Sofrimentos NarcÃsicos - Instituto de Psicologia da UFRJ
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Jurandir Freire Costa<br />
Os sobrenomes <strong>da</strong> vergonha: melancolia e narcisismo 15<br />
A contraparti<strong>da</strong> psicanalítica do perdão na ética <strong>de</strong>rri<strong>de</strong>ana<br />
foi trabalha<strong>da</strong> por autores como Julia Kristeva e Márcia Cavell,<br />
escolhidos para ilustrar as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s prático-teóricas do<br />
conceito. Sem entrar nos <strong>de</strong>talhes expostos nos textos, ressalto<br />
o uso que Kristeva faz <strong>de</strong> Lacan para falar <strong>de</strong> perdão como<br />
a aceitação pelo sujeito do “abjeto” <strong>de</strong> todos nós. Em geral, diz<br />
ela, os afetos <strong>de</strong> autoagressão po<strong>de</strong>m ser extremamente violentos<br />
— como na melancolia ou na vergonha — justamente<br />
por li<strong>da</strong>rem com a emergência dos “abjetos”, ou seja, dos objetos<br />
parciais que encarnam o gozo e o real. A presença <strong>de</strong>sses<br />
objetos na economia simbólica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> subjetiva é sempre<br />
disruptiva e produz reações egoicas excessivas. Perdoar a si<br />
mesmo significaria admitir a existência do gozo e do real como<br />
constituintes do funcionamento subjetivo. Márcia Cavell vai<br />
em outra direção. O perdão <strong>de</strong> si, a seu ver, equivale a religar<br />
fantasias <strong>de</strong> onipotência e onisciência num relato que implica<br />
o sujeito na construção <strong>de</strong> sua trajetória psicológica. Em suma,<br />
autoperdoar-se é re<strong>de</strong>screver-se como “agente” do que, na versão<br />
sintomática, era atribuído exclusivamente à intenção do<br />
outro.<br />
Com a introdução do perdão na dinâmica <strong>da</strong> vergonha, a<br />
hipótese <strong>da</strong> “moldura vazia” ganha outra dimensão. O que fica<br />
nas entrelinhas é a sugestão <strong>de</strong> que a própria “moldura” é uma<br />
fantasia <strong>de</strong>fensiva, uma cena congela<strong>da</strong> e reifica<strong>da</strong> pelo ego,<br />
em favor <strong>de</strong> sua própria homeostase. Explico melhor. No começo,<br />
o vazio <strong>da</strong> moldura se impõe como o espelho <strong>da</strong> impotência<br />
<strong>da</strong> mãe-ambiente para criar uma imagem narcísica do sujeito<br />
suficientemente boa. Depois, esse vazio é progressivamente<br />
engessado numa outra fantasia, <strong>de</strong>sta feita <strong>de</strong> autoria egoica: a<br />
do sujeito como replicante do não-<strong>de</strong>sejo do outro. Dito <strong>de</strong> outra<br />
maneira, a experiência <strong>da</strong> vergonha não é apenas o efeito <strong>da</strong><br />
incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do outro em projetar no sujeito conteúdos imaginários<br />
compatíveis com o equilíbrio egoico suficientemente<br />
bom. É também expressão <strong>da</strong> resistência egoica em aceitar que<br />
na “sua mora<strong>da</strong>” habita um sujeito sem face imaginária que resiste<br />
à intrusão do outro, por brutal que ela seja. Esse resíduo<br />
negativo, inefável, inqualificável é o traço <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />
sempre escapa às injunções ou <strong>de</strong>terminações do ambiente genético<br />
ou epigenético, pois nem o outro nem o ego são capazes<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>fini-lo, concebê-lo ou imaginá-lo à exaustão.<br />
A vergonha, a vitimização do ego pelo ego, faz <strong>da</strong> “moldura<br />
vazia” uma facha<strong>da</strong> que escon<strong>de</strong> a existência <strong>de</strong> um sujeito<br />
coautor do seu <strong>de</strong>stino psíquico. Ao apegar-se à posição <strong>de</strong><br />
traído pelo <strong>de</strong>sejo do outro, o ego, inconscientemente, busca<br />
furtar-se ao trabalho <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar segundo a castração. De forma<br />
breve, é o espectro dos temas freudianos do “benefício secundário”<br />
do sintoma e <strong>da</strong> “cega compulsão egoica à síntese” que<br />
volta a ocupar a cena analítica. Desta feita, sob a égi<strong>de</strong> do perdão.<br />
O a<strong>de</strong>ndo é crucial, porquanto ético e clínico. Perdoar a si<br />
mesmo é tornar-se responsável inclusive pelo que o outro fez<br />
<strong>de</strong> “irresponsável”. Essa, penso, seria uma tradução psicanalítica<br />
plausível do impossível perdão <strong>de</strong>rri<strong>de</strong>ano.<br />
Por fim, po<strong>de</strong>-se argumentar que empregar termos tão<br />
elusivos quanto perdão impossível po<strong>de</strong> tornar-se uma retórica<br />
leviana e abusiva para abor<strong>da</strong>r dores e sofrimentos muito<br />
concretos. Nesse caso, não custa lembrar que a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> psicanálise<br />
como missão impossível é do próprio Freud. Querer<br />
mais é querer não o impossível, mas exigir um possível que só<br />
existe a posteriori e jamais <strong>de</strong> antemão. Essa é a fantasia originária<br />
<strong>da</strong> vergonha.