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Sofrimentos Narcísicos - Instituto de Psicologia da UFRJ

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14<br />

Jurandir Freire Costa<br />

Os sobrenomes <strong>da</strong> vergonha: melancolia e narcisismo 15<br />

A contraparti<strong>da</strong> psicanalítica do perdão na ética <strong>de</strong>rri<strong>de</strong>ana<br />

foi trabalha<strong>da</strong> por autores como Julia Kristeva e Márcia Cavell,<br />

escolhidos para ilustrar as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s prático-teóricas do<br />

conceito. Sem entrar nos <strong>de</strong>talhes expostos nos textos, ressalto<br />

o uso que Kristeva faz <strong>de</strong> Lacan para falar <strong>de</strong> perdão como<br />

a aceitação pelo sujeito do “abjeto” <strong>de</strong> todos nós. Em geral, diz<br />

ela, os afetos <strong>de</strong> autoagressão po<strong>de</strong>m ser extremamente violentos<br />

— como na melancolia ou na vergonha — justamente<br />

por li<strong>da</strong>rem com a emergência dos “abjetos”, ou seja, dos objetos<br />

parciais que encarnam o gozo e o real. A presença <strong>de</strong>sses<br />

objetos na economia simbólica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> subjetiva é sempre<br />

disruptiva e produz reações egoicas excessivas. Perdoar a si<br />

mesmo significaria admitir a existência do gozo e do real como<br />

constituintes do funcionamento subjetivo. Márcia Cavell vai<br />

em outra direção. O perdão <strong>de</strong> si, a seu ver, equivale a religar<br />

fantasias <strong>de</strong> onipotência e onisciência num relato que implica<br />

o sujeito na construção <strong>de</strong> sua trajetória psicológica. Em suma,<br />

autoperdoar-se é re<strong>de</strong>screver-se como “agente” do que, na versão<br />

sintomática, era atribuído exclusivamente à intenção do<br />

outro.<br />

Com a introdução do perdão na dinâmica <strong>da</strong> vergonha, a<br />

hipótese <strong>da</strong> “moldura vazia” ganha outra dimensão. O que fica<br />

nas entrelinhas é a sugestão <strong>de</strong> que a própria “moldura” é uma<br />

fantasia <strong>de</strong>fensiva, uma cena congela<strong>da</strong> e reifica<strong>da</strong> pelo ego,<br />

em favor <strong>de</strong> sua própria homeostase. Explico melhor. No começo,<br />

o vazio <strong>da</strong> moldura se impõe como o espelho <strong>da</strong> impotência<br />

<strong>da</strong> mãe-ambiente para criar uma imagem narcísica do sujeito<br />

suficientemente boa. Depois, esse vazio é progressivamente<br />

engessado numa outra fantasia, <strong>de</strong>sta feita <strong>de</strong> autoria egoica: a<br />

do sujeito como replicante do não-<strong>de</strong>sejo do outro. Dito <strong>de</strong> outra<br />

maneira, a experiência <strong>da</strong> vergonha não é apenas o efeito <strong>da</strong><br />

incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do outro em projetar no sujeito conteúdos imaginários<br />

compatíveis com o equilíbrio egoico suficientemente<br />

bom. É também expressão <strong>da</strong> resistência egoica em aceitar que<br />

na “sua mora<strong>da</strong>” habita um sujeito sem face imaginária que resiste<br />

à intrusão do outro, por brutal que ela seja. Esse resíduo<br />

negativo, inefável, inqualificável é o traço <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

sempre escapa às injunções ou <strong>de</strong>terminações do ambiente genético<br />

ou epigenético, pois nem o outro nem o ego são capazes<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>fini-lo, concebê-lo ou imaginá-lo à exaustão.<br />

A vergonha, a vitimização do ego pelo ego, faz <strong>da</strong> “moldura<br />

vazia” uma facha<strong>da</strong> que escon<strong>de</strong> a existência <strong>de</strong> um sujeito<br />

coautor do seu <strong>de</strong>stino psíquico. Ao apegar-se à posição <strong>de</strong><br />

traído pelo <strong>de</strong>sejo do outro, o ego, inconscientemente, busca<br />

furtar-se ao trabalho <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar segundo a castração. De forma<br />

breve, é o espectro dos temas freudianos do “benefício secundário”<br />

do sintoma e <strong>da</strong> “cega compulsão egoica à síntese” que<br />

volta a ocupar a cena analítica. Desta feita, sob a égi<strong>de</strong> do perdão.<br />

O a<strong>de</strong>ndo é crucial, porquanto ético e clínico. Perdoar a si<br />

mesmo é tornar-se responsável inclusive pelo que o outro fez<br />

<strong>de</strong> “irresponsável”. Essa, penso, seria uma tradução psicanalítica<br />

plausível do impossível perdão <strong>de</strong>rri<strong>de</strong>ano.<br />

Por fim, po<strong>de</strong>-se argumentar que empregar termos tão<br />

elusivos quanto perdão impossível po<strong>de</strong> tornar-se uma retórica<br />

leviana e abusiva para abor<strong>da</strong>r dores e sofrimentos muito<br />

concretos. Nesse caso, não custa lembrar que a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> psicanálise<br />

como missão impossível é do próprio Freud. Querer<br />

mais é querer não o impossível, mas exigir um possível que só<br />

existe a posteriori e jamais <strong>de</strong> antemão. Essa é a fantasia originária<br />

<strong>da</strong> vergonha.

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