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Boletim nº 3 - Escola Superior de Educação de Viana do Castelo ...

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Crónicas <strong>de</strong> Cooperação… da minhapassagem por ÁfricaDurante aproximadamente três anos ingressei em projectos<strong>de</strong> apoio à educação na Guiné-Bissau. Trabalhei na área daformação pedagógica, contribuin<strong>do</strong> para a formação científica,técnica e pedagógica <strong>do</strong>s professores em exercício. Para tal,foi necessário um contacto o mais próximo possível <strong>do</strong> dia adia <strong>de</strong>stes profissionais guineenses, em particular, e dapopulação, em geral. Percorri várias vezes 30 km <strong>de</strong> bicicleta,<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um calor intenso, para fazer observação <strong>de</strong> aulas.Os professores locais fazem-no to<strong>do</strong>s os dias, com a diferença<strong>de</strong> que eu estava bem alimentada e eles, muitas vezes, levamconsigo somente a curta refeição da noite anterior. Sem saláriohá <strong>do</strong>is anos não se po<strong>de</strong>m permitir à extravagância <strong>do</strong> matabicho (pequeno almoço)!Sentava-me na sala (que nalguns casos não era mais que umacabana feita em canas e folhas <strong>de</strong> palmeira), nos <strong>de</strong>sconfortáveisbancos construí<strong>do</strong>s com ramos <strong>de</strong> árvores e tentava escreversobre as mesas, feitas à base <strong>do</strong> mesmo material e estrutura.O que encontrava era um ensino <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> à base damemorização, com turmas <strong>de</strong> 45 alunos on<strong>de</strong>, por exemplo,no 1º ano, as ida<strong>de</strong>s variam entre os 6 e os 18 anos. Como osprofessores não têm formação específica, importaram o mo<strong>de</strong>lo<strong>do</strong>s seus antigos mestres, transmitin<strong>do</strong> aos futuros <strong>do</strong>centesas mesmas práticas e envolven<strong>do</strong>-se num ciclo sem fim. Ummo<strong>de</strong>lo que se mantém <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época <strong>do</strong> colonialismo e emque os curricula são ainda o espelho <strong>do</strong> curricula português,sem adaptações à realida<strong>de</strong> guineense.No entanto, o insucesso não passa somente pela falta <strong>de</strong>formação <strong>do</strong>s profissionais da educação, mas também pelaexistência <strong>de</strong> um sistema que tem como língua oficial oPortuguês, ensina<strong>do</strong> como língua materna, quan<strong>do</strong> é a segundae nalguns casos a terceira língua <strong>do</strong>s alunos. Todas as disciplinassão leccionadas em português, que não é <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelo próprioprofessor, enquanto as crianças falam a língua étnica, e algumastambém o crioulo (língua nacional). O professor muitas vezesé <strong>de</strong> outra etnia, <strong>de</strong>sconhecen<strong>do</strong> a língua materna <strong>do</strong>s alunosque, por sua vez, não enten<strong>de</strong>m o crioulo. Po<strong>de</strong>-se fazer umapequena i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> que esta miscelânea dá!A situação da educação é <strong>de</strong>veras preocupante, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aformação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>centes, passan<strong>do</strong> pelas instalações das escolase pela falta <strong>de</strong> recursos – o único livro a que professor e alunostêm acesso é o manual escolar, financia<strong>do</strong> por um projecto <strong>do</strong>Banco Mundial – até ao pagamento <strong>do</strong>s salários <strong>do</strong>s professores,que apesar <strong>de</strong> estarem durante <strong>do</strong>is anos sem receber, to<strong>do</strong>sos dias se <strong>de</strong>slocam para a escola e continuam a reunir-sequinzenalmente para a elaboração <strong>de</strong> planificações! Fazem omelhor que sabem e po<strong>de</strong>m.Mas sobre Africa, e a Guiné-Bissau em particular, muito maishá a dizer…Passar por África, permite-nos um novo olhar, uma(re)aprendizagem <strong>de</strong> padrões culturais e, sobretu<strong>do</strong>, morais ehumanos.A nossa oci<strong>de</strong>ntal socieda<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> o individualismo e oeconomicismo são condições tidas como necessárias esuficientes, exigidas por um colectivo que se habituou a valorizaro material, sofre <strong>de</strong> uma perda <strong>de</strong> valores que conduz à ausência<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> familiar e moral, on<strong>de</strong> a globalização não passase uma retórica ineficaz graças aos cifrões que movem o mun<strong>do</strong>dito <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>.Por isso, África é uma gran<strong>de</strong> escola <strong>de</strong> vida. Uma escola viva.Muda-nos o olhar, ensina-nos a <strong>de</strong>spir os pesa<strong>do</strong>s mantos quetransportamos, ensina-nos a ser livres!Pessoalmente, nunca mais posso <strong>de</strong>ixar África, e compreen<strong>do</strong>agora a velha expressão que diz que quem vai a África ficapara sempre preso a ela. A sua natureza é <strong>de</strong> uma belezaextraordinariamente simples, que nos ator<strong>do</strong>a os senti<strong>do</strong>s. Asua magnitu<strong>de</strong> reduz-nos à nossa verda<strong>de</strong>ira insignificânciaface às forças da natureza. O seu cheiro mágico é in<strong>de</strong>scritível.O olfacto é, realmente, o primeiro senti<strong>do</strong> a reagir, mal se poisao pé em chão africano. Parece que é a forma que a terra tem<strong>de</strong> nos chamar, exalan<strong>do</strong> esse <strong>do</strong>pante o<strong>do</strong>r!A noite cai apressadamente na Guiné-Bissau. Quan<strong>do</strong> anoitece,as cores transformam-se com a iluminação <strong>de</strong> inúmeraspequenas velas nas áreas mais centrais <strong>de</strong> cada localida<strong>de</strong>,<strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> surgir com to<strong>do</strong> o seu resplen<strong>do</strong>r milhares <strong>de</strong> pontosno céu. O brilho da noite é, <strong>de</strong> facto, único! Como a luz eléctricaé quase inexistente, as estrelas não têm a concorrência artificial<strong>do</strong>s neons <strong>do</strong>s estabelecimentos públicos, crian<strong>do</strong> umaatmosfera quase mítica <strong>de</strong> profunda harmonia com a natureza,convidan<strong>do</strong> à contemplação.Os sons tornam-se mais intensos, misturan<strong>do</strong>-se os da naturezacom os produzi<strong>do</strong>s pelos humanos. As pessoas sentam-se àsportas, ou no alpendre das casas, no djumbai (conversa),partilhan<strong>do</strong> a ambiência nocturna como testemunho <strong>de</strong> umacalorosa harmonia entre os intervenientes <strong>de</strong>stas (tele)novelasvividas e faladas na primeira pessoa. Aqui, os serões sãoreserva<strong>do</strong>s para estar, estar uns com os outros.19Novembro 2006 - educ@r sem fronteiras

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