ao longo do artigo nos propomos<br />
discorrer sobre as diferenças entre o mo<strong>de</strong>lo narcísico e/<br />
ou melancólico e o mo<strong>de</strong>lo histérico, explorando a hipótese <strong>de</strong><br />
que muitas formas discursivas presentes na contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>m ser mais bem explica<strong>da</strong>s pelo primeiro.<br />
Acreditamos que pelo viés <strong>da</strong> metapsicologia <strong>da</strong> melancolia<br />
freudiana e <strong>da</strong> teoria do trauma ferencziano é possível<br />
<strong>da</strong>r inteligibili<strong>da</strong><strong>de</strong> a essas nosografias, enten<strong>de</strong>ndo que as<br />
patologias acima menciona<strong>da</strong>s se configuram como facetas<br />
sintomáticas que a melancolia po<strong>de</strong> apresentar. Nesse sentido<br />
observamos que os atendimentos na área priva<strong>da</strong> e em instituições<br />
apontam há alguns anos para um número ca<strong>da</strong> vez<br />
maior <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão, anorexia, bulimias e fobias, além<br />
dos casos <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendências químicas.<br />
Esses pacientes que chegam levados por uma enorme angústia<br />
que os assalta e cuja causa <strong>de</strong>sconhecem, ou sob fortes<br />
<strong>de</strong>pressões, apresentam características bem peculiares; <strong>de</strong>ntre<br />
elas po<strong>de</strong>mos ressaltar a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> com relação a uma<br />
dimensão <strong>de</strong> futuro. Como se projetar-se no futuro lhes fosse<br />
impossível. Têm a vi<strong>da</strong> marca<strong>da</strong> minuto a minuto, geralmente<br />
do passado na<strong>da</strong> se lembram, assim como também não se<br />
lembram dos sonhos; não têm fantasias nem fazem lapsos. São<br />
na maioria pacientes particularmente inteligentes que exibem<br />
uma luci<strong>de</strong>z quase absur<strong>da</strong>; são também portadores <strong>de</strong> um<br />
código moral bastante rígido que não só servirá para instrumentar<br />
a crítica mor<strong>da</strong>z que dirigem aos outros como também<br />
e, sobretudo, a si próprios. Há neles uma preocupação permanente<br />
com a noção <strong>de</strong> ridículo, tanto no que se refere ao ser<br />
ridículo quanto ao próprio ridículo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Assim, a questão <strong>da</strong><br />
morte não é apenas teoriza<strong>da</strong>, vista sob o ângulo existencial,<br />
ou como metáfora. A questão corporal também ganha uma dimensão<br />
bastante singular: há neles uma total estranheza com<br />
relação ao próprio corpo, como se esse corpo não lhes pertencesse,<br />
mas ao mesmo tempo o corpo é a única prova <strong>de</strong> sua<br />
existência. Com to<strong>da</strong>s essas facetas, esses pacientes <strong>de</strong>ixam os<br />
psicanalistas em uma situação bastante incômo<strong>da</strong>: a <strong>de</strong> terem<br />
a sensação <strong>de</strong> que o instrumental psicanalítico não tem qualquer<br />
serventia.<br />
Além <strong>da</strong> relação peculiar que estabelecem com o próprio<br />
corpo e com a dimensão temporal, esses pacientes têm com o<br />
olhar do outro uma relação que não é media<strong>da</strong> por um olhar<br />
que possam ter <strong>de</strong> si mesmos. Tomam a si mesmos como sendo<br />
aquilo que os outros veem <strong>de</strong>les. Como se o olhar que vem<br />
<strong>de</strong> fora fosse o que os construísse, a todo instante. Eles são o<br />
que os outros veem <strong>de</strong>les ou aquilo que dizem que eles são. O<br />
olhar do outro dá a consistência do que são e, sobretudo, fornece<br />
para eles ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros atestados <strong>de</strong> existência.<br />
Lambotte (1993), ao propor a sua metapsicologia <strong>da</strong> melancolia,<br />
apresenta a noção <strong>de</strong> moldura vazia como sendo o<br />
mo<strong>de</strong>lo especular <strong>da</strong> melancolia. Na construção teórica que a<br />
autora propõe, o olhar <strong>da</strong> mãe atravessa o bebê para se fixar<br />
num ponto para além <strong>de</strong>le. Esse olhar não recusa a existência<br />
do bebê: a mãe sabe que o bebê está ali, simplesmente o que<br />
mais lhe interessa não é ele. O olhar que se per<strong>de</strong> ao longe indicaria<br />
um interesse em algo para além <strong>de</strong>le. Po<strong>de</strong>-se dizer que<br />
esse olhar <strong>da</strong> mãe é portador <strong>de</strong> um juízo <strong>de</strong> existência, mas<br />
não <strong>de</strong> um juízo <strong>de</strong> atribuição (Pinheiro & Herzog, 2003).<br />
Ao se referir à “Sua Majesta<strong>de</strong> o bebê”, no final <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />
parte <strong>de</strong> “Introducción <strong>de</strong>l narcicismo” (1914a/1992), Freud<br />
afirma que esse bebê é o suporte <strong>da</strong>s projeções narcísicas dos