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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANASPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIALAFETO, DESIGUALDADE E REBELDIAbasti<strong>do</strong>res <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>mésticoJUREMA BRITESTese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>Orienta<strong>do</strong>ra: Profa. Dra. Claudia FonsecaPorto Alegre, 2000.


2UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANASPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIALAFETO, DESIGUALDADE E REBELDIA:basti<strong>do</strong>res <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>mésticoJUREMA BRITESTese apresentada no Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Antropologia Social daUniversida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul para a obtenção <strong>do</strong> título <strong>de</strong>DoutorTese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>Orienta<strong>do</strong>ra: Profa. Dra. Claudia FonsecaPorto Alegre, 2000.


3Para Maria Ulguim Barbosa e Neivone<strong>do</strong>s Santos Silva – <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> carinho ehumor inigualáveis – que meensinaram tanto sobre a força <strong>do</strong>sfracos.Aos amigos – interlocutoresconstantes: foi esse o jeito queencontrei para falar das contradiçõesque permeiam nossas casas e afetos.


4AGRADECIMENTOSSabemos que um trabalho que dura tanto tempo não é obra solitária.Muito tenho que agra<strong>de</strong>cer a amigos, parentes e instituições que colaboraramneste percurso.A ajuda <strong>do</strong>s primeiros em geral é invisível – como o é o trabalho<strong>do</strong>méstico – não aparece na nossa performance pública, mas sustenta nossavida material e afetiva. Minhas palavras são insuficientes para retribuir a quemcui<strong>do</strong>u <strong>do</strong>s meus filhos e me apoiou com afeto a tantas solicitações. Para algoserve uma família tão <strong>gran<strong>de</strong></strong>! Não citarei nomes, páginas melhores osmerecem.Agra<strong>de</strong>ço a minha pequena <strong>gran<strong>de</strong></strong> turma <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>: FranciscoPereira Neto e Flávia Rieth. Mantivemos trabalho, carinho e jurupigaconjuga<strong>do</strong>s até o final, o que mais po<strong>de</strong> valer a pena?Guilherme Xavier Sobrinho e Paula Camboim, cada uma na sua área,<strong>de</strong>ram uma <strong>gran<strong>de</strong></strong> contribuição a este trabalho, emprestan<strong>do</strong> suas máquinase casas e <strong>de</strong>baten<strong>do</strong> minhas idéias. A or<strong>de</strong>nação final <strong>do</strong>s argumentos <strong>de</strong>va àPaula, que sempre soube traduzir tão bem.Minha gratidão às colegas <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Antropologia e Cidadania(NACI), esse trabalho é tão inspira<strong>do</strong> em vocês e na Claudia, é claro, quetalvez seja realmente uma parceria. Não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lembrar asreuniões da Frente Ampla e Internuclear e <strong>de</strong> Antropologia (FINA), espaço<strong>de</strong>spoja<strong>do</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>bate e incentivo acadêmico frutificaram.Depois <strong>de</strong> quinze anos <strong>de</strong> trabalho em conjunto, não sei exatamentecomo agra<strong>de</strong>cer a minha orienta<strong>do</strong>ra, Profa. Claudia Fonseca – na verda<strong>de</strong>


5ela está incluída nos parágrafos sobre meus amigos. O significa<strong>do</strong> daantropologia para mim está liga<strong>do</strong> ao seu pensamento.Na primeira fase da pesquisa, fui acompanhada por Sandro José da Silvae Martha Inês Careta, <strong>do</strong>is bolsistas que foram interlocutores fundamentaisdurante a procura minuciosa <strong>de</strong> pistas para aprofundar nossos da<strong>do</strong>s. Asustentação iconográfica <strong>de</strong>ste trabalho <strong>de</strong>ve-se ao Sandro. Na reta final,Vilson Borba, bolsista <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Pesquisa Social da UNISC, ficou naretaguarda das infindáveis revisões, manten<strong>do</strong>-se fiel, a <strong>de</strong>speito <strong>do</strong> meuhumor.Contei com a gentileza da Profa. Rosana Can<strong>de</strong>loro que leu a versão(quase) final <strong>de</strong>ste trabalho, ten<strong>do</strong> a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r meus“<strong>de</strong>svios da norma”.Os funcioná<strong>rio</strong>s <strong>do</strong> Instituto Histórico e Geográfico <strong>do</strong> Espírito Santoforam <strong>de</strong> uma gentileza extrema na con<strong>sul</strong>ta e fornecimento das fontes sobreo esta<strong>do</strong>, assim como o secretá<strong>rio</strong> <strong>de</strong> planejamento da Serra, José Luiz Paste,que pessoalmente me forneceu da<strong>do</strong>s oficiais <strong>do</strong> município. A professoraJuçara Brites <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio foi quem me fez cativar pelo Espírito Santo,incansável para complementar os <strong>de</strong>talhes que foram fican<strong>do</strong> para trás.À Fundação Carlos Chagas, quem primeiro acreditou neste projeto,honran<strong>do</strong>-me com uma bolsa no II Programa <strong>de</strong> Incentivo e Formação emPesquisa sobre Mulher, em 1995, agra<strong>de</strong>ço, tanto quanto à CAPES e àUNISC que dividiram o financiamento <strong>do</strong>s meus estu<strong>do</strong>s.


6RESUMOTrata-se <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> etnográfico sobre as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r travadasentre empregadas <strong>do</strong>mésticas e seus emprega<strong>do</strong>res, basea<strong>do</strong> em trabalho <strong>de</strong>campo realiza<strong>do</strong> no Espírito Santo entre 1996 e 1998. A partir <strong>de</strong> um quadroconceitual <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> por Shellee Colen e James Scott, analisamos essasrelações em termos <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> reprodução estratificada, levan<strong>do</strong> emconta tanto a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> política e a exploração, quanto a funcionalida<strong>de</strong><strong>de</strong>ssa relação para ambas as partes. Através da observação participante,tivemos acesso aos códigos encobertos tanto das trabalha<strong>do</strong>ras quanto <strong>de</strong>seus emprega<strong>do</strong>res, mostran<strong>do</strong> que uma mistura particular <strong>de</strong> afeto,<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e rebeldia mantem estas relações na socieda<strong>de</strong> brasileira.Palavras-chave: Serviço Doméstico - Subordinação - Rebeldia


7ABSTRACTThis study, centered on the power relations established between<strong>do</strong>mestic workers and their employers, is based on ethnographic fieldworkcarried out in the state of Espirito Santo between 1996 and 1998. A<strong>do</strong>ptingand analytic approach based on the work of Shellee Colen and James Scott,we investigate these relations in terms of a system of stratified reproduction,taking into consi<strong>de</strong>ration political inequality and exploitation as well as thefunctional aspects which work in the interests of both partners of this relation.Trough participant observation in the employers’ as well the maids’ homes, wegained access to the hid<strong>de</strong>n transcripts of each group, leading us to raisehypotheses on the particular mix of affection, inequality, and rebellion whichun<strong>de</strong>rwrites class relations in Brazil.Key words: Domestic service - Subaltern studies - Class relations - Brazil


8SUMÁRIOAgra<strong>de</strong>cimentos ............................................................................................ 4Resumo ................................................................................................................................... 6Abstract ................................................................................................................................... 7Lista <strong>de</strong> Figuras ..................................................................................................................... 10INTRODUÇÃO …………………………………………………………………….. 11Justificativa ..................................................................................................... 13Marco teórico .................................................................................................. 17Caminhos meto<strong>do</strong>lógicos ............................................................................... 27A localida<strong>de</strong> .................................................................................................... 361 SERVIÇO DOMÉSTICO: DO DESENVOLVIMENTO À DENUNCIA ........ 401.1 Serviço <strong>do</strong>méstico e as teorias da mo<strong>de</strong>rnização ............................. 401.2 Balanço crítico <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre serviço <strong>do</strong>méstico ....................... 461.2.1 A falha evolucionista .................................................................... 461.2.2 O apego ao mo<strong>de</strong>lo fabril ............................................................. 491.2.3 Problemas meto<strong>do</strong>lógicos ............................................................ 511.2.4 A origem da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> ............................................................ 551.3 Estu<strong>do</strong>s centra<strong>do</strong>s nas representações ............................................. 571.4 Serviço <strong>do</strong>méstico no passa<strong>do</strong>: dan<strong>do</strong> vistas a reciprocida<strong>de</strong> ........... 611.4.1 A naturalização das relações hierárquicas ................................... 621.4.2 A expulsão <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos ..................................... 641.4.3 Higiene e <strong>do</strong>mesticida<strong>de</strong> ............................................................... 661.4.4 O serviço <strong>do</strong>méstico nas colônias da América <strong>do</strong> Sul .................. 692 NA CASA DA PATROA I: AFETO E DESIGUALDADE ............................ 732.1 Praia Velha – diversida<strong>de</strong> estratificada ............................................... 772.2 Os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> fazer: limpeza e organização ........................................ 812.3 A relação com as crianças .................................................................. 903 NA CASA DA PATROA II: RECIPROCIDADE E REBELDIA .................. 1023.1 Donativos: uma transmissão <strong>de</strong> patrimônio ........................................ 1033.2 Como se recebe .................................................................................. 1083.3 O assassino é o mor<strong>do</strong>mo .................................................................. 1133.4 Carregamento <strong>de</strong> formiguinha: rebeldia, rivalida<strong>de</strong> e diversãono furto ................................................................................................ 1183.5 A construção relacional da moralida<strong>de</strong> <strong>do</strong> roubo ................................ 121


93.6 A Vingança <strong>de</strong> Nêmisis: expressão performática das relaçõesentre patrões e empregadas <strong>do</strong>mésticas ........................................... 1234 NA CASA DA EMPREGADA: INTERDEPENDÊNCIA EANTAGONISMO .......................................................................................... 1284.1 Jardim Veneza – um bairro <strong>de</strong> invasão .............................................. 1294.2 Moran<strong>do</strong> no bairro .............................................................................. 1394.3 Escassez <strong>de</strong> dinheiro ......................................................................... 1404.4 Inter<strong>de</strong>pendência e antagonismo: grupo <strong>do</strong>méstico e cotidiano ........ 1494.5 A riqueza roubada: casamento, amor e sobrevivência ...................... 1574.6 Comida não é tu<strong>do</strong> ............................................................................. 1614.7 A força <strong>do</strong> fraco .................................................................................. 1675 NEGOCIANDO A IGUALDADE: A PATROA NA VIDA ÍNTIMA EFAMILIAR DA EMPREGADA DOMÉSTICA ............................................... 1755.1 O <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> lugar da patroa .................................................................... 1765.2 A patroa na vida íntima e familiar da empregada <strong>do</strong>méstica ............. 1855.3 Uma patroa fora <strong>do</strong> lugar ................................................................... 189CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 198Do clientelismo à reprodução estratificada .................................................. 199Do bilingüismo a um campo <strong>de</strong> forças “<strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong> <strong>de</strong> toda ilusão” ............ 202Dos roteiros encobertos a cidadania contextualizada ................................. 205O sistema em ação ...................................................................................... 209BIBLIOGRAFIAS ......................................................................................... 216


10LISTA DE FIGURAS ∗FIGURA 1 O trajeto <strong>do</strong> trabalho ............................................................................ 79FIGURA 2 Cozinha <strong>de</strong> empregada ....................................................................... 85FIGURA 3 Cozinha da patroa ............................................................................... 85FIGURA 4 Área <strong>de</strong> serviço da empregada ........................................................... 87FIGURA 5 Área <strong>de</strong> serviço da patroa ................................................................... 87FIGURA 6 O cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong>s outros .......................................................................... 92FIGURA 7 O <strong>de</strong>staque <strong>do</strong>s pequenos patrões na casa da empregada ............... 92FIGURA 8 Banheiro da patroa ............................................................................. 98FIGURA 9 Banheiro da empregada ..................................................................... 98FIGURA 10 Casa da patroa .................................................................................. 111FIGURA 11 Casa da empregada .......................................................................... 111FIGURA 12 Bairro <strong>de</strong> invasão ............................................................................... 131FIGURA 13 Uma Veneza <strong>de</strong> esgotos ................................................................... 133FIGURA 14 Aterro ................................................................................................. 133FIGURA 15 Criança é vida e esperança ............................................................... 135FIGURA 16 A evolução <strong>de</strong> um bairro .................................................................... 136FIGURA 17 Projeto da casa nova ......................................................................... 144FIGURA 18 A casa nova em 1998 ........................................................................ 144FIGURA 19 Palacete no manguezal ..................................................................... 145FIGURA 20 Palacete no manguezal em 1998 ...................................................... 145FIGURA 21 Grupo <strong>do</strong>méstico <strong>de</strong> Claudina ........................................................... 151FIGURA 22 Grupo <strong>do</strong>méstico <strong>de</strong> Claudina 1998 .................................................. 152FIGURA 23 Os meus são gêmeos queridinha ...................................................... 172FIGURA 24 Domesticida<strong>de</strong> e estética .................................................................. 180FIGURA 25 Domesticida<strong>de</strong> e estética .................................................................. 180FIGURA 26 Casa chique em Jardim Veneza ....................................................... 182FIGURA 27 Brilho nas panelas ............................................................................ 183FIGURA 28 Brilho nas panelas ............................................................................ 183FIGURA 29 Bombril nelas .................................................................................... 184FIGURA 30 Brilho nas panelas ............................................................................ 184∗ Com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resguardar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s sujeitos as figuras não serão publicizadas.


11INTRODUÇÃOA família foi o <strong>gran<strong>de</strong></strong> vetor das modificações da sensibilida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna,sofren<strong>do</strong> um encolhimento na sua configuração, quan<strong>do</strong> se recolheu <strong>de</strong> umasociabilida<strong>de</strong> difusa na comunida<strong>de</strong> para uma intimida<strong>de</strong> entre o casal e osfilhos. A permanência <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico no contexto histórico dastransformações da família burguesa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época da Revolução Industrial,acabou revelan<strong>do</strong> uma tensão, pois a presença <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s nesta nova família(locus privilegia<strong>do</strong> <strong>do</strong>s afetos parentais) representava vínculos com elementosexternos que <strong>de</strong>veriam pertencer ao passa<strong>do</strong> (Ariès, 1981).Esta situação assume contornos específicos no contexto atual dasocieda<strong>de</strong> brasileira, os quais a pesquisa que sustentou este trabalhoprocurou contemplar. O projeto inicial pretendia investigar a transmissão <strong>de</strong>saberes femininos no espaço <strong>do</strong>méstico, que, na especificida<strong>de</strong> da famíliabrasileira <strong>de</strong> classe média, <strong>de</strong>veria incorporar uma dimensão <strong>de</strong> classe, umavez que, nesse processo, mulheres <strong>de</strong> fora da parentela entram em cena: asempregadas <strong>do</strong>mésticas 1 . O diálogo entre a produção acadêmica e os da<strong>do</strong>srecolhi<strong>do</strong>s em campo ressaltaram outras questões para a análise. A literaturasobre serviço <strong>do</strong>méstico é unânime em reconhecer a complexida<strong>de</strong> dasrelações <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>sta ativida<strong>de</strong> profissional que se <strong>de</strong>senvolve noambiente priva<strong>do</strong>, apontan<strong>do</strong> questões acerca da <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> que sejatrabalho, das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre as mulheres(paternalismo/maternalismo), <strong>do</strong>s laços <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência, <strong>do</strong>s pagamentosextra-salariais (KOFES 1991; ROLLINS 1990; LEÓN 1993, entre outrasautoras). O que une os argumentos <strong>de</strong>stes estu<strong>do</strong>s é a percepção <strong>de</strong> queatitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s patrões em relação às empregadas <strong>do</strong>mésticas ten<strong>de</strong>m a serpouco “profissionais”. Dizen<strong>do</strong> <strong>de</strong> outra forma: os patrões não <strong>de</strong>senvolvem1. Não é incomum encontrar referências na literatura etnográfica sobre ajuda entre mulheresna condução <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico, mas em geral, são mulheres <strong>do</strong> próp<strong>rio</strong> circulo familiarque entram nestas re<strong>de</strong>s (DiLEONARDO, 1992; BOTH, 1976, entre outros)


12relações <strong>de</strong> contrato mo<strong>de</strong>rnas. O problema que minha pesquisa <strong>de</strong> campointroduziu nesta discussão (a qual não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser pertinente) é que asmulheres, empregadas <strong>do</strong>mésticas por mim investigadas, encontravam noserviço <strong>do</strong>méstico particularida<strong>de</strong>s que o tornavam vantajoso em relação aoutras ocupações. As vantagens por elas <strong>de</strong>stacadas coinci<strong>de</strong>m justamentecom aqueles fatores que os pesquisa<strong>do</strong>res da condição feminina consi<strong>de</strong>ramcomo as raízes da subordinação que o serviço <strong>do</strong>méstico acarreta: relaçõespersonalistas e clientelistas estruturadas na organização da família patriarcal.No contexto <strong>do</strong> meu trabalho <strong>de</strong> campo, as empregadas encontravam noserviço <strong>do</strong>méstico possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> negociação inexistentes no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong>trabalho formal. Vantagens <strong>de</strong> negociar adiantamentos, faltas e até mesmo os“presentinhos”, “as sobras <strong>do</strong> jantar”, “as roupas velhas”, to<strong>do</strong>s estes ganhosextra-salariais, tão critica<strong>do</strong>s pelos analistas acadêmicos, eram <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>scomo ”o que vale a pena” no serviço <strong>do</strong>méstico.A partir <strong>de</strong>sta “provocação”, trazida pela pesquisa empírica, procureitraçar uma discussão com os estu<strong>do</strong>s sobre serviço <strong>do</strong>méstico on<strong>de</strong> o ponto<strong>de</strong> vista das pessoas investigadas existisse como plausibilida<strong>de</strong> lógica.Logo entendi que os furtos, imputa<strong>do</strong>s aos <strong>do</strong>mésticos, tambémapresentavam um panorama das tensões constitutivas <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico,em nosso país. Seguin<strong>do</strong> tais pistas, foi possível localizar na literaturacientífica um enquadramento para tais tensões, as quais inci<strong>de</strong>m nasseguintes premissas: o serviço <strong>do</strong>méstico proporciona o encontro <strong>de</strong> classes<strong>de</strong>siguais numa socieda<strong>de</strong> cada vez mais marcada pela segregação e o me<strong>do</strong><strong>do</strong> “outro”; a empregada <strong>do</strong>méstica aparece como um elemento “arcaico”(tanto pela sua intromissão na intimida<strong>de</strong>, como pela <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social eeconômica que evi<strong>de</strong>ncia) no seio da “família mo<strong>de</strong>rna”; o serviço <strong>do</strong>mésticopauta-se em relações <strong>de</strong> trabalho clientelistas numa época marcada pelacidadania.


13Tentan<strong>do</strong> melhor compreen<strong>de</strong>r essa relação "fora <strong>de</strong> lugar" no seio dafamília brasileira, elegi esmiuçar, no meu trabalho <strong>de</strong> campo, a relação entrepatrões e empregadas <strong>do</strong>mésticas. Para tratar <strong>de</strong>sta relação, uma vez quesou patroa e seguin<strong>do</strong> a tradição antropológica <strong>de</strong> pensar o “outro”, optei pordar ênfase especial, neste trabalho, ao ponto <strong>de</strong> vista da empregada. Estaopção aliada ao emprego <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> pesquisa antropológico – o qualcarece na maior parte da literatura – acabou por jogar nova luz sobre astensões <strong>de</strong>finidas acima mostran<strong>do</strong> que: 1) as diferenças <strong>de</strong> organização<strong>do</strong>méstica e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s econômicas experimentadas por patroas eempregadas acabam por gerar uma complentamentarida<strong>de</strong> estratificadaque justifica o serviço <strong>do</strong>méstico em nossa socieda<strong>de</strong>; 2) existem dinâmicasfamiliares próprias <strong>do</strong>s grupos populares, nas quais, o serviço <strong>do</strong>mésticoacaba por mostrar-se mais compatível <strong>do</strong> que outras formas <strong>de</strong> trabalho; e 3)é possível reconhecer nas experiências <strong>de</strong> subalternida<strong>de</strong> que estas mulheresvivenciam tanto no espaço <strong>de</strong> trabalho como na vida familiar, formas <strong>de</strong>participação que não são previstas na maior parte da literatura sobrecidadania.JustificativaO tema <strong>de</strong> empregadas <strong>do</strong>mésticas mostra-se <strong>de</strong> <strong>gran<strong>de</strong></strong> atualida<strong>de</strong>,pois diz respeito a uma proporção importante da população feminina. Aocontrá<strong>rio</strong> das estimativas que acreditavam no fim <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico, aproporção das mulheres envolvidas nesta ativida<strong>de</strong> não tem <strong>de</strong>clina<strong>do</strong> nosúltimos anos. Nos países com economias capitalistas periféricas, asempregadas <strong>do</strong>mésticas, em geral, ainda constituem a maior categoriaocupacional feminina. Nos países com alto <strong>de</strong>senvolvimento capitalista, on<strong>de</strong>já foi praticamente inexistente, o serviço <strong>do</strong>méstico voltou a crescer 2 .2 Mais adiante mostraremos esses da<strong>do</strong>s estatísticos.


14Não é fácil <strong>de</strong>terminar através <strong>de</strong> estatísticas censitárias o perfil dasmulheres envolvidas no trabalho <strong>do</strong>méstico. Durante muito tempo, a queixa<strong>do</strong>s pesquisa<strong>do</strong>res era <strong>de</strong> que sob a rubrica <strong>de</strong> “trabalho <strong>do</strong>méstico” abrigavaseuma gama enorme <strong>de</strong> ocupações: <strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa, lava<strong>de</strong>iras, babás,passa<strong>de</strong>iras, jardineiros, governantas, preceptores, trabalha<strong>do</strong>res agrícolas...Edward Higgs (apud HILL,1995b) pon<strong>de</strong>ra que os censos na Inglaterranovecentista po<strong>de</strong>riam superestimar a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas envolvidas notrabalho <strong>do</strong>méstico <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> das <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> ocupação utilizadas. Àsvezes eram incluí<strong>do</strong>s nas ocupações <strong>do</strong>mésticas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa viúvasaté parentes solteiros <strong>do</strong> chefe <strong>do</strong> <strong>do</strong>micílio. Outras vezes eram registra<strong>do</strong>scomo emprega<strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico aqueles que cumpriam tarefas fora <strong>do</strong> lar,trabalhan<strong>do</strong> no comércio ou nas lavouras.No Brasil contemporâneo, os instrumentos estatísticos atuais,coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s pelo IBGE 3 , me<strong>de</strong>m o trabalho <strong>do</strong>méstico através da <strong>de</strong>finição<strong>de</strong> quem é o seu executante: aquele que exerce afazeres <strong>do</strong>mésticos nopróp<strong>rio</strong> lar (em geral as <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa) correspon<strong>de</strong> à população“economicamente não ativa”; e aqueles que trabalham “prestan<strong>do</strong> serviço<strong>do</strong>méstico remunera<strong>do</strong> em dinheiro ou benefício, em uma ou mais unida<strong>de</strong>s<strong>do</strong>mésticas” - são <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s como trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong>mésticos e sua ativida<strong>de</strong>entra no rol <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s trabalhos "produtivos" 4 ( IBGE 1991, p.10).Mesmo que os da<strong>do</strong>s sejam borra<strong>do</strong>s pelo conceito <strong>de</strong> trabalho que seutilize, uma simples aproximação <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s estatísticos revela uma realida<strong>de</strong>que não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rada. No Brasil, on<strong>de</strong> o serviço <strong>do</strong>méstico écumpri<strong>do</strong> 92,4% por mulheres, ele representa 18,36% das mulheres comcarteira <strong>de</strong> trabalho. Porém se tomarmos o setor informal essa cifra atinge acasa <strong>do</strong>s 36,3 % da mão-<strong>de</strong>-obra feminina economicamente ativa,3O Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Geografia e Estatística -IBGE- é responsável pelo CensoDemográfico e Pesquisa Nacional <strong>de</strong> Amostragem por Domicilio -PNAD.4 Pensan<strong>do</strong> nesta distinção Chaney e Garcia Castro (1993) estabeleceram uma primeiradistinção: trabalho <strong>do</strong>méstico para caracterizar to<strong>do</strong> e qualquer trabalho realiza<strong>do</strong> no lar eserviço <strong>do</strong>méstico <strong>de</strong>signar os afazeres <strong>do</strong>mésticos realiza<strong>do</strong> por pessoas remuneradas paratanto.


15configuran<strong>do</strong>-se na maior categoria ocupacional feminina <strong>do</strong> país (ABREU etal, 1990). As pesquisas sobre serviço <strong>do</strong>méstico apresentam, em geral, asempregadas <strong>do</strong>mésticas como aquelas mulheres que se encontram entre apopulação mais pobre, a qual recebe as piores remunerações e possuemeducação mínima. Em geral, são mulheres migrantes e suas culturas e raçassão consi<strong>de</strong>radas infe<strong>rio</strong>res. Constitucionalmente as empregadas <strong>do</strong>mésticasnão dispõem <strong>do</strong>s mesmos direitos que os <strong>de</strong>mais trabalha<strong>do</strong>res. Por exemplo,no Brasil, o Fun<strong>do</strong> <strong>de</strong> Garantia por Tempo <strong>de</strong> Serviço – FGTS – ainda não élei, portanto, trata-se <strong>de</strong> uma livre negociação entre patrões e empregadas<strong>do</strong>mésticas. Desta forma, raramente as trabalha<strong>do</strong>ras usufruem <strong>do</strong> salá<strong>rio</strong><strong>de</strong>semprego. A folga da empregada <strong>do</strong>méstica, garantida pela lei, é <strong>de</strong>apenas um dia semanal e po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>terminada exclusivamente pelospatrões. Este quadro é extremamente semelhante em toda a América Latina 5As análises sobre as transformações <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho femininona década <strong>de</strong> noventa no Brasil <strong>de</strong>monstram que a inserção da mulherbrasileira no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho tem se da<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma diferenciada. Àpermanência <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> extrema precarieda<strong>de</strong> salarial e <strong>de</strong> direitos paraa <strong>gran<strong>de</strong></strong> maioria das trabalha<strong>do</strong>ras envolvidas em ocupações femininastradicionais como enfermagem, magisté<strong>rio</strong> e trabalho <strong>do</strong>méstico, contrapõe-seum pólo em franca expansão, on<strong>de</strong> as brasileiras vêm ocupan<strong>do</strong> espaços emprofissões <strong>de</strong> maior qualificação e rendimento, campos antesprepon<strong>de</strong>rantemente masculinos como a medicina, o direito, a arquitetura(BRUSCHINE e LOMBARDI, 1999) ..A partir <strong>de</strong>stas análises, o serviço <strong>do</strong>méstico po<strong>de</strong> ser visto comoevidência da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social da nossa socieda<strong>de</strong>. Ele <strong>de</strong>sponta entre asocupações femininas <strong>do</strong> pólo da precarieda<strong>de</strong>, apresentan<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s maiorescontingentes da força <strong>de</strong> trabalho feminino (cerca <strong>de</strong> 27%) e on<strong>de</strong> seencontram as mais baixas remunerações. Em 1991, 72,5 % da categoria5 Veja , por exemplo, em Chaney e Garcia Castro, 1993.


16ganhava no máximo um Salá<strong>rio</strong> Mínimo (SM) 6 . Como um to<strong>do</strong> para o Brasil,até 1995 19% das <strong>do</strong>mésticas não perfaziam um rendimento maior que meioSM. A jornada <strong>de</strong> trabalho da <strong>do</strong>méstica não é <strong>de</strong>limitada por lei, em médiafican<strong>do</strong> entre 40 a 50 horas <strong>de</strong> trabalho semanais, mas em Recife, Fortaleza eSalva<strong>do</strong>r a média po<strong>de</strong> chegar a 49 horas. Os direitos trabalhistas ainda sãolimita<strong>do</strong>s (os trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong>mésticos não têm garanti<strong>do</strong> o FGTS e menos <strong>de</strong>um quarto da categoria tem carteira <strong>de</strong> trabalho registrada) e valem poucoante as relações clientelistas <strong>de</strong> negociação <strong>do</strong> trabalho. Essas condiçõespo<strong>de</strong>m ser agravadas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> da região analisada e da inserção <strong>de</strong>recortes como raça e faixa etária 7 .A julgar pelo <strong>de</strong>staque que as mulheres vêm ganhan<strong>do</strong> em outrossetores ocupacionais, o serviço <strong>do</strong>méstico revela ainda outro la<strong>do</strong> da<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> no inte<strong>rio</strong>r da socieda<strong>de</strong> brasileira: que muitas das conquistas<strong>de</strong> emancipação feminina eclodidas a partir <strong>do</strong>s anos sessenta são restritasao espaço <strong>de</strong> certa classe social. Veja-se o crescimento da participaçãofeminina em profissões <strong>de</strong> maior qualificação, que exigem formaçãouniversitária, on<strong>de</strong> o merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho feminino tem-se mostra<strong>do</strong> emexpansão. Profissões como engenharia, arquitetura, medicina e direito, atéentão <strong>de</strong> <strong>do</strong>mínio masculinos, têm recebi<strong>do</strong> cada vez mais ingresso <strong>de</strong>mulheres. Em algumas profissões como o direito, por exemplo, a participaçãofeminina saltou <strong>de</strong> 21% em 1980 para 91,30% em 1991. Mesmo que emmuitas áreas ainda se verifique rendimentos menores para as mulheres, elasestão toman<strong>do</strong> lugar consi<strong>de</strong>rável em "profissões técnicas e científicas <strong>de</strong>prestígio". Como alavanca <strong>de</strong>stas, Bruschinni e Lombardi consi<strong>de</strong>ram a"intensa transformação cultural" <strong>do</strong>s anos 60 que levou as mulheres à busca<strong>de</strong> formação universitária (1999, p. 20 e 23). Enquanto estes movimentos(inclua-se aí o feminismo) retiraram as mulheres <strong>de</strong> classes média e alta <strong>do</strong>smuros <strong>do</strong>mésticos, eles não surtiram o mesmo efeito para as mulheres mais6 Nas <strong>gran<strong>de</strong></strong>s metrópoles, 91% das empregadas <strong>do</strong>mésticas ganham pelo menos um SM,mas a <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> persiste nas capitais nor<strong>de</strong>stinas.7 Da<strong>do</strong>s recolhi<strong>do</strong>s em Bruschini e Lombardi (1999).


17pobres 8 . Na verda<strong>de</strong>, as conquistas <strong>de</strong> algumas mulheres têm se estrutura<strong>do</strong>nas costas da subordinação <strong>de</strong> outras: vá<strong>rio</strong>s estu<strong>do</strong>s têm mostra<strong>do</strong> umarelação direta entre o incremento da mão-<strong>de</strong>-obra feminina em profissões <strong>de</strong>alto prestígio e o aumento <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico (MILKMANN, REESE eROTH 1998; COLEN, 1995; BRUSCHINE e LOMBARDI, 1999).Visto neste contexto, o serviço <strong>do</strong>méstico parece <strong>de</strong>svelar umasocieda<strong>de</strong> altamente diferenciada, on<strong>de</strong> a mo<strong>de</strong>rnização <strong>de</strong> alguns setoresdificilmente atinge uma eqüida<strong>de</strong> geral. Trata-se <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> que, comoapontam alguns analistas, mescla padrões <strong>de</strong>mocráticos <strong>de</strong> comportamento"com práticas políticas arcaicas e provincianas" (O'DONNELL apud BANCK,1999, p. 104).Marco teóricoA situação para<strong>do</strong>xal <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> não é novida<strong>de</strong> para a reflexãointelectual <strong>do</strong> país. Des<strong>de</strong> que a estrutura hierárquica da escravidão <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong>ser referência absoluta, tem-se discuti<strong>do</strong> as causas e características <strong>de</strong>ssepadrão nacional. O <strong>de</strong>bate oscila entre perspectivas que consi<strong>de</strong>ram assituações "arcaicas e provincianas" como meros bolsões residuais <strong>de</strong> umasocieda<strong>de</strong> em vias <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização e críticas que apontam para a exclusãosocial como parte estrutural <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento capitalistaMesmo partin<strong>do</strong> <strong>de</strong> subsídios teóricos diferentes – uns acusan<strong>do</strong> um<strong>de</strong>scompasso ante o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> parcelas da população e outrosevi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> o padrão <strong>de</strong> marginalização <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong> pelo sistema – asdiversas partes <strong>de</strong>sta contenda mantêm em comum uma atitu<strong>de</strong> analítica quedispensa muito pouca atenção à lógica e práticas das classes subalternas8 Besse (1996) examina o alcance diferencia<strong>do</strong> das conquistas feministas em relação arealida<strong>de</strong>s femininas diversas.


18atingidas por esta <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. Pensan<strong>do</strong> geralmente em causas exógenase macro-estruturais (hibridismo étnico, capitalismo internacional, globalização),a intelectualida<strong>de</strong> brasileira tem consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o comportamento <strong>de</strong>stes gruposcomo simples <strong>de</strong>corrência <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> opressão. Ora relegadas a umatradicionalida<strong>de</strong> oriunda <strong>de</strong> um atavismo cultural frente ao <strong>de</strong>senvolvimento,ora justificadas como estratégia <strong>de</strong> sobrevivência ante a opressão econômica,as atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s grupos populares raramente têm si<strong>do</strong> tomadas comoporta<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> uma logicida<strong>de</strong> propositiva. Como resume Claudia Fonsecasobre a trajetória da temática popular na aca<strong>de</strong>mia brasileira:De uma 'massa amorfa', 'anômica'ou simplesmente 'aqueles queservem <strong>de</strong> anti-norma'<strong>do</strong>s anos 60, eles tornaram-se protagonistas<strong>de</strong> 'classes'operárias’ (ou populares) <strong>do</strong>s anos 80, para voltar aostatus <strong>de</strong> 'pobres'nos anos 90. O risco <strong>de</strong>sta nomenclatura é umretorno a uma imagem <strong>de</strong> vazio cultural, <strong>de</strong> uma população vítima -quan<strong>do</strong> não ignorante ou alienada - esperan<strong>do</strong> passivamente que asforças da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> a elevem à condição humana (FONSECA2000, p. 218).Este estu<strong>do</strong> preten<strong>de</strong> contribuir justamente analisan<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>stequadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, qual a perspectiva <strong>de</strong> certos sujeitos <strong>do</strong>s grupossubalternos, qual sua relação com os grupos <strong>do</strong>minantes e qual suasubserviência ou rebeldia ante os fatores <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação econômica, política ecultural. Tomamos como objeto empírico as relações entre as empregadas<strong>do</strong>mésticas e seus emprega<strong>do</strong>res no Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Espírito Santo, maisprecisamente em Vitória - capital, e em um bairro da periferia <strong>do</strong> município daSerra, Jardim Veneza. A escolha <strong>de</strong>ste objeto resi<strong>de</strong> na constatação expostaacima <strong>de</strong> que as empregadas <strong>do</strong>mésticas compõem um <strong>do</strong>s universosprofissionais on<strong>de</strong> se encontram as mulheres mais pobres, com maior índice<strong>de</strong> analfabetismo e em geral provenientes <strong>de</strong> grupos étnicos marginaliza<strong>do</strong>s<strong>do</strong> país.Uma das tarefas (e dificulda<strong>de</strong>s) que a antropologia tem se coloca<strong>do</strong> éjustamente na <strong>de</strong>terminação das fronteiras culturais, ou seja, na percepção<strong>do</strong>s elementos significativos na constituição <strong>do</strong>s diferentes universossimbólicos nas socieda<strong>de</strong>s complexas. Nas palavras <strong>de</strong> Gilberto Velho:


19a socieda<strong>de</strong> complexa que tenho em mente (...) é uma socieda<strong>de</strong> naqual a divisão <strong>do</strong> trabalho e a distribuição <strong>de</strong> riqueza <strong>de</strong>lineiamcategorias sociais distinguíveis como continuida<strong>de</strong> histórica, sejamclasses sociais, estratos, castas ... Por outro la<strong>do</strong>, a noção <strong>de</strong>complexida<strong>de</strong> traz também a noção <strong>de</strong> heterogeneida<strong>de</strong> cultural que<strong>de</strong>ve ser entendida como coexistência, harmônica ou não, <strong>de</strong> umapluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tradições cujas bases po<strong>de</strong>m ser ocupacionais,étnicas, religiosas... [O] problema, mais uma vez, é verificar o pesorelativo <strong>de</strong>ssa experiência em confronto com outras como ai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> étnica, a origem regional, a crença e i<strong>de</strong>ologia política.Uma questão interessante em antropologia é, justamente, a procura<strong>de</strong> localizar experiências suficientemente significativas para criarfronteiras simbólicas (VELHO, 1987, p.16).As distâncias sociais entre as classes no Brasil não se verificamsimplesmente através da aferição <strong>do</strong>s níveis <strong>de</strong> consumo material, mastambém em termos das dinâmicas culturais que conferem aos grupos sociaisafastamentos significativos (FONSECA, 1995; ZALUAR, 1995 e DUARTE,1986; entre outros). Trabalhamos a partir <strong>do</strong> pressuposto que tal realida<strong>de</strong>,como já dissemos, é representada por vivências distintas que impõemparticularida<strong>de</strong>s em termos <strong>de</strong> práticas e saberes em relação, por exemplo, àorganização familiar, a concepções políticas e religiosas, à concepção sobresaú<strong>de</strong> e <strong>do</strong>ença, infância, etc.Se compararmos nossa realida<strong>de</strong> com a <strong>do</strong>s países europeus, porexemplo, essas diferenças tornam-se mais claras, pois não se trata apenas <strong>de</strong>miséria, mas da capacida<strong>de</strong> das agências <strong>de</strong> controle e benefício social –como a escola, o sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, etc – <strong>de</strong> penetrarem nos diferentesuniversos da socieda<strong>de</strong>. Autores como Foucault (1977) e, especialmente,Donzelot (1986) mostram como as agências <strong>de</strong> assistência social queaparecem durante os séculos XVIII e XIX na Europa constituíram formasfundamentais <strong>de</strong> homogeneização cultural e <strong>de</strong> controle social para a novaor<strong>de</strong>m burguesa. Nesse senti<strong>do</strong>, é fácil perceber que as dificulda<strong>de</strong>s ou o<strong>de</strong>sinteresse <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> brasileiro em esten<strong>de</strong>r o alcance <strong>de</strong> sua ação para a<strong>gran<strong>de</strong></strong> parte da população acabou contribuin<strong>do</strong> para a manutenção dadiversida<strong>de</strong> cultural presente em nossa realida<strong>de</strong> (CARVALHO, 1987).


20Ao <strong>de</strong>tectarmos esses hiatos simbólicos, não preten<strong>de</strong>mos afirmar queos grupos populares brasileiros vivam uma situação <strong>de</strong> isolamento cultural.Apenas remarcamos que, pelas distâncias sociais serem tão extremadas,estes gozam <strong>de</strong> certo grau <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência na criação <strong>de</strong> seus códigosculturais. Seu universo cultural se estrutura através <strong>de</strong> suas condiçõesconcretas <strong>de</strong> existência e <strong>de</strong> suas práticas cotidianas inseridas na socieda<strong>de</strong>global, mas não totalmente subjugadas ao po<strong>de</strong>r das classes <strong>do</strong>minantes.Acreditamos em um processo <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong> simbólica pautada nadiversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experiências vividas e informações abarcadas, on<strong>de</strong> padrõesda cultura <strong>do</strong>minante são trabalha<strong>do</strong>s e reelabora<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma lógicaestipulada pela vivência cotidiana <strong>de</strong>sses grupos. São fatores <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>mque propiciam inclusive a heterogeneida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s grupos populares (GRIGNONe PASSERON 1992; THOMPSON, 1998).As discussões sobre as elaborações, perspectivas e práticas <strong>de</strong>stesgrupos no Brasil urbano e contemporâneo têm si<strong>do</strong> levantadas por uma série<strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s que já fez escola na antropologia brasileira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos setenta(DURHAN, 1973; MACEDO, 1979; ZALUAR, 1985; DUARTE, 1986; SARTI,1996; FONSECA, 1995a, 2000; entre outros). Nesta produção, nãoencontramos uma perspectiva teórica idêntica, mas um campo temáticocomum e um alinhamento meto<strong>do</strong>lógico à produção etnográfica. 9 . A tensãoprincipal que estes estu<strong>do</strong>s trazem para o <strong>de</strong>bate acadêmico po<strong>de</strong> sersintetizada na reflexão proposta por Sarti:Se os pobres não são o homo economicus típico <strong>do</strong> sistemacapitalista e tampouco formam uma cultura autônoma, no senti<strong>do</strong>que têm uma especificida<strong>de</strong>, uma diversida<strong>de</strong>, e são, ao mesmotempo, parte subordinada a um to<strong>do</strong> mais amplo, mantém-se aindagação sobre como vivem e o que pensam (1996, p.25).Insiro meu trabalho nesta tradição etnográfica que tem ressalta<strong>do</strong> aselaborações simbólicas <strong>do</strong>s grupos populares. No <strong>sul</strong> <strong>do</strong> país, as etnografiastêm aborda<strong>do</strong> temas como jocosida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> feminina na velhice9 Ao reconhecerem um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida e concepções peculiares das camadas populares, estaspesquisas têm suscita<strong>do</strong> críticas por estarem <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> não somente a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>política, mas também as implicações das trocas culturais em uma socieda<strong>de</strong> complexa,retornan<strong>do</strong> a um viés "culturalista" já extremamente critica<strong>do</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as obras <strong>de</strong> Oscar Lewis(1966) acerca da cultura da pobreza.


21(MOTTA, 1998), a construção peculiar da vida afetiva nos grupos populares(BOFF, 1998; PAIM, 1998b), o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho informal e suasimbricações no terreno familiar e <strong>de</strong> gênero (JARDIM, 1998), a construçãosocial <strong>do</strong> corpo e da <strong>do</strong>ença (VÍCTORA, 1996; KNAUTH, 1996), concepçõesacerca da infância e da maternida<strong>de</strong> (FONSECA, 1995a) que <strong>de</strong>stacam aespecificida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes setores, mostran<strong>do</strong> sua versatilida<strong>de</strong> e criativida<strong>de</strong>simbólicas articuladas e não subsumidas as pautas <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais grupossociais.Esta tese que apresento filia-se a essa linha <strong>de</strong> pesquisa, entretanto,<strong>de</strong>bruçan<strong>do</strong>-se sobre uma nova problemática acerca da produção cultural <strong>do</strong>sgrupos populares. Seguin<strong>do</strong> as pistas <strong>de</strong>ixadas por Scott (1985), realizei umestu<strong>do</strong> sobre relações locais <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, buscan<strong>do</strong> na <strong>de</strong>scrição da vidacotidiana <strong>do</strong>s grupos investiga<strong>do</strong>s a chave para a compreensão da arena <strong>de</strong>disputas “infra-políticas”, as quais, na maioria das vezes, são <strong>de</strong>spercebidas,ou talvez <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>radas pela discussão política tanto acadêmica, quanto dasocieda<strong>de</strong> civil. Nessa discussão, tomamos como inspiração o trabalho <strong>de</strong>James Scott entre agricultores <strong>de</strong> uma al<strong>de</strong>ia na Malásia:Deveria enfatizar que [o meu] é evi<strong>de</strong>ntemente um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>relações locais <strong>de</strong> classe. Isso significa que as relações entrecamponeses e o Esta<strong>do</strong>, que facilmente justificariam um livro sobreresistência, não serão tratadas a não ser que tenham influência nasrelações locais <strong>de</strong> classe. Isso quer dizer que assuntos liga<strong>do</strong>s aconflitos étnicos ou movimentos ou protestos religiosos, que semdúvida assumiriam <strong>gran<strong>de</strong></strong> importância durante uma crise política,aqui são postos entre parênteses. Significa que as origenseconômicas das relações da pequena classe examinadas aqui, quepo<strong>de</strong>riam ser remetidas a empresas em Nova Iorque e Tóquio, nãosão analisadas. De um certo ponto <strong>de</strong> vista, todas essas omissõespo<strong>de</strong>m ser lastimável. De uma outra perspectiva, o esforço aqui émostrar quão importantes, ricas, e complexas são as relaçõeslocais <strong>de</strong> classe e quanto po<strong>de</strong>mos apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uma análiseque não é centrada no Esta<strong>do</strong>, nas organizações formais, emprotesto aberto, e em assuntos nacionais. (SCOTT, 1985, p. xix)(grifos meus) 10 .10 ....I should emphasize that this is, quite self-consciously, a study of local class relations. Thismeans that peasant-state relations, which might easily justify a volume on resistence, areconspicuously absent except as they impinge on local class relations. This means that issuesof ethnic conflict or religious movements or protest, which would almost certainly becomeimportant in any political crisis, are also largely bracketed. It means that economic origins ofthe petty-class relations examined here, which might easily be traced all the way to the boardrooms of New York City and Tokyo, are not analyzed. From one point of view all these


22Já que assumem um lugar central na nossa análise, as idéias <strong>de</strong> JamesScott merecem <strong>de</strong>staque especial. Entre seus vá<strong>rio</strong>s livros que abordam asrelações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre <strong>do</strong>minantes e subalternos, <strong>de</strong>staco Weapons of theWeak: everyday forms of peasant resistance (1985) e Domination and arts ofresistence; hid<strong>de</strong>n transcripts (1990).Em Weapons of the Weak, o autor argumenta que os estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong>campesinato, ao privilegiarem os movimentos revolucioná<strong>rio</strong>s e as rebeliões,acabam tornan<strong>do</strong>-se inconsistentes. Tapam os olhos para um fato patente <strong>de</strong>que raras vezes, na história, os subalternos mantiveram uma ativida<strong>de</strong> políticaorganizada. Em geral, quan<strong>do</strong> os pesquisa<strong>do</strong>res escrevem sobre ações <strong>de</strong>ssanatureza, não estão fazen<strong>do</strong> outra coisa <strong>do</strong> que mostrar que tais movimentossão encabeça<strong>do</strong>s por li<strong>de</strong>ranças exógenas.[…] o campesinato aparece simplesmente como contribuintesanônimos para as estatísticas sobre recrutamento militar, produção<strong>de</strong> alimentos, impostos, etc. [Essa perspectiva…] enfatizavaaleatoriamente o papel <strong>de</strong> estrangeiros – profetas, intelectuaisradicais, parti<strong>do</strong>s políticos – na mobilização <strong>de</strong> um campesinato que,sem eles, era <strong>de</strong>sorganiza<strong>do</strong> e passivo. (SCOTT, 1995, p. xv) 11Procuran<strong>do</strong> por ocasiões consi<strong>de</strong>radas, pela própria representaçãoacadêmica, como mais importantes – <strong>gran<strong>de</strong></strong>s acontecimentos <strong>de</strong> virada <strong>do</strong>jogo político 12 - estes estudiosos acabam per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> vista to<strong>do</strong> ummovimento cotidiano, incessante e, <strong>de</strong> certa forma, “prosaico” <strong>de</strong> lutaresistente aos mecanismos <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação. Estas ativida<strong>de</strong>s, segun<strong>do</strong> Scott,raramente arranham as estruturas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, e quan<strong>do</strong> isto suce<strong>de</strong>, nemomissions are regrettable. From another perspective the effort here is to show howimportant, rich, and complex local class relations can be and what we can potentiallylearn from an analysis that is not centered on the state, on formal organizations, onopen protest, on national issues (SCOTT, 1985, p. xix) (grifos meus).11 […]the peasantry appeared only as anonymous contributors to statistics on conscription,crop production, taxes, and so forth. [This perspective…] emphasized willy-nilly the role ofoutsi<strong>de</strong>rs -- prophets, radical intelligentsia, political parties- in mobilizing an otherwise supine,disorganized peasantry (SCOTT, 1995, xv)12 Verificar as análises <strong>de</strong> De Certeau (1979) sobre a história événementielle.


24sugerin<strong>do</strong> que to<strong>do</strong> e qualquer tipo <strong>de</strong> contato entre subalternos e supe<strong>rio</strong>resé guia<strong>do</strong> por elementos performáticos estereotipa<strong>do</strong>s e ritualiza<strong>do</strong>s:Refiro-me a performance pública daquelas pessoas sujeitas aformas sistemáticas e elaboradas <strong>de</strong> subordinação social: otrabalha<strong>do</strong>r ao chefe, o inquilino ou meeiro ao proprietá<strong>rio</strong>, o servoao senhor, o escravo ao mestre, o intocável ao brâmane, ummembro da raça sujeitada a um membro da raça <strong>do</strong>minante(SCOTT, 1990, p. 2) 15Essa "interação aberta entre subordina<strong>do</strong>s e aqueles que os <strong>do</strong>minam",que Scott <strong>de</strong>nomina roteiro público (public transcript) 16 , revela, no entanto,apenas uma parte da relação:O roteiro público (public transcript), quan<strong>do</strong> não é positivamenteengana<strong>do</strong>r, ten<strong>de</strong> a escon<strong>de</strong>r muita coisa das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Éfreqüentemente no interesse <strong>de</strong> ambas partes colaborar tacitamentepara promover essa "má representação" (misrepresentation).(SCOTT, 1990, p.2) 17Como contraponto a este comportamento prescrito, ele oferece oconceito <strong>de</strong> roteiro encoberto (hid<strong>de</strong>n transcript) para <strong>de</strong>screver o15 I mean the public performance required of those subject to elaborate and systematic formsof social subordination: the worker to the boss, the tenant or sharecroper to the landlord, theserf to the lord, the slave to the master, the untouchable to the Brahmin, a member of thesubject race to one of the <strong>do</strong>minating race (SCOTT, 1990, p. 2)16 Procuramos por uma tradução a<strong>de</strong>quada para o português para public transcript, mas nãoficamos satisfeitos. Mesmo <strong>de</strong>claradamente interacionista, Scott não usou o termo script,provavelmente para não per<strong>de</strong>r a dimensão relacional que o prefixo "trans" coloca na palavratranscript. Scott refere-se ao "senti<strong>do</strong> jurídico (<strong>de</strong> processo verbal) [que está conti<strong>do</strong> em"transcript"] significan<strong>do</strong> um registro completo <strong>do</strong> que foi dito. Esse registro completo incluinão apenas o ato da fala, mas também gestos e expressões (1990, p.2).Transcrito,entretanto, em português está relaciona<strong>do</strong> com cópia, adaptação (<strong>de</strong> uma peça musical, porexemplo), ou até mesmo transferência <strong>de</strong> bens (Aurélio, 1996). Optamos por usar "roteiro"durante nosso texto, sempre acompanha<strong>do</strong> da locução "transcript public", pois apesar <strong>de</strong>"roteiro" conter a idéia das cenas em termos <strong>de</strong> prescrição <strong>de</strong> falas, gestos e atitu<strong>de</strong>s, falta-lhea noção <strong>de</strong> improviso. Também não apresenta a perforamaticida<strong>de</strong> <strong>de</strong> situações como nocanovaccio da Comédia <strong>de</strong>l Arte. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, Scott preferiu o termo jurídico, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong>,a meu ver, <strong>de</strong>screver situações prenhes <strong>de</strong> teatralida<strong>de</strong>.17 the open interaction between subordinates and those who <strong>do</strong>minate. The public transcriptwhere it is not positively misleading, is unlikely to tell the whole story about power relation. It isfrequently in the interest of both parties to tacitly conspire in misrepresentation (1990, p.2).


25comportamento que se <strong>de</strong>senrola atrás <strong>do</strong>s basti<strong>do</strong>res, longe das observação<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>rosos.O roteiro encoberto (hid<strong>de</strong>n transcript) é assim <strong>de</strong>riva<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong>em que consiste em discursos e práticas <strong>do</strong>s basti<strong>do</strong>res queconfirmam, contradizem ou modificam aquilo que aparece no roteiropúblico (public transcript) (SCOTT, 1995, p. 4-5) 18 .Como o pesquisa<strong>do</strong>r po<strong>de</strong> chegar nesses "roteiros encobertos"? Ameto<strong>do</strong>logia apontada para <strong>de</strong>svendar tais relações aparece no capítulointitula<strong>do</strong> "Behind the official story", em Domination and arts of resistence. Ospassos <strong>de</strong> investigação são justamente da<strong>do</strong>s para atrás das cenas públicas –na observação das atitu<strong>de</strong>s, gestos discursos e comportamentos que ossubalternos expressam fora da presença <strong>do</strong>s opressores. O teor <strong>de</strong>sserepertó<strong>rio</strong> "encoberto" é bem sintetiza<strong>do</strong> pelo provérbio etíope, na epígrafe <strong>de</strong><strong>do</strong> livro <strong>de</strong> Scott (1990): "Quan<strong>do</strong> o <strong>gran<strong>de</strong></strong> senhor passa, o camponês sábiose <strong>do</strong>bra ao mesmo tempo que solta um pei<strong>do</strong> silencioso." 19Embora suas análises recaiam sobre os roteiros encobertos (hid<strong>de</strong>ntranscripts) aciona<strong>do</strong>s pelos subordina<strong>do</strong>s, o autor supõe que entre os<strong>do</strong>minantes também existam tais momentos "sem máscara".Para compreen<strong>de</strong>r o pensamento e ação política <strong>do</strong>s subalternos, sematrelá-los à ignorância, ao conformismo ou à resistência martirizada (comomuitas análises têm feito), o antropólogo propõe que se observe como ossubalternos tecem suas ralas conquistas aproveitan<strong>do</strong>-se das propostasimplícitas nos próp<strong>rio</strong>s roteiros públicos. (Se, por exemplo, carida<strong>de</strong> fazaparentemente parte <strong>do</strong> pacto social, então o subalterno vai conscientementetocar nesse tema para extrair benefícios <strong>de</strong> seu patrão.)18 The hid<strong>de</strong>n transcript is thus <strong>de</strong>rivate in the sense that it consists of those offstagespeeches, and praticces that confirm, contradict, or inflect what appears in the public transcript(SCOTT, 1995, p. 4-5).19 " when the great lord passes the wise peasant bows <strong>de</strong>eply and silently farts"


26Nesta negociação entre o aparentemente estabeleci<strong>do</strong> e aquilo que sepo<strong>de</strong> reverter, como no "jogo da cena" proposto por Scott, reconhecemos umaaproximação com os conceitos <strong>de</strong> De Certeau (1994) <strong>de</strong> estratégia e tática.De Certeau, no seu estu<strong>do</strong> sobre a "cultura popular" (no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> cotidiana),está preocupa<strong>do</strong> em mostrar as resistências aos padrões <strong>de</strong> consumo. Suaanálise nega a racionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mundus economicus. Ao apostar na potênciada "tática" 20 , em contraposição à noção <strong>de</strong> "estratégia" 21 ele quer revelar oinvisível: a arte espontânea <strong>do</strong> fraco que o faz <strong>de</strong>spregar-se <strong>do</strong> forte. Trata-se<strong>de</strong> ações e atos ad hoc, difíceis <strong>de</strong> capturar ou enxergar sua costura, pois sãoestabelecidas nas <strong>do</strong>bras da própria <strong>do</strong>minação.Ambos autores – Scott e De Certeau – recuperam na análise social acriativida<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> "agência" <strong>do</strong>s sujeitos nas suas relações sociais.Ambos <strong>de</strong>bruçam-se sobre as operações que parecem hoje estar encobertaspor uma perspectiva racionalista que só vê luci<strong>de</strong>z nos esquemas <strong>do</strong>minantes.Apoiada em seus conceitos e nos <strong>de</strong> Colen (que exponho no capítulo <strong>do</strong>is)tentarei apontar uma interpretação <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico, on<strong>de</strong> as empregadas<strong>do</strong>mésticas não parecem nem passivas, nem alienadas, e on<strong>de</strong> suasinterpretações da situação <strong>do</strong>minante-<strong>do</strong>mina<strong>do</strong> adquire plausibilida<strong>de</strong>.Para pôr em ação as idéias <strong>de</strong> Scott, foi necessá<strong>rio</strong> realizar umapesquisa <strong>de</strong> campo etnográfico on<strong>de</strong> se pu<strong>de</strong>sse observar não somente ainteração entre empregadas e suas patroas, mas on<strong>de</strong> se conseguisse20 “Denomino ...’tática’ um cálculo que não po<strong>de</strong> contar com um próp<strong>rio</strong>, nem portanto comuma fronteira que distingue o outro como totalida<strong>de</strong> visível. A tática só tem por lugar o outro.Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem po<strong>de</strong>r retê-lo àdistância. Ela não dispõe <strong>de</strong> base on<strong>de</strong> capitalizar os seus proveitos, prepara suas expansõese assegurar uma in<strong>de</strong>pendência em face das circunstâncias. O “próp<strong>rio</strong>” é uma vitória <strong>do</strong> lugarsobre o tempo. Ao contrá<strong>rio</strong>, pelo fato <strong>de</strong> seu não-lugar, a tática <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> tempo, vigian<strong>do</strong>para "captar no vôo" possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ganho.." (DeCERTEAU, 1994, p. 46 -47)21 "Chamo <strong>de</strong> “estratégia” o cálculo das relações <strong>de</strong> força que se torna possível a partir <strong>do</strong>momento em que o sujeito <strong>de</strong> querer e po<strong>de</strong>r é isolável em um “ambiente” . Ela postula umlugar capaz <strong>de</strong> ser circunscrito <strong>de</strong> um próp<strong>rio</strong> e, portanto, capaz <strong>de</strong> servir <strong>de</strong> base a umagestão <strong>de</strong> suas relações com uma exte<strong>rio</strong>rida<strong>de</strong> distinta. A nacionalida<strong>de</strong> política, econômicaou científica foi constituída segun<strong>do</strong> esse mo<strong>de</strong>lo estratégico" (DeCERTEAU, 1994, p. 46).


27chegar, na medida <strong>do</strong> possível, "nos basti<strong>do</strong>res" para observar oscomportamentos <strong>do</strong>s "subalternos" num ambiente relativamente afasta<strong>do</strong> <strong>de</strong>seus chefes. Passo então a <strong>de</strong>screver meu procedimento meto<strong>do</strong>lógico,aciona<strong>do</strong> para realizar estes objetivos.Caminhos Meto<strong>do</strong>lógicosA primeira parte <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> campo foi realizada em Vitória, capital <strong>do</strong>Espírito Santo, durante o ano <strong>de</strong> 1996, sob financiamento e orientação daFundação Carlos Chagas. Nesta fase da pesquisa, estávamos interessa<strong>do</strong>sem estudar a circulação <strong>de</strong> saberes entre empregadas <strong>do</strong>méstica e seusemprega<strong>do</strong>res. Iniciamos concentra<strong>do</strong> as observações na casa das patroas,realizan<strong>do</strong> entrevistas com as patroas e empregadas. Analisan<strong>do</strong> asentrevistas iniciais, percebemos que esta circulação <strong>de</strong> saberes <strong>de</strong>via serperseguida não apenas entre patrões e empregadas, mas na própria re<strong>de</strong> <strong>de</strong>sociabilida<strong>de</strong> das empregadas (sobretu<strong>do</strong> suas “colegas”), assim como na suatrajetória familiar. Optamos então por utilizar como recurso meto<strong>do</strong>lógico, ainvestigação <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, tal como foi <strong>de</strong>finida por Elisabeth Bott(1976).Investigamos seis re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> empregadas e emprega<strong>do</strong>res, contan<strong>do</strong> com21 mulheres como informantes diretas (sen<strong>do</strong> 6 patroas, 10 empregadas e 1empregada que também era emprega<strong>do</strong>ra). Este número po<strong>de</strong> ser alarga<strong>do</strong>para 60 pessoas aproximadamente, se consi<strong>de</strong>rarmos a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> parentes e<strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas mulheres que foram contatadas.Utilizamos, em alguns casos, entrevistas semi-estruturadas, com auxílio<strong>do</strong> grava<strong>do</strong>r, on<strong>de</strong> buscamos reconstruir a história <strong>de</strong> vida e a trajetóriaprofissional das mulheres, sobretu<strong>do</strong> aquelas que se constituíram como egodas re<strong>de</strong>s. Também usamos recursos fotográficos e fílmicos. Estes


28procedimentos meto<strong>do</strong>lógicos tiveram <strong>de</strong>staque na primeira fase da pesquisa,entre 1995 e 1996, por <strong>do</strong>is motivos principais: primeiro o ví<strong>de</strong>o e a fotografiaserviram como elementos <strong>de</strong> comunicação entre pesquisa<strong>do</strong>res e asempregadas <strong>do</strong>mésticas. Na casa da patroa, a aproximação com asempregadas, pela <strong>de</strong>marcação diferencial <strong>de</strong> nossas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, era muitotruncada, as conversas não fluíam, as respostas às minhas perguntas eramcurtas e pontuais. Conseguia reconstruir um pouco <strong>de</strong> suas trajetóriaspessoais, mas a linearida<strong>de</strong> das minhas perguntas não estava presente nasrespostas <strong>de</strong>las. Às vezes, ouvi queixas ou fofocas sobre colegas e patroas,porém <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar bem claro “<strong>de</strong> que la<strong>do</strong> eu estava”.Entretanto, quan<strong>do</strong> o ví<strong>de</strong>o e a fotografia entravam em cena, to<strong>do</strong> umdiálogo se estabelecia. Não só <strong>de</strong> informações sobre elas, seus gostos, suasmemórias, seus comentá<strong>rio</strong>s sobre as pessoas e lugares, mas também sobrea pesquisa. A Câmara, como diz, Clarice Peixoto (1995), ajuda a situar oantropólogo. O acesso cada vez mais facilita<strong>do</strong> à tecnologia <strong>do</strong> registro visualtornam a presença <strong>do</strong> fotógrafo/vi<strong>de</strong>asta muito mais ‘familiar’ <strong>do</strong> que a <strong>do</strong>pesquisa<strong>do</strong>r.O material iconográfico foi <strong>de</strong> <strong>gran<strong>de</strong></strong> valia para atingir nosso segun<strong>do</strong>objetivo naquela fase da pesquisa: <strong>de</strong>volver a investigação aos informantes.Uma vez que o mun<strong>do</strong> letra<strong>do</strong> tem pouca penetração entre as empregadas<strong>do</strong>mésticas, foram estes registros que colocaram os re<strong>sul</strong>ta<strong>do</strong>s da pesquisa aseu alcance. Em 1998, realizamos duas exposições fotográficas: uma naUniversida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Espírito Santo e outra em Jardim Veneza.Finalmente usamos as fotografias seguin<strong>do</strong> os passos <strong>de</strong> Malinoswski,procuran<strong>do</strong> que as mesmas façam parte <strong>do</strong> texto etnográfico, informem oleitor tal qual as <strong>de</strong>scrições escritas. Por esse motivo, as fotografias estãodistribuídas ao longo <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> texto (SAMAIN, 1995).Contu<strong>do</strong>, a técnica <strong>de</strong> campo principal foi a observação participante compatrões e empregadas <strong>do</strong>mésticas, acompanhan<strong>do</strong> suas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> parentela e


29sociabilida<strong>de</strong>, assistin<strong>do</strong> tanto o trabalho da empregada na casa <strong>de</strong> seusemprega<strong>do</strong>res, quanto seu próp<strong>rio</strong> cotidiano <strong>do</strong>méstico. Entre a maioria <strong>do</strong>spatrões, a aproximação foi mais restrita, constituin<strong>do</strong>-se basicamente emsituações formais <strong>de</strong> entrevista, que raramente passaram da sua sala <strong>de</strong>visitas.Meu projeto <strong>de</strong> pesquisa previa selecionar aqueles patrõescorrespon<strong>de</strong>ntes às <strong>do</strong>mésticas investigadas. Também <strong>de</strong>veria procurarrecobrir uma certa heterogeneida<strong>de</strong> típica das classes médias. Lançan<strong>do</strong> mãoda noção <strong>de</strong> "grupos <strong>de</strong> ethos", queríamos abarcar indivíduos que, mesmonão partilhan<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> comum <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, vivenciassem "umelenco comum <strong>de</strong> valores específicos, <strong>de</strong> ethos, ou seja um mesmo universosimbólico" (Salem, 1986, p. 27).Entretanto, logo nos primeiros meses <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, ficaram patentes oslimites <strong>de</strong> realizar uma pesquisa <strong>de</strong> campo clássica com os patrões.Entrevistar a dupla patroa-empregada começou a gerar um clima <strong>de</strong><strong>de</strong>sconfiança entre os pesquisa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ambos universos. Por um la<strong>do</strong>, aspatroas supunham que eu lhes pu<strong>de</strong>sse passar informações sobre ocumprimento das tarefas e da moralida<strong>de</strong> das empregadas e, por outro la<strong>do</strong>,as <strong>do</strong>mésticas mostravam reservas nas nossas conversas, temerosas <strong>de</strong> umcruzamento <strong>de</strong> informações. Também as entrevistas com os patrões nãopassavam da sala <strong>de</strong> visitas, pois não é facilmente admissível para umafamília <strong>de</strong> classe média brasileira suportar um estranho, não serviçal,partilhan<strong>do</strong> da privacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu cotidiano 22 . Além disso, a maioria <strong>do</strong>spatrões seleciona<strong>do</strong>s trabalhava fora, restan<strong>do</strong>-me o final <strong>de</strong> semana paraobservá-los, o que constituía-se em mais uma invasão na intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les.Essas dificulda<strong>de</strong>s aliadas ao meu objetivo principal, que era compreen<strong>de</strong>rcomo as empregadas <strong>do</strong>mésticas construíam e liam seu relacionamentocom as famílias <strong>de</strong> classe média, fizeram-me voltar os olhos para o cotidiano22. O trabalho etnográfico com camadas médias urbanas já é uma tradição na antropologiabrasileira. A maioria <strong>do</strong>s pesquisa<strong>do</strong>res manifestamente refere-se a construção <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong>informantes, toman<strong>do</strong> seu circulo <strong>de</strong> convivência ou <strong>de</strong> alguém próximo como referência(VELHO, 1975,1989; SALEM, 1986; BARROS, 1987)


30<strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>ssas mulheres trabalha<strong>do</strong>ras <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s lares <strong>de</strong> classe média.Observan<strong>do</strong> o cumprimento <strong>de</strong> suas tarefas, acabei também interagin<strong>do</strong> maisfacilmente com as crianças, filhas <strong>do</strong>s patrões, as quais passam <strong>gran<strong>de</strong></strong> parte<strong>do</strong> dia na convivência com as empregadas.Ao longo <strong>de</strong> uma pesquisa, os procedimentos meto<strong>do</strong>lógicos vão se<strong>de</strong>linean<strong>do</strong> conforme as situações apresentadas e as a<strong>de</strong>quações que opesquisa<strong>do</strong>r é obriga<strong>do</strong> a fazer acabam lhe ensinan<strong>do</strong> boa parte dascaracterísticas <strong>de</strong> seu objeto. Além <strong>do</strong>s limites expostos acima, um inci<strong>de</strong>ntepessoal – uma gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> alto risco – levou o trabalho <strong>de</strong> campo paracaminhos inusita<strong>do</strong>s. Durante 5 meses estive submetida a um repousoforça<strong>do</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a uma gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> alto risco. No lugar <strong>de</strong> impossibilitar umprocesso <strong>de</strong> investigação, meus problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> fizeram os da<strong>do</strong>sbaterem à minha porta. As visitas <strong>do</strong>s amigos, vizinhos, empregadas ecrianças <strong>do</strong> prédio, fizeram o universo <strong>de</strong> pesquisa imergir completamente nomeu cotidiano, muito mais <strong>do</strong> que eu pretendia. Se bem que a perspectivaintersubjetiva estivesse já intrinsecamente vinculada à natureza <strong>de</strong>stapesquisa <strong>de</strong> "mulher sobre mulheres", no projeto inicial eu tomara algumasmedidas distancia<strong>do</strong>ras procuran<strong>do</strong> informantes fora da minha re<strong>de</strong> <strong>de</strong>relações. Os meses <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, ten<strong>do</strong>, muitas vezes, apenas o corre<strong>do</strong>r<strong>do</strong> prédio como espaço <strong>de</strong> convivência pública, acabaram por exacerbarminha condição <strong>de</strong> "mulher no lar", tornan<strong>do</strong>-me uma observa<strong>do</strong>ra mais atentaao cotidiano das crianças; uma vizinha mais disponível para conversas,queixas, confidências e uma "patroa" presente - não apenas para comandar,mas também para ouvir.Muitas vezes fui surpreendida com relatos e explicações <strong>de</strong> patrões(amigos ou vizinhos) quan<strong>do</strong> nada estava a perguntar. Meus amigos, aoanteciparem as respostas, estavam precaven<strong>do</strong>-se da minha ativida<strong>de</strong>investigativa, projetan<strong>do</strong> explicações e justificativas, <strong>de</strong>marcan<strong>do</strong> cada vezmais o quanto essa relação patrão-empregada é <strong>de</strong>licada e imensamentepresente no dia-a-dia da família brasileira <strong>de</strong> classe média e alta. Muitas


31vezes, era tratada como "con<strong>sul</strong>tora", questionada para explicar as atitu<strong>de</strong>sin<strong>de</strong>cifráveis "<strong>de</strong>las" - as empregadas.Os livros na cabeceira, a angústia expressada ante o trabalhoestaciona<strong>do</strong>, os olhos e ouvi<strong>do</strong>s espicha<strong>do</strong>s nas li<strong>de</strong>s <strong>do</strong>mésticas e relações<strong>de</strong> patrões e empregadas <strong>de</strong>ixaram claro as coisas que andava a pesquisar.Entretanto, poucos foram os vizinhos que foram formalmente convida<strong>do</strong>s aparticipar da pesquisa. Mesmo que eles não tenham torna<strong>do</strong>-se sujeitosformalmente investiga<strong>do</strong>s, aos poucos foi fican<strong>do</strong> claro que seria poucosincero <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> admitir que aqueles fatos que se <strong>de</strong>senrolavam diante <strong>de</strong>mim não contavam na hora <strong>de</strong> balizar minhas hipóteses <strong>de</strong> investigação. Naverda<strong>de</strong>, a condição <strong>de</strong> patroa me oportunizou ir ao encontro da orientaçãometo<strong>do</strong>lógica <strong>de</strong> “olhar atrás <strong>do</strong>s basti<strong>do</strong>res”, como sugere a perspectiva <strong>de</strong>James Scott (1985; 1990), cuja linha teórica sustenta esta tese.Toda essa situação impôs mais radicalmente <strong>do</strong> que eu estimava aperspectiva intersubjetiva <strong>de</strong>ssa investigação, e finalmente admiti que meupróp<strong>rio</strong> mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser um <strong>do</strong>s elementosda reflexão. Assim sen<strong>do</strong>, as relações observadas no meu cotidianoconstituíram-se, ao menos, em fontes <strong>de</strong> informação para serem contrastadase completadas poste<strong>rio</strong>rmente com uma seleção empírica mais orientada paraas necessida<strong>de</strong>s explicativas das hipóteses. Diferentemente <strong>do</strong>s <strong>de</strong>maispesquisa<strong>do</strong>res das camadas médias (conforme rodapé 22), tomei os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong>maneira menos formalizada, como se fazia tradicionalmente trabalho <strong>de</strong>campo, eu não anunciava a cada pessoa que suas atitu<strong>de</strong>s transformavam-seem fontes <strong>de</strong> investigação no meu diá<strong>rio</strong> <strong>de</strong> campo. Mais uma vez, me vidiante <strong>de</strong>ssa condição <strong>de</strong> pesquisa<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> muito próximo 23 , quan<strong>do</strong> énecessá<strong>rio</strong> processar as informações que captamos não no cérebro, mas naalma. Tratava-se <strong>de</strong> vivenciar aquilo que aprendi nas primeiras lições <strong>de</strong>antropologia:23. A discussão sobre a peculirieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> estilo brasileiro <strong>de</strong> investigar a nós próp<strong>rio</strong>s têm si<strong>do</strong>levantada em textos como o <strong>de</strong> Peirano (1999), Velho (1978), Matta (1981).


32... quan<strong>do</strong> a disciplina se volta para a nossa própria socieda<strong>de</strong>, nummovimento semelhante a um auto-exorcismo, pois já não se trata <strong>de</strong><strong>de</strong>positar no selvagem melanésio o mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> práticas primitivasque se <strong>de</strong>seja objetivar e inventariar, mas <strong>de</strong>scobri-las em nós, nasnossas instituições, na nossa prática política e religiosa. Problema é,então, o <strong>de</strong> tirar a capa <strong>de</strong> membro <strong>de</strong> um grupo social específicopara po<strong>de</strong>r - como etnólogo - estranhar alguma regra social oufamiliar e assim <strong>de</strong>scobrir (ou recolocar, como fazem as criançasquan<strong>do</strong> perguntam os "porquês") o exótico que está petrifica<strong>do</strong><strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós pela retificação e pelos mecanismos da legitimação(DAMATTA, 1981, p. 157 e 158).Por estes motivos apresenta<strong>do</strong>s, a pesquisa sistemática com os patrõesresumiu-se quase sempre a entrevistas abertas, às vezes filmadas. Mesmonão sen<strong>do</strong> eles – os patrões – o foco das minhas análises, são eles queemolduram o frame da análise. Diversamente da segunda parte da pesquisa,quan<strong>do</strong> investiguei as empregadas <strong>do</strong>mésticas no seu local <strong>de</strong> moradiaapresentan<strong>do</strong>-as como personagens da pesquisa, tomo aqueles patrões <strong>do</strong>meu próp<strong>rio</strong> círculo <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> (os quais não estavam plenamentecientes <strong>de</strong> que faziam parte das minhas observações) como “entida<strong>de</strong>sespectrais” – presentes na análise através <strong>de</strong> elementos como suas queixas,mas não como personagens empiricamente <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>s.As seis patroas formalmente entrevistadas ocupam posições sociaisdistintas nos extratos sociais e culturais da socieda<strong>de</strong> capixaba. Duas <strong>de</strong>laspertencem ao que <strong>de</strong>nomino <strong>de</strong> “elites”. São <strong>de</strong> famílias tradicionais <strong>do</strong>esta<strong>do</strong>, proprietárias <strong>de</strong> extensas áreas rurais e urbanas. Ambas têmformação universitária. A mais moça (por volta <strong>de</strong> 45 anos) exerce profissãoliberal e é casada, mãe <strong>de</strong> <strong>do</strong>is filhos. A mais velha (70 anos) é divorciada,tem duas filhas e 4 netos, nunca trabalhou fora, consome seu tempo<strong>de</strong>dican<strong>do</strong>-se à filantropia religiosa e a constantes viagens ao exte<strong>rio</strong>r.As outras patroas estudadas pertencem às chamadas “camadasmédias”. Nenhuma freqüentou cursos universitá<strong>rio</strong>s, alegan<strong>do</strong> uma trajetóriageracional <strong>de</strong> formação para o trabalho <strong>do</strong>méstico. As duas mais moças (45anos) tornaram-se funcionárias públicas. O trabalho remunera<strong>do</strong> para elas foicoloca<strong>do</strong> por premências da vida familiar (viuvez e morte prematura <strong>do</strong> pai) enão por escolhas individuais. Suas rendas pessoais variam entre oito e treze


33salá<strong>rio</strong>s mínimos. Apenas uma <strong>de</strong>las permanece casada. A mais velha (65) é<strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa.Uma das patroas que entrevistei ficou, infelizmente, <strong>de</strong> fora <strong>de</strong> minhasanálises mais conseqüentes porque a conheci muito pouco tempo antes <strong>de</strong>ficar impossibilitada <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocar-me <strong>de</strong> casa, não sen<strong>do</strong> possível darcontinuida<strong>de</strong> às observações. Seu caso apresenta certas peculiarida<strong>de</strong>s quejulguei importante mencionar, ao menos para sugerir pistas para futurasinvestigações. Trata-se <strong>de</strong> uma senhora (65 anos), primá<strong>rio</strong>s incompletos,mora<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> um bairro da periferia, não trabalha fora, viven<strong>do</strong> daaposenta<strong>do</strong>ria <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> operá<strong>rio</strong> da Companhia Si<strong>de</strong>rúrgica <strong>de</strong> Tubarão.Moram com ela suas 4 filhas solteiras e um filho separa<strong>do</strong>. Entre as patroaspesquisadas é a única negra. Significativamente, a situação em sua casa<strong>de</strong>stoava <strong>de</strong> toda e qualquer caracterização <strong>do</strong> restante da amostra <strong>de</strong>patroas. Na sua casa tive dificulda<strong>de</strong> para reconhecer quem eram suas filhase quem era a empregada. Esta ausência <strong>de</strong> distinção não po<strong>de</strong> ser reduzida àcor <strong>do</strong>s informantes. A estética <strong>do</strong> vestuá<strong>rio</strong>, <strong>do</strong> cabelo e a intimida<strong>de</strong> damenina-empregada na casa da patroa tornava seu comportamento muitosimilar ao das filhas <strong>de</strong>sta. A empregada mostrava-se mais tímida na nossapresença que os <strong>de</strong>mais membros da família, entretanto, é interessante notarque entre todas as empregadas entrevistadas era a única que não realizavasozinha as tarefas <strong>do</strong>mésticas. Cada filha, mesmo trabalhan<strong>do</strong> fora (comomanicura e cabeleireira a <strong>do</strong>micílio), era responsável pela arrumação <strong>de</strong> seuquarto e lavagem da roupa pessoal. A mãe era encarregada <strong>de</strong> preparar asrefeições. As tarefas da empregada eram arrumar a sala, limpar os banheiros,a cozinha e as varandas, mas, sobretu<strong>do</strong>, fazer companhia para a patroa quejulgava-se muito solitária com as filhas trabalhan<strong>do</strong> fora. Os homens da casanão tinham funções <strong>do</strong>mésticas. Po<strong>de</strong>ríamos talvez investigar sobre atrajetória das famílias <strong>de</strong> operá<strong>rio</strong>s, sem esquecer, sobretu<strong>do</strong>, daespecificida<strong>de</strong> da construção das relações <strong>de</strong> gênero nestes espaços. Até queponto o recorte étnico po<strong>de</strong> explicar essas aproximações entre patrões eempregadas é uma reflexão que também merece investigação maisaprofundada.


34O re<strong>sul</strong>ta<strong>do</strong> <strong>do</strong> primeiro ano <strong>de</strong> pesquisas indicou a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umaprofundamento <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s sobre a vida das empregadas <strong>do</strong>mésticas fora <strong>do</strong>espaço <strong>de</strong> controle patronal. Experiências <strong>do</strong>s primeiros contatos nos locais<strong>de</strong> moradia das empregadas levaram-me a consi<strong>de</strong>rar que um trabalho <strong>de</strong>campo mais clássico, com a permanência prolongada no bairro, po<strong>de</strong>riapermitir um distanciamento maior. Penetrar <strong>de</strong>nsamente no cotidiano extraprofissionaldaquelas mulheres, compartilhar <strong>do</strong> movimento das ruas, fazercompras, <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> sua mesa e <strong>de</strong> suas acomodações po<strong>de</strong>ria ajudar abalizar aqueles da<strong>do</strong>s que foram colhi<strong>do</strong>s tão perto <strong>de</strong> casa.Para tanto, durante cerca <strong>de</strong> um mês, no ano <strong>de</strong> 1998, eu e meupequeno filho Ramiro (na época com 2 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>) moramos no JardimVeneza, bairro <strong>de</strong> periferia <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>-satélite <strong>de</strong> Vitória, o município daSerra. Fazíamos as refeições e passávamos <strong>gran<strong>de</strong></strong> parte <strong>do</strong> dia na casa <strong>de</strong>Edilene – que estan<strong>do</strong> <strong>de</strong>sempregada, nos serviu <strong>de</strong> guia. Sua sogra Claudinanos ofereceu o quarto <strong>de</strong> sua filha recém-casada. Foi uma recepção honrosa,pois <strong>de</strong>sfrutamos <strong>de</strong> acomodação luxuosa para o Jardim Veneza. Fomoscoloca<strong>do</strong>s na casa <strong>de</strong> Claudina, acredito que justamente por ela serconsi<strong>de</strong>rada a casa mais chique <strong>do</strong> bairro: nosso quarto tinha além <strong>de</strong> umacama <strong>de</strong> solteiro (emprestada pela nora), um tapete vermelho (empresta<strong>do</strong>pela patroa da <strong>do</strong>na da casa), um armá<strong>rio</strong> <strong>de</strong> mogno "finíssimo" para o lugar,além <strong>do</strong> conforto <strong>de</strong> um ventila<strong>do</strong>r <strong>de</strong> teto - único alento para sobreviver àmanta <strong>de</strong> mosquitos que chegava com a noite. Apesar <strong>de</strong> toda estacomodida<strong>de</strong>, na primeira noite <strong>de</strong>scobrimos que não havia <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casanenhuma pia (<strong>de</strong> banheiro ou <strong>de</strong> cozinha), nem vaso sanitá<strong>rio</strong>.As marcas <strong>do</strong> lugar social <strong>do</strong>s indivíduos dificilmente são apagadas nasocieda<strong>de</strong> brasileira. A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> meus esforços <strong>de</strong> interação com asempregadas, meu tom <strong>de</strong> pele, meus gestos e minhas vestes jamaispassaram <strong>de</strong>spercebi<strong>do</strong>s. Sempre fui tratada como patroa naquele bairro;íntima, mas patroa. Fosse ao me con<strong>sul</strong>tarem sobre o que comer, fossetentan<strong>do</strong> me arrancar to<strong>do</strong> níquel possível apresentan<strong>do</strong> um rol infindável <strong>de</strong>


35necessida<strong>de</strong>s, que a boa educação me mandava colaborar. De toda forma,nada da nossa diferenciação social calou mais forte <strong>do</strong> que quan<strong>do</strong>voltávamos – Ramirinho , Edilene e eu – por algum motivo para Vitória. To<strong>do</strong>meu esforço <strong>de</strong> atenuar a distância, se aniquilava. Nas casas on<strong>de</strong> éramosrecebi<strong>do</strong>s, somente eu e Ramirinho tínhamos lugar à mesa. A nossa amigaEdilene – com quem tomávamos café <strong>de</strong> manhã senta<strong>do</strong>s no chão <strong>de</strong> suavaranda, com quem cochilávamos, <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> almoço, na mesma cama, comquem lavávamos os pratos, <strong>de</strong> quem ouvíamos confidências sobre seusparentes e vizinhos – ficava em pé, nas nossas costas, esperan<strong>do</strong> as or<strong>de</strong>ns eas sobras <strong>do</strong>s nossos bifes. Eu me corroía com esta situação, que, antes daminha estada no bairro, era tão costumeira <strong>de</strong> qualquer casa brasileira.Edilene, mais sábia, esperava a gente colocar o pé na rua, para voltar àintimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas piadas jocosas.Minha condição <strong>de</strong> patroa não foi ofuscada, tampouco. Ainda queandasse pelo bairro <strong>de</strong>senhan<strong>do</strong> mapas e fazen<strong>do</strong> anotações e perguntas, aconcretu<strong>de</strong> <strong>de</strong> pesquisa<strong>do</strong>ra, para estas pessoas pouco familiarizadas com aativida<strong>de</strong> acadêmica, era bem menos palpável <strong>do</strong> que a <strong>de</strong> patroa <strong>de</strong> Edilene.Fui muito bem recebida, porém sempre vista como uma patroa preocupadaem "ver como as empregadas realmente vivem".Além <strong>do</strong> convívio diá<strong>rio</strong> com as famílias, fiz um "plano geral da al<strong>de</strong>ia":visitei o comércio, freqüentei as igrejas, conheci os locais para beber e paradançar, entrei em contato com os estabelecimentos <strong>de</strong> ensino, procurei asinstituições públicas, ouvi muito sobre a história e organização <strong>do</strong> bairro.Entrei, também, em contato com o Sindicato das EmpregadasDomésticas <strong>de</strong> Vitória, on<strong>de</strong>, além <strong>de</strong> constatar que tipo <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s seusarquivos po<strong>de</strong>riam fornecer, entrevistei a diretoria sobre a história da formação<strong>do</strong> sindicato, como também sobre suas trajetória <strong>de</strong> <strong>do</strong>mésticas asindicalistas. Ten<strong>do</strong> que recortar meu objeto, <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> aprofundar a maiorparte <strong>de</strong>ste material <strong>do</strong> sindicato. No entanto, no último capítulo <strong>de</strong>sta tese,


36tocarei brevemente em alguns <strong>de</strong>stes da<strong>do</strong>s, especialmente no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>levantar pistas para futuras pesquisas.A localida<strong>de</strong>A introdução a esta pesquisa não po<strong>de</strong>ria omitir uma breve <strong>de</strong>scrição dalocalida<strong>de</strong> em que realizei a pesquisa, com o objetivo <strong>de</strong> ressaltar o contextopolítico e econômico geral, assim como certas especificida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> lugar.O Espírito Santo marcou sua história por uma posição periférica esub<strong>de</strong>senvolvida em relação aos esta<strong>do</strong>s vizinhos (Rio <strong>de</strong> Janeiro, MinasGerais e São Paulo), <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> <strong>gran<strong>de</strong></strong> parte <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r econômico epolítico <strong>do</strong> país (MEDEIROS, 1977). Des<strong>de</strong> sua ocupação como capitania em1535 até me<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX, viveu uma longa fase <strong>de</strong> cultura <strong>de</strong>subsistência, quan<strong>do</strong> mais serviu <strong>de</strong> forte protetor às explorações da regiãodas minas. A partir <strong>de</strong> então, o esta<strong>do</strong> manteve sua estrutura políticoeconômicaatrelada ao mo<strong>de</strong>lo agrá<strong>rio</strong>-exporta<strong>do</strong>r, concentran<strong>do</strong> a produçãona monocultura cafeeira e alguns poucos produtos <strong>de</strong> subsistência, como amandioca, a cana-<strong>de</strong>-açúcar, além da extração <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira (CELIN, 1982) 24 .Na década <strong>de</strong> setenta, seguin<strong>do</strong> os projetos nacionais <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolvimento que previam a integração <strong>de</strong> regiões periféricas através daexpansão <strong>do</strong> capitalismo financia<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong>, o Espírito Santo<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou uma política <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização da economia, que se consoli<strong>do</strong>una implantação <strong>do</strong>s “Gran<strong>de</strong>s Projetos <strong>de</strong> Impacto”. Tratavam-se <strong>de</strong> enormescomplexos infra-estruturais volta<strong>do</strong>s para o incremento da exportação <strong>de</strong>miné<strong>rio</strong> <strong>de</strong> ferro e <strong>de</strong> produtos si<strong>de</strong>rúrgicos. Tais empreendimentos contaram24 Segun<strong>do</strong> Me<strong>de</strong>iros, até a década <strong>de</strong> sessenta <strong>do</strong> século XX “o café sempre representou60/80% da receita estadual, <strong>de</strong>terminou a urbanização das principais cida<strong>de</strong>s, forneceusubsídios para uma industrialização incipiente e elementos para infra-estrutura estadual,sen<strong>do</strong> também responsável pela formação <strong>do</strong>s barões <strong>do</strong> café <strong>do</strong> Espírito Santo e pelaestruturação das oligarquias que ocupariam o po<strong>de</strong>r estadual - as figuras <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> SocialDemocrático, <strong>do</strong>minante na história eleitoral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>” (1977).


37com a participação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, tanto enquanto financia<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s investimentosatravés da infra-estrutura <strong>de</strong> produção e escoamento, quanto da implantação<strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> atração <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra (BANCK e DOIMO, 1988).O fenômeno da favelização e da ocupação irregular <strong>do</strong>s morros emangues da Gran<strong>de</strong> Vitória, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s na década <strong>de</strong> setenta e oitenta –on<strong>de</strong> se inclui a história <strong>de</strong> Jardim Veneza – esteve fortemente vincula<strong>do</strong> aeste processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização industrial <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. Os analistas <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>apontam <strong>do</strong>is fatores como responsáveis diretos pelo aumento populacionalda região da Gran<strong>de</strong> Vitória (composta pelos municípios <strong>de</strong> Cariacica, Viana,Vila Velha e Serra).Os estu<strong>do</strong>s sobre a migração rural-urbana mostram que foram osprogramas <strong>de</strong> erradicação <strong>do</strong>s cafezais que retiraram cerca <strong>de</strong> 150 milpessoas <strong>do</strong> campo e a repercussão das propagandas estatais capixaba juntoà população <strong>de</strong> Minas Gerais e <strong>do</strong> <strong>sul</strong> da Bahia que começam um movimentomigrató<strong>rio</strong> em busca <strong>de</strong> empregos na capital capixaba (SIQUEIRA, 1995;CELIN, 1982).O município da Serra será, a partir da década <strong>de</strong> oitenta, um <strong>do</strong>s maiscobiça<strong>do</strong>s porque ali foi instala<strong>do</strong> o maior complexo industrial <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, comindústrias <strong>de</strong> <strong>gran<strong>de</strong></strong> porte como a Companhia Si<strong>de</strong>rúrgica <strong>de</strong> Tubarão-CST; oTerminal Industrial Multimodal da Serra-TIMS; o Complexo Portuá<strong>rio</strong> PraiaMole.O esforço <strong>de</strong> investimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, enquanto assegura<strong>do</strong>r dascondições infra-estruturais e parceiro <strong>do</strong> capital priva<strong>do</strong>, não foi idêntico nagarantia <strong>de</strong> políticas sociais que prevenissem os problemas <strong>de</strong> habitação,saneamento, segurança, educação e saú<strong>de</strong> (BANCK e DOIMO, 1988). Aocupação <strong>de</strong> Jardim Veneza, on<strong>de</strong> realizei a pesquisa <strong>de</strong> campo nas casasdas empregadas <strong>do</strong>mésticas, surge como conseqüência da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>absorção da mão-<strong>de</strong>-obra atraída para o Esta<strong>do</strong> pelos <strong>gran<strong>de</strong></strong>s projetos.


38Essa pesquisa lida, portanto, com um fenômeno que po<strong>de</strong>ria serlocaliza<strong>do</strong> em qualquer canto <strong>do</strong> Brasil – as relações entre empregadas<strong>do</strong>mésticas e suas patroas, mas que po<strong>de</strong> possuir contornos particulares emfunção <strong>do</strong> quadro particular da capital <strong>de</strong> Vitória. Embora nossa pesquisa nãoproponha fazer comparações sistemáticas, levantarei hipóteses –especialmente no capítulo final – sobre possíveis diferenças entre o queobservei no Espírito Santo e o que vivi no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul.Cabe, agora, expor rapidamente a estrutura <strong>de</strong>sta tese. Evitan<strong>do</strong> <strong>de</strong>afogar a etnografia em "toneladas <strong>de</strong> teoria" (GEERTZ, 1988), resolvi separaros capítulos conforme o velho esquema – marco teórico-analítico primeiro,da<strong>do</strong>s empíricos <strong>de</strong>pois. Justamente para não cortar a etnografia, <strong>de</strong>ixo oscomentá<strong>rio</strong>s e comparações bibliográficas nos rodapés.A discussão bibliográfica elaborada no primeiro capítulo, elencan<strong>do</strong>algumas obras sociológicas e históricas sobre o serviço <strong>do</strong>méstico, informa aorganização <strong>do</strong>s capítulos etnográficos. No capítulo <strong>do</strong>is e três – pensan<strong>do</strong> aempregada no seu lugar <strong>de</strong> trabalho (a casa da patroa) – tento respon<strong>de</strong>r, emparte, às ânsias feministas sobre <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e afeto. No capítulo quatrovolto a atenção para a vida familiar das próprias empregadas – procuran<strong>do</strong>melhor enten<strong>de</strong>r os valores hierárquicos e "práticas" <strong>de</strong> ação, típicas <strong>de</strong>steuniverso, os quais informam a maneira como a empregada enfrenta ou seesquiva <strong>do</strong> conflito com as patroas. Assim, tento dialogar com os historia<strong>do</strong>ressocais sobre o lugar da hierarquia na socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna. No capítulo cincoexamino a minha própria experiência em campo, quan<strong>do</strong>, a partir da minhaprópria inserção em campo, pu<strong>de</strong> tomar conta<strong>do</strong> mais efetivo com os roteirosencobertos (hid<strong>de</strong>n transcript) <strong>do</strong>s subalternos. "Conclusões" – inseridas nocapítulo seis, mais uma vez pensan<strong>do</strong> nos ensinamentos <strong>de</strong> Geertz, nãoparecem ser <strong>gran<strong>de</strong></strong> coisa <strong>de</strong>slocadas da etnografia. Nelas procuro suscitaralgumas questões sobre clientelismo e cidadania.Quan<strong>do</strong> já havia praticamente concluí<strong>do</strong> a tese, cheguei à conclusão queVitória não é tão <strong>gran<strong>de</strong></strong> para que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s meus entrevista<strong>do</strong>s


39permanecesse protegida. Decidi, então, colocar nomes fictícios tanto para aspessoas, quanto para os bairros. No entanto, esse procedimento se mostraincongruente com a inserção das fotografias. Como seria muito difícil suprimilasa esta altura, sugiro que esta versão tenha circulação restrita, até que euenfrente tais contradições da composição <strong>de</strong> trabalho.1 SERVIÇO DOMÉSTICO: DO DESENVOLVIMENTISMO ÀDENÚNCIAAntes <strong>de</strong> seguir nosso estu<strong>do</strong> empírico queremos comentar como adiscussão sobre o serviço <strong>do</strong>méstico <strong>de</strong>senvolveu-se na aca<strong>de</strong>mia e indicar


40<strong>de</strong> que forma essa discussão influenciou nosso olhar sobre os da<strong>do</strong>srecolhi<strong>do</strong>s em campo.A maior parte da literatura produzida nas Ciências Sociais, queconfigurou o <strong>de</strong>bate sobre o serviço <strong>do</strong>méstico, é influenciada, por um la<strong>do</strong>,pela teoria da mo<strong>de</strong>rnização e, por outro, pelas preocupações feministas. Estadiscussão será apresentada na primeira parte <strong>de</strong>ste capítulo, on<strong>de</strong><strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramos essa abordagem em obras mais centradas nas relações <strong>de</strong>trabalho e nas que <strong>de</strong>stacam as representações que acompanham o serviço<strong>do</strong>méstico. Prosseguimos, então, nossa discussão teórica com a contribuição<strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res sociais, os quais nos auxiliaram a colocar em relevo aperspectiva êmica, tanto das trabalha<strong>do</strong>ras, quanto <strong>de</strong> seus patrões.1.1 Serviço <strong>do</strong>méstico e as teorias da mo<strong>de</strong>rnizaçãoDentro da literatura científica o tema serviço <strong>do</strong>méstico começa a tervisibilida<strong>de</strong> nos anos 70 influencia<strong>do</strong>, por um la<strong>do</strong>, pelas teorias damo<strong>de</strong>rnização, e por outro, pelas discussões feministas 25 .Na Sociologia norte-americana <strong>de</strong> então, o <strong>de</strong>clínio <strong>do</strong> número <strong>de</strong>pessoas ocupadas com o serviço <strong>do</strong>méstico foi interpreta<strong>do</strong> como o re<strong>sul</strong>ta<strong>do</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico. A industrialização teria implementa<strong>do</strong> umadiversificação produtiva tal que o merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho para a <strong>do</strong>méstica teriatorna<strong>do</strong>-se pouco atrativo, assim como as novas tecnologias teriam alivia<strong>do</strong>consi<strong>de</strong>ravelmente o far<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico, permitin<strong>do</strong> que a <strong>do</strong>na <strong>de</strong>casa, sozinha, pu<strong>de</strong>sse executá-lo (COLLVER; LANGLOI, 1962; CHAPLIN,1978; entre outros).25 As críticas à teoria da mo<strong>de</strong>rnização cunharam o termo “<strong>de</strong>senvolvimentista” para divergirda noção <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> que aquela teoria portava, a qual propunha mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolvimento totalmente <strong>de</strong>svincula<strong>do</strong>s da realida<strong>de</strong> local das socieda<strong>de</strong>s consi<strong>de</strong>radas“sub<strong>de</strong>senvolvidas”. Sobre a ascendência da teoria da <strong>de</strong>pendência nas Ciências Sociaisbrasileiras po<strong>de</strong>-se con<strong>sul</strong>tar Weffort, 1970.


41TABELA 1: Mulheres empregadas em serviços <strong>do</strong>mésticos particulares noEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s – 1940-1990AnoNº. <strong>de</strong> empregadas % <strong>do</strong> total <strong>do</strong>em serviços <strong>do</strong>mésticos emprego feminino nessaparticularesocupação1990 494.920 0,941980 562.886 1,41970 1.109.855 3,81960 1.664.763 7,91950 1.337.795 8,51940 1.976.078 17,7Fonte: Milkmann, Reese e Roth, 1998, p. 152.Para estes autores, uma alta taxa <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra feminina empregadano serviço <strong>do</strong>méstico seria típico <strong>de</strong> economias em processo <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolvimento, como aponta a tese <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r B.G. Higman (1993) aocomparar as realida<strong>de</strong>s da Jamaica com a <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e da Grã-Bretanha com a da América Latina. Para este, mesmo que a urbanização e aindustrialização tenham proporciona<strong>do</strong> um aumento <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>mésticoatravés <strong>do</strong> surgimento <strong>de</strong> uma classe média emprega<strong>do</strong>ra, essa tendênciaten<strong>de</strong>ria a cair conforme o <strong>de</strong>senvolvimento da mecanização ecomercialização das tarefas <strong>do</strong>mésticas, além, é claro, <strong>do</strong> aumento dasoportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> emprego para as mulheres.Tributá<strong>rio</strong>s <strong>de</strong> uma tradição parsoniana, esses autores estabeleceramuma correlação imediata entre <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico e igualitarismosocial. Autores como Coser (1973) e Boserup (citada por Hill, 1995c)chegaram a preconizar o fim <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico nas socieda<strong>de</strong>s“mo<strong>de</strong>rnas”, como re<strong>sul</strong>ta<strong>do</strong> <strong>do</strong> triunfo das relações igualitárias entre osindivíduos.


42O impacto das teorias da mo<strong>de</strong>rnização teve sua versão latina nos<strong>de</strong>bates sobre a organicida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>pendência <strong>do</strong>s países periféricos àseconomias <strong>do</strong> primeiro mun<strong>do</strong>. A teoria da mo<strong>de</strong>rnização, aqui numa vertentefortemente inspirada no materialismo histórico, <strong>de</strong>senvolve uma matrizexplicativa baseada na noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, e orientada pela <strong>de</strong>núncia daexploração, on<strong>de</strong> postula-se que, em vez <strong>de</strong> “<strong>de</strong>senvolvimento”, o “avançocapitalista” trouxe as formas mais sofisticadas <strong>de</strong> exploração. Conforme ainstrutiva leitura <strong>de</strong> Elisabeth Lobo (1991), foi através das preocupações coma reprodução das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, e das estratégias <strong>de</strong> sobrevivência trazidaspor essa teoria, que o trabalho feminino teve visibilida<strong>de</strong> acadêmica. Portanto,foi <strong>de</strong>ntro das marcas das teorias da mo<strong>de</strong>rnização que o trabalho <strong>do</strong>mésticotornou-se uma problemática relevante para as Ciências Sociais latinoamericanas,concentran<strong>do</strong> o maior número <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s sobre o assunto.No Brasil, po<strong>de</strong>mos observar o impacto das teorias da mo<strong>de</strong>rnização naprodução acadêmica sobre trabalho e gênero. A sociologia <strong>do</strong> trabalho noBrasil até a década <strong>de</strong> 70 manteve-se praticamente silenciosa em relação àsquestões sobre mulher e trabalho. Como analisou Lobo (1991), esta áreaestava profundamente preocupada com as questões acerca <strong>do</strong> sindicalismo e<strong>do</strong> corporativismo, permanecen<strong>do</strong> impermeável às discussões suscitadas emtorno <strong>do</strong> trabalho feminino. Para a mesma autora, esse silêncio éconseqüência da forte influência da teoria marxista que, ao centrar aproblemática social na luta <strong>de</strong> classe, assumiu um ponto <strong>de</strong> vistauniversalizante e masculino:....a unida<strong>de</strong> da relação <strong>de</strong> classe apenas admite uma situaçãoespecífica das mulheres, enquanto mais exploradas, frente aouniversal masculino. Mas sua situação ambígua no trabalhoprodutivo, na medida que são precariamente operárias, as exclui daclasse operária (LOBO, 1991, p.8).Apenas o trabalho pioneiro <strong>de</strong> Helieth Saffioti, Emprego <strong>do</strong>méstico ecapitalismo (1976), quebrou este silêncio. Seu trabalho também recoberto pelaperspectiva da mo<strong>de</strong>rnização (embora num espírito crítico) sublinha a


43agudização da exclusão das mulheres no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho industrial.Ainda que Saffioti vinculasse <strong>de</strong>masiadamente a subordinação feminina à<strong>de</strong>pendência econômica <strong>de</strong> que o gênero acarreta, seu livro teve o mérito <strong>de</strong>levantar a voz sobre divisão sexual <strong>do</strong> trabalho num espaço acadêmico poucopreocupa<strong>do</strong> com as questões <strong>do</strong> gênero, e muito menos com o trabalho<strong>do</strong>méstico. Saffioti estabeleceu o <strong>de</strong>bate <strong>de</strong>corrente sobre o conceito <strong>de</strong>trabalho <strong>do</strong>méstico, discutin<strong>do</strong> sobre seu lugar no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produçãocapitalista. A sua tese <strong>de</strong> que o trabalho <strong>do</strong>méstico seja re<strong>sul</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> umaarticulação entre o mo<strong>do</strong> capitalista <strong>de</strong> produção com formas não capitalistas<strong>de</strong> trabalho, ora será confirmada (MOTTA, 1977; 1981), ora será rejeitada(FARIAS, 1983) num nível sofistica<strong>do</strong> <strong>de</strong> discussão da teoria sociológicamarxista, mas que pouca novida<strong>de</strong> trouxe para a compreensão das mulheresenvolvidas no serviço <strong>do</strong>méstico.Sem dúvida, a obra que recentemente tem marca<strong>do</strong> os estu<strong>do</strong>s sobreserviço <strong>do</strong>méstico na América Latina é Muchacha, cachifa, criada, empleada,empregadinha, sirvienta, y ... más nada. Este livro po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>her<strong>de</strong>iro das linhas <strong>de</strong> análise mencionadas acima.Nele é possível tomar contato com o pensamento social pre<strong>do</strong>minantena década <strong>de</strong> 90 sobre serviço <strong>do</strong>méstico. Seus méritos não são poucos: aamplitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> material reúne 22 artigos <strong>de</strong> diversas áreas como Sociologia,História e Antropologia e mais um banco <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s sobre autores e obras daárea temática. Nesta coletânea encontramos pela primeira vez na AméricaLatina uma sistematização <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s que possibilitam um olhar comparativo –tanto em termos das condições atuais <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico, quanto daconfiguração histórica neste tipo <strong>de</strong> trabalho – sobre a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> serviço<strong>do</strong>méstico na América Latina e no Caribe.Na diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu conjunto, o que sobressai é um esforço paracaracterizar o serviço <strong>do</strong>méstico em países como Chile, Colômbia, Peru,Venezuela, Cuba, República Dominicana, Uruguai, Argentina e Brasil. Osautores revelam que o serviço <strong>do</strong>méstico correspon<strong>de</strong>, atualmente, a 20% da


44força <strong>de</strong> trabalho feminina remunerada na América Latina. Trata-se <strong>de</strong> umaativida<strong>de</strong> massivamente feminina (95% <strong>do</strong> serviço é presta<strong>do</strong> por mulheres) eque, enquanto tal, é <strong>de</strong>svalorizada tanto pelos governantes quanto pelapopulação em geral. Uma <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>preciação é a consi<strong>de</strong>raçãoque para o cumprimento <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico não é necessá<strong>rio</strong> treinamentoou qualificação, pois i<strong>de</strong>ologicamente pon<strong>de</strong>ra-se que a "mulher nasceu paraisso". Muchacha... mostra que o serviço <strong>do</strong>méstico é mal remunera<strong>do</strong>, nãodispõe da mesma cobertura <strong>de</strong> direitos que outras profissões conquistaram, érealiza<strong>do</strong>, em geral, por uma pessoa isolada, tornan<strong>do</strong> a ativida<strong>de</strong> invisívelpara as próprias trabalha<strong>do</strong>ras e dificultan<strong>do</strong> sua organização. Outracaracterística <strong>de</strong>ssa categoria é que suas li<strong>de</strong>ranças <strong>de</strong>sconfiam dasorganizações feministas.A principal questão acerca da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> política que a inserçãoprofissional como <strong>do</strong>méstica acarreta para estes autores é a base clientelistada relação entre empregadas e patrões (este é um ponto <strong>de</strong> interrogaçãocomum <strong>de</strong> <strong>gran<strong>de</strong></strong> parte das pesquisas sobre empregadas <strong>do</strong>mésticas). Aacusação ao clientelismo, muitas vezes, é i<strong>de</strong>ntificada com a questão <strong>do</strong>personalismo ao qual este tipo <strong>de</strong> serviço está submeti<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong>Magdalena León, em seu artigo publica<strong>do</strong> em Muchacha..., não po<strong>de</strong>mosconsi<strong>de</strong>rar o serviço <strong>do</strong>méstico apenas como “uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> merca<strong>do</strong> quese compra e ven<strong>de</strong> força <strong>de</strong> trabalho, mas também como um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida”(1993, p. 281), pois as empregadas vivem a maior parte <strong>do</strong> seu tempo numentrelaçamento entre o mun<strong>do</strong> público – o cumprimento <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong>profissional – e o mun<strong>do</strong> priva<strong>do</strong>, uma vez que a tarefa é cumprida noambiente <strong>do</strong>méstico. Esse convívio aporta uma gama <strong>de</strong> contradiçõesgeradas pela relação que se estabelece entre patroas e empregadas. Sãoapontadas as ambigüida<strong>de</strong>s a que estão submetidas as servi<strong>do</strong>ras<strong>do</strong>mésticas, na medida em que elas realizam o serviço <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um espaçopriva<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> normas <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong> estão em vigor. Em Muchacha... amaioria das autoras consi<strong>de</strong>ra esse tipo <strong>de</strong> conduta como estan<strong>do</strong> atreladaaos interesses <strong>do</strong>s patrões para manter um relacionamento assistencialistaestrutura<strong>do</strong>r da subjugação <strong>de</strong>ssas trabalha<strong>do</strong>ras. O clientelismo <strong>de</strong>ssas


45relações é i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> a raízes históricas da organização familiar patriarcal, oqual assume formas perversas na atualida<strong>de</strong>. Em Domesticida<strong>de</strong>: “cativeiro”feminino? estas relações são paradigmaticamente <strong>de</strong>scritas por Farias:Estruturalmente essa relação social <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação-subordinaçãotorna ao mesmo tempo muito próximos patrões e empregadas <strong>de</strong>condição social muito <strong>de</strong>sigual, caracterizan<strong>do</strong>-se por isso,politicamente, como uma relação injusta e intrinsecamente violenta.A violência implícita nessa relação ordinariamente é mantida sobcontrole, por mecanismos <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação e cooptação, característicada ‘or<strong>de</strong>m’ autoritária (paternalista inclusive) que permeia asrelações familiares, assim como as relações patronais (1983, p. 11).Um da<strong>do</strong> recorrente apresenta<strong>do</strong> em Muchachas.. são os <strong>de</strong>poimentosdas empregadas <strong>do</strong>mésticas, sejam elas sindicalizadas ou não, sobre aimportância que elas atribuem aos chama<strong>do</strong>s "bons tratos". Nas entrelinhas<strong>do</strong>s artigos percebe-se que essa reivindicação tem si<strong>do</strong> analisada comoindica<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma postura alienada frente à possibilida<strong>de</strong> da exploração quetais relações acarretam.O título <strong>de</strong>sse artigo introdutó<strong>rio</strong> <strong>de</strong> Muchacha... mostra claramente aproposta da obra: a estruturação <strong>de</strong> “um nuevo campo <strong>de</strong> investigación y <strong>de</strong>acción”. Assim, a coletânea preten<strong>de</strong> tanto levantar da<strong>do</strong>s empíricos, e tentariniciar alguma síntese teórica, quanto comprometer-se com uma ação política.Nesse senti<strong>do</strong>, entre as virtu<strong>de</strong>s reconhecidas pelas organiza<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> livroestá sua plurivocalida<strong>de</strong>, uma vez que “tanto los investiga<strong>do</strong>res como losrepresentantes <strong>de</strong>l grupo <strong>de</strong> estudio tienen una voz” (CHANEY, GARCIACASTRO, 1993, p.15) 26 .1.2 Balanço crítico <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre serviço <strong>do</strong>méstico26 Adiante na seção "Problemas Meto<strong>do</strong>lógicos", refletimos sobre a plurivocalida<strong>de</strong> anunciadanesta obra


461.2.1 A falha evolucionistaHoje parece evi<strong>de</strong>nte, aos estudiosos <strong>do</strong> tema, que as teses quepressupunham o <strong>de</strong>saparecimento <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico nas socieda<strong>de</strong>s“mo<strong>de</strong>rnas” estavam equivocadas, quer porque <strong>de</strong>sconfia-se das benessestécnicas <strong>do</strong> industrialismo, quer porque o serviço <strong>do</strong>méstico voltou a crescerem economias “<strong>de</strong>senvolvidas”, como nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.Existe, aliás, um <strong>de</strong>bate sobre até que ponto o <strong>de</strong>senvolvimentotecnológico aliviou o trabalho <strong>do</strong>méstico. Bridget Hill (1995c) apresenta da<strong>do</strong>sda histo<strong>rio</strong>grafia inglesa sugerin<strong>do</strong> que a carência tecnológica no século XIXera compensada por uma divisão sexual <strong>do</strong> trabalho mais parelha e porafazeres <strong>do</strong>mésticos menos complexos. Numa época em que não se dispunha<strong>de</strong> sistema elétrico e/ou gás, nem esgotos e água encanada, e que, portanto,o abastecimento <strong>de</strong> água e combustível, sem dúvida, estava entre ostrabalhos mais duros, essas tarefas eram divididas com os homens da casae/ou entre vá<strong>rio</strong>s cria<strong>do</strong>s. Pon<strong>de</strong>ra-se que, se estruturas sanitárias e <strong>de</strong>aquecimento trouxeram mais conforto, também fizeram com que essasativida<strong>de</strong>s se voltassem com exclusivida<strong>de</strong> para as mulheres. Outra tese <strong>de</strong>Hill é <strong>de</strong> que o incremento <strong>de</strong> novas tecnologias, antes <strong>de</strong> ter diminuí<strong>do</strong> otrabalho <strong>do</strong>méstico, teria muda<strong>do</strong> seu significa<strong>do</strong>, aumentan<strong>do</strong> as exigênciassobre seu cumprimento. Na Inglaterra <strong>do</strong> século XVIII, as casas não tinhamtantos tapetes, papel <strong>de</strong> pare<strong>de</strong> e cortinas. As exigências <strong>de</strong> limpeza eramoutras (só trocavam a roupa para ir à missa). A comida em geral se restringiaa um único prato em função da escassez <strong>de</strong> lenha e <strong>do</strong>s fogões à lenha seremabertos, sem chaminés. Com os fogões a gás chegou a proliferação <strong>de</strong>panelas e varieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cardápios.Elizabeth Bortolaia Silva, estudan<strong>do</strong> a implementação <strong>do</strong>s fornos <strong>de</strong>termostato e <strong>de</strong> microondas no século XX, é menos cética quanto aosbenefícios das novas tecnologias, mas faz uma ressalva: é necessá<strong>rio</strong> levarem conta “as diferenças <strong>de</strong> classe, po<strong>de</strong>r aquisitivo e posição social entre as


47mulheres” (1998, p. 50). Nos anos 30, a publicida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s fogões a gás dirigiasepara as <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa da classe média. A “facilida<strong>de</strong>” tecnológica <strong>do</strong>termostato propagan<strong>de</strong>ava a habilitação das mulheres para o exercício da<strong>do</strong>mesticida<strong>de</strong>, “libertan<strong>do</strong>-as” para aten<strong>de</strong>r a outros <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> sua família.Porém, esta inovação tecnológica não substituiu a presença da empregada<strong>do</strong>méstica. A introdução <strong>do</strong> forno <strong>de</strong> microondas, nos anos 90, parece tereclipsa<strong>do</strong> a cozinheira, introduzin<strong>do</strong> novos atores na cozinha, como oshomens e as crianças. Silva diz que estu<strong>do</strong>s sobre o processo das inovaçõesmostram que a tecnologia que efetivamente acabou se estabelecen<strong>do</strong> com omicroondas foi a <strong>do</strong> tipo “conjuga<strong>do</strong>”, que pressupõe que alguém (a cozinheirainvisível/cozinheira (o) industrial) cozinhe e congele, para que os alimentossejam <strong>de</strong>pois aqueci<strong>do</strong>s pela família.A <strong>de</strong>speito das expectativas, pesquisas atuais têm chama<strong>do</strong> a atençãopara o fato <strong>de</strong> o trabalho <strong>do</strong>méstico remunera<strong>do</strong> ter cresci<strong>do</strong> nas últimasdécadas em certos lugares, inclusive em socieda<strong>de</strong>s com economia capitalistabem estabelecida. É o que revelam Milkman, Reese e Roth (1988) estudan<strong>do</strong>a variação <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico na proporção <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra feminina nasdécadas <strong>de</strong> 80 e 90, em <strong>gran<strong>de</strong></strong>s regiões metropolitanas <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.Toman<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> recenseamento <strong>de</strong> 1990 nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, estassociólogas mostram que, no <strong>sul</strong> da Califórnia, houve um leve aumento <strong>do</strong>número <strong>de</strong> empregadas <strong>do</strong>mésticas trabalhan<strong>do</strong> no setor. A variação entre astaxas <strong>de</strong> serviço <strong>do</strong>méstico <strong>de</strong> lugares como Honolulu, Milwauke eMinneapolis (on<strong>de</strong> a taxa é menor que 0,5 %) e <strong>de</strong> Miami e Los Angeles(taxas <strong>de</strong> 2,00 a 2, 30%) ultrapassam a cifra <strong>de</strong> <strong>do</strong>is por cento. Elascomparam estes da<strong>do</strong>s com o índice <strong>de</strong> riqueza nestas populações everificam que, segun<strong>do</strong> o Censo <strong>de</strong> 1990:a razão entre a renda auferida pelas famílias 5% mais ricas e as20% mais pobres era <strong>de</strong> 3,5 em Honolulu e <strong>de</strong> 3,8 em Minneapolis,enquanto Nova Orleans era <strong>de</strong> 8,4 e em Nova York, <strong>de</strong> 8,6. LosAngeles situava-se numa posição intermediária com a razão <strong>de</strong> 5,6(MILKMANN, REESE, ROTH, 1988, p.157).


48É com o argumento sobre <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> econômica que essas autorasjustificam o crescimento <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e suavariabilida<strong>de</strong> geográfica mundial. O aumento <strong>do</strong>s empregos <strong>do</strong>mésticoscoincidiu com o crescimento <strong>de</strong> mulheres da elite exercen<strong>do</strong> profissõesliberais ou administrativas, as quais retêm maiores possibilida<strong>de</strong>s paracomprar trabalho <strong>do</strong>méstico <strong>de</strong> outras mulheres (ver também COLEN, 1995).Sem menosprezar os avanços trazi<strong>do</strong>s pelos estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> gênero, quecontribuíram enormemente para o conhecimento sociológico, Milkmann,Reese e Roth realçam que, <strong>de</strong> certa forma, eles encerraram suas análises emsegmentações étnicas e <strong>de</strong> raça, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> um pouco <strong>de</strong> la<strong>do</strong> as<strong>de</strong>terminações <strong>de</strong> classe. Questões como a migração e raça são tambémlevantadas por esta pesquisa, confirman<strong>do</strong> os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Judith Rollins (1990)sobre a preferência por criadas "<strong>de</strong> cor" e oriundas <strong>de</strong> outras regiões e paísespara realização <strong>de</strong>stes trabalhos. A participação <strong>de</strong> mães na força <strong>de</strong> trabalhoé outro fator arrola<strong>do</strong> na expansão <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico. Mas é na análise da<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> econômica que, lançan<strong>do</strong> mão <strong>de</strong> uma comparação “macrosociológica",verificam que os mesmos traços <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> se repetem emdiversos países:Na Suécia, por exemplo, on<strong>de</strong> a distribuição <strong>de</strong> renda é muito maisigualitária <strong>do</strong> que nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e em muitos outros países <strong>de</strong>alto grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, o número <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>ras<strong>do</strong>mésticas é mínimo. Em 1987, na Suécia, a parcela <strong>de</strong> rendaauferida pelos 10% mais ricos da população era <strong>de</strong> 2,7 vezes maior<strong>do</strong> que os 10% mais pobres, enquanto, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, essaparcela era 5,9 vezes supe<strong>rio</strong>r aos mais pobres (MILKMANN,REESE, ROTH, 1998, p. 153).Enquanto os EUA empregam 1% da população feminina ativa no serviço<strong>do</strong>méstico, o Censo Nacional sueco <strong>de</strong> 1990 registrou o número absoluto <strong>de</strong>duas mulheres empregadas em serviços <strong>do</strong>mésticos.TABELA 2 Mulheres empregadas em serviços <strong>do</strong>mésticos particulares no <strong>sul</strong>da Califórnia – Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s – 1980/1990.ÁreaMetropolitana1980N.º <strong>de</strong>empregadas em% <strong>do</strong> total <strong>do</strong>emprego femininonessa ocupação1990N.º <strong>de</strong>empregadas em% <strong>do</strong> total <strong>do</strong>emprego femininonessa ocupação


49Los Angeles –Long Beachserviços<strong>do</strong>mésticosparticularesserviços<strong>do</strong>mésticosparticulares24.788 1,66 41.988 2,30San Diego 4.357 1,32 7.193 1,39Anaheim –Santa Ana3.543 0,86 7.307 1,30Fonte: Milkmann, Reese e Roth, 1998, p. 153.1.2.2 O apego ao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> trabalho fabrilAs questões levantadas sobre o nível <strong>de</strong> exploração ao qual estasmulheres estão submetidas nas relações <strong>de</strong> trabalho, na maioria <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>ssobre trabalho <strong>do</strong>méstico, são importantes. Pela ampla representativida<strong>de</strong> daobra, voltamos a Muchachas... para melhor caracterizar sua perspectiva e darcontinuida<strong>de</strong> ao <strong>de</strong>bate que ela estabelece quanto ao pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lotaylorista-fordista.Embora as organiza<strong>do</strong>ras remarquem a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umaprofundamento teórico, indican<strong>do</strong> que os trabalhos da coletânea têm umcaráter “muito <strong>de</strong>scritivo”, os artigos são permea<strong>do</strong>s por uma preocupaçãocom a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico remunera<strong>do</strong>, o qual os autoresunanimemente nomearam <strong>de</strong> “serviço <strong>do</strong>méstico”, numa alusão às discussõesteóricas estabelecidas nas duas décadas ante<strong>rio</strong>res sobre o lugar da venda<strong>de</strong>sse trabalho <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> sistema produtivo capitalista. Os artigos <strong>de</strong>screvemas formas <strong>de</strong> opressão que as empregadas sofrem na execução <strong>do</strong> trabalho<strong>do</strong>méstico, quan<strong>do</strong> o tempo e a <strong>de</strong>finição das tarefas são <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>sunilateralmente pela patroa. Com este intuito, as análises sobre o serviço<strong>do</strong>méstico em Muchacha... acabam toman<strong>do</strong> o trabalho fabril como mo<strong>de</strong>lopara relações <strong>de</strong> trabalho. Thelma Gálvez e Rosalba Todaro, por exemplo,exploram assuntos interessantíssimos e pouco trata<strong>do</strong>s sobre queixas <strong>de</strong>patroas e empregadas a respeito <strong>do</strong> cumprimento das tarefas. Entretanto,


50tomam o trabalho da fábrica como contraponto para caracterizar comoabusivas as relações <strong>de</strong> trabalho no ambiente <strong>do</strong>méstico. Dizem as autoras:con el uso <strong>de</strong> materiales en el trabajo: jabón, alimentos, petróleo,etc; porque es difícil establecer estándares <strong>de</strong> utilización; Porejemplo, las proporciones en que se mezclan los alimentos sonmenos fijas que aquellas con que se fabrica una sustancia industrialpor lo que el <strong>de</strong>rroche está menos medi<strong>do</strong> aunque pue<strong>de</strong> estarigualmente controla<strong>do</strong> (GÁLVEZ, TODARO, 1993, p. 273).As críticas realizadas nos artigos sobre o trabalho <strong>do</strong>méstico sãocalcadas no mo<strong>de</strong>lo taylorista-fordista da organização <strong>do</strong> trabalho (mesmoque poucos o citem diretamente) e a fábrica acaba por aparecer como espaçoparadigmático – e, em certo senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>sejável – como referência para asrelações <strong>de</strong> produção. Ou seja, sugere-se que a forma como as tarefas sãoprescritas e controladas no processo <strong>de</strong> produção fabril configuram relaçõesmenos ambíguas <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong>s antagonismos potenciais entreemprega<strong>do</strong>res e emprega<strong>do</strong>s. Esse raciocínio tem como fragilida<strong>de</strong> sua<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> uma visão simplificada e reduzida da experiência subjetiva <strong>do</strong>trabalho no espaço fabril. Parece-se esperar que um grau consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong>consciência <strong>de</strong> classe <strong>de</strong>rive <strong>de</strong> forma mais ou menos imediata da dimensãocontratual e das características técnicas <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho. Não menosquestionável é a valorização positiva que transforma essa vivência <strong>de</strong> trabalhoem inserção i<strong>de</strong>al para o indivíduo no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho: ao vínculo formalmais tipicamente capitalista estaria associada uma representação <strong>de</strong> maiordignida<strong>de</strong> ou bem-estar, dificilmente reconhecível na realida<strong>de</strong> operária <strong>do</strong>spaíses latino-americanos.Que o conceito <strong>de</strong> trabalho tenha si<strong>do</strong> bastante marca<strong>do</strong> pelas relaçõesfabris é uma idéia já bastante comentada. Outra coisa é consi<strong>de</strong>rar o trabalhofabril como medida <strong>de</strong> avanço em termos da venda da força <strong>de</strong> trabalho,sobretu<strong>do</strong> no terceiro mun<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> os trabalha<strong>do</strong>res nunca dispuseram dasgarantias que o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Bem Estar Social tentou regular na Europa.


51Não é apenas em Muchachas.... que as condições <strong>de</strong> trabalhoopressivas enfrentadas pelas empregadas <strong>do</strong>mésticas são <strong>de</strong>nunciadas. A<strong>de</strong>núncia é a tônica da maioria das publicações <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 70 (SAFFIOTI,1976; MOTTA, 1977, 1981; FARIAS, 1983; SANTOS, 1983; para citar osbrasileiros). Concentra<strong>do</strong>s na análise sociológica <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong>ssasmulheres, os autores acabam por não questionar até que ponto estãolançan<strong>do</strong> mão <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los explicativos que reificam conceitos e confun<strong>de</strong>mcategorias historicamente <strong>de</strong>terminadas.1.2.3 Problemas meto<strong>do</strong>lógicosA “voz das <strong>do</strong>mésticas” que escutamos em Muchacha... é aquela dasmulheres organizadas em sindicatos. As representações da empregadacomum, que não pertence a nenhum movimento político, e que, conforme opróp<strong>rio</strong> livro, constitui a maioria <strong>de</strong>sta categoria, aparecem subsumidas nas<strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> exploração. Muitos estu<strong>do</strong>s que <strong>de</strong>nunciam a exploração <strong>do</strong>serviço <strong>do</strong>méstico (FARIAS, 1983) tomam essa mesma via <strong>de</strong> argumentação,ressaltan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>sagregação e a falta <strong>de</strong> consciência política <strong>de</strong> toda categoriaocupacional, através da representação <strong>de</strong> um número pouco expressivo <strong>de</strong>trabalha<strong>do</strong>ras engajadas. Muitas obras a<strong>do</strong>tam freqüentemente o recurso <strong>de</strong>elencar as percepções das <strong>do</strong>mésticas ("sindicalizadas") sobre o serviço<strong>do</strong>méstico, quan<strong>do</strong> em geral ele aparece como preferível apenas àprostituição 27 .Também a voz das patroas passa por um filtro seletivo. Ela aparecesecundariamente, como um contraponto negativo às opiniões das27 Estu<strong>do</strong>s etnográficos e históricos têm aponta<strong>do</strong> que a prostituição e o serviço <strong>do</strong>mésticosão ocupações complementares para muitas mulheres pobres (HILL, 1985b; FONSECA,1996).


52empregadas. Suas representações não são consi<strong>de</strong>radas e a <strong>do</strong>minaçãoacaba explican<strong>do</strong>-se per se 28 .Enfim, entre outras objeções que po<strong>de</strong>mos levantar nestas pesquisas,consta um questionamento acerca <strong>do</strong> contexto <strong>de</strong> obtenção <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s. Atéque ponto o contexto da pesquisa não <strong>de</strong>fine a p<strong>rio</strong>ri a situação <strong>de</strong>svantajosavivida pela empregada <strong>do</strong>méstica? Na minha pesquisa, muitas das<strong>do</strong>mésticas pesquisadas preferiam o trabalho <strong>do</strong>méstico justamente por causa<strong>de</strong> suas características "clientelistas". Essa discrepância com outraspesquisas seria uma questão <strong>de</strong> amostra ou <strong>de</strong> abordagem? O local e o tipo<strong>de</strong> interação pesquisa<strong>do</strong>r-pesquisa<strong>do</strong> não po<strong>de</strong>m influenciar na tônica <strong>do</strong>discurso recolhi<strong>do</strong>? Entre todas as investigações as quais tive acesso, apenasa <strong>de</strong> Barbosa (1998) contou com entrevistas realizadas na casa dastrabalha<strong>do</strong>ras. Ainda assim, guia<strong>do</strong> pela temática da articulação casa/trabalho,não expandiu suas observações para as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> dastrabalha<strong>do</strong>ras para verificar como tais questões são articuladas em outrosambientes.Quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>slocamos nosso trabalho <strong>de</strong> campo da casa da patroa para obairro <strong>de</strong> moradia das empregadas, notamos que entre a vizinhança muitospadrões <strong>de</strong> relações clientelistas também lá se estabeleciam. A observaçãolevou-nos a perguntar se esta é uma relação “estrutural” da situação <strong>de</strong>contato entre pessoas <strong>de</strong> status diferente, ou se, nessas relações assimétricasno bairro, outros significa<strong>do</strong>s culturais <strong>de</strong>vem ser leva<strong>do</strong>s em conta.De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, a relação <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação entre patrões e emprega<strong>do</strong>s nãoera suficiente para enten<strong>de</strong>r por que, entre pessoas pobres, algumasmantinham laços clientelistas com seus próp<strong>rio</strong>s amigos, engajan<strong>do</strong>-se emrelações <strong>de</strong> troca, exigin<strong>do</strong> sempre um contra-<strong>do</strong>m como resposta.Procuran<strong>do</strong> uma explicação para além <strong>de</strong> uma visão miserabilista parajustificar o enorme tamanho da mão-<strong>de</strong>-obra envolvida na prestação <strong>de</strong>28 Como mostra muito bem o artigo <strong>de</strong> Hil<strong>de</strong>te Pereira <strong>de</strong> Melo (1993).


53serviços <strong>do</strong>mésticos, me pergunto quais serão as vantagens que estaocupação apresenta? Não é incomum encontrar cita<strong>do</strong>s nas pesquisas algunsbenefícios reconheci<strong>do</strong>s pelas <strong>do</strong>mésticas, porém suas opiniões sobre esteponto são, via <strong>de</strong> regra, interpreta<strong>do</strong>s como uma questão <strong>de</strong> falta <strong>de</strong>consciência política. Descreven<strong>do</strong> o perfil político <strong>de</strong> empregadas <strong>do</strong>mésticas,Farias (1983) c<strong>rio</strong>u uma taxinomia <strong>de</strong>saponta<strong>do</strong>ra:Confrontan<strong>do</strong> com as respostas que as empregadas <strong>de</strong>ram a outrasquestões (por exemplo, se gosta <strong>do</strong> emprego e o que acha pior nele,dificulda<strong>de</strong>s encontradas, etc.) teríamos os seguintes tipos: a)empregadas “conformadas” com a situação; b) empregadas“in<strong>de</strong>cisas” e c) empregadas “inconformadas”. Entre as“conformadas”, po<strong>de</strong>ríamos distinguir: as que chamaríamos <strong>de</strong>“agra<strong>de</strong>cidas” – aquelas que não se acham merece<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> nada ese mostram reconhecidas por qualquer atenção que lhes faça (comotivessem assimila<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sprezo que outros têm por sua categoriasocial); as “assimiladas” – que assumiram a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> socialatribuída pelos patrões (“são da família” – dizem – e elas repetem:“sou da família”); “<strong>de</strong>sesperançadas” – são as que dizem quecontinuarão no emprego <strong>do</strong>méstico – “porque é o jeito,” “(...) <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>à ida<strong>de</strong>” ou “porque tem cabeça ru<strong>de</strong>,” para conseguir algo diferente.(1983, p. 120).Embora muitas obras falem <strong>de</strong> forma pejorativa em vantagens, napesquisa <strong>de</strong> Cláudia Rezen<strong>de</strong> (1995), Empregadas Domésticas e seusPatrões: amiza<strong>de</strong> com <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social e racial, estas assumem outrocaráter. Ao analisar a amiza<strong>de</strong> entre empregadas <strong>do</strong>mésticas e patrões apartir <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista êmico, estuda tanto os fatores que favorecem aescolha da profissão <strong>de</strong> <strong>do</strong>méstica, quanto as expectativas das patroas emrelação a uma boa empregada. Rezen<strong>de</strong> explora justamente o significa<strong>do</strong>ambíguo, mas nem por isso negativo, da valorização da pessoalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stasrelações, as quais ela i<strong>de</strong>ntifica com a noção <strong>de</strong> cordialida<strong>de</strong> brasileira,<strong>de</strong>senvolvida por Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda, como “uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>estabelecer relações pessoais sempre e em todas as instâncias” (REZENDE,1995, p. 16).Além <strong>do</strong> contexto da obtenção <strong>do</strong> da<strong>do</strong>, outra preocupação meacompanha: a <strong>de</strong> relacionar a situação <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico com a realida<strong>de</strong>mais ampla <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho para a população estudada. No Brasil, on<strong>de</strong>


54trabalho manual é compra<strong>do</strong> extremamente barato, on<strong>de</strong> não se garanteassistência social <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> (saú<strong>de</strong>, escolas, seguro <strong>de</strong>semprego, porexemplo) e on<strong>de</strong> os direitos trabalhistas são constantemente burla<strong>do</strong>s, umarelação personalista talvez seja a melhor solução encontrada em momentos<strong>de</strong> crise para as pessoas pobres. Consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> que o serviço <strong>do</strong>mésticopossa ser uma ativida<strong>de</strong> estratégica para pessoas em situação <strong>de</strong><strong>de</strong>svantagens políticas e sociais já foram levantadas em análises <strong>de</strong> situaçõesbem menos árduas <strong>do</strong> que a brasileira. Colen (1995), por exemplo, mostraque o serviço <strong>do</strong>méstico nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s é toma<strong>do</strong> como uma dasestratégias menos <strong>de</strong>sgastantes para imigrantes caribenhas que não possuemgreen card (visto permanente). Até mesmo os agentes da imigraçãorecomendam as latinas a procurarem patrões que lhes dêem patrocínio para aconsecução <strong>de</strong> uma futura permanência legal no país. Também Milkmann,Reese e Roth disseram:O emprego <strong>do</strong>méstico tem realmente características especiais- oisolamento social; a unida<strong>de</strong> entre local <strong>de</strong> trabalho e moradia nocaso da patroa (e também das <strong>do</strong>mésticas que <strong>do</strong>rmem noemprego), com a intimida<strong>de</strong> que isso implica, além <strong>de</strong> uma ignóbilfalta <strong>de</strong> regulação social ou estatal- que favorece <strong>de</strong>terminadasformas <strong>de</strong> super exploração. No entanto, comparada com umemprego numa confecção que paga salá<strong>rio</strong>s <strong>de</strong> fome, ou naagricultura, ou mesmo numa lanchonete em troca <strong>de</strong> salá<strong>rio</strong> mínimo,trabalhar como empregada <strong>do</strong>méstica po<strong>de</strong> ser relativamenteatraente, apesar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> que se diz ao contrá<strong>rio</strong>” (1998, p. 149-150).Convencida da importância <strong>de</strong> estudar situações específicas paracompreen<strong>de</strong>r como se estruturam as relações <strong>de</strong> trabalho neste setor,consi<strong>de</strong>ro fundamental <strong>de</strong>strinchar as razões que possibilitam a continuida<strong>de</strong><strong>de</strong>ssas relações e suas implicações políticas.Na medida em que o serviço <strong>do</strong>méstico coloca pessoas <strong>de</strong> espaçossociais diferentes em contato, examiná-lo apenas através das lógicas que se<strong>de</strong>senrolam na casa <strong>do</strong>s patrões parece-me incidir numa explicação quesegmenta e reduz a experiência social da empregada <strong>do</strong>méstica. Assim, nesta


55pesquisa estu<strong>do</strong> as relações entre patrões e empregadas tanto no local <strong>de</strong>trabalho (casa <strong>do</strong>s patrões), como no local <strong>de</strong> moradia das trabalha<strong>do</strong>ras.1.2.4 A origem da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>A submissão contida no serviço <strong>do</strong>méstico é i<strong>de</strong>ntificada, pela maiorparte <strong>do</strong>s pesquisa<strong>do</strong>res, com a origem patriarcal da socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna. Adivisão sexual <strong>do</strong> trabalho para to<strong>do</strong>s estes estu<strong>do</strong>s é fruto <strong>de</strong> uma<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> ontológica entre homens e mulheres 29 a qual se complexificouna socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe pela sobreposição da exploração masculina àexploração produtiva. Este argumento estabelece uma dicotomia entre mun<strong>do</strong>público e priva<strong>do</strong> or<strong>de</strong>nada pela diferenciação sexual, toman<strong>do</strong> por base adivisão social <strong>do</strong> trabalho nas socieda<strong>de</strong>s industrializadas, nas quais seinstalou a separação entre produção e consumo. Decorre daí a tese <strong>de</strong> que asubordinação feminina <strong>de</strong>ve-se ao seu atrelamento ao trabalho <strong>do</strong>méstico 30 ,i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> com o mun<strong>do</strong> da casa, da família, da <strong>do</strong>mesticida<strong>de</strong>, das emoçõesem contraposição ao <strong>do</strong>mínio masculino <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da rua, <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, daobjetivida<strong>de</strong> (ROSALDO, 1979).O problema <strong>de</strong>sses argumentos é que partem <strong>de</strong> pressuposições já<strong>de</strong>smontadas, como a da teoria da evolução da família <strong>de</strong> Engels (1980). Nateoria engeliana, a família teria evoluí<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>smo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> produção até <strong>de</strong>sembocar na forma da família monogâmica.Embora tenha <strong>gran<strong>de</strong></strong> popularida<strong>de</strong> entre analistas <strong>de</strong> fora <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s<strong>de</strong> parentesco, esta perspectiva foi duramente questionada, mostran<strong>do</strong> que sebaseava em meto<strong>do</strong>logias inconsistentes, como da<strong>do</strong>s basea<strong>do</strong>s em fontesmitológicas (sobre matriarca<strong>do</strong>) e a confusão entre sistema e termos <strong>de</strong>29 Como nas análises <strong>de</strong> Balandier (1976) , e mais recentemente nas discussões <strong>de</strong> Heritier(1999)30 Sobre esta discussão ver Cho<strong>do</strong>row (1979) e Ortner (1979), todas refutadas por Rosal<strong>do</strong>(1995).


56parentesco. Dentro <strong>de</strong> uma perspectiva evolucionista, estas análises<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ram, por exemplo, as particularida<strong>de</strong>s etnográficas e históricas dasorganizações <strong>do</strong> parentesco, construin<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>los homogeneizantes quetomam como parâmetro realida<strong>de</strong>s muito próximas das representações <strong>do</strong>spróp<strong>rio</strong>s pesquisa<strong>do</strong>res (LÉVI-STRAUSS, 1966; BAMBERGER, 1979; eCORREA, 1994).Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong> premissas <strong>de</strong>sta natureza – por exemplo, <strong>de</strong> que a famíliamonogâmica seja a forma natural da organização familiar – nestas pesquisasé comum o relacionamento homem/mulher tomar como base a famíliaconjugal mo<strong>de</strong>rna. Farias (1983), como muitos outros autores que escrevemsobre este tema, faz uma esquematização da “relação entre os sexos” nomun<strong>do</strong> capitalista que se inicia através da formação <strong>do</strong> casal e daí segue nasjá conhecidas separações entre público-merca<strong>do</strong> / priva<strong>do</strong>-família.Em Between Women: <strong>do</strong>mestics and their employers, Judith Rollins(1990) – autora que analisaremos com mais profundida<strong>de</strong> na seção seguinte –transpõe o conceito <strong>de</strong> patriarca<strong>do</strong> para o <strong>de</strong> matriarca<strong>do</strong> para justificar asubserviência <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s nestas relações assimétricas entre mulheres. Dessaforma, no entanto, a autora acabou restringin<strong>do</strong> essas relações a empregadase patroas – subtrain<strong>do</strong> homens e crianças das suas análises – além <strong>de</strong>submeter relações observadas pontualmente a explicações generalizantessobre a condição feminina.Entretanto, uma ressalva é importante. Em 1985, época da publicação<strong>do</strong> livro <strong>de</strong> Rollins (década da maior parte da produção acadêmica sobreserviço <strong>do</strong>méstico), a discussão feminista colocava um acento muito forte naspesquisas que pu<strong>de</strong>ssem <strong>de</strong>svelar a opressão feminina. Esse posicionamentoimpedia que se pensasse numa dimensão relacional, a qual o conceito <strong>de</strong>gênero veio logo trazer. Em 1980, Rosal<strong>do</strong> já havia revisa<strong>do</strong> seus argumentossobre a subordinação feminina, contemplan<strong>do</strong> a idéia <strong>de</strong> se procurarexplicações menos generalizantes e mais contextuais, on<strong>de</strong>, no lugar <strong>de</strong> umacausalida<strong>de</strong> primal, se compreen<strong>de</strong>sse o significa<strong>do</strong> que o lugar da mulher


57assume em formações sociais específicas. Joan Scott, em um artigofundamental <strong>de</strong> 1988, afirmava ser um falso problema buscar uma causaoriginal para a subordinação das mulheres. Esse procedimento, segun<strong>do</strong>Scott, estava basea<strong>do</strong> numa premissa positivista que buscava estruturas<strong>de</strong>terminantes <strong>de</strong> fenômenos similares. Ela propõe, nesse artigo, trocar esseprocedimento por uma análise compreensiva que construa significações 31 .Como Caroll Smith Rosemberg observou, estas teorias sobre a opressãouniversal da mulher, mesmo que busquem dar luz sobre a condição feminina,para<strong>do</strong>xalmente acabam manten<strong>do</strong> o “homem como o principal ator da históriada mulher” (apud HILL, 1995a, p. 2).1.3. Estu<strong>do</strong>s centra<strong>do</strong>s nas representaçõesA obra <strong>de</strong> Judith Rollins (1990) sobre patroas brancas e empregadasnegras em Boston, na década <strong>de</strong> 80, ocasionou certa renovação nas análisesnorte-americanas ao centrar sua atenção nas representações que patrões eempregadas elaboram sobre esta relação. O trabalho <strong>de</strong> Rollins foi marcantepor insistir sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocar o exame das condiçõeseconômicas para o mun<strong>do</strong> das mentalida<strong>de</strong>s; por empregar uma meto<strong>do</strong>logiainova<strong>do</strong>ra (a pesquisa<strong>do</strong>ra trabalhou como <strong>do</strong>méstica durante <strong>de</strong>z meses emBoston) e por <strong>de</strong>snudar uma realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> contrastante com oi<strong>de</strong>á<strong>rio</strong> igualitá<strong>rio</strong> estaduni<strong>de</strong>nse. Ao recurso meto<strong>do</strong>lógico <strong>de</strong> empregar-secomo <strong>do</strong>méstica, Rollins aliou entrevistas com patrões e emprega<strong>do</strong>sconseguin<strong>do</strong> reunir um rico material <strong>de</strong>scritivo que chamou <strong>de</strong> “rituaisinterpessoais <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação":Os tipos <strong>de</strong> sistema econômico que institucionalizaram a<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> são varia<strong>do</strong>s, entretanto to<strong>do</strong>s eles comportam rituais31 Para a repercussão <strong>de</strong>stas discussões no Brasil, veja Costa e Bruschini (1992), entreoutros.


58<strong>de</strong> comportamento interpessoais, que <strong>de</strong> uma certa maneira,reforçam para categorias inteiras da população o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> aceitaras formas, os usos e os significa<strong>do</strong>s <strong>de</strong>stes rituais interpessoais quese exprimem nas relações entre <strong>do</strong>mésticas negras e seus patrõesbrancos (ROLLINS, 1990, p.63). 32Nestes atos, Rollins traduz preocupações clássicas em novos termos,i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong> os “caracteres psicossociais” da <strong>do</strong>minação a duas formasbásicas: a “<strong>de</strong>ferência” e o “maternalismo”.A <strong>de</strong>ferência é constituída <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s e gestos inscritos na linguagem,na <strong>de</strong>marcação <strong>do</strong> espaço, regras <strong>de</strong> cumprimentos das tarefas que têm comofinalida<strong>de</strong> última confirmar a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. Entre eles, <strong>de</strong>stacamos a<strong>de</strong>ferência embutida na dimensão espacial e na linguagem:...A <strong>do</strong>méstica não po<strong>de</strong> tocar seu patrão e <strong>de</strong>ve respeitar seuespaço priva<strong>do</strong>, manten<strong>do</strong> uma distancia física... Ainda, a <strong>do</strong>mésticasenta-se raramente na presença <strong>de</strong> sua patroa (a não ser nosmomentos <strong>de</strong> almoçar). Mesmo se ela para por um instante <strong>de</strong>trabalhar para falar alguma coisa, ela permanece em pé. Todasessas convenções confirmam a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> das relações e o valormaior <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>res (ROLLINS, 1990, p. 73). 33Rollins também menciona vantagens reconhecidas pelos emprega<strong>do</strong>s nocumprimento <strong>de</strong>ssas tarefas muito próximas daquelas que eu encontrei entreminhas informantes no Brasil. Estão entre elas a flexibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s horá<strong>rio</strong>s, ospresentes e o reconhecimento por aqueles patrões que antes <strong>de</strong> mais nadarespon<strong>de</strong>m ao maior anseio <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos: “je veux simplement qu´on metraite comme un être humain. C´est tout que je <strong>de</strong>man<strong>de</strong>” (1990, p. 65).32 Les types <strong>de</strong> système economique qui ont institutionnalisé l’inegalité ont été variés, toutefoisils ont tous comporté <strong>de</strong>s rituels interpersonnels qui, d’une certaine manière, renforcent chez<strong>de</strong>s catégories entières <strong>de</strong>s populations le désir d”accepter ici les formes, les usages et lessignifications <strong>de</strong> ces rituels interpersonnels qui s’expriment dans les relations entre les<strong>do</strong>mestiques noirs et leurs patronnes blanches. (ROLLINS, 1990, p.63)33 ... La <strong>do</strong>mestique ne <strong>do</strong>it pas toucher son employeur et <strong>do</strong>it respecter son espace privé enmaintenant une distance physique... De plus, la <strong>do</strong>mestique s´asseoit rarement en presence<strong>de</strong> sa patronne (sauf au moment du déjeuner). Même si elle arrête un instant <strong>de</strong> travailler pourdiscuter <strong>de</strong> quelque chose, elle reste <strong>de</strong>bout. Toutes ces conventions confirment l’ inégalité<strong>de</strong>s rapports et la plus <strong>gran<strong>de</strong></strong> valeur <strong>de</strong> l´employeur (ROLLINS,1990, p. 73 ) .


59Para Rollins, esses aspectos, no contexto <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, inseremsenas relações inspiradas pelo “maternalismo”, uma atitu<strong>de</strong> similar aopaternalismo na percepção <strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico como um ser “pueril”. Entretanto,enquanto o paternalismo refere-se à proteção masculina, o maternalismo fazreferência ao papel afetivo (nourricier) que a mulher ocupa na família. Assim,a autorida<strong>de</strong> da patroa se reveste <strong>de</strong> um saber feminino e a <strong>do</strong>minaçãoassume contornos afetivos. Seria um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> segunda <strong>gran<strong>de</strong></strong>za, na opinião<strong>de</strong> Rollins, no qual a patroa permanece “aliada <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r real”; no entanto,diante <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>pendência econômica, reconhece sua condição subordinadana socieda<strong>de</strong>. Portanto, tratan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> uma posição estrutural da diferença <strong>de</strong>posição entre os sexos, esse “caráter” feminino <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r éinternaliza<strong>do</strong> tanto pela emprega<strong>do</strong>ra, quanto pela <strong>do</strong>méstica. Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssascolocações, este estu<strong>do</strong> apresenta a discussão sobre trabalho <strong>do</strong>mésticoremunera<strong>do</strong> como um fato único na socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal, on<strong>de</strong> as relações <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r se dão exclusivamente entre mulheres.A força <strong>do</strong> argumento <strong>de</strong> Rollins está na <strong>de</strong>scrição cuida<strong>do</strong>sa <strong>de</strong> rituaiscotidianos <strong>de</strong>monstrativos da dimensão psicossocial da <strong>do</strong>minação entrepatroas e empregadas, os quais foram muito inspira<strong>do</strong>res para nosso estu<strong>do</strong>.Não obstante, suas conclusões acabam atrelan<strong>do</strong> a um único grilhão impostoà condição feminina - sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> estruturalmente subjugada.No Brasil, estu<strong>do</strong>s centra<strong>do</strong>s nas representações sociais das relaçõessuscitadas pelo trabalho <strong>do</strong>méstico são raros. A tese <strong>de</strong> Maria Suely Kofes éuma das poucas pesquisas que tratam <strong>de</strong>sta abordagem na área daantropologia. Apresenta uma mescla interessante das teorias sobreexploração e sobre relações <strong>de</strong> gênero. Mulher/mulheres: Diferença eI<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nas armadilhas da Igualda<strong>de</strong> e Desigualda<strong>de</strong>: interação e relaçãoentre patroas e empregadas <strong>do</strong>mésticas, <strong>de</strong> 1991, incluiu uma enqueterealizada em Campinas, a qual apresentava da<strong>do</strong>s sobre organização familiare cumprimento <strong>de</strong> tarefas <strong>do</strong>mésticas tanto em unida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>mésticasemprega<strong>do</strong>ras, como naquelas em que pessoas da família trabalhavam,remuneradamente, como empregadas <strong>do</strong>mésticas. Todavia, esses da<strong>do</strong>s têm


60menor relevância na sua análise que se direciona para a compreensão <strong>de</strong>como a categoria mulher se estrutura entre valores tradicionais e mo<strong>de</strong>rnos. Aautora escolhe a relação social entre empregadas e patroas, localizada noambiente <strong>do</strong>méstico, justamente por este espaço compreen<strong>de</strong>r papéis efunções sociais da mulher (mãe e esposa), assim como tarefastradicionalmente <strong>de</strong>finidas como femininas (papéis e funções como <strong>do</strong>nas <strong>de</strong>casa). Para ela:a empregada <strong>do</strong>méstica, enquanto mulher, compartilha estesmesmos papéis e funções na sua unida<strong>de</strong> <strong>do</strong>méstica, mas também<strong>de</strong>sloca-se para uma outra, on<strong>de</strong> exercerá, num trabalhoassalaria<strong>do</strong>, as mesmas funções, mas não os mesmos papéis.[Então, nesta relação existe uma] combinação entre uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>(um campo <strong>de</strong> reconhecimento estruturadamente comum) e uma<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social que torna possível o trabalho assalaria<strong>do</strong> daempregada <strong>do</strong>méstica e sua relação com a patroa (1991, p.11).Através <strong>de</strong>stes <strong>do</strong>is trabalhos, po<strong>de</strong>mos ver o quão importante são asanálises que ressaltam as representações <strong>do</strong>s atores envolvi<strong>do</strong>s nas relações,pois nos auxiliam a matizar e compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> forma significativa as formascotidianas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r.É possível notar na produção das Ciências Sociais sobre o serviço<strong>do</strong>méstico, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 70, um <strong>de</strong>sconforto compreensível <strong>do</strong>sintelectuais com as situações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> que o serviço <strong>do</strong>mésticoengendra. Questões importantes sobre como o gênero, a classe e a etniaentrelaçam disparida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> direitos são revela<strong>do</strong>s nos textos. Porém, a noção<strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> que a maioria <strong>de</strong>stes autores articula se baseia em injustiçasprovenientes <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> tradicional (veja as referências apatriarcalismo/maternalismo/clientelismo); as quais eludiríam-se com o<strong>de</strong>senvolvimento da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Como questionam Milkmann, Reese eRoth: “o problema <strong>de</strong>ssas perspectivas é partir <strong>do</strong> pressuposto equivoca<strong>do</strong> <strong>de</strong>que relações sociais extremamente <strong>de</strong>siguais são incompatíveis com ascondições sociais mo<strong>de</strong>rnas” (1998, p. 151).


61Sem jamais negar a violência da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, os da<strong>do</strong>s recolhi<strong>do</strong>s emcampo impuseram-me a refletir em direção levemente diferente. Toman<strong>do</strong> ossujeitos sociais que investigamos como plenamente mo<strong>de</strong>rnos e lúci<strong>do</strong>squanto às suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> contexto atual brasileiro, procureienten<strong>de</strong>r como não compreendiam a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> da mesma maneira quenós, intelectuais, quan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>screvíamos ao estudar o serviço <strong>do</strong>méstico.Cheguei a me convencer não somente que muitas pessoas encontramvantagens nesta ocupação (as quais não reconheciam em outros postos <strong>de</strong>serviço), mas também que muitas vezes lidavam com a subserviência <strong>de</strong> umamaneira menos submissa <strong>do</strong> que estratégica. Para tanto, e sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong>dialogar com interlocutores nas ciências sociais, procurei inspiração tambémentre os historia<strong>do</strong>res sociais.1.4. Serviço <strong>do</strong>méstico no passa<strong>do</strong>: dan<strong>do</strong> vistas à reciprocida<strong>de</strong>Referências mais próximas das informações que coletei durante otrabalho <strong>de</strong> campo encontrei entre os historia<strong>do</strong>res sociais. Ao estudaremsocieda<strong>de</strong>s mais longínquas no tempo, estes pesquisa<strong>do</strong>res não sofrem asmesmas pressões políticas daqueles que estudam situações contemporâneas.Assim, ao <strong>de</strong>pararem-se com realida<strong>de</strong>s muitos diferentes <strong>de</strong> seu ponto <strong>de</strong>vista sobre justiça, por exemplo, acabam buscan<strong>do</strong> explicações que <strong>de</strong>stacama contextualida<strong>de</strong> das mesmas. Desta forma, veremos que ao encontraremrelações assimétricas entre cria<strong>do</strong>s e senhores no passa<strong>do</strong>, antes <strong>de</strong> tratá-loscomo algo necessariamente con<strong>de</strong>nável, procuraram outras interpretaçõespossíveis. Chegaram a mostrar, entre outras coisas, que em algumassocieda<strong>de</strong>s, o serviço <strong>do</strong>méstico não estava relaciona<strong>do</strong> a estratificaçãosocial, mas a fases da vida, como veremos adiante nas <strong>de</strong>scrições sobre lifecycle servent.


62Nesta parte, dividiremos a análise entre os historia<strong>do</strong>res que estudam o“antigo regime” e aqueles que estudam épocas mais recentes, a partir <strong>do</strong>século XVIII. Os primeiros, numa viagem para o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> “outro”, imaginamum espaço em que a hierarquia não é vista como injusta. Antes, eraconcebida em termos <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> relacional, no qual a reciprocida<strong>de</strong> ecomplementarida<strong>de</strong> teriam um valor mais forte <strong>do</strong> que o indivíduo e oigualitarismo. Os segun<strong>do</strong>s estudaram uma época <strong>de</strong> <strong>gran<strong>de</strong></strong>stransformações, on<strong>de</strong> os cria<strong>do</strong>s começam a ser <strong>de</strong>sloca<strong>do</strong>s da antigaconvivência com os patrões.1.4.1. A naturalização das relações hierárquicasJ.L. Flandrin (1991) expõe que, na socieda<strong>de</strong> antiga, fazer parte dacriadagem, antes <strong>de</strong> significar <strong>de</strong>sprestígio, <strong>de</strong>mostrava uma solidarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>linhagem. A linhagem, uma das formas em que a família se organizava noAncien Regime, supunha laços familiares que não consistiam sempre emcoabitação. A solidarieda<strong>de</strong> da linhagem repousava no princípio honra, peloqual tanto um parente abasta<strong>do</strong> teria obrigação <strong>de</strong> tomar os menosafortuna<strong>do</strong>s para servir em sua casa, quanto estes tinham como <strong>de</strong>verpredisporem-se a servi-lo. Nas casas ricas inglesas, o número <strong>de</strong> pessoas, emfunção <strong>de</strong>ssa lógica, podia atingir 64, 70 pessoas. Quan<strong>do</strong> se viam<strong>de</strong>sampara<strong>do</strong>s, era para o parente rico que as pessoas “naturalmente seviravam”, revela Flandrin ao citar vá<strong>rio</strong>s exemplos <strong>de</strong> parentes ampara<strong>do</strong>scomo serviçais na casa <strong>de</strong> outros: a governanta <strong>do</strong> Pe. <strong>de</strong> Congir, porexemplo, era filha <strong>de</strong> seu irmão; Coignet, cansa<strong>do</strong> <strong>de</strong> servir anos a fio aestranhos, resolveu trabalhar como cria<strong>do</strong> para sua meia-irmã, casada comum <strong>do</strong>no <strong>de</strong> estalagem, porém sem revelar-lhe sua real i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O moçoconfessa ter passa<strong>do</strong> lá os anos mais felizes <strong>de</strong> sua vida. “Seria por acasoque recorreu a ela? Ou porque, no fun<strong>do</strong> lhe agradava mais servir uma irmã<strong>do</strong> que aos estranhos?”, nos pergunta Flandrin (1991, p. 51-52).


63Porém, a criadagem não era apenas composta por parentes, nemmesmo a proximida<strong>de</strong> com os patrões provinha apenas <strong>do</strong>s laços familiares. Aconvivência mais ou menos íntima com os patrões também tinha a ver comuma hierarquia das funções. Descreven<strong>do</strong> os rituais da vida cotidiana, estemesmo historia<strong>do</strong>r revela-nos que esta intimida<strong>de</strong> entre servos e patrõespodia ser percebida durante as refeições, por exemplo, quan<strong>do</strong> a or<strong>de</strong>m naqual as pessoas eram servidas <strong>de</strong>pendia mais da ocupação <strong>do</strong> cria<strong>do</strong> <strong>do</strong> que<strong>do</strong>s laços <strong>de</strong> parentesco. Assim, o lavra<strong>do</strong>r mais velho e seus colegas eramservi<strong>do</strong>s antes <strong>do</strong> que boieiro e o pastor, e <strong>do</strong> que as criadas e as mulheresda família.O sangue, a ida<strong>de</strong>, o sexo e o caráter mais ou menos digno das suasfunções criavam, pois, entre as pessoas da casa, tanto diferença comohierarquia, mas nenhum vestígio <strong>de</strong>sse fosso que, entre a burguesia <strong>do</strong> séculoXIX, separava patrões e cria<strong>do</strong>s (FLANDRIN, 1991). As diferenças <strong>de</strong> statusnão constituíam uma preocupação real em uma época em que cada pessoa,afinal, pertencia a alguém.Se os cria<strong>do</strong>s podiam ser assimila<strong>do</strong>s à família (ou vice versa), osignifica<strong>do</strong> <strong>de</strong> serviço <strong>do</strong>méstico era menos pejorativo; não implicava<strong>de</strong>gradação, tampouco consistia em uma ocupação execrável. Nos ensinaAriès (1981) que o serviço <strong>do</strong>méstico fazia parte <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> aprendizagemnuma época em que a escola só existia para os clérigos. Contu<strong>do</strong>, mesmo aformação <strong>de</strong> eclesiástico previa o ensinamento <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a servir.Encontram-se registros <strong>de</strong> que, na Inglaterra e na França, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> oséculo XII, ser confia<strong>do</strong> como cria<strong>do</strong> a outra família era uma forma <strong>de</strong>apren<strong>de</strong>r boas maneiras, não apenas para os jovens das famílias humil<strong>de</strong>s.Duby (1981) cita como exemplo o contrato <strong>de</strong> aprendizagem que o cavaleiroGuigonet firmou com o mais velho <strong>de</strong> seus irmãos, o qual tomou seus <strong>do</strong>issobrinhos como cria<strong>do</strong>s. Para conhecer como servir à mesa, fazer as camas,acompanhar o mestre como secretá<strong>rio</strong>, os jovens passavam alguns anos <strong>de</strong>sua vida moran<strong>do</strong> longe <strong>de</strong> sua família biológica, na casa <strong>de</strong> parentes e/ou


64mestres. Era uma função conhecida como wayting servant na Inglaterra, ou acriadagem au pair francesa, possível em uma socieda<strong>de</strong> que misturavaclasses <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e origens sociais.Assim sen<strong>do</strong>, uma parte <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico até o século XVIII naEuropa podia ser realizada não pelos menos favoreci<strong>do</strong>s, mas sim por umaclasse <strong>de</strong> jovens que se submetia durante um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> tempo, como parte<strong>de</strong> sua formação, ao life cycle servent (MACFARLANE, 1986). É claro quehavia uma hierarquização <strong>do</strong>s afazeres, os pequenos (<strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> origemsocial) serviam os maiores. Mas hierarquia era a essência <strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong> eela implicava contatos cotidianos e íntimos entre adultos e crianças; senhorese servos.1.4.2 A expulsão <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticosOutra parte da literatura européia concentra-se na fase em que os<strong>do</strong>mésticos foram “expulsos” da família mo<strong>de</strong>rna.Martin-Furgier (1979), olhan<strong>do</strong> para o <strong>de</strong>senvolvimento da <strong>do</strong>mesticida<strong>de</strong>na França, no início <strong>do</strong> século XX, entra no mun<strong>do</strong> menos integra<strong>do</strong> <strong>de</strong> servose patrões, on<strong>de</strong> a disciplinarização <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos se ancorava numa novamo<strong>de</strong>lagem familiar que exigia um relacionamento mais íntimo entre pais efilhos e um novo lugar para a mulher. Comparan<strong>do</strong> o esquadrinhamento dita<strong>do</strong>pelos manuais <strong>de</strong> boas maneiras sobre o cotidiano <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s com oimaginá<strong>rio</strong> sobre a fonte <strong>de</strong> perigo moral e social que estes elementosrepresentavam no inicio <strong>do</strong> século XX, Martin-Furgier percebe um universo jábem distante entre os supe<strong>rio</strong>res e os subalternos, daquele que <strong>de</strong>screvemosacima.


65No processo <strong>de</strong> disciplinarização da família burguesa leva<strong>do</strong> a cabo apartir <strong>do</strong> século XVIII, os cria<strong>do</strong>s tornaram-se um <strong>do</strong>s principais alvos a sercombati<strong>do</strong>s. Nada da convivência antiga era permitida. Aqueles que dividirama mesa e as camas com seus amos agora são fontes <strong>de</strong> corrupção dascrianças e <strong>de</strong>nunciam as promiscuida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s patrões, transforman<strong>do</strong>-se na“classe perigosa” (DONZELOT, 1977).Para os reforma<strong>do</strong>res sociais, a presença <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s expõe não apenasa promiscuida<strong>de</strong> no seio da família, revela também o <strong>de</strong>sleixo paterno naconservação e educação das crianças. Para promover a aproximação <strong>de</strong> paise filhos, combateu-se primeiramente as nutrizes, apontadas como manancial<strong>de</strong> maus hábitos e responsável pelo alto índice <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil.Numa época em que as mulheres pobres não tinham tempo paramaternar suas crianças e as ricas não guardavam disposição para tanto,entregar as crianças às nutrizes era um costume muito difundi<strong>do</strong> na socieda<strong>de</strong>européia. As famílias ricas, conta Donzelot (1977), podiam <strong>de</strong>ixar seus filhosaos cuida<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos, porém as mais pobres tinham <strong>de</strong>recorrer a amas-<strong>de</strong>-leite distantes, as quais acometidas pela mesma pobreza(em função <strong>do</strong> baixo custo e <strong>do</strong>s maus paga<strong>do</strong>res), criavam uma enormequantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crianças. O re<strong>sul</strong>ta<strong>do</strong> eram crianças maltratadas e malalimentadas; os riscos <strong>de</strong> vida não eram fantasmas. Muitas morriam, muitaseram aban<strong>do</strong>nadas pelos progenitores.Os reforma<strong>do</strong>res <strong>do</strong> século XVIII e XIX acusavam os pais burgueses <strong>de</strong>,ao confiarem seus filhos aos serviçais, promoverem a contaminação dascrianças com as baixezas e as liberda<strong>de</strong>s sexuais <strong>de</strong> uma gente que, quan<strong>do</strong>não se entregava à lascívia, apenas mantinha ódio e ressentimento poraqueles que os colocavam na subalternida<strong>de</strong>. Do outro la<strong>do</strong> da moeda dacon<strong>de</strong>nação à criadagem, surgia uma nova or<strong>de</strong>m familiar, baseada noestreitamento <strong>do</strong>s laços entre pais e filhos. Esta nova família construirá murospara distinguir-se da plebe e estará menos comprometida com os direitos <strong>de</strong>


66sangue e a reciprocida<strong>de</strong> entre ricos e pobres, <strong>do</strong> que com a promoção <strong>do</strong>indivíduo.1.4.3 Higiene e Domesticida<strong>de</strong>Ainda sobre os processos que tentaram promover o afastamento <strong>do</strong>scria<strong>do</strong>s <strong>do</strong> seio da família burguesa, cabe lembrar o <strong>de</strong>senvolvimento dascrenças sobre higiene para enten<strong>de</strong>r como as novas sensibilida<strong>de</strong>s vieram anortear a vida das <strong>do</strong>nas-<strong>de</strong>-casa mo<strong>de</strong>rnas Essa lógica, como sugeremhistoria<strong>do</strong>res sociais, seria fruto <strong>de</strong> um longo processo no qual as <strong>do</strong>nas-<strong>de</strong>casadas camadas médias e alta foram progressivamente imbuídas <strong>de</strong> certasnoções sobre a limpeza.G. Vigarello (1996), por exemplo, ao historicizar a higiene corporal,<strong>de</strong>screve uma época, ainda no século XVI, quan<strong>do</strong> a toalete tinha menos aver com o emprego da água na limpeza da pele <strong>do</strong> que com os cuida<strong>do</strong>s coma roupa branca. A concepção <strong>de</strong> limpeza, naquele momento, não estavaassociada à higiene, mas a um princípio moral. Vigarello preten<strong>de</strong> que “otrunfo das mãos limpas e <strong>do</strong> rosto liso não é sanitá<strong>rio</strong>. A obrigação é moral.Seu objeto é a <strong>de</strong>cência, antes <strong>de</strong> ser a higiene. O preceito pertence mais àtradição <strong>do</strong> clérigo <strong>do</strong> que à <strong>do</strong> médico.” (1996, p. 51).Somente no século XIX irá surgir a palavra higiene relativa à saú<strong>de</strong>,como um “conjunto <strong>de</strong> dispositivos e saberes que favorecem suamanutenção”. Essa idéia é <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>ra da concretização, da visibilida<strong>de</strong> que osmicroorganismos ganham nas pesquisas <strong>de</strong> Pasteur. Nas suas lâminas, peloprocesso da coloração e com auxílio <strong>do</strong> microscópio, é possível enxergar ogerme, como diz o autor, “<strong>de</strong>tectável”. A limpeza mo<strong>de</strong>rna se constituirá“contra a valorização <strong>do</strong> visível” e nesse senti<strong>do</strong> ela servirá <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> àciência. A hipótese <strong>de</strong> Vigarello (1996) é <strong>de</strong> que as transformações da prática


67e concepções sobre limpeza promovem uma atenção ao indivíduo paraconsigo mesmo num jogo com o visível.Um argumento diferente <strong>de</strong>ste <strong>de</strong> Vigarello (1996), mas queinteressantemente não chega a conclusões muito distantes, vem <strong>do</strong>shistoria<strong>do</strong>res que estudam a implantação <strong>do</strong> campo médico higienista comoprocesso disciplinar (FOUCAULT, 1977; FREIRE COSTA, 1983; entre outros).Nesta abordagem, as campanhas higienistas que se <strong>de</strong>senvolveram no final<strong>do</strong> século XIX conformaram uma moralida<strong>de</strong> totalmente nova. Sustenta<strong>do</strong>spela eficácia <strong>do</strong> progresso científico, da promoção da vida e <strong>do</strong>s benefíciosindividuais, os higienistas contribuíram para modificações profundas nasconcepções e práticas <strong>do</strong> homem. Alteraram a visão <strong>de</strong> si através da idéiaintimista, alteraram os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> relacionamentos, gestionan<strong>do</strong> novos atores epapéis sociais, alteraram as formas <strong>de</strong> morar e <strong>de</strong> cuidar <strong>do</strong> corpo.Ambas abordagens supõem uma mudança <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s e percepçõescom o <strong>de</strong>senvolvimento da socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna. Porém, diferem quanto àsforças motiva<strong>do</strong>ras da transformação. Para o argumento primeiramenteexposto, as transformações no campo perceptivo das emoções são<strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> um “processo civilizató<strong>rio</strong>”. Ou seja, a história através <strong>de</strong><strong>de</strong>terminantes sociais instaurou um processo <strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntalização irreversível.Enquanto que, para os estudiosos filia<strong>do</strong>s à linha foucaultiana, astransformações têm um aporte epistemológico mais radical. A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>instaura um reor<strong>de</strong>namento profun<strong>do</strong> <strong>do</strong> pensamento, uma ruptura com asconcepções passadas, trazen<strong>do</strong> novas formas <strong>de</strong> controle social.A formação <strong>de</strong> idéias “mo<strong>de</strong>rnas” sobre limpeza na socieda<strong>de</strong> brasileirafoi estudada por Jurandir Freire Costa (1983), que tomou a casa como locuspor excelência da militância moral das idéias higiênicas. Sob vigilância <strong>do</strong>shigienistas, a casa <strong>de</strong>ixa sua forma e função <strong>de</strong> fortaleza para abrigar novospersonagens, <strong>de</strong> uma nova família. No mun<strong>do</strong> urbano mo<strong>de</strong>rno a família nãotem mais como função ser a mola propulsora <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, dacolonização. Ela diminui seu campo <strong>de</strong> ação tornan<strong>do</strong>-se promotora <strong>de</strong>


68indivíduos. Esse novo papel será <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> pela esposa-mãe: a mulherserá retirada da reclusão da sua alcova e tornar-se-á o artífice da família i<strong>de</strong>al.Acolhe<strong>do</strong>ra, educa<strong>do</strong>ra, companheira, promoverá a saú<strong>de</strong> físico-mental <strong>do</strong>sfilhos e atuará na retaguarda da estrutura econômica familiar, acompanhan<strong>do</strong>os empreendimentos <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Por isso, a mulher é o <strong>gran<strong>de</strong></strong> pivô da ação<strong>do</strong>s higienistas. A metamorfose da família está diretamente relacionada com amudança <strong>do</strong> papel feminino.Basean<strong>do</strong>-se nos benefícios à saú<strong>de</strong> conquista<strong>do</strong>s pela medicina, oshigienistas influenciaram em novas formas <strong>de</strong> morar, organizar, limpar a casa.Uma medicina <strong>do</strong>méstica <strong>de</strong>senvolver-se-á com fins <strong>de</strong> promover a mulher eproteger a criança. Para tanto, a residência <strong>de</strong>ve-se tornar um lar: ser fresca,arejada e limpa. Longe <strong>do</strong> lixo e da pestilência, <strong>do</strong>s excrementos e daescuridão.Um <strong>gran<strong>de</strong></strong> empecilho a este projeto, na visão <strong>do</strong>s higienistas, serão osescravos. Como sustentáculo <strong>do</strong> funcionamento da casa antiga, o escravoimpedia uma intimida<strong>de</strong> <strong>do</strong>méstica. As amas-<strong>de</strong>-leite, segun<strong>do</strong> os higienistas,promovem o distanciamento entre pais e filhos, impedin<strong>do</strong> que a mãe seenvolva com as crianças. Os cria<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos também atrapalham afi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> marital.No argumento <strong>de</strong> Jurandir Freire Costa (1983), na verda<strong>de</strong>, os serviçaisjamais constituíram-se alvos <strong>do</strong> disciplinamento social. Não eram para eles osmanuais <strong>de</strong> comportamento, nem os controles médicos e pedagógicos. Anorma higienista era dirigida à elite. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o comportamento <strong>do</strong>sescravos e subalternos como naturalmente sujo, <strong>de</strong>linqüente, <strong>de</strong>genera<strong>do</strong>, asinsistências <strong>de</strong> disciplinamento os revelavam como “anti-norma”.Contra esse pano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong>, é possível contextualizar as atitu<strong>de</strong>s<strong>de</strong>monstradas pelas patroas <strong>de</strong> nossa pesquisa. A organização e limpeza nacasa das patroas <strong>de</strong> nossa amostra parece ser informada, <strong>de</strong> certa forma, poresse i<strong>de</strong>á<strong>rio</strong> higiênico apoia<strong>do</strong> em um discurso científico, que facilmente<strong>de</strong>sliza para comparações no campo da moral. A arrumação da casa <strong>de</strong>ssas


69mulheres <strong>de</strong> classe média segue uma or<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> espaço própria <strong>de</strong>socieda<strong>de</strong>s burocratizadas, on<strong>de</strong> as apreciações estéticas, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>limpeza são informadas por uma “administração <strong>do</strong> lar” que <strong>de</strong>seja otimizarespaços e tempos. A casa <strong>de</strong>stas famílias preten<strong>de</strong>-se um reflexo <strong>do</strong> cidadãodisciplina<strong>do</strong>. Numa socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> mun<strong>do</strong>s sociais hierarquicamentesepara<strong>do</strong>s se tocam diariamente, inclusive pela presença da empregada<strong>do</strong>méstica, a casa burguesa, enquanto espaço “limpo” e “organiza<strong>do</strong>”, é umadistinção em relação ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pobres.1.4.4 O serviço <strong>do</strong>méstico nas colônias da América <strong>do</strong> SulEnquanto Freire (1983) fitava a evolução <strong>de</strong> representações <strong>de</strong>organização familiar e higiene nas famílias brasileiras abastadas, outroshistoria<strong>do</strong>res, em geral mulheres, tentavam aproveitar fontes minguadas paraestudar o cotidiano das classes subalternas, em particular das empregadas<strong>do</strong>mésticas. Debruçan<strong>do</strong>-se sobre a América Espanhola, Elisabeth Kuznesof(1993), por exemplo, nos oferece em um artigo <strong>de</strong> Muchachas...., umpanorama <strong>de</strong> como o serviço <strong>do</strong>méstico serviu como um crité<strong>rio</strong> <strong>de</strong> inserçãona socieda<strong>de</strong> colonial. Na América colonial, muitos imigrantes eramregistra<strong>do</strong>s como emprega<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos e eram preferi<strong>do</strong>s e melhor pagosque servi<strong>do</strong>res indígenas 34 . Também os mestiços, filhos ilegítimos, eramtoma<strong>do</strong>s como cria<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos, assim como os órfãos e filhos <strong>de</strong> famíliaspobres que “recibían sostenimiento, educación y afeto, pero se losconsi<strong>de</strong>raba sirvientes” (1993, p. 28).Kuznesof mostra como a organização <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico, através <strong>de</strong>grêmios nas colônias espanholas (on<strong>de</strong> só homens podiam atuar), excluía amulher da vida econômica, restan<strong>do</strong>-lhe apenas ativida<strong>de</strong>s artesanais e o34 Entre 1560 e 1579 las mujeres sumaban 28, 5% <strong>de</strong> los emigrantes europeos al NuevoMun<strong>do</strong>; la maioria <strong>de</strong> ellas, <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> 1550, eram solteras y muchas estaban en la lista <strong>de</strong>pasajeros como criadas e sierventas (Kuznesof, 1993, p.35).


70serviço <strong>do</strong>méstico como alternativas <strong>de</strong> trabalho. Outrossim, naquela época oserviço <strong>do</strong>méstico era fundamental para a manutenção <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produçãoque tinha a casa como o centro produtor <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os artigos necessá<strong>rio</strong>s àvida familiar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “vesti<strong>do</strong>s, harina, velas, pólvora y muchos utensílios ymuebles... el água y la leña teníam que ser provi<strong>do</strong>s diariamente ... también...se necessitara bastante personal para cuidar <strong>de</strong> los niños” (1993, p. 27).Para esta historia<strong>do</strong>ra, o serviço <strong>do</strong>méstico passou <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong>educação respeitável na Europa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVI, para cumprir as tarefas<strong>de</strong> sustentação <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção <strong>do</strong>méstico na América Latina Colonial.Se, <strong>de</strong> alguma forma, ele serviu para qualificar imigrantes e bastar<strong>do</strong>s nasocieda<strong>de</strong> colonial, esteve sempre conjuga<strong>do</strong> ao sistema patriarcal, tanto emtermos disciplinares, aprisionan<strong>do</strong> a mulher solteira em um espaço restrito,quanto em termos da baixa valorização <strong>de</strong>sse serviço, que sempre foi poucoregula<strong>do</strong>, mal pago e que enfrentou condições <strong>de</strong> exploração marcadas porrelações paternalistas <strong>de</strong> trabalho.Kuznesof (1993) viaja da socieda<strong>de</strong> colonial até o cená<strong>rio</strong> <strong>do</strong> liberalismoque, com as idéias <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> incremento <strong>de</strong> maquinarias abriu, noséculo XX, lugar para a mulher no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho e fez <strong>de</strong>saparecer amanufatura <strong>do</strong>méstica, diminuin<strong>do</strong> até a década <strong>de</strong> 30 o número <strong>de</strong>trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong>mésticos. O fenômeno da urbanização, a expansão <strong>do</strong>sistema escolar, a i<strong>de</strong>ologia da maternida<strong>de</strong> influenciaram nesse <strong>de</strong>scenso.Porém, entre as décadas <strong>de</strong> 40-60, a entrada da mulher <strong>de</strong> classe média ealta na força <strong>de</strong> trabalho acabou reabilitan<strong>do</strong> o serviço <strong>do</strong>méstico como umadas ativida<strong>de</strong>s femininas com maior número <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>ras, voltan<strong>do</strong>,segun<strong>do</strong> Kuznesof, a ser a forma mais importante <strong>de</strong> emprego feminino naAmérica Latina.Na histo<strong>rio</strong>grafia brasileira, o serviço <strong>do</strong>méstico em geral aparece comoum <strong>do</strong>s elementos <strong>do</strong> sistema escravocrata (FREIRE COSTA, 1993;MOREIRA, 1995; FONTES, s/d). Destacamos o trabalho <strong>de</strong> SandraLau<strong>de</strong>rdale Graham (1992), por ser uma obra que, ao tratar da escravidão no


71cotidiano <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro antigo, p<strong>rio</strong>riza a dimensão <strong>do</strong>s afazeres<strong>do</strong>mésticos; seja nas rotinas da execução <strong>de</strong>sse trabalho, seja nos códigos <strong>de</strong>relacionamentos que ele estabelecia. Através <strong>de</strong> uma minuciosa leitura <strong>de</strong><strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro imperial, Graham nos revela um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>nso<strong>de</strong> relações que a estreita convivência entre patrões e criadas gerava.Para analisar este relacionamento, Graham tomou <strong>de</strong> empréstimo ascategorias <strong>de</strong> Roberto da Matta, argumentan<strong>do</strong> que “a casa” e “a rua” serviamcomo <strong>de</strong>marca<strong>do</strong>res <strong>de</strong> universos sociais e culturais que se opunham. Oespaço por on<strong>de</strong> se transitava <strong>de</strong>limitava a categoria social <strong>de</strong> pertencimento<strong>do</strong>s indivíduos.Na casa, cená<strong>rio</strong> da vida <strong>do</strong>méstica, as leis patriarcais portuguesas e aspráticas escravocratas se mesclavam, geran<strong>do</strong> um ambiente <strong>de</strong> reclusão esegurança para as mulheres. Para o imaginá<strong>rio</strong> da época, ela se opunha àrua, espaço <strong>de</strong> in<strong>de</strong>terminação, por on<strong>de</strong> transitavam figuras suspeitas, lugar<strong>de</strong> ruelas estreitas e sujas, da balbúrdia <strong>do</strong> comércio e <strong>do</strong> congestionamento<strong>de</strong> gentes e carroças. Nela, diz Graham “a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> não podia serpresumida, mas tinha que ser estabelecida” (1992, p. 16). As senhoraspermaneciam afastadas das ruas, assim como algumas categorias <strong>de</strong>escravos.A enorme quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cria<strong>do</strong>s que uma casa exigia distribuía-se entreativida<strong>de</strong>s ‘portas a <strong>de</strong>ntro’ (cozinheiras, amas-<strong>de</strong>-leite, mucamas ecostureiras) e ‘portas a fora’ (lava<strong>de</strong>iras, carrega<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> água, alémdaquelas que faziam as compras). A prática <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico, que incluía<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o aleitamento das crianças até o transporte <strong>de</strong> <strong>de</strong>jetos humanos,<strong>de</strong>senrolava-se nesses <strong>do</strong>is ambientes. O cumprimento <strong>de</strong>ssas tarefasclassificava pessoas e atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> mesmo como a casa e a rua <strong>de</strong>marcavamuniversos diferentes: “no sollo i<strong>de</strong>ntificaba a las mujeres <strong>de</strong> diferentes classessociales, sino que adicionalmente estlabecia diferencias entre las mujeres<strong>do</strong>mésticas <strong>de</strong> la misma classe” (GRAHAM, 1993, p. 72).


72As criadas realizavam estas tarefas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um código <strong>de</strong> trabalho eobediência às leis patriarcais e em troca recebiam a proteção <strong>do</strong>s patrões.Entretanto, examinan<strong>do</strong> os espaços <strong>de</strong> interação <strong>de</strong>ssas mulheres <strong>do</strong> serviço<strong>do</strong>méstico nos merca<strong>do</strong>s e nos chafarizes, Graham relativiza a autorida<strong>de</strong>patriarcal, mostran<strong>do</strong> o quanto as categorizações da casa e da rua podiam serrevertidas, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> da experiência cultural <strong>de</strong> cada um. A rua “perigosa”transforma-se, para essas criadas, num espaço distante da vigilância <strong>do</strong>spatrões e on<strong>de</strong> elas po<strong>de</strong>riam “participar em um mun<strong>do</strong> social maisdiversifica<strong>do</strong> e igualitá<strong>rio</strong>” (1993, p. 73). Ao <strong>de</strong>screver os encontros comamantes, companheiras <strong>de</strong> trabalho, as horas <strong>de</strong> espera <strong>de</strong> secagem <strong>de</strong>roupa e as visitas aos merca<strong>do</strong>s, a historia<strong>do</strong>ra nos faz conhecer um universodiverso das casas patriarcais, revelan<strong>do</strong> uma sociabilida<strong>de</strong> popular, na qual ascriadas transitavam com uma <strong>de</strong>senvoltura inesperada ante a rigi<strong>de</strong>z <strong>do</strong>controle patronal.De toda a <strong>de</strong>scrição pormenorizada e envolvente, <strong>de</strong>staca-se comocontribuição original da autora o esforço para penetrar nas representações evivências das próprias personagens, on<strong>de</strong> é possível reconhecer tanto asperspectivas <strong>do</strong>s patrões como <strong>do</strong>s subalternos.Nos próximos capítulos entramos na <strong>de</strong>scrição etnográfica, tratan<strong>do</strong> dasrelações entre patrões e emprega<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos pesquisa<strong>do</strong>s entre 1995 e1997 no Espírito Santo. Destacamos estas relações, primeiro, no espaço dacasa das patroas e, <strong>de</strong>pois, no espaço <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> bairro <strong>de</strong> moradiadas empregadas <strong>do</strong>mésticas. Buscamos, <strong>de</strong>ssa forma, abarcar asambigüida<strong>de</strong>s que essa relação controvertida ocupa na socieda<strong>de</strong> brasileira.2 NA CASA DA PATROA I: AFETO E DESIGUALDADEApesar das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r evi<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong>siguais que, semdúvida, caracterizam este relacionamento [entre empregada epatroa], é a ambigüida<strong>de</strong> afetiva da relação que exige mais análise.É na troca afetiva entre aquelas que po<strong>de</strong>m pagar pela ajuda<strong>do</strong>méstica e as [mulheres] pobres que oferecem seus serviços que


73as relações <strong>de</strong> classe são praticadas e reproduzidas. (GOLDSTEIN,2000, manuscrito) 35 .Nos lares brasileiros <strong>de</strong> classe média e alta, as relações familiares sãocotidianamente permeadas pela presença <strong>do</strong>s serviçais, os quais realizamto<strong>do</strong> o trabalho <strong>do</strong>méstico, inclusive o cuida<strong>do</strong> das crianças. Como diz DonnaGoldstein (2000), manter uma empregada <strong>do</strong>méstica é um sinal diacrítico nasocieda<strong>de</strong> brasileira, que sinaliza a distância da pobreza.Na própria realização das tarefas <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong> e manutenção das casas edas pessoas – <strong>de</strong>sempenhada, na esmaga<strong>do</strong>ra maioria das vezes, pormulheres pobres, fora da parentela <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>res –, assim como nasformas <strong>de</strong> remuneração e <strong>de</strong> relacionamento que se <strong>de</strong>senvolvem entrepatrões e empregadas <strong>do</strong>mésticas, reproduz-se um sistema altamenteestratifica<strong>do</strong> <strong>de</strong> gênero, classe e <strong>de</strong> cor 36 . No Brasil, a manutenção a<strong>de</strong>quada<strong>de</strong>sse sistema hierárquico que o serviço <strong>do</strong>méstico <strong>de</strong>svela tem si<strong>do</strong>garantida, em particular, por uma ambigüida<strong>de</strong> afetiva 37 entre osemprega<strong>do</strong>res – sobretu<strong>do</strong> as mulheres e as crianças – e as trabalha<strong>do</strong>ras<strong>do</strong>mésticas. Nas negociações <strong>de</strong> pagamentos extra-salariais, na troca <strong>de</strong>serviços não vincula<strong>do</strong>s ao contrato, nas fofocas entre mulheres e trocas <strong>de</strong>carinhos com as crianças é impossível <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> reconhecer a existência <strong>de</strong>uma carga forte <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong>. Esta, no entanto, não impe<strong>de</strong> uma relaçãohierárquica, com clara <strong>de</strong>marcação entre chefe e subalterno, isto é, entreaqueles que po<strong>de</strong>m comprar os serviços <strong>do</strong>mésticos e aqueles que35Despite the obviously unequal power relations that un<strong>do</strong>ubtedly characterize thisrelationship [between maid and employer], it is the affective ambiguity of the relationship thatrequires further analyses. In the affective exchange between those who can afford <strong>do</strong>mestichelp and the poor who offer their services, class relations are practiced and re produced(GOLDSTEIN, 2000, manuscript)36 Elegen<strong>do</strong> um recorte que privilegia os fatores <strong>de</strong> gênero e classe, refiro ao leitor ostrabalhos <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> (1989), Goldstein (2000) e Barcellos (1996) para uma discussão sobre aquestão <strong>de</strong> cor nas relações entre empregadas <strong>do</strong>mésticas e suas patroas no Brasil.37 Conforme <strong>de</strong>monstra o trabalho <strong>de</strong> Goldstein (2000), cita<strong>do</strong> na epígrafe <strong>de</strong>ste capítulo.


74encontram, na oferta <strong>de</strong> seus serviços, uma das alternativas menos duras <strong>de</strong>sobrevivência no Brasil.Trata-se, portanto, <strong>de</strong> um processo amplo <strong>de</strong> reprodução da<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. Porém, a dimensão <strong>de</strong>ste processo que nos interessa écentrada especificamente num tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> ligada à esfera <strong>do</strong>méstica – o“trabalho reprodutivo”. Este trabalho é <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pela antropóloga Shellee Colencomo o trabalho “físico, mental e emocional necessá<strong>rio</strong> para a geração,criação e socialização <strong>de</strong> crianças, assim como a manutenção <strong>de</strong> casas[households] e pessoas (da infância até a velhice)” (1995, p. 78) 38 .Para <strong>de</strong>screver o mo<strong>do</strong> como as tarefas “reprodutivas” têm si<strong>do</strong>distribuídas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com hierarquias <strong>de</strong> classe, <strong>de</strong> raça, <strong>de</strong> grupos étnicos e<strong>de</strong> gênero, Colen (1995) cunhou o conceito <strong>de</strong> reprodução estratificada.Através da análise <strong>de</strong> um contexto particular – o <strong>de</strong> babás caribenhas (emgeral, negras) em Nova York – mostra como o conjunto particular <strong>de</strong> valoresfamiliares abraça<strong>do</strong>s pelas mulheres profissionais da alta camada norteamericanasó se sustenta com a ajuda <strong>de</strong> serviçais oriundas <strong>do</strong>s paísespobres 39 . Estas, por sua vez, <strong>de</strong>ixam seus próp<strong>rio</strong>s filhos para serem cuida<strong>do</strong>spor outras mulheres no seu país <strong>de</strong> origem, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com valores e mo<strong>do</strong>s<strong>de</strong> organização familiar diferentes, porém complementares àqueles <strong>de</strong> suasemprega<strong>do</strong>ras. Uma certa <strong>de</strong>squalificação <strong>do</strong>s valores das mulherescaribenhas (que “aban<strong>do</strong>nam” seus filhos aos cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong> parentes evizinhos), contrastada com a exaltação <strong>do</strong>s valores daquelas que contratamseus trabalhos, seria re<strong>sul</strong>ta<strong>do</strong> da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social, política e econômicaque subjaz à relação 40 . Assim, Colen <strong>de</strong>monstra que “a reprodução38 “The reproductive labor – physical, mental, and emotional – of bearing, raising, andsocializing child and of creating and maintaining households and people (from infancy to oldage)’ (COLEN, 1995, p. 78)39 Com este caso, Colen (1995) introduz a dimensão transnacional nestas relações <strong>de</strong><strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> política, social e econômica.40 A autora indica que no contexto estaduni<strong>de</strong>nse, provavelmente em função da força <strong>do</strong>i<strong>de</strong>á<strong>rio</strong> da igualda<strong>de</strong> entre as pessoas na esfera pública, as mulheres pobres e, em geral,negras, não se submetem as condições <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico remunera<strong>do</strong>, preferin<strong>do</strong> ficar emcasa cuidan<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu próp<strong>rio</strong> lar.


75estratificada, em função particularmente da mercantilização (commodification)crescente <strong>do</strong> trabalho reprodutivo, reproduz ela mesma a estratificação aorefletir, reforçar e intensificar as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s nas quais se fundamenta”(1995, p. 78) 41 .Ao la<strong>do</strong> da noção <strong>de</strong> ambigüida<strong>de</strong> afetiva, cunhada por Goldstein (2000),o trabalho <strong>de</strong> Colen (1995) indica pistas importantes para nossa análise <strong>de</strong>relações no espaço <strong>do</strong>méstico brasileiro. Assim, neste primeiro capítuloetnográfico, <strong>de</strong>screven<strong>do</strong> as relações que se <strong>de</strong>senvolvem na casa <strong>do</strong>spatrões, procuramos mostrar o jogo <strong>de</strong> interação entre empregadas e patroasprovenientes <strong>de</strong> universos sociais distintos. Buscamos dar visibilida<strong>de</strong> àempregada <strong>do</strong>méstica no contexto da família brasileira, não como alvo <strong>do</strong>disciplinamento burguês (MARTIN-FIGIER, 1979), nem agente <strong>de</strong> poluição<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> lar burguês higieniza<strong>do</strong> (PERROT, 1988; FREIRE COSTA, 1983).Antes consi<strong>de</strong>ramos a <strong>do</strong>méstica <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certas famílias <strong>de</strong> classe médiacomo uma mulher que, no convívio diá<strong>rio</strong> com outra mulher (a <strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa),constrói, troca e remo<strong>de</strong>la saberes <strong>do</strong>mésticos, num ambiente, on<strong>de</strong>cumplicida<strong>de</strong> e antagonismo andam sempre <strong>de</strong> mãos dadas e on<strong>de</strong> a<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> subentendida nessas trocas informa um exemplo típico <strong>de</strong>“reprodução estratificada”.É evi<strong>de</strong>nte que, à luz da teoria sobre relações <strong>de</strong> gênero, nãopo<strong>de</strong>ríamos restringir o estu<strong>do</strong> apenas à relação entre as mulheres 42 . Nestaparte, como na próxima centrada nas casas das empregadas,problematizamos a trama <strong>de</strong> relacionamentos <strong>do</strong>mésticos, on<strong>de</strong> crité<strong>rio</strong>s <strong>de</strong>gênero, ida<strong>de</strong> e classe são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s na distribuição das competênciasalocadas a cada personagem da cena <strong>do</strong>méstica. Neste capítulo, enfoco as41 ”Stratified reproduction, particularly with the increasing commodification of reproductivelabor, itself reproduces stratification by reflecting, reinforcing, and intensifying the inequalitieson which it is based “(COLEN, 1995 p. 78).42 Analisan<strong>do</strong> a trajetória <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> gênero no Brasil Grossi e Miguel (1990) ressaltam aimportância <strong>de</strong> realizar pesquisas que contemplem a perspectiva relacional da construção <strong>de</strong>gênero, enfocan<strong>do</strong> as co-<strong>de</strong>terminações <strong>do</strong>s sujeitos envolvi<strong>do</strong>s na construção <strong>de</strong>stasi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Ver também (Rosal<strong>do</strong>, 1995) e (Scott, 1995), entre outros.


76famílias <strong>de</strong> classe média que compuseram nossa amostra 43 , on<strong>de</strong> é espera<strong>do</strong>da empregada <strong>do</strong>méstica o cumprimento das tarefas <strong>de</strong> limpeza, <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>da casa, das crianças, <strong>do</strong>s velhos e <strong>do</strong>s animais <strong>de</strong> forma discreta e afetiva.Com isso, os outros membros adultos po<strong>de</strong>m se <strong>de</strong>dicar a ativida<strong>de</strong>sremuneradas fora <strong>do</strong> lar. A mãe, além <strong>de</strong> trabalhar fora, toma para si oscuida<strong>do</strong>s com saú<strong>de</strong>, higiene e <strong>de</strong>coração <strong>do</strong> lar, além <strong>de</strong> manter-seamparan<strong>do</strong> e gerencian<strong>do</strong> os afetos e a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> mais ampla 44 .Do mari<strong>do</strong> é esperada a parte principal da manutenção econômica da família,que dará respal<strong>do</strong> ao investimento nas carreiras estudantis e sociais <strong>do</strong>sfilhos. Poucas tarefas <strong>do</strong>mésticas lhe são <strong>de</strong>stinadas: às vezes faz comprasno supermerca<strong>do</strong>, leva algum filho à escola ou repara algo na casa ou nocarro. Não se <strong>de</strong>stinam trabalhos <strong>do</strong>mésticos para crianças e jovens,sobretu<strong>do</strong> se forem <strong>do</strong> sexo masculino. Em geral, estes jovens têm seus diasquase totalmente ocupa<strong>do</strong>s pela escola e sobretu<strong>do</strong> por cursoscomplementares <strong>de</strong> Inglês, Matemática, Música, Dança e Esportes 45 .Veremos, portanto, no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico, umacomplementarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> papéis em que, como no caso <strong>de</strong>scrito por Colen(1995), por um la<strong>do</strong>, a empregada, pela sua contribuição nas tarefas<strong>do</strong>mésticas, liberta os pais e filhos para promoverem um projeto familiar típicoda classe média. O outro la<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa colaboração, no entanto, aponta para oaspecto “estratifica<strong>do</strong>” da relação – a distância social que é sutilmentemarcada entre a empregada e os outros membros da unida<strong>de</strong> <strong>do</strong>méstica, etambém os antagonismos que surgem à medida que as empregadasprocuram usar seu emprego para garantir a sobrevivência e promoção <strong>de</strong>suas próprias famílias.43A <strong>de</strong>scrição particular <strong>do</strong> grupo investiga<strong>do</strong> encontra-se na seção “CaminhosMeto<strong>do</strong>lógicos”, na Introdução <strong>de</strong>ste trabalho.44 Neste aspecto, a organização da família classe média no Brasil não parece muito diferente<strong>do</strong> “kin work” que cabe geralmente à <strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa norte-americana <strong>de</strong>scrita por Di Leonardi(1992).45 Ver Salem (1980) para uma <strong>de</strong>scrição ainda bastante atualizada da distribuição <strong>de</strong> tarefassegun<strong>do</strong> sexo e geração, <strong>de</strong>ntro da família brasileira das camadas médias.Para umaperspectiva das experiências das família das classes médias brasileiras ver Velho (1989),Salem (1986) e Heilborn (1983).


772.1 Praia Velha - diversida<strong>de</strong> estratificadaQuan<strong>do</strong> se sai à rua bem ce<strong>do</strong> da manhã nos bairros classe média <strong>de</strong>Vitória, vê-se um <strong>gran<strong>de</strong></strong> número <strong>de</strong> mulheres caminhan<strong>do</strong> a passos curtos.Em geral, são mulheres <strong>de</strong> pele escura, sen<strong>do</strong>, muitas <strong>de</strong>las, negras. Vestempreferencialmente bermuda ou calça jeans e camiseta e algum calça<strong>do</strong>surra<strong>do</strong>. Os cabelos trazem presos por tiaras ou lenços. Nas mãos, umasacola <strong>de</strong> plástico ou <strong>de</strong> papel faz as vezes <strong>de</strong> bolsa feminina. Muitas <strong>de</strong>lascarregam um saquinho <strong>de</strong> pão da padaria. No final da tar<strong>de</strong>, novamenteencontramos essas mesmas mulheres lotan<strong>do</strong> os coletivos que ligam Vitóriaaos bairros <strong>de</strong> periferia 46 .Como, em geral, não existem fábricas nos bairros resi<strong>de</strong>nciais dasclasses médias, um visitante estrangeiro po<strong>de</strong>ria se perguntar quem sãoaquelas mulheres <strong>de</strong> fenótipo e vestes tão semelhantes e para on<strong>de</strong> seencaminham. Um mora<strong>do</strong>r habitué <strong>do</strong> bairro, porém, não terá dúvidas. Verálogo que se tratam <strong>de</strong> empregadas <strong>do</strong>mésticas dirigin<strong>do</strong>-se às “casas <strong>de</strong>família”, on<strong>de</strong> passarão <strong>gran<strong>de</strong></strong> parte <strong>do</strong> dia limpan<strong>do</strong>, cozinhan<strong>do</strong>, cuidan<strong>do</strong>das crianças e até mesmo in<strong>do</strong> às feiras e merca<strong>do</strong>s, correios e bancos,realizan<strong>do</strong> o trabalho <strong>de</strong> reprodução <strong>de</strong>sses lares.Depois das nove horas da manhã, especialmente na Praia Velha – obairro <strong>de</strong> classe média alta on<strong>de</strong> realizei a primeira parte da pesquisa – asruas são tomadas por um movimento intenso <strong>de</strong> carros importa<strong>do</strong>s ou <strong>de</strong>último tipo na frente das clínicas <strong>de</strong> beleza, <strong>de</strong> mulheres elegantes visitan<strong>do</strong>as butiques e <strong>de</strong>leitan<strong>do</strong>-se com as vitrines, <strong>de</strong> pessoas e crianças in<strong>do</strong> e46 Praia Velha é um entre vá<strong>rio</strong>s bairros da cida<strong>de</strong> cujos mora<strong>do</strong>res <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> uma renda emo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida não muito distantes <strong>do</strong>s membros das “camadas médias” <strong>de</strong>scritas por Salem(1980). Sobre o mapeamento <strong>do</strong> espaço urbano, conforme diferentes classes e estilos <strong>de</strong>vida, veja Velho (1973).


78vin<strong>do</strong> da praia que fica a 200 metros da rua principal. Como, a esta altura, osmora<strong>do</strong>res que trabalham fora já partiram e as empregadas estão <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>sapartamentos ou cuidan<strong>do</strong> das crianças nas praças, vemos nas praias e nasruas uma população muito privilegiada, consumin<strong>do</strong> produtos caros ouentregues ao lazer, tal como estivessem numa estação <strong>de</strong> férias.Em qualquer ambiente social é possível distinguir pessoas e grupos. Seestamos senta<strong>do</strong>s num bar e olhamos ao re<strong>do</strong>r, não é difícil supor que talmesa esteja ocupada por jovens estudantes, outra por executivos ou porfamília <strong>de</strong> classe média, mas não temos certeza quanto à ocupação exata eproveniência <strong>de</strong>ssas pessoas.


79O ônibus que liga a ilha <strong>de</strong> Vitória aos bairros da periferia da RegiãoMetropolitana, em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s horá<strong>rio</strong>s, são ocupa<strong>do</strong>s por uma população peculiar:empregadas <strong>do</strong>mésticas in<strong>do</strong> e vin<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu trabalho.Figura 01: “O trajeto <strong>do</strong> trabalho”. Autoria: Sandro José da Silva; Serra; 1996;fonte: acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografia digitalizada noPhoto Editor.O que, na socieda<strong>de</strong> brasileira, faz com que seja tão fácil reconhecer aprofissão daquelas mulheres madruga<strong>do</strong>ras? A resposta a essa perguntaremete-se à diversida<strong>de</strong> estratificada 47 que caracteriza o Brasil. Conforme o47Assumidamente, tomamos inspiração na análise <strong>de</strong> Colen (1995) para adjetivar como“estratificada” certas noções, e <strong>de</strong>sta forma sublinhar, para o caso brasileiro, relações <strong>de</strong>extrema <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>.


80espaço social que ocupam, as pessoas apresentam fenótipo, roupas e hexiscorporal diferentes 48 e, em <strong>gran<strong>de</strong></strong> medida, aproximam-se <strong>do</strong> espaço público<strong>de</strong> forma particular. Estas pessoas – as mulheres que povoam as ruas <strong>do</strong>bairro classe média às sete da manhã – estariam completamente “fora <strong>de</strong>lugar” caso não estivessem in<strong>do</strong> cumprir seu papel, ocupan<strong>do</strong> seu <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>lugar, como empregada <strong>do</strong>méstica, em uma casa <strong>de</strong> família 49 .Elegemos, portanto, a casa <strong>do</strong>s patrões como um <strong>do</strong>s settingsprivilegia<strong>do</strong>s <strong>de</strong> análise, pois é na negociação cotidiana da organização <strong>de</strong>steespaço <strong>do</strong>méstico que se manifesta o encontro mais intenso das classesmédias e as trabalha<strong>do</strong>ras 50 . A casa da patroa é o locus da interação entreesses grupos, on<strong>de</strong> a construção social <strong>de</strong> empregada <strong>do</strong>méstica se verifica.Nossa primeira estratégia meto<strong>do</strong>lógica foi <strong>de</strong>bruçar-nos sobre o rosá<strong>rio</strong><strong>de</strong> queixas que as patroas teciam sobre suas empregadas. Queixasexaustivas sobre limpeza, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, insolências, mentiras, faltas e osintoleráveis "roubos” que as patroas atribuíam às empregadas.Tomamos as queixas não apenas como acusações <strong>do</strong>s patrões, mascomo mal-entendi<strong>do</strong>s sociológicos, levantan<strong>do</strong> como hipótese a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> uma construção diferencial tanto das concepções <strong>de</strong> limpeza eorganização <strong>do</strong>méstica, quanto <strong>de</strong> <strong>de</strong>veres e direito. Dentro <strong>de</strong>steentendimento, restava-nos por um la<strong>do</strong> encontrar os elos <strong>de</strong> comunicação(necessariamente existentes entre grupos em interação) e, por outro la<strong>do</strong>,<strong>de</strong>scobrir se, em haven<strong>do</strong> algum tipo <strong>de</strong> autonomia simbólica, por quecaminhos ela se constrói.48 Ver Bourdieu (1962).49 “Casa <strong>de</strong> família” é o termo largamente usa<strong>do</strong> não só por <strong>do</strong>mésticas, mas poremprega<strong>do</strong>res e po<strong>de</strong> até mesmo aparecer em <strong>do</strong>cumentos jurídicos que <strong>de</strong>signa o lugar <strong>do</strong>trabalho da servi<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>méstica. A conotação marcante <strong>do</strong> adjetivo “<strong>de</strong> família”, parece oporseàquilo que também presume-se como lugar <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>ssas mulheres – ou seja, a casa<strong>de</strong> prostituição.50 A pesquisa, realizada na casa das empregadas, que serviu <strong>de</strong> contraponto ao queobservávamos no ambiente <strong>de</strong> classe média será apresentada nos <strong>do</strong>is capítulos seguintes.


812.2 Os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> fazer: limpeza e organização“Elas limpam só por on<strong>de</strong> passa o padre!” Esse é um dita<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong>entre as patroas, que às vezes aparece com a variação “por on<strong>de</strong> passa asogra”, ou “on<strong>de</strong> passa o estandarte” 51 . Ele indica a falta <strong>de</strong> “capricho” das“<strong>do</strong>mésticas” (notadamente as empregadas <strong>do</strong>mésticas): a falta <strong>de</strong> esmero nalimpeza <strong>do</strong>s cantinhos, a vassoura que não passa atrás <strong>do</strong>s móveis, a sujeiraacumulada nas reentrâncias <strong>do</strong>s eletro<strong>do</strong>mésticos, os respingos <strong>de</strong> gorduraperto <strong>do</strong> fogão e as gavetas atopetadas <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o que é badulaque. “Elassocam tu<strong>do</strong>! Nada vai para o lugar. Enfiam tu<strong>do</strong> nos armá<strong>rio</strong>s, escon<strong>de</strong>m asujeira!”Até pouco tempo atrás, a faxineira era uma mulher justamente que sediferenciava da empregada, por trabalhar esporadicamente (quinzenalmenteou uma vez ao mês) em uma limpeza profunda das janelas, portas earmá<strong>rio</strong>s 52 . Hoje, a faxineira se limita a uma “arrumação” (outra reclamaçãodas patroas) e limpeza básica (leia-se superficial) por semana: “limpam obanheiro, tiram o pó, passam algumas peças <strong>de</strong> roupa, mas não arredamto<strong>do</strong>s os móveis, não batem todas as almofadas e tapetes, não limpam osazulejos com alvejante, não limpam a caixa <strong>de</strong> gordura”.Po<strong>de</strong>ríamos estranhar tais queixas, imaginan<strong>do</strong> que, justamente nesteponto – nas ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>mésticas – haveria motivo para prever umacumplicida<strong>de</strong> entre mulheres (empregada e patroa) que compartilham, <strong>de</strong>certa forma, da mesma responsabilida<strong>de</strong>. Suely Kofes, no entanto, já<strong>de</strong>smistificou essa expectativa há quase vinte anos: “Patroa e empregada <strong>de</strong>51 Essas expressões evocam figuras <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>riam censurar tanto a empregadacomo a <strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa.52 Existiam, tradicionalmente, diaristas, tais como lava<strong>de</strong>iras e passa<strong>de</strong>iras, que prestavamserviços. (Em certas casas <strong>de</strong> Vitória, continuam a existir ainda hoje.) No entanto, a limpezarotineira da casa cabia normalmente a empregadas que <strong>do</strong>rmiam no local ou, no mínimo,vinham to<strong>do</strong> dia trabalhar na casa <strong>do</strong> patrão (GRAHAN, 1992).


82fato compartilham o mesmo saber sobre o mesmo universo. Mas uma parafazer, outra para mandar” (1982, p. 181).De fato, o costume <strong>de</strong> dispor <strong>de</strong> alguém para a execução <strong>de</strong> to<strong>do</strong> otrabalho <strong>do</strong>méstico (das tarefas básicas <strong>de</strong> reprodução <strong>do</strong>méstica – cozinhar,limpar a casa – até a manutenção da or<strong>de</strong>m e da beleza) <strong>de</strong>sonera to<strong>do</strong>s os<strong>de</strong>mais membros da casa. Sobretu<strong>do</strong> os homens adultos e as crianças sãodispensa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> menor trabalho. Encontrei pessoas que pressupunham que aempregada tivesse como obrigação também juntar as roupas sujas <strong>do</strong> chão,sem contar quan<strong>do</strong> não as recolhem molhadas no box <strong>do</strong> banheiro. A<strong>de</strong>svalorização radical <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico, sem dúvida herdada da épocaescravista (ver GOLDSTEIN, 2000, entre outros), aparece com clareza naresposta dada por crianças e mesmo adultos da casa, quan<strong>do</strong>, por ventura,lhes é solicita<strong>do</strong> algum pequeno serviço (<strong>de</strong>scarregar as compras, dar banhono cachorro ou buscar um objeto qualquer): “Tá pensan<strong>do</strong> que sou tuaempregada?”.Quan<strong>do</strong> se queixa da incompetência da empregada, insinua-se, então,uma dupla con<strong>de</strong>nação: não somente ela cumpre tarefas <strong>de</strong> poucaimportância – quase aviltantes, como nem isso ela faz bem!Mesmo as patroas mais compreensivas, como a seguinte (a única entreas que entrevistei que contratava faxineiras e passa<strong>de</strong>iras para aliviar otrabalho da <strong>do</strong>méstica, sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a moça engravi<strong>do</strong>u), reconhece as“limitações” <strong>de</strong> sua empregada: ! " #


83 $ %A obsessão com a or<strong>de</strong>m se esten<strong>de</strong> a to<strong>do</strong>s os cantos da casa:" &% ' $ ( )* %* &As patroas frisam que, no final <strong>de</strong> semana, refazem a arrumação dasgavetas, a organização <strong>do</strong>s espaços e limpam algum cantinho - pois asempregadas não têm capacida<strong>de</strong> ou disposição para fazê-lo. Uma patroabastante exigente me contou: + , %- &% ! Especulan<strong>do</strong> sobre o porquê <strong>de</strong>stas queixas, po<strong>de</strong>mos levantar umasérie <strong>de</strong> hipóteses. Em primeiro lugar, é mister reconhecer que asempregadas vêm <strong>de</strong> um contexto bem distinto <strong>do</strong> <strong>de</strong> sua patroa e adquiriramcompetências <strong>do</strong>mésticas <strong>de</strong> outra or<strong>de</strong>m.É fundamental ressaltar que as empregadas com as quais trabalhei não<strong>de</strong>monstram se sentir incompetentes nas lidas da casa. Muito pelo contrá<strong>rio</strong>,frisam como, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito ce<strong>do</strong>, são treinadas para serem <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa.Começam por cuidar das crianças menores <strong>do</strong> que elas, logo apren<strong>de</strong>m a


84limpar a casa e cozinhar para os homens ou para outros membros <strong>do</strong> grupo<strong>do</strong>méstico que estejam trabalhan<strong>do</strong> 53 . Ter sua própria casa, cuidar <strong>de</strong>la a seumo<strong>do</strong>, cozinhar e lavar para o seu homem e suas crianças é a projeção <strong>de</strong>uma vida adulta para as mulheres <strong>do</strong>s grupos populares.Quan<strong>do</strong> questionava as empregadas on<strong>de</strong> elas haviam aprendi<strong>do</strong> a fazero trabalho <strong>do</strong>méstico, a resposta corrente era: “Em casa. Aprendi tu<strong>do</strong> emcasa!”No entanto, as casas on<strong>de</strong> elas foram criadas não são equipadas, nemorganizadas da mesma forma que as casas burguesas.Poucas <strong>de</strong>las têm cerâmica no chão, vidros nas janelas e portas. E o quedizer <strong>de</strong> azulejos, então? Faz pouco tempo que os eletro<strong>do</strong>mésticos – além <strong>do</strong>fogão a gás e a gela<strong>de</strong>ira – começaram a chegar nos seus bairros. Raras sãoas empregadas <strong>do</strong>mésticas que na sua casa têm liqüidifica<strong>do</strong>res. Nunca viuma bate<strong>de</strong>ira, uma torra<strong>de</strong>ira. Apenas nestes últimos <strong>do</strong>is anos, “tanquinhos”– máquinas <strong>de</strong> lavar roupas simplificadas, as quais não possuem a função <strong>de</strong>centrifugação – começaram a constar como <strong>gran<strong>de</strong></strong> conquista para a <strong>do</strong>na <strong>de</strong>casa pobre 54 . Portanto, mesmo sen<strong>do</strong> filhas ou netas <strong>de</strong>53 Sobre o trabalho <strong>de</strong> meninas no lar con<strong>sul</strong>tar Alvim (1990), Macha<strong>do</strong> Neto (1980) e Ma<strong>de</strong>ira(1997).54 Hill (1995) e Elisabeth Bortalaia Silva (1998), mesmo pesquisan<strong>do</strong> em épocas diferentesressaltaram que a introdução <strong>de</strong> novas tecnologias no ambiente <strong>do</strong>méstico nem sempre vemaliviar a carga <strong>do</strong> trabalho. Muitas vezes eles impõem uma complexida<strong>de</strong> à qual a mulher nãose adapta tão rapidamente. No capítulo um, estas questões são colocadas em perspectiva.


85FIGURA 02: “Cozinha da empregada”. Autoria: Sandro José da Silva; Serra;1996; fonte: acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografia digitalizadano Photo Editor.FIGURA 03: “Cozinha da patroa”. Autoria: Sandro José da Silva; Vitória; 1996,fonte: acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografia digitalizada.<strong>do</strong>mésticas, as empregadas que pesquisei não estão, necessariamente,preparadas para o trânsito livre pelos espaços sofistica<strong>do</strong>s das classesmédias e altas. São competências que <strong>de</strong>vem ser, e, geralmente, são,rapidamente adquiridas.Mas po<strong>de</strong>ríamos sugerir que a discordância entre as patroas e asempregadas advém também <strong>de</strong> concepções diferentes sobre o que seja


86limpar e arrumar uma casa. Sem dúvida, a extrema insatisfação das patroasse remete, em parte, a um padrão <strong>de</strong> <strong>do</strong>mesticida<strong>de</strong>, tal como foi previsto porVigarello (1996) e Freire Costa (1983), que alia noções <strong>do</strong> campo médico,arquitetônico e administrativo. Um <strong>gran<strong>de</strong></strong> investimento é dispensa<strong>do</strong>, porexemplo, no planejamento e <strong>de</strong>coração, sobretu<strong>do</strong> das áreas <strong>de</strong> serviços ecozinhas. Apesar das salas <strong>de</strong> visita serem importantes, as partes funcionaisda casa recebem atenção especial com inúmeros armá<strong>rio</strong>s, lavan<strong>de</strong>rias comlugar para cada item e varais com sistema sofistica<strong>do</strong> <strong>de</strong> uso.Zelan<strong>do</strong> pelo bom <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> um papel que lhes foi historicamente<strong>de</strong>lega<strong>do</strong>, as patroas encontram no discurso da patologia médica suporte parasuas crenças. Limpa-se para evitar germes, contaminações, <strong>do</strong>enças. Anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinfetantes, <strong>de</strong> limpar os cantinhos, <strong>de</strong> lavarseparadamente calcinhas e guardanapos, entre outras coisas, <strong>de</strong>nuncia umvínculo entre as noções <strong>de</strong> limpeza e o campo médico. Limpa-se o invisível.Como Emengarda, uma das empregadas entrevistadas, contava: “Ela [apatroa] exige que a gente lave o chão com água quente e sabão. Só <strong>de</strong>pois<strong>de</strong> enxaguar bem e secar ela manda a gente passar a cera”. Vejo aquiexemplos <strong>do</strong> que referimos no primeiro capítulo, sobre o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>noções da <strong>do</strong>mesticida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna relacionada com higiene e a "visibilida<strong>de</strong>"ou não da sujeira (VIGARELLO, 1996).Esta segunda hipótese sobre concepções diferentes <strong>de</strong> limpar estariaapoiada em certas falas e práticas das empregadas, muitas das quais juramque fazem o máximo para satisfazer as patroas, produzin<strong>do</strong> com seu trabalhoum re<strong>sul</strong>ta<strong>do</strong> visível e rápi<strong>do</strong>. No final <strong>do</strong> expediente <strong>de</strong> trabalho, a casa não


87Nas casas <strong>de</strong> JardimVeneza – in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong>seu grau <strong>de</strong> conforto – nãoexistem instalaçõeshidráulicas internas. Oschuveiros (quan<strong>do</strong>existem), as pias e ostanques ficam no pátio.FIGURA 04: “Área <strong>de</strong> serviço da empregada”. Autoria: SandroJosé da Silva; Serra; 1996; fonte: acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>;tamanho: 10x15; fotografia digitalizada no Photo Editor.FIGURA 05: “Área <strong>de</strong> serviço da patroa”. Autoria:Sandro José da Silva; Vitória; 1996; fonte: acervopessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografiadigitalizada no Photo Editor.


88po<strong>de</strong> apresentar vestígios <strong>de</strong> coisas por fazer: as camas <strong>de</strong>vem estar bemfeitas até à noite (embora tenham si<strong>do</strong> estendidas pela manhã), a cozinhalimpa com a pia seca, o fogão e utensílios brilhan<strong>do</strong>, os brinque<strong>do</strong>s dascrianças guarda<strong>do</strong>s, a roupa lavada e, se possível - aquilo que as patroasmais a<strong>do</strong>rariam, os panos <strong>de</strong> limpeza alvos, estendi<strong>do</strong>s no varal. Frisam aindaque, em uma casa on<strong>de</strong> as pessoas transitam durante o dia inteiro, essa nãoé uma tarefa fácil:. % / # % 0 # - 1 %2 Para estas empregadas, limpar parece estar junto com arrumar,embelezar. A quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> material <strong>de</strong> limpeza que elas usam, razão <strong>de</strong>queixa permanente das patroas, está associada à idéia <strong>de</strong> que a casa nãotem apenas que estar limpa, mas parecer limpa. Advém daí o gosto porsabões que façam bastante espuma e cheiro, pelo brilho, por exemplo,observa<strong>do</strong> no areamento das panelas, no enceramento <strong>do</strong>s assoalhos e naescolha <strong>de</strong> enfeites brilhantes que verificamos em suas próprias residências 55 . * & 3 ( 55 Veja no capítulo cinco da tese, on<strong>de</strong> exploro mais o aspecto da <strong>do</strong>mesticida<strong>de</strong> daempregada.


89 ) 4 1 Na ênfase dada por empregadas a certas tarefas <strong>do</strong>mésticas, apareceuma outra noção <strong>de</strong> limpeza, associada a uma aparência bonita, brilhante,que se possa ver. Por exemplo, o relato sobre técnicas <strong>de</strong> limpeza <strong>de</strong> Túlia -empregada experiente, <strong>do</strong>na <strong>de</strong> uma casa que <strong>de</strong>stoa das outras <strong>de</strong> seubairro pelo esmero da arrumação - não há menção nenhuma a germes emicróbios. O limpo é visível 56 . Na organização <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> social <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vêmas empregadas, o próp<strong>rio</strong> significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> que seja cuidar da casa po<strong>de</strong> assumiroutros contornos. No entanto, as patroas não concebem a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>uma outra or<strong>de</strong>m. Agem como se existisse (como se só pu<strong>de</strong>sse existir) umúnico código <strong>de</strong> valores e perspectivas compartilha<strong>do</strong> entre elas 57 .Esta constatação leva a uma terceira hipótese que não é inteiramenteincompatível com as primeiras duas, <strong>de</strong> que as queixas têm como objetivomarcar a fundamental infe<strong>rio</strong>rida<strong>de</strong> da empregada. Assim, transparecemidéias <strong>de</strong> que essas trabalha<strong>do</strong>ras portam uma incapacida<strong>de</strong> pessoal, fruto <strong>do</strong><strong>de</strong>spreparo cultural, moral e cognitivo <strong>do</strong>s grupos <strong>de</strong> baixa renda. Trata-se <strong>de</strong>uma censura sutil e constante que acompanha a <strong>de</strong>squalificação da própria56 No bairro <strong>de</strong> moradia das empregadas, observamos que, mesmo dispon<strong>do</strong><strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> encanamento <strong>de</strong> água em suas casas, essas mulheres têmo costume <strong>de</strong> armazenar água da chuva em tonéis. Como o Espírito Santoenfrentava um surto <strong>de</strong> <strong>de</strong>ngue na época da pesquisa, perguntamos sobre avisita <strong>do</strong>s técnicos da saú<strong>de</strong> pública: “Ah, eles andaram por aí, botaramremédio aqui, mas logo que eles saíram verti toda água fora. Ora, botarveneno na água da gente!” (Claudina). Para essas pessoas, o “veneno” e osmicróbios coloca<strong>do</strong>s na água são igualmente imperceptíveis. Mas como elasviram alguém botar o veneno no tanque, ele torna-se, portanto, mais real queo micróbio ou mal por ele causa<strong>do</strong>. No capítulo um, indico a discussão acercadas noções <strong>de</strong> limpeza levanta<strong>do</strong>s por Vigarello (1996), on<strong>de</strong> a questãovisibilida<strong>de</strong>/invisibilida<strong>de</strong> tornam-se fundamentais para <strong>de</strong>finir representaçõessobre higiene.57 Mary Douglas (1976) <strong>de</strong>substancializa a idéia <strong>de</strong> limpeza e sujeira: ”não há sujeira absoluta:ela existe aos olhos <strong>de</strong> quem vê” (1976, p. 12). Eliminar a sujeira, ensina a antropológa, é umato <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nação simbólica. Implica numa classificação que or<strong>de</strong>na o ambiente que nosenvolve.


90ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> limpar a casa. Assim, ao reexaminar as queixas, vemos – talcomo outras pesquisa<strong>do</strong>ras trabalhan<strong>do</strong> no Brasil – frases como: “Não seiquantas vezes já ensinei...mas ela não enten<strong>de</strong>”; “Eu ensino...mas nãoadianta”; “Tem muito a ver com pai e mãe” 58 . “Não apren<strong>de</strong> ou tem preguiça”.Idéias que, se nem sempre surtem efeito entre as empregadas (convencen<strong>do</strong>asque são incompetentes), não <strong>de</strong>ixarão <strong>de</strong> influenciar no comportamento <strong>de</strong>seus próp<strong>rio</strong>s filhos, contribuin<strong>do</strong> assim para a perpetuação das relações <strong>de</strong><strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> 59 .Uma última possibilida<strong>de</strong> a ser mencionada seria a <strong>de</strong> que o<strong>de</strong>sentendimento entre patroas e empregadas possa ser fruto <strong>de</strong> atos <strong>de</strong>rebeldia das trabalha<strong>do</strong>ras. Esta hipótese, no entanto, será contemplada nocapítulo seguinte, on<strong>de</strong> analisaremos as relações <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong> e rebeldia.2.3 A relação com as criançasEdilene me conta, com evi<strong>de</strong>nte orgulho, o que a filha <strong>de</strong> sua patroa,uma menina <strong>de</strong> cinco anos, disse para ela: "Lene, tu podia acertar na Sena,né? Aí tu só vinha aqui prá brincar comigo. Tu podias almoçar e <strong>de</strong>itar nacama da mamãe, para <strong>de</strong>scansar, como ela faz". Edilene fecha seu relatoacrescentan<strong>do</strong>, “A idéia da menina! Deitar na sua cama?!”58 Alice Inês <strong>de</strong> Oliveira (1997), estudan<strong>do</strong> as representações <strong>de</strong> <strong>do</strong>mesticida<strong>de</strong> na década <strong>de</strong>50, mostra como as patroas eram estimuladas a reformular o comportamento dasempregadas que chegavam às suas casas já viciadas com maus hábitos <strong>do</strong> seu meio cultural.Goldstein (2000) tem sugeri<strong>do</strong> que os patrões brasileiros concebem suas empregadas comoseres estúpi<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> não inteiramente burros, porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> uma ingenuida<strong>de</strong> divertida,incapazes <strong>de</strong> assimilar hábitos mais refina<strong>do</strong>s .59 As empregadas jovens, em início <strong>de</strong> carreira, encontrarão na casa das patroas aradicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu lugar subalterno no mun<strong>do</strong>. Uma “mulher feita”, que no seu mun<strong>do</strong> éreconhecida como adulta competente e boa <strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa, po<strong>de</strong> sentir-se muito ofendidaquan<strong>do</strong> repreendida pela patroa.


91Essa pequena cena revela aspectos fundamentais da relação entre aempregada e a família para a qual trabalha. Aponta para o afeto que existeentre a empregada e as crianças das quais ela cuida. Mas mostra também aconsciência <strong>de</strong> ambas partes – crianças e empregadas – da enorme distânciasocial que as separa.Começamos nossa discussão sobre a relação entre empregadas e filhosda patroa aprofundan<strong>do</strong> a questão <strong>do</strong> afeto. Em quase todas as casas <strong>de</strong>patrões que investiguei, as crianças, quan<strong>do</strong> não estavam na escola,permaneciam <strong>gran<strong>de</strong></strong> parte <strong>de</strong> tempo com as empregadas, sem a presença<strong>do</strong>s pais. Os pais, trabalhan<strong>do</strong> fora, <strong>de</strong>ixavam essas crianças sobresponsabilida<strong>de</strong> das <strong>do</strong>mésticas 2/3 <strong>do</strong> dia.A intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contato entre crianças e suas empregadas criava, emmuitas situações, um vínculo que extrapolava a situação profissional. Nopequeno álbum <strong>de</strong> fotografia <strong>de</strong> Edilene, encontramos, ao la<strong>do</strong> das fotosusuais <strong>de</strong> família (a mãe no caixão, seu próp<strong>rio</strong> casamento, algumas 3 x 4 <strong>de</strong>irmãos e sobrinhos) pelo menos uma foto <strong>de</strong> cada criança <strong>de</strong> quem cui<strong>do</strong>u emseus 28 anos <strong>de</strong> carreira <strong>do</strong>méstica. Quan<strong>do</strong> ela está em casa, “<strong>de</strong>pois <strong>do</strong>serviço”, não pára <strong>de</strong> contar as façanhas <strong>de</strong> seus tutela<strong>do</strong>s <strong>do</strong> momento – oque fulaninha falou, o que beltraninho fez… <strong>de</strong> forma que seus vizinhos efamiliares conhecem tu<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssas crianças (seus aniversá<strong>rio</strong>s, sua roupapreferida…). É quase como se fossem parte da família da empregada. Écomum – mesmo quan<strong>do</strong> o contrato <strong>de</strong> trabalho é suspenso – as empregadascontinuarem a acompanhar a vida das crianças a quem tomou conta. Telefonaeventualmente para falar com elas, con<strong>sul</strong>ta uma colega que estejatrabalhan<strong>do</strong> na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> da ex-patroa, ou simplesmente calculasuas ida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> longe, lembran<strong>do</strong> da data <strong>de</strong> seus aniversá<strong>rio</strong>s ou manten<strong>do</strong>fotos das crianças nos seus álbuns <strong>de</strong> recordação.


92As crianças que as empregadastomam conta passam a fazerparte afetiva das suas memórias.Aqui vemos a empregadausan<strong>do</strong> a porta <strong>do</strong> armá<strong>rio</strong> comopainel para as fotos das criançasque ela <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> cuidar há <strong>do</strong>isanos atrás.FIGURA 06: “O cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong>s outros”. Autoria: JuremaBrites; Serra; 1998; fonte: acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>;tamanho: 10x15; fotografia digitalizada no Photo Editor.Em <strong>de</strong>staque na casa daempregada – compon<strong>do</strong> oselementos <strong>de</strong>corativos – encontraseum quadro com fotografia <strong>de</strong>três crianças, filhos <strong>de</strong> patrões,que já passaram por seuscuida<strong>do</strong>s.FIGURA 07: “O <strong>de</strong>staque <strong>do</strong>spequenos patrões na casa daempregada”. Autoria: JuremaBrites; Serra; 1998; fonte: acervopessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho:10x15; fotografia digitalizada noPhoto Editor.


93Uma rápida digressão pela literatura sobre família em grupos popularesnos ajuda a colocar essas atitu<strong>de</strong>s em perspectiva. Analisan<strong>do</strong> a lógica da“circulação <strong>de</strong> crianças”, Claudia Fonseca (1995) levanta a hipótese <strong>de</strong> uma‘coletivização’ <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s maternas para com as crianças <strong>do</strong>sgrupos populares 60 . Conforme essa noção, surgem vínculos fortes entrecrianças e as mães <strong>de</strong> criação (avós, madrinhas, vizinhas) que cuidam <strong>de</strong>las.Não é difícil imaginar como, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da empregada, esse tipo <strong>de</strong>vínculo também se crie com os filhos <strong>de</strong> sua patroa. Possivelmente, por suatradição cultural <strong>de</strong> não conceber a maternida<strong>de</strong> apenas como atribuição dagenetriz, as empregadas se entreguem tão facilmente a crianças que sabemtemporárias em suas vidas.Nesse contexto, uma mudança <strong>de</strong> emprego po<strong>de</strong> significar uma enormeperda afetiva. Edilene, por exemplo, caiu em <strong>de</strong>pressão <strong>de</strong>pois que seus expatrõesse mudaram <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. A atual patroa chegou a ligar para a ante<strong>rio</strong>r(são amigas) sugerin<strong>do</strong> que a empregada pu<strong>de</strong>sse ir conhecer o lugar on<strong>de</strong>as crianças estavam instaladas para que, talvez assim, pu<strong>de</strong>sse sofrer menoscom a separação. De fato, muitas vezes, o motivo para uma empregadaagüentar um serviço mal pago é a dificulda<strong>de</strong> em se separar das crianças dasquais toma conta.Há sinais semelhantes <strong>do</strong> apego <strong>de</strong> crianças pelas “suas” empregadas.Uma patroa, por exemplo, nos relatou como o filho a<strong>do</strong>eceu quan<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong><strong>de</strong> Arlete, sua empregada, obrigou-a a <strong>de</strong>ixar o emprego. Ouvi variantes<strong>de</strong>sse tema em inúmeros outros relatos, sublinhan<strong>do</strong> uma intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong>contato que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter conseqüências importantes.Se, como vimos nos discursos sobre limpeza, os patrões adultos sãoimpermeáveis ao universo cultural das empregadas <strong>do</strong>mésticas, o mesmo nãoacontece com as crianças. Elas dialogam com as empregadas, ouvem suashistórias, escutam a mesma música no radinho <strong>de</strong> pilha da cozinha,60 Colen (1995) mostra um senti<strong>do</strong> semelhante <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong> vivenciada pelos caribenhosque se expressa na prática da fosterage.


94perguntam muitas coisas. Nessa intimida<strong>de</strong> cotidiana, as empregadas po<strong>de</strong>massumir conscientemente o papel <strong>de</strong> transmissoras <strong>de</strong> conhecimentos.Muitas meninas, filhas das patroas, eram estimuladas pelas empregadasa apren<strong>de</strong>r o serviço <strong>do</strong>méstico. Elas aprendiam através <strong>de</strong> um exercícioprático e <strong>de</strong> observação, enquanto as empregadas executavam seu serviço.Assisti a uma empregada dissecar uma galinha para ensinar a filha <strong>de</strong> quatroanos da patroa que esses animais não têm <strong>de</strong>ntes, on<strong>de</strong> se formam os ovose, para cozinhar, como se separam as partes. Como nas suas próprias casas,as empregadas transmitem para as crianças um conhecimento experimenta<strong>do</strong>no cotidiano.Mas existe outro tipo <strong>de</strong> saber transmiti<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma menos consciente,através da convivência e fofoca. Assim, não é raro a mãe saber <strong>de</strong>terminadascoisas sobre suas empregadas através <strong>do</strong>s comentá<strong>rio</strong>s <strong>do</strong>s filhos pequenos.Eu mesma era constantemente informada pelas crianças. Certa vez, pergunteia uma empregada sobre um novo namora<strong>do</strong> e a menina da casa antecipou aresposta: “ela continua com aquele antigo. Eles passaram o fim <strong>de</strong> semanajuntos”.Contan<strong>do</strong> sobre seus namoros, sobre suas brigas com vizinhos, asempregadas muitas vezes trazem para as crianças <strong>de</strong> seus patrões ummun<strong>do</strong> menos dividi<strong>do</strong> entre vida adulta e vida infantil 61 . Algumas meninasque conheci eram instruídas sobre a vida sexual pelas empregadas:5/(6)#2 7&- 2 #,5/#7 %7 (8)#- ,61 Lembremos aqui das possibilida<strong>de</strong>s abertas pela análise <strong>de</strong> Ariès (1981) sobre asocialização <strong>de</strong> crianças na França <strong>do</strong> Antigo Regime. Era antes pela sociabilida<strong>de</strong> da rua e aconvivência com adultos que as crianças adquiriam novos conhecimentos.


955/#5 ( ) 99 #. 7 #7,: ,De forma significativa, não ouvi quase nada daquelas queixas tãocomuns em famílias européias e norte-americanas (MATIN-FURGIER, 1979)sobre o perigo <strong>de</strong> poluição moral das crianças através <strong>do</strong> contato comempregadas pouco instruídas. Nas entrevistas com os patrões, foi possívelobservar que o ensino <strong>do</strong>s filhos ocupa um lugar central nas suaspreocupações. Inclusive, é muitas vezes justamente para pagar boas escolasparticulares que os pais e mães aceitam se afastar durante longas horas <strong>de</strong>suas famílias, tentan<strong>do</strong> ganhar dinheiro suficiente para sustentar este padrão.Porém, esses pais da classe média que entrevistei, quase nunca pensavamna empregada como uma fonte <strong>de</strong> aprendiza<strong>do</strong> para os seus filhos. Ninguémempregava uma babá com responsabilida<strong>de</strong>s especializadas, voltadas para osfilhos (cuidar das crianças estava incluí<strong>do</strong> entre outras tarefas, como cuidar daroupa, da casa e cozinhar).Embora as patroas reclamassem o tempo inteiro <strong>de</strong> suas empregadasquanto à limpeza, nunca relataram queixas sobre o tratamento com ascrianças, seja <strong>de</strong> maus tratos seja quanto à educação. Apenas um paiexpressou dúvidas sobre o que se passava entre sua filha e a empregada e,<strong>de</strong> forma significativa, tratava-se <strong>de</strong> uma pessoa (filho <strong>de</strong> empregada<strong>do</strong>méstica) que tinha ascendi<strong>do</strong> socialmente. Po<strong>de</strong>mos supor que, a ânsia <strong>de</strong>marcar a distinção entre ele e a subalterna, o fez provar <strong>de</strong> uma rigi<strong>de</strong>z poucocomum em outras famílias <strong>de</strong> seu bairro 62 .As patroas ainda po<strong>de</strong>m contar alguma história escabrosa sobrecrianças torturadas por empregadas, mas não parecem associar essas62 Nas diversas referências que faço nesta tese sobre a “distinção”, estou me inspiran<strong>do</strong> notrabalho <strong>de</strong> Elias (1990) assim como <strong>de</strong> Bourdieu (1994).


96histórias a suas próprias empregadas. Quan<strong>do</strong> as patroas se referiam àpessoas concretas, nunca tinham um caso <strong>de</strong> maus tratos infantis por<strong>do</strong>mésticas para contar. Pelo contrá<strong>rio</strong>, entre as pessoas pesquisadas, um<strong>gran<strong>de</strong></strong> alívio da maioria das mães-patroas era reconhecer a boa vonta<strong>de</strong> dasempregadas para com seus filhos. Apenas duas mães em toda a amostraexpressaram temores quanto à influência da empregada, e uma <strong>de</strong>stas fezquestão <strong>de</strong> relativizar seus me<strong>do</strong>s:- ! %;- ; 7 : < ,= - & & / = 1 ! / +A partir <strong>de</strong>ssas falas, seria fácil pressupor uma relação cordial “quasefamiliar”como aquela <strong>de</strong>scrita por Gilberto Freyre (1989) 63 – e, na literaturamais recente, por Roberto Da Matta (1987) – sobre a relação patrõesempregada.Mas não <strong>de</strong>vemos esquecer que é nesse mesmo ambiente queas crianças <strong>do</strong>s patrões são socializadas na lógica profundamente hierárquicaque coloca as empregadas num mun<strong>do</strong> à parte.A questão é: se existe tanta intimida<strong>de</strong> e afeto entre as crianças e suasempregadas, como se reproduzem patroas adultas com um senti<strong>do</strong> tão forte63 Como ilustra esta passagem <strong>de</strong> Casa Gran<strong>de</strong> e Senzala: “Na ternura, na mímica excessiva,no catolicismo em que se <strong>de</strong>liciam nossos senti<strong>do</strong>s, na música, no andar, na fala no canto <strong>de</strong>ninar <strong>do</strong> menino pequeno, em tu<strong>do</strong> que é expressão sincera da vida, trazemos quase to<strong>do</strong>s amarca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos <strong>de</strong>u <strong>de</strong> mamar.Que nos <strong>de</strong>u <strong>de</strong> comer, ela própria amolengan<strong>do</strong> na mão o bolão <strong>de</strong> comida. Da negra velhaque nos contou as primeiras histórias <strong>de</strong> bicho e <strong>de</strong> mal-assombra<strong>do</strong>. Da mulata que nos tirouo primeiro bicho-<strong>de</strong>-pé <strong>de</strong> uma coceira tão boa. Da que iniciou no amor físico e nos transmitiu,ao ranger da cama-<strong>de</strong>-vento, a primeira sensação completa <strong>de</strong> homem. Do moleque que foi onosso primeiro companheiro <strong>de</strong> brinque<strong>do</strong>”.(FREYRE,1989, p. 283).


97<strong>de</strong> hierarquia e como se separam esses mun<strong>do</strong>s? Não é regra entre ospatrões investiga<strong>do</strong>s um tratamento ríspi<strong>do</strong> com suas empregadas. Ascrianças apren<strong>de</strong>m a distância social entre elas e as empregadas <strong>do</strong>mésticasatravés <strong>de</strong> outras vias – informações subliminares, como, por exemplo, nosdizeres <strong>do</strong>s seus pais e na disposição <strong>de</strong> espaço.Quarto <strong>de</strong> empregada, banheiro <strong>de</strong> empregada, <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong>empregada são espaços <strong>de</strong> segregação e on<strong>de</strong> o respeito ensina<strong>do</strong> àscrianças <strong>de</strong> classe média com as posses alheias <strong>de</strong>saparece. Os espaços<strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s às empregadas na casa das patroas não respeita a individualida<strong>de</strong>das trabalha<strong>do</strong>ras. Então, po<strong>de</strong>m estar cheios <strong>de</strong> entulhos, vassouras, bal<strong>de</strong>se tu<strong>do</strong> que não presta mais ou que <strong>de</strong>ve permanecer escondi<strong>do</strong> para nãoperturbar a beleza e a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> lar. Como diz Donna Goldstein ao analisar o“quartinho” e banheiro da empregada:Essa peça, antes <strong>de</strong>stinada a ser moradia, agora serve apenas parauso durante o dia. Trata-se <strong>de</strong> uma peça situa<strong>do</strong> inevitavelmenteatrás da cozinha e a lavandaria, on<strong>de</strong>, em geral, não cabe mais <strong>do</strong>que uma pequena cama <strong>de</strong> solteiro. O banheiro revela o verda<strong>de</strong>irostatus da empregada nesta casa. Essa área exígua mal tem lugarpara um chuveiro e um vaso sanitá<strong>rio</strong>. Naqueles que vi, é comumencontrar a toilete sem assento, mas quan<strong>do</strong> este existe, aarquitetura <strong>do</strong> espaço faz com que, quan<strong>do</strong> se liga o chuveiro, apeça inteira inunda, inclusive o assento. É difícil, se não impossível,dar a esses espaços uma aparência limpa e organizada 64 . (2000,manuscritos)Entrevistan<strong>do</strong> uma patroa em Praia Velha, aprendi o quanto asconversas e atitu<strong>de</strong>s atrás <strong>do</strong>s basti<strong>do</strong>res, que travam-se entre os familiares,vão reproduzin<strong>do</strong> (às vezes não muito sutilmente) a naturalida<strong>de</strong> da posição64 The room, once meant for a live-in arrangement, but now, more often for daily use, is alwaysbehind the kitchen and the laundry room, and it usually cannot fit much more than a smallsingle bed. The bathroom facilities reveal the true status of the <strong>do</strong>mestic worker in thehousehold. These areas usually barely fit a shower and a toilet basin together in a crampedspace. In the ones I have seen, it is common that a toilet bowl bereft of a set is provi<strong>de</strong>d: butthe architecture of the room itself makes it such that when the shower runs, it soaks the entirearea, including the toilet bowl. It is difficult, if not impossible to make these spaces appearclean and tidy (GOLDSTEIN, 2000, manuscripts).


98Metáforas da Desigualda<strong>de</strong>FIGURA 08: “Banheiro da patroa”. Autoria: Sandro José da Silva; Vitória;1996; fonte: acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografiadigitalizada no Photo Editor.FIGURA 09: “Banheiro da empregada”.Autoria: Sandro José da Silva; Vitória;1996; fonte: acervo pessoal; originalcolori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografiadigitalizada no Photo Editor.


99subalterna para estas pessoas que trabalham em suas casas, Aproveitan<strong>do</strong> oduplo papel (<strong>de</strong> patroa e pesquisa<strong>do</strong>ra) que a peculiarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> minha inserçãoem campo oportunizou, <strong>de</strong>sfrutei <strong>de</strong> momentos <strong>de</strong> muita intimida<strong>de</strong> com osinformantes – momentos em que o roteiro encoberto entre as patroas serevela (Scott, 1990). Estavam presentes durante a entrevista a patroa, suasduas filhas (16 e 5 anos), meu assistente <strong>de</strong> pesquisa e eu. A patroa nosfalava <strong>do</strong> quanto é necessá<strong>rio</strong> “tratar bem” as empregadas, sem <strong>de</strong>ixar que aspessoas “confundam as coisas”." : " & : / , - %> >%%Então, ensinan<strong>do</strong> como <strong>de</strong>vemos nos comportar em cena pública, apatroa acrescenta: ? @ ,7 ,9" / 4 - ( ) ,- ,< / : São nessas cenas <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> familiar que a relação com as<strong>do</strong>mésticas serve <strong>de</strong> maneira paradigmática para socializar as crianças nalógica <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> hierárquica e estratificada. Exemplos que registrei nomeu diá<strong>rio</strong> <strong>de</strong> campo <strong>de</strong>monstram como a segregação <strong>do</strong>s espaços éespelhada na atitu<strong>de</strong> das crianças:


1007 (8 )# < 5/ 2 #7/,7 #7 &5/# . ! & /&Dois amigos (7 e 10 anos) <strong>de</strong> Pauline (5 anos) chegaram na casa eencontraram a empregada <strong>de</strong>itada no sofá, assistin<strong>do</strong> à TV, enquanto Pauline<strong>de</strong>senhava numa mesa ao la<strong>do</strong>. Eles chamaram a menina e comentaram:“Manda ela sair daí. On<strong>de</strong> já se viu empregada sentada no seu sofá! Mamãenão <strong>de</strong>ixa a Neiva nem sentar na nossa cama!”Devemos aqui lembrar da ambivalência <strong>de</strong>monstrada pela menina queimaginava como as coisas seriam diferentes se sua empregada pu<strong>de</strong>sseganhar na Sena. O mun<strong>do</strong> naturaliza<strong>do</strong> da segregação <strong>de</strong> espaços, dapoluição e da <strong>do</strong>ença, é implicitamente associa<strong>do</strong> a uma questão <strong>de</strong> classe.Se a empregada tivesse dinheiro, as coisas seriam diferentes. O afeto po<strong>de</strong>riaser traduzi<strong>do</strong> em amiza<strong>de</strong>, e os espaços comunga<strong>do</strong>s. Mas na situação atual,a distância social é tomada como um fato natural. Des<strong>de</strong> ce<strong>do</strong>, as criançasdas casas patronais vão introduzin<strong>do</strong> no seu repertó<strong>rio</strong> os sinais da distânciaque <strong>de</strong>ve-se manter <strong>do</strong>s serviçais, em pequenos rituais interpessoais <strong>de</strong><strong>do</strong>minação, como mostramos, no capítulo um, ter nos ensina<strong>do</strong> Rollins (1990).Interessante é pensar nessa separação <strong>de</strong> espaços como didática <strong>de</strong>uma distância social. Fátima Mernissi (1996), relatan<strong>do</strong> sua experiência <strong>de</strong>menina em um harém marroquino, <strong>de</strong>sfaz nosso imaginá<strong>rio</strong> <strong>de</strong> prisão erótica<strong>de</strong> mulheres árabes, mostran<strong>do</strong> que lá <strong>de</strong>ntro viviam famílias inteiras e que asegregação das mulheres, muito mais <strong>do</strong> que a proibição <strong>de</strong> saída à rua -porque esse grupo o fazia em <strong>de</strong>terminadas ocasiões - constituía-se naintrojeção <strong>do</strong> que significava hudud. O termo indica uma noção <strong>de</strong> fronteirasintransponíveis, mais <strong>do</strong> que um espaço concreto <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>. O hudud <strong>do</strong>s


101homens não podia ser visita<strong>do</strong>, o cortina<strong>do</strong> <strong>de</strong> velu<strong>do</strong> que separa o andar damatriarca não podia ser transpassa<strong>do</strong>.O hudud serve aqui como metáfora para indicar o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> mo<strong>do</strong>como as empregadas ocupam os espaços na casa <strong>do</strong>s patrões e <strong>de</strong> como ascrianças apren<strong>de</strong>m através <strong>de</strong> suas rotinas cotidianas a naturalizar a<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, concilian<strong>do</strong> relações carregadas <strong>de</strong> enorme afeto com aaparentemente inevitável distância social.No próximo capítulo, analisaremos os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s da moeda dareciprocida<strong>de</strong> assimétrica que, sem dúvida, fazem parte <strong>de</strong>ssesrelacionamentos: a ajuda material prestada pelos patrões às empregadas – ocopo cheio <strong>de</strong> <strong>de</strong>ferências que se espera em troca – e as respostas que ossubalternos elaboram a esta regra imposta pelos grupos <strong>do</strong>minantes.


1023 NA CASA DA PATROA II: RECIPROCIDADE E REBELDIACertas características da relação patroa-empregada, manifestas nasativida<strong>de</strong>s voltadas para a limpeza da casa e os cuida<strong>do</strong>s das crianças,tornam-se ainda mais evi<strong>de</strong>ntes quan<strong>do</strong> olhamos <strong>de</strong> perto para os objetos –móveis, roupas, comida – transferi<strong>do</strong>s da casa da primeira para a casa dasegunda. Nos trânsitos envolvi<strong>do</strong>s nestas coisas dadas, tanto quantonaquelas supostamente roubadas, vemos mais uma vez a mistura particular<strong>de</strong> afeto e antagonismo que espelha e reforça as relações <strong>de</strong>siguais <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.Em outras palavras, trata-se <strong>de</strong> uma "transmissão <strong>de</strong> patrimônio" 65constituin<strong>do</strong>-se como parte integrante <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> reprodução estratificada.Neste capítulo, no entanto, introduzimos um novo elemento na discussão, poisse até agora as empregadas pareciam se comportar <strong>de</strong> forma mais ou menossubmissa a este sistema, cúmplices <strong>de</strong> sua própria exploração, veremos aquio início <strong>de</strong> uma reação, a abertura <strong>de</strong> espaços nos quais essas mulheresexercem sua "agência", inventan<strong>do</strong> táticas diversas para minimizar as<strong>de</strong>svantagens e até mesmo tirar algum proveito <strong>do</strong> sistema, como Scott (1985)nos ensina. Esta perspectiva dará a tônica <strong>do</strong>s capítulos seguintes quan<strong>do</strong>,chegan<strong>do</strong> no universo social das próprias empregadas, iremos além <strong>do</strong>sroteiros públicos (public transcript), além da simples resistência, para a<strong>de</strong>ntrarnas dinâmicas sociais que fazem parte <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> histórico <strong>de</strong> vida.65 Neves (1988) procura readaptar o conceito "transmissão <strong>de</strong> patrimônio", o qual consi<strong>de</strong>ra<strong>de</strong>masiadamente vincula<strong>do</strong> nas análises clássicas à transmissão <strong>de</strong> herança material. Neves,pesquisan<strong>do</strong> uma população tradicionalmente <strong>de</strong>spossuída <strong>de</strong> bens materiais (mendigos),propõe incorporar saberes, valores, mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> vida, que possam ser transferi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> umageração à outra. Estou, mais uma vez, re-alinhan<strong>do</strong> o conceito, porque no caso <strong>de</strong> minhapesquisa, a transmissão não se dá entre pessoas <strong>de</strong> uma mesma classe, família ou linhagem.Mas aqui reconheço que nas relações patrão-empregada tanto bens materiais, quantosaberes entram em trânsito.


1033.1 Donativos: uma transmissão <strong>de</strong> patrimônioUm simples passeio pelos cômo<strong>do</strong>s das casas das empregadas<strong>do</strong>mésticas revela uma quantida<strong>de</strong> enorme <strong>de</strong> móveis e utensílios que, emoutro tempo, pertenceram às patroas.Túlia trabalha há 28 anos como faxineira <strong>de</strong> um prédio em bairro <strong>de</strong>classe média <strong>de</strong> Vitória. Em virtu<strong>de</strong> da sua condição <strong>de</strong> funcionária antiga, elatem um relacionamento estreito com os mora<strong>do</strong>res, para os quais prestaserviços <strong>do</strong>mésticos esporádicos, além <strong>de</strong> agenciar empregadas para osmesmos. Na casa <strong>de</strong> Túlia, quase tu<strong>do</strong> veio da casa <strong>de</strong> algum patrão ouamigo <strong>de</strong> patrão: os armá<strong>rio</strong>s da sala vieram da casa <strong>de</strong> seu Darci, um viúvopara quem ela faxinava; as louças, os quadros e enfeites da pare<strong>de</strong>, da casa<strong>de</strong> Patrícia que “entregou tu<strong>do</strong> para mim [Túlia] porque sabia que eu iaapreciar e cuidar”; o roupeiro <strong>de</strong> oito portas veio da casa <strong>de</strong> seu Arnal<strong>do</strong>, “eleme <strong>de</strong>u quan<strong>do</strong> reformou o quarto <strong>do</strong>s meninos”; as camas “eu compreibaratinho <strong>de</strong> um rapaz ali <strong>de</strong> Jardim Veneza. A patroa da mulher <strong>de</strong>le tinhada<strong>do</strong> pra eles e eu sabia que eles estavam aperta<strong>do</strong>s, fui lá e pagueibaratinho”; o colchão <strong>de</strong> casal “a netinha <strong>do</strong> seu Pascoal mijou e ele jogou nolixo, eu fui lá e peguei pra mim”.Muitos estudiosos têm menciona<strong>do</strong> esse tipo <strong>de</strong> troca, mas para fazerreferência a um elemento <strong>de</strong> exploração utiliza<strong>do</strong> pelos patrões quecomplementam ou substituem parte <strong>do</strong> salá<strong>rio</strong> pago à empregada com<strong>do</strong>nativos 66 . Através <strong>do</strong> referencial etnográfico, preten<strong>do</strong> mostrar que essastrocas revelam muito mais <strong>do</strong> que salá<strong>rio</strong> indireto. A <strong>de</strong>scrição microscópica,possibilitada por este recurso meto<strong>do</strong>lógico, permite-nos inserir o<strong>de</strong>talhamento <strong>de</strong>sta prática <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um contexto mais amplo das relações<strong>de</strong> classe em nossa socieda<strong>de</strong>. Permite, também, ver certos paralelos entre66Como mostrei acima, trata-se <strong>de</strong> um argumento que aparece em vá<strong>rio</strong>s textos, como emChaney & Castro (1993) e Kofes (1991), por exemplo . .


104os presentes ofereci<strong>do</strong>s pela patroa à sua empregada e os pequenos furtos 67que ocasionalmente esta comete na casa <strong>de</strong> sua emprega<strong>do</strong>ra. É estesistema <strong>de</strong> trânsito <strong>de</strong> bens que proponho analisar como "transmissão <strong>de</strong>patrimônio".Compreen<strong>de</strong>r a troca <strong>de</strong> bens que acompanha a prestação <strong>de</strong> trabalho<strong>do</strong>méstico como transmissão <strong>de</strong> patrimônio tem a vantagem <strong>de</strong> pensá-la comoalgo que extrapola o senti<strong>do</strong> estrito da relação monetária, para incluí-la numsistema <strong>de</strong> comunicação, on<strong>de</strong>, além da coisa, significa<strong>do</strong>s sociais sãotransmiti<strong>do</strong>s. A proposta <strong>de</strong> tratar esse “trânsito” <strong>de</strong> bens como "transmissão<strong>de</strong> patrimônio" (NEVES, 1988) resi<strong>de</strong> na idéia <strong>de</strong> que não são apenas bensmateriais que estão sen<strong>do</strong> troca<strong>do</strong>s nessa relação. Os objetos, no senti<strong>do</strong> queClaudia Magni (1994) toma <strong>de</strong> Ulpiano Menezes, “não existem <strong>de</strong> formaautônoma. Enquanto ‘suporte material, físico, imediatamente concreto daprodução e reprodução da vida social’, eles <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como'produtos e vetores das relações sociais'" (MAGNI, 1994, p.11).Marcel Mauss (1974) estudan<strong>do</strong> o direito e a religião maori, fala algomuito semelhante ao <strong>de</strong>screver o hau, o espírito, a alma <strong>de</strong> todas as coisas. Ohau mantém o vínculo das coisas com o seu territó<strong>rio</strong> nativo. Portanto, eleacompanha a coisa dada, até que ela possa regressar ao seu local <strong>de</strong> origem(MAUSS, 1974, p. 54-55). Para Mauss, a noção <strong>de</strong> hau revela que dar umacoisa é dar um pouco da alma resi<strong>de</strong>nte nela e tem como conseqüência oestabelecimento <strong>de</strong> uma dívida que só é saldada com outro <strong>do</strong>m. Certamente,é uma noção semelhante à lógica <strong>do</strong> <strong>do</strong>m que inspira as patroas quan<strong>do</strong>calculam o tipo <strong>de</strong> retribuição à qual têm direito em troca <strong>do</strong>s pequenospresentes ofereci<strong>do</strong>s à empregada. Vi<strong>de</strong> o caso seguinte:67A língua portuguesa formal distingue "roubo" <strong>de</strong> furto, estabelecen<strong>do</strong> que o primeiro trata-se<strong>de</strong> uma subtração <strong>de</strong> qualquer bem alheio mediante o uso <strong>de</strong> violência. Corriqueiramente, nafala <strong>de</strong> pessoas comuns essa diferença não é reparada. Meus informantes referiram-sesempre a "roubos” para falar da situação <strong>de</strong> furtos continua<strong>do</strong>s na casa <strong>do</strong>s patrões, semrelacioná-los com isso o uso <strong>de</strong> violência.


105Uma das mulheres pesquisadas, consi<strong>de</strong>rada boa patroa, explicava porque sempre consegue boas empregadas:< ! @ & A constatação <strong>de</strong>sta patroa é confirmada pelas empregadas incluídasnesta pesquisa que, por unanimida<strong>de</strong>, reconhecem, nos presentes daspatroas, uma das vantagens principais <strong>de</strong> seus empregos. É este o cálculoembuti<strong>do</strong> na apreciação <strong>de</strong> Amélia, quan<strong>do</strong> prefere continuar como <strong>do</strong>méstica,receben<strong>do</strong> um salá<strong>rio</strong> e meio por mês, apesar <strong>de</strong> ter habilitação <strong>de</strong> manicure.Mesmo po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> multiplicar por 4 ou 5 vezes o seu salá<strong>rio</strong>, os ganhos comomanicure não lhe garantiriam as portas <strong>de</strong> sua casa em construção, recebidaspor ocasião da última reforma <strong>do</strong> apartamento <strong>de</strong> sua patroa, nem a gela<strong>de</strong>iraduplex, os armá<strong>rio</strong>s da cozinha ou o apara<strong>do</strong>r <strong>de</strong> “vidro fumê”. Conhece<strong>do</strong>rada generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua patroa com empregadas ante<strong>rio</strong>res, Amélia apostavanos benefícios que também receberia:2 #A B , #< 1 A B % CD Além <strong>do</strong>s salá<strong>rio</strong>s, os patrões dão coisas aos emprega<strong>do</strong>s, mas sóaquelas que já per<strong>de</strong>ram a utilida<strong>de</strong> no seu padrão <strong>de</strong> consumo. Raramentecompra-se coisas novas para dar <strong>de</strong> presente para as empregadas, elasganham aquilo que para a família emprega<strong>do</strong>ra não serve mais: sutiãs ecalcinhas velhos, roupas que ficaram pequenas nas crianças, uma blusa quemanchou, a gela<strong>de</strong>ira usada, um enfeite que foi substituí<strong>do</strong>, o que sobrou <strong>do</strong>68 Realmente Amélia sabia o que esperar. Mal a criança completara um ano, já contava comvá<strong>rio</strong>s presentes vin<strong>do</strong>s da patroa <strong>de</strong> sua mãe – um carrinho <strong>de</strong> bebê usa<strong>do</strong>, muitas roupas eaté mesmo o pagamento da mensalida<strong>de</strong> da creche da menina.


106almoço <strong>de</strong> <strong>do</strong>mingo... Cabe tecer algumas reflexões sobre o que representa anoção <strong>de</strong> "coisas <strong>de</strong> segunda mão".No universo <strong>do</strong>s patrões, não se pensa em colocar nada no lixo. Passaseadiante aquilo que para si não tem mais utilida<strong>de</strong>. Como os objetos nãoestão <strong>de</strong>scola<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s contextos sociais on<strong>de</strong> eles existem, acompanha adádiva a significação que ela assume socialmente. Com as coisas dadas,transita a lógica das relações sociais entre <strong>do</strong>a<strong>do</strong>r e <strong>do</strong>natá<strong>rio</strong>s. Uma dasmensagens veiculadas pela oferta <strong>de</strong> presentes é a da hierarquia social.Segun<strong>do</strong> esta i<strong>de</strong>ologia, usam coisas <strong>de</strong> segunda mão pessoassocialmente indicadas: pessoas <strong>de</strong> “segunda classe”. As trocas na esferafamiliar também existem, mas não se oferece coisas usadas para alguémsupe<strong>rio</strong>r. Note-se que essa prática é muito diferente daquela da apreciação <strong>de</strong>relíquias e antiquá<strong>rio</strong>s. Os brechós são espaços <strong>de</strong> consumo sofistica<strong>do</strong> entrea classe média. São lojas on<strong>de</strong> se compra, e geralmente por preço maior,artigos que representam um tempo passa<strong>do</strong>, não "coisas usadas". Da mesmaforma po<strong>de</strong>ríamos pensar nas relíquias <strong>de</strong> família, on<strong>de</strong> se reconhece um hau(o espírito da coisa) no objeto transmiti<strong>do</strong> através das gerações. Não seimagina alguma empregada “herdan<strong>do</strong>” o relógio <strong>de</strong> pare<strong>de</strong> da vovó 69 .A lógica <strong>do</strong> <strong>do</strong>m <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> à empregada aponta para aprimazia/excelência <strong>do</strong> <strong>do</strong>a<strong>do</strong>r e <strong>de</strong> sua supe<strong>rio</strong>rida<strong>de</strong> em relação a quemrecebe (MAUSS, 1974). Nos objetos ofereci<strong>do</strong>s pelos patrões, vem acopla<strong>do</strong> oreca<strong>do</strong>: primeiro eu uso, primeiro eu sento, primeiro eu como. Você usa o meu<strong>de</strong>scarte, não senta no meu lugar, come <strong>de</strong>pois o que sobrar. O lugar dascoisas reflete o lugar social. Assim como a empregada ocupa na casa <strong>do</strong>spatrões espaços residuais, as coisas que ela ganha também são sobras.Po<strong>de</strong>mos tirar como conseqüência <strong>de</strong>sta lógica um primeiro princípio quepressupõe a dádiva <strong>de</strong>stas coisas: na relação entre <strong>do</strong>a<strong>do</strong>r e <strong>do</strong>natá<strong>rio</strong>, quemdá uma coisa <strong>de</strong> segunda mão ocupa um lugar supe<strong>rio</strong>r na hierarquia.69 É claro que existem exceções, adiante relatarei um caso em que a patroa, próxima damorte, preferiu confiar alguns objetos <strong>de</strong> estimação à empregada.


107Como o patrão repassa para seus subalternos coisas exce<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong> seuconsumo, associa<strong>do</strong> ao primeiro princípio <strong>de</strong>stes presentes (a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>que o <strong>do</strong>a<strong>do</strong>r ocupa um lugar supe<strong>rio</strong>r na hierarquia) po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>rainda outro: o <strong>de</strong> que a ascensão social <strong>do</strong>s subalternos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> daascensão que seus próp<strong>rio</strong>s patrões possam vir a ter. A noção "quan<strong>do</strong> eumelhorar, você receberá coisas melhores também" pressupõe que a<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social entre as pessoas é uma situação natural e a hierarquiasocial permanecerá mesmo que se <strong>de</strong>sfrute <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> social. A ascensãosocial <strong>do</strong>s pobres é representada como sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da relação com osseus supe<strong>rio</strong>res 70 .Não é por acaso que o grupo ascen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> empregadas <strong>do</strong>mésticas éconstituí<strong>do</strong> justamente por aquelas que reconhecem mais visivelmente oscódigos culturais <strong>do</strong>s patrões (procuram imitar seus padrões <strong>de</strong> consumos,por exemplo), como também são elas que trabalham para pessoas maisclaramente paternalistas. Daisy Barcellos (1996), estudan<strong>do</strong> a ascensão socialentre negros em Porto Alegre, sugere que essa crença não é semfundamentos. Relata que, entre seus informantes, em certas gerações, aestratégia <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> ascen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> grupo estava vinculada a uma relação<strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao patrão: “ser negro <strong>de</strong> alma branca”, “ser reconheci<strong>do</strong>, grato”,“ser humil<strong>de</strong>”, “tirar proveito das relações com os supe<strong>rio</strong>res", fazem parte <strong>do</strong>repertó<strong>rio</strong> legítimo para conquistar a ascensão social. Estas são estratégias“racionais”, segun<strong>do</strong> a autora, para obter espaço social: “Esses princípios sãoatrela<strong>do</strong>s a uma base <strong>de</strong> obediência e lealda<strong>de</strong> ao branco supe<strong>rio</strong>r, sem o quêa obtenção <strong>de</strong> vantagens ou benefícios, que em outras circunstâncias seriamnormais, seria impossível consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a i<strong>de</strong>ologia paternalista da socieda<strong>de</strong>brasileira” (BARCELLOS, 1996, p.13-14).Po<strong>de</strong>mos supor que as empregadas capixabas, assim como asempregadas negras gaúchas <strong>de</strong>scritas por Barcellos, fazem parte <strong>de</strong> umcontexto em que "atrelar seu carinho" à família da patroa, <strong>de</strong>sfrutan<strong>do</strong> das70 Sobre atitu<strong>de</strong>s semelhantes, em socieda<strong>de</strong>s que Dumont chama <strong>de</strong> hierárquicas, verDumont (1977).


108coisas e ajudas extra-familiares não é, ao to<strong>do</strong>, uma estratégia completamenteineficaz para realizar um projeto <strong>de</strong> ascensão social.3.2 Como se recebeDepois <strong>de</strong> refletir qual o princípio <strong>do</strong> Dom, <strong>de</strong>vemos pensar na suacontrapartida, como a coisa é recebida entre os subalternos. Um <strong>do</strong>s aspectosimportantes é pensar o significa<strong>do</strong> das "coisas dadas" quan<strong>do</strong> inseridas noseu novo ambiente (tema que, inicia<strong>do</strong> aqui, será aprofunda<strong>do</strong> nos próximoscapítulos). No Brasil, não são apenas os mendigos que vivem <strong>de</strong> restos, ospobres em geral se reproduzem mais facilmente porque sabem se valer<strong>de</strong>sses recursos que sobram nas camadas da elite da socieda<strong>de</strong> 71 .Observan<strong>do</strong> o cotidiano das empregadas <strong>do</strong>mésticas em seus bairros, nota-seuma economia <strong>de</strong> reutilização que mantém a reprodução social <strong>de</strong>ssesgrupos.Na casa <strong>de</strong> Emen, por exemplo, o dinheiro minguou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> agosto. DosR$ 287,00 que arrecadava nos seus <strong>do</strong>is empregos, hoje conta somente comR$ 70,00. Uma família suspen<strong>de</strong>u os seus trabalhos porque saíra <strong>de</strong> férias.Do outro emprego foi <strong>de</strong>mitida porque faltou <strong>do</strong>is dias. Não conseguin<strong>do</strong> coisamelhor, aceitou trabalhar na casa <strong>de</strong> um vizinho “rico”, <strong>do</strong>no <strong>do</strong> comércio maisbem sucedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> bairro. Para este senhor trabalha também o filho <strong>de</strong> Emen<strong>de</strong> 16 anos, receben<strong>do</strong> R$ 50,00 por mês como monta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> móveis. Elalamenta que, logo nestes meses chuvosos, tenha que retardar a construção<strong>de</strong> sua casa, já que o barraco on<strong>de</strong> mora alaga to<strong>do</strong> ano nesta época porqueé construí<strong>do</strong> em cima <strong>de</strong> um mangue. Como Emengarda, o mari<strong>do</strong> e os <strong>do</strong>isfilhos sobrevivem com aproximadamente R$120,00. Ou seja, como uma71Sobre a organização da mendicância, ver Neves (s/d), Jardim (1998), Magni (1994).


109família <strong>de</strong> quatro pessoas po<strong>de</strong> se sustentar com menos <strong>de</strong> um salá<strong>rio</strong>mínimo? 72Mesmo com uma renda média mensal aproximada <strong>de</strong> R$ 420,00 porunida<strong>de</strong> <strong>do</strong>méstica, a sobrevivência das empregadas que entrevistei só épossível porque usam muito pouco dinheiro para aten<strong>de</strong>r às suasnecessida<strong>de</strong>s básicas: Emem, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>do</strong>is meses, já havia consegui<strong>do</strong> naAssociação <strong>de</strong> Mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong>is sacos <strong>de</strong> cimento para concluir o piso <strong>do</strong>squartos <strong>do</strong> barraco. Terezinha passa no mercadinho da frente <strong>de</strong> sua casa, nofinal <strong>do</strong> dia, para ganhar os restos <strong>de</strong> verdura que comporão a comida dasgalinhas; Túlia, como a maioria <strong>de</strong> suas vizinhas, troca vales-transporte (queganha no serviço) por leite, pão, verduras... Edilene explica que troca itensque exce<strong>de</strong>m da cesta básica por outros mais necessá<strong>rio</strong>s com a <strong>do</strong>na <strong>do</strong>supermerca<strong>do</strong> <strong>do</strong> bairro. No meio <strong>de</strong>sta economia <strong>de</strong> troca, os patrões<strong>de</strong>sempenham um papel fundamental, não somente para a empregada, maspara toda a re<strong>de</strong> familiar <strong>de</strong>la. Túlia recebeu uma sacola <strong>de</strong> roupas da patroada cunhada; Emília pediu para a patroa da tia uma mochila para sua filha.Como viver com tão pouco e ainda conseguir construir, comprar “tanquinho” esom para a casa sem contar com as sobras das classes abastadas? E quemaneira melhor para ter acesso a estas sobras <strong>do</strong> que passan<strong>do</strong> pela patroa<strong>de</strong> alguém?Coisas que não farão falta na casa <strong>do</strong>s patrões po<strong>de</strong>m assumir outravida na casa das empregadas. O <strong>de</strong>scarta<strong>do</strong> sofre uma atualização no novoambiente. Um abajur quebra<strong>do</strong> po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> vaso, uma roupa manchadapo<strong>de</strong> ser usada para as crianças brincarem no quintal, um sutiã velho po<strong>de</strong>servir mais uns anos para quem não gasta com aquilo que não aparece. Nareutilização que fazem <strong>de</strong> coisas inúteis para os patrões, as empregadas<strong>do</strong>mésticas atribuem uma outra dimensão para o consumo. As coisasadquirem vida mais longa. Não se jogam coisas fora. Não é somente pormiséria que se continua usan<strong>do</strong> a ca<strong>de</strong>ira sem encosto, mas sim porque elaainda serve para sentar. Apesar <strong>de</strong> ter compra<strong>do</strong> um álbum <strong>de</strong> fotografias72 Os da<strong>do</strong>s são <strong>de</strong> 1996.


110novo, Edilene ainda mantém aquele que sua patroa jogou fora - na lixeira - eque continua abrigan<strong>do</strong> fotografias em sua casa.Isso não quer dizer que essas pessoas estejam imunes aos apelos <strong>do</strong>merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> consumo. Mas é justamente porque se ganha tantas coisas queos magros vinténs re<strong>sul</strong>tantes <strong>do</strong>s seus salá<strong>rio</strong>s são suficientes para aaquisição <strong>de</strong> bens no merca<strong>do</strong>. Certamente, através <strong>de</strong>ssa circulação <strong>de</strong>patrimônio, garante-se uma reprodução <strong>do</strong>s grupos populares brasileiros acustos tão baixos. Explica-se, <strong>de</strong>ssa forma, o espanto <strong>do</strong>s analistas ante omilagre <strong>de</strong> uma população conseguir sobreviver com um salá<strong>rio</strong> mínimo.A transferência <strong>de</strong> bens entre a casa da patroa e a casa da empregadatem, contu<strong>do</strong>, repercussões que vão muito além <strong>do</strong> aspecto meramenteeconômico. A maneira como algumas empregadas <strong>do</strong>mésticas discorremsobre o percurso <strong>de</strong> cada item que receberam <strong>de</strong> algum patrão <strong>de</strong>monstra queesta transmissão <strong>de</strong> objetos extrapola a dimensão econômica, fazen<strong>do</strong>lembrar a idéia <strong>de</strong> hau <strong>de</strong> Mauss (1974). Ante<strong>rio</strong>rmente aludimos a esta noçãomaussiana para <strong>de</strong>monstrar que um significa<strong>do</strong> acompanha as coisas,


111FIGURA 10: “Casa da patroa”. Autoria: Sandro José da Silva; Serra; 1995;fonte: acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografia digitalizada(9x12,5).O antigo armá<strong>rio</strong> da cozinha da patroa agoraabriga a louça da empregada: os potinhoscolori<strong>do</strong>s, como po<strong>de</strong>-se ver, acompanharamo armá<strong>rio</strong>. Mas não é só isso: as travessas<strong>de</strong> servir, guardadas <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> armá<strong>rio</strong>, e ospratos <strong>de</strong> porcelana já foram da patroa; oaçucareiro e as latas <strong>de</strong> chá foramrecupera<strong>do</strong>s <strong>do</strong> lixo, por ocasião damudança <strong>de</strong> casa da patroa.FIGURA 11: “Casa da empregada”. Autoria:Sandro José da Silva; Serra; 1996; fonte:acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho:10x15; fotografia digitalizada no Photo Editor(12x15).


112fazen<strong>do</strong> <strong>de</strong>las porta<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> nossas concepções e visões <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>. Naquelaparte <strong>do</strong> trabalho, chamávamos a atenção para a perspectiva patronal que, noato da dádiva, acopla ao presente tanto a noção <strong>de</strong> que o <strong>do</strong>a<strong>do</strong>r é supe<strong>rio</strong>r(porque tem algo a dar), quanto a idéia <strong>de</strong> que o mesmo é merece<strong>do</strong>r <strong>de</strong><strong>de</strong>ferências vindas da parte <strong>do</strong>s receptores (pois sua generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve serrecompensada com subserviência). Já o espírito da coisa dada, naperspectiva das empregadas, assume <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s: um diz respeito àmanutenção da memória familiar das patroas através das histórias que osobjetos continuam a contar na casa das empregadas. Outro, queanalisaremos nas seções poste<strong>rio</strong>res, refere-se ao la<strong>do</strong> menos harmônico dareciprocida<strong>de</strong>.Assim, muitas <strong>de</strong>stas mulheres, que durante anos <strong>de</strong> trabalhocompartilharam da intimida<strong>de</strong> das famílias emprega<strong>do</strong>ras, guardam consigovelhos objetos, móveis e roupas que lhes foram presentea<strong>do</strong>s, e com eles ashistórias <strong>de</strong>ssas famílias. Túlia, uma <strong>de</strong>ssas exegetas <strong>de</strong> sua própria cultura,reconhece a andança <strong>de</strong> cada móvel que coleciona na sua casa, guardaconsigo o espírito <strong>de</strong> cada coisa: E , . ! 1< 1 & F = F ( /) 3 3 %Através da análise das coisas dadas e recebidas, o pesquisa<strong>do</strong>r po<strong>de</strong>extrapolar o senti<strong>do</strong> material da relação, e estabelecer uma outra leitura da


113relação entre patrões e emprega<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos. As coisas circulantesconstituem-se na prova da <strong>de</strong>pendência e da reciprocida<strong>de</strong> entre pessoas quese relacionam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social. A maioria <strong>do</strong>spatrões que pesquisei não <strong>de</strong>ixaria as pessoas que lhes sustentam o cotidianoe criam seus filhos sucumbirem à pobreza total. Complementam o salá<strong>rio</strong> quepagam com pequenos objetos, e até empréstimos ou abonos ocasionais. Emtroca recebem prestígio e lealda<strong>de</strong>. Fazem assim reconhecer “suas virtu<strong>de</strong>s"<strong>de</strong> bons patrões; os subalternos, entretanto, não fazem uma leitura ingênuada dádiva. Mantêm os laços <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong>, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> utilizar seusfavores apropriadamente, valorizan<strong>do</strong> os significa<strong>do</strong>s sociais embuti<strong>do</strong>s natroca - generosida<strong>de</strong>, reciprocida<strong>de</strong> e esperteza, como é possível notar noscasos <strong>do</strong>s furtos que analisaremos a seguir.3.3 O assassino é o mor<strong>do</strong>moG #7 #2 %2 #3 ,7 #E ! >3 H ? ,2 #@/ ,7 #* 2 %2 # 7 % /%7 # 2 / = , G 2 ,2 #7 ! & ,Da mesma forma que, nas suas falas, as patroas ressaltam agenerosida<strong>de</strong> com a qual regalam suas empregadas <strong>de</strong> <strong>do</strong>nativos, queixam-


114se com bastante freqüência <strong>do</strong>s pequenos furtos que estas cometem. Nestatransmissão não inteiramente consentida <strong>do</strong> patrimônio, encontramos, <strong>de</strong>certa forma, o la<strong>do</strong> avesso da circulação <strong>de</strong> bens pela dádiva. Sempre<strong>de</strong>scrito como surpresa (“Imagina, peguei ela me rouban<strong>do</strong>!”), como algoinadmissível, o furto é um fator, via <strong>de</strong> regra, <strong>de</strong>tona<strong>do</strong>r da indignação <strong>do</strong>spatrões – a gota d’água que po<strong>de</strong> até levar à <strong>de</strong>missão.Entre as sete patroas entrevistadas, apenas uma disse nunca ter ti<strong>do</strong>problema <strong>de</strong>ssa natureza com as suas empregadas (embora tenha aconteci<strong>do</strong>um "roubo" na sua casa, no qual uma <strong>de</strong> suas empregadas "roubou” outra).Ao longo <strong>do</strong> contato com as patroas, também observamos que não se tratam<strong>de</strong> experiências isoladas. Uma mesma patroa, em geral, vivencia essaexperiência com inúmeras empregadas.Por sua vez, nenhuma empregada jamais admite ter rouba<strong>do</strong>. O "roubo"aparece nos seus relatos, na maioria das vezes, como acusação infundadafeita pelos patrões ou, muito raramente, quan<strong>do</strong> se admite conhecer algumcaso <strong>de</strong> furto cometi<strong>do</strong> por uma ou outra empregada <strong>do</strong>méstica. A autora <strong>do</strong>"roubo" é sempre alguém muito distante, se não <strong>de</strong>sconhecida, <strong>de</strong> maneiraque nenhuma suspeita possa recair sobre a narra<strong>do</strong>ra e a sua re<strong>de</strong> <strong>de</strong>amiza<strong>de</strong>s.Túlia, com experiência <strong>de</strong> 43 anos <strong>de</strong> serviço <strong>do</strong>méstico e pessoa centralna sua re<strong>de</strong> <strong>de</strong> vizinhança (inclusive como agencia<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> empregos), admitiuapenas um caso em que foi acusada <strong>de</strong> ladra: ? #@ - #>< %< % %H " " ," /% !


115 4 ,2 # , ? # 3 4 O mais importante aqui não é <strong>de</strong>terminar se a empregada está ou nãofalan<strong>do</strong> a verda<strong>de</strong>, mas perceber o quanto as empregadas reconhecem essefato como ordiná<strong>rio</strong>, seja como acusação potencial, seja como admissão dapossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> "roubo". Essas narrativas não indicam apenas uma instânciadiscursiva, elas também inspiram pistas sobre práticas culturais.O relato <strong>de</strong> Túlia é primoroso como indica<strong>do</strong>r da sua sabe<strong>do</strong>ria quanto àgramática social que envolve essas situações na cultura <strong>do</strong> país. Primeiro, elaexpõe o fato mostran<strong>do</strong> que a constatação <strong>do</strong> sumiço <strong>de</strong> algo sempre <strong>de</strong>notauma acusação a algum subalterno. Segun<strong>do</strong>, ela inicia uma investigação,pois, como toda patroa, a <strong>de</strong> Túlia anuncia a falta <strong>de</strong> algo indiretamente,dan<strong>do</strong> assim tempo para os emprega<strong>do</strong>s “acharem” aquilo que está<strong>de</strong>sapareci<strong>do</strong>. Depois, Túlia diz ter encontra<strong>do</strong> o objeto, segun<strong>do</strong> ela, larga<strong>do</strong>em qualquer canto pelos próp<strong>rio</strong>s patrões. Dessa forma, ela aponta para um<strong>de</strong>sleixo <strong>do</strong>s patrões – talvez em função da pouca importância real queatribuem aos seus pertences (que sabem serem passíveis <strong>de</strong> substituiçãocom certa facilida<strong>de</strong>); talvez por contarem <strong>de</strong>masiadamente com o trabalho<strong>do</strong>s serviçais para manter a or<strong>de</strong>m. Também, assim, exime-se <strong>de</strong> qualquerpossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tornar-se suspeita. Finalmente, Túlia admite que muitasvezes as empregadas cometem um "roubo", e que, nesse caso, é legítimo ospatrões exigirem, seja lá por quais meios forem, aquilo que lhes pertence.Como no caso da bicicleta roubada <strong>de</strong> Priscila (no início da seção), asqueixas <strong>de</strong> "roubo" feitas pelos patrões sempre aparecem como acusação.Quan<strong>do</strong> qualquer coisa some <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, a suspeita já está confirmada:


116foi a empregada! Mesmo que muitas vezes a coisa venha a ser encontradaem um lugar esqueci<strong>do</strong>, ou esteja sen<strong>do</strong> usa<strong>do</strong> por alguém da família, esse“<strong>de</strong>talhe” não é incorpora<strong>do</strong> no repertó<strong>rio</strong> <strong>do</strong>s patrões como referência para opróximo acontecimento. Acredita-se que é óbvio que essas pessoas roubam.Os exemplos <strong>de</strong>sse fato não precisam ser busca<strong>do</strong>s apenas no trabalho <strong>de</strong>campo, ele povoa nosso cotidiano. Jamais a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> "roubo" éaventada entre os membros da família, ele sempre é atribuí<strong>do</strong> a um“estranho”.Maria Suely Kofes (1991) analisa as acusações <strong>de</strong> "roubo" contra asempregadas <strong>do</strong>mésticas como efeito da in<strong>de</strong>terminação <strong>do</strong> status que aempregada <strong>de</strong>sfruta <strong>de</strong>ntro da casa da patroa. Segun<strong>do</strong> a autora, a natureza<strong>do</strong> trabalho executa<strong>do</strong> por empregadas no espaço <strong>do</strong>méstico é ambígua, namedida em que a casa é o locus por excelência da vida íntima, “organizadapelo parentesco com relações <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong>, confiança, fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> eintimida<strong>de</strong>” (KOFES, 1991, p. 236). Assim sen<strong>do</strong>, é difícil <strong>de</strong>finir que tipo <strong>de</strong>relação está se estabelecen<strong>do</strong>:Quan<strong>do</strong> a empregada assume o trabalho <strong>do</strong>méstico sobassalariamento vai exercê-lo na unida<strong>de</strong> <strong>do</strong>méstica da patroa, on<strong>de</strong>realizará funções e papéis cola<strong>do</strong>s aos papéis e posições <strong>de</strong>trabalho atribuí<strong>do</strong>s à mulher na or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>méstica, os quais implicamdimensões complexas como afetivida<strong>de</strong> e sexualida<strong>de</strong>. Ou seja, asfunções que constituem este trabalho não são, na organização<strong>do</strong>méstica, apenas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m técnica. É significativo que sejam aspatroas as que mais enfaticamente se encarregam <strong>de</strong> traçar asdiferenças com as empregadas, porque é na sua or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>mésticaque a duplicação das mulheres é ameaça<strong>do</strong>ra: confundiria os papéissociais, quan<strong>do</strong> o que é espera<strong>do</strong> seria apenas um <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>funções. Separação difícil. (KOFES, 1991, p. 11).A acusação <strong>de</strong> "roubo" contra a empregada nesse contexto, analisa aantropóloga, tem como efeito simbólico retirá-la <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro das relaçõesfamiliares.É interessante pensar na empregada <strong>do</strong>méstica como um elementoperigoso, “polui<strong>do</strong>r”, nas palavras <strong>de</strong> Mary Douglas (1976). Entretanto, essas


117interpretações correm o risco <strong>de</strong> congelar no tempo e no espaço práticasculturais. Eu me pergunto se as situações <strong>de</strong> "roubo" ou acusação <strong>de</strong> "roubo"também não fazem parte das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> diálogo entre patrões eemprega<strong>do</strong>s. É possível que a possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> "roubo" atribuída aos pobresseja uma simples imputação <strong>de</strong> perigo, impureza ou patologia criminal. Poroutro la<strong>do</strong>, a convicção <strong>de</strong> que “foi a empregada” po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> umreconhecimento tácito da extrema <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> que as separa <strong>do</strong>s patrões.Se, aos olhos <strong>do</strong>s patrões, as empregadas roubam sempre, não seria por quealgo lhes falta para viver?Um fato que me leva a crer que o "roubo" pratica<strong>do</strong> por empregadas énão somente espera<strong>do</strong>, mas tacitamente aceito, é que, poucas vezes, umasituação <strong>de</strong> "roubo", mesmo quan<strong>do</strong> ratificada, conduz a um <strong>de</strong>senlacejurídico ou policial. Por que, apesar <strong>de</strong> todas as acusações <strong>de</strong> "roubos”imputa<strong>do</strong>s a Túlia, ela continua a trabalhar por 23 anos no mesmo emprego?Por que, ao constatar o esvaziamento das prateleiras, as patroas queixam-seindiretamente, fazem menções, até mandam embora, mas raramente<strong>de</strong>flagram uma acusação contun<strong>de</strong>nte? 73Um velho fazen<strong>de</strong>iro, patriarca rural, dava conselhos a sua mulher<strong>de</strong>solada ante os pequenos furtos que sua empregada supostamente fazia:3 ; # / < ;#I ; I %73 Boris Fausto, estudan<strong>do</strong> os processos criminais em São Paulo na virada <strong>do</strong>s século (1880-1924), constata que apenas 5% <strong>do</strong> conjunto <strong>do</strong>s acusa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> furtos e "roubos” erami<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s como <strong>do</strong>mésticos. O autor pressupõe a baixa quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> processosregistra<strong>do</strong>s a “propensão <strong>de</strong> resolver estes casos ‘no recesso <strong>do</strong> lar’” (1984,p.151).


1183.4 Carregamento <strong>de</strong> formiguinha: rebeldia, rivalida<strong>de</strong> e diversão no furtoQuan<strong>do</strong> Clau<strong>de</strong> Levi-Strauss esteve no Brasil <strong>de</strong>sfrutou <strong>de</strong> algunsprivilégios incomuns para um jovem professor em início <strong>de</strong> carreira.Um <strong>de</strong>les foi o <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r contar com os serviços <strong>de</strong> uma empregada<strong>do</strong>méstica. Sua memória privilegiada lembra que, infelizmente, teveque dispensar a moça, pois ela tinha o péssimo hábito <strong>de</strong> “ pegar”as roupas <strong>de</strong> Dona Dina, sua mulher, para usá-las nos bailes <strong>de</strong>Carnaval. (Carta pessoal <strong>de</strong> Sandro José da Silva) 74 .Minhas investidas no campo (em particular na casa das empregadas)assim como minha experiência <strong>de</strong> patroa levaram-me a crer que essa ane<strong>do</strong>ta– sobre as roupas <strong>de</strong>saparecidas <strong>de</strong> Dona Dina – talvez não seja purafantasia colonialista 75 . Creio que não é <strong>de</strong> to<strong>do</strong> incomum uma empregadalevar coisas da patroa sem que esta tenha lhe concedi<strong>do</strong> permissão. Porém,na maioria das vezes, são coisas insignificantes em termos <strong>do</strong> padrãoaquisitivo <strong>do</strong>s patrões: uma lata <strong>de</strong> ervilha, um sabonete, um pouco <strong>de</strong> feijão,sacolas <strong>de</strong> supermerca<strong>do</strong>, alguns troca<strong>do</strong>s. Parece com um “carregamento <strong>de</strong>formiguinha”.Às vezes, algumas empregadas também levam empresta<strong>do</strong>temporariamente algo (uma roupa para um dia especial, calcinhas e soutiens)que as patroas vêem <strong>de</strong>saparecer e voltar <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> fazer alguma insinuação74Agra<strong>de</strong>ço ao Sandro José da Silva por ter me “dadiva<strong>do</strong>”, ressaltan<strong>do</strong>, em uma <strong>de</strong> suascartas, esta passagem pitoresca <strong>de</strong> Levi-Strauss pelo Brasil, registrada no livro Sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>São Paulo (1996).75Trabalhar sobre este assunto é estar ciente das limitações meto<strong>do</strong>lógicas. Como o “roubo”jamais será admiti<strong>do</strong> por parte das empregadas <strong>do</strong>mésticas, busquei, no conjunto <strong>de</strong>informações colhidas na pesquisa <strong>de</strong> campo, subsídios para ler, nas entrelinhas dasnarrativas, algumas dimensões <strong>do</strong> “roubo” das empregadas.


119sobre o sumiço <strong>do</strong> objeto 76 . Por isso seria ingênuo pensar no "roubo" comouma ativida<strong>de</strong> para garantir a simples sobrevivência. Como entãocompreen<strong>de</strong>r essa ativida<strong>de</strong> constatada com bastante freqüência?No meu diá<strong>rio</strong> <strong>de</strong> campo tenho anotada uma narrativa <strong>de</strong> "roubo"contada pela manicure da patroa atingida:J #< KH ? , % % J 7 ( ) & J 7 !@ ? ! ? ! KK ,J 7 #K7/ !, 3 ? & K" // 7 ? ,H2 # ,J # - J J 7 , - +3 ( )Guiada pelo texto “O Gran<strong>de</strong> Massacre <strong>de</strong> Gatos”, <strong>de</strong> Robert Darnton(1986), procurei respostas nos <strong>de</strong>talhes que não conseguia compreen<strong>de</strong>r <strong>do</strong>episódio narra<strong>do</strong>. O valor <strong>do</strong> objeto rouba<strong>do</strong> <strong>de</strong>scarta qualquer dimensãoeconômica como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação. Então, por que tantaindignação, a ponto <strong>de</strong> a moça querer bater na empregada por um cacho <strong>de</strong>76Não é só Dona Dina que vê suas roupas serem furtadas para a empregada se exibir emocasiões festivas. Uma amiga minha só <strong>de</strong>scobriu esse hábito <strong>de</strong> sua empregada quan<strong>do</strong>esta lhe mostrou fotos <strong>de</strong> sua festa <strong>de</strong> aniversá<strong>rio</strong>, nas quais aparecia, com largo sorriso <strong>de</strong>braços da<strong>do</strong>s com algumas amigas, vestin<strong>do</strong> a roupa favorita <strong>de</strong> sua patroa.


120bananas? De outro la<strong>do</strong>, supon<strong>do</strong> que a interpretação da patroa é correta, porque as empregadas correm o risco <strong>de</strong> ser apanhadas por tão pouco?É possível que a indignação da patroa esteja relacionada à suasensação <strong>de</strong> impotência, pois as empregadas, neste caso, <strong>de</strong>têm um po<strong>de</strong>rnão negligenciável. Por trabalharem muitos anos no mesmo lugar, jáadquiriram uma certa estabilida<strong>de</strong> no universo social <strong>do</strong> prédio. Ainda mais, apresença cotidiana da empregada na casa <strong>do</strong>s patrões possibilita que elas<strong>do</strong>minem <strong>gran<strong>de</strong></strong> número <strong>de</strong> informações sobre seus emprega<strong>do</strong>res. Duranteo trabalho <strong>de</strong> campo, <strong>de</strong>sfrutan<strong>do</strong> da confiança das empregadas, acabeiconhecen<strong>do</strong> histórias <strong>de</strong> adulté<strong>rio</strong>s, <strong>de</strong> brigas familiares, <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> abusosexual <strong>de</strong> patrões com empregadas, entre outras coisas 77 . Como a relaçãoentre essas partes é sempre tensa, inclusive pelo não cumprimento <strong>do</strong>sdireitos trabalhistas, o me<strong>do</strong> <strong>de</strong> que a roupa suja venha a ser publicizadamantém certas questões empatadas.A temerida<strong>de</strong> das empregadas, neste caso particular, parece se <strong>de</strong>ver,além da <strong>de</strong>gustação das bananas, a um certo prazer <strong>do</strong> jogo. Edilene e Túliasão amigas <strong>de</strong> longa data. Foi Túlia quem conseguiu os empregos paraEdilene no prédio on<strong>de</strong> trabalha como faxineira. Moram muito perto uma daoutra e, nos momentos <strong>de</strong> aperto (uma briga conjugal, por exemplo), é nacasa <strong>de</strong> Túlia que Edilene encontra amparo. Nos intervalos <strong>do</strong> trabalho, comomuitas vezes pu<strong>de</strong> observar, <strong>de</strong>scem até o pátio <strong>do</strong> edifício para fumar umcigarrinho e conversar. Não é difícil imaginar que, numa <strong>de</strong>ssas ocasiões, arisada diga respeito às bananas furtivamente apropriadas. Roubar um cacho<strong>de</strong> bananas po<strong>de</strong> ser mais uma <strong>de</strong> suas oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> diversão. Umadiversão com gosto <strong>de</strong> transgressão. Po<strong>de</strong>riam pedir um prato <strong>de</strong> comida, éclaro. Mas, para tanto, Edilene teria que transpor a barreira da vergonha ehumil<strong>de</strong>mente pedir um favor à patroa. O prato estaria repleto <strong>de</strong> "dádiva" e,com ela, a retribuição obrigatória. Rouban<strong>do</strong> um cacho <strong>de</strong> banana,<strong>de</strong>monstram sua autonomia sobre aquela economia <strong>do</strong>méstica vigiada,77 Lembremos da opinião <strong>de</strong> uma patroa citada acima, <strong>de</strong> que não convém ”ter uma inimiga<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa”.


121corroem a confiança construída sobre o eterno merecimento, <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>r dasubalternida<strong>de</strong>.3.5 A construção relacional da moralida<strong>de</strong> <strong>do</strong> "roubo"Fonseca (1993), em sua etnografia sobre grupos populares portoalegrenses,mostra como a prática <strong>do</strong> "roubo" po<strong>de</strong> existir entre vizinhos eparentes. Esta autora arrola um sem número <strong>de</strong> queixas e precauções contrao "roubo", que evi<strong>de</strong>nciam essa prática:Uma prima <strong>de</strong> Alcina aproveitou a ausência momentânea <strong>de</strong> suaanfitriã para roubar duas latas <strong>de</strong> azeite que avistara na cozinha.Alcina só <strong>de</strong>scobriu o caso graças à <strong>de</strong>núncia da faxineira que tinhame<strong>do</strong> <strong>de</strong>, ela, levar a culpa. Uma matrona, particularmenteorgulhosa <strong>de</strong> suas jóias, as levava sempre com ela na bolsa quan<strong>do</strong>saia: “Nunca se sabe. A gente recebe tantas visitas.” Outra mulherme contou que pegou sua sobrinha, <strong>de</strong> visita na casa, forran<strong>do</strong> abolsa com os novos lençóis. “E sabe, ela nem tinha vergonha. Dissepara mim: 'Também! A senhora tem tantos!'" Benta, uma senhora <strong>de</strong>ida<strong>de</strong> que mora sozinha, queixa-se que não tem mais pratos, poisseus parentes lhe roubaram tu<strong>do</strong>. E, <strong>de</strong>screven<strong>do</strong> o sumiço datelevisão <strong>do</strong>s vizinhos, dá sua opinião: “O ladrão entrou enquantoeles estavam <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> e eles não viram nada. Para mim, é alguémda família, até mesmo o filho <strong>de</strong>les.” Outra pessoa <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, SeuJoão, vocifera contra seu neto a<strong>do</strong>lescente que expulsou <strong>de</strong> casapor ter rouba<strong>do</strong> seu relógio: “Ele ven<strong>de</strong>u meu relógio, para comprarmaconha!” (FONSECA, 2000, p.176)A autora interpreta esses fatos como um reconhecimento implícito <strong>de</strong>necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> redistribuição <strong>de</strong> riqueza entre as pessoas <strong>de</strong> situaçãohumil<strong>de</strong>. Eu iria além <strong>de</strong> Fonseca para sugerir que esta concepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>não existe apenas entre os pobres. No Brasil, con<strong>de</strong>na-se o "roubo" (“Quemrouba um melhoral, rouba qualquer coisa”), mas reconhece-se, por outro la<strong>do</strong>,que “a ocasião faz o ladrão”. Depen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> da situação, esta é uma lógica


122(encoberta) aceita na socieda<strong>de</strong> em geral. Uma entrevista que realizeiconjuntamente com duas patroas é revela<strong>do</strong>ra:2 # KH7 1 ,7 # < = & ! 1 4 # >- ,H G # H 1 H 7! KK, ,2 # %< /, L 4 #KM 2 /4 !&,HÉ significativo que, minutos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ssa conversa, a filha <strong>de</strong> Jandiraentrou na sala, pedin<strong>do</strong> à mãe folhas para <strong>de</strong>senhar. A mãe indicou para filha:"pega aquelas que a mamãe trouxe ontem da firma".Assim como a fala das empregadas, o diálogo acima anuncia um campo<strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> "roubo" na socieda<strong>de</strong> brasileira que se distingue nas classessociais não pela sua efetivação ou não, mas pela interpretação que cadagrupo faz <strong>do</strong> mesmo 78 . Muitas empregadas <strong>do</strong>mésticas sabem que não ésomente elas que roubam, que a maioria <strong>do</strong>s patrões, apesar <strong>de</strong> nãoadmitirem, também o fazem.78 Em uma conversa informal com um alto funcioná<strong>rio</strong> <strong>de</strong> uma companhia aérea nacional,aprendi que não são pequenos os gastos da empresa na reposição <strong>de</strong> travesseiros, talheres emantas que os passageiros costumam carregar para casa. Questionei-lhe sobre a atitu<strong>de</strong>a<strong>de</strong>quada aos comissá<strong>rio</strong>s nessa situação: “são orienta<strong>do</strong>s para não dizer nada. Os clientesnão <strong>de</strong>vem ser constrangi<strong>do</strong>s”. Lógica econômica ou vingança <strong>de</strong> Nêmisis?


1233.6 A Vingança <strong>de</strong> Nêmisis: expressão performática das relações entrepatrões e empregadas <strong>do</strong>mésticasEsses exemplos <strong>de</strong> narrativas <strong>de</strong> acusação mostram que, para além daassimetria <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas relações, a acusação <strong>de</strong>sferida pelos patrõesou captada pelas empregadas indica um campo comunicativo entre as partes.A gramática das situações <strong>de</strong> acusação <strong>de</strong> "roubo" é <strong>do</strong>minada pelas partesenvolvidas no conflito, quase como num ritual performático, on<strong>de</strong> o roteiro <strong>do</strong>sacontecimentos já é conheci<strong>do</strong> pelos atores e pela platéia. Um código <strong>de</strong>falas, gestos e práticas que, embora claramente manifesto, não é jamaisexplicita<strong>do</strong>, num acor<strong>do</strong> mu<strong>do</strong> entre as partes, sobre as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.Para Scott (1990), em quase to<strong>do</strong>s os contatos entre subalternos e<strong>do</strong>minantes é este " roteiro público" (public transcript) que está em atuação. Eseu conteú<strong>do</strong> é dita<strong>do</strong> pelas relações <strong>de</strong> afastamento e subalternida<strong>de</strong>pretendidas pelos <strong>do</strong>minantes.Repousa nesse saber compartilha<strong>do</strong> uma noção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>hierárquica, on<strong>de</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> justiça é menos comprometida com aigualda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s sujeitos <strong>do</strong> que com a relação <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong> entre as partes.Ou seja, não se questiona a assimetria <strong>do</strong>s sujeitos, ela existe e é um fato <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>. É basea<strong>do</strong> nessa <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> que a acusação <strong>de</strong> "roubo" po<strong>de</strong> serfeita aos subalternos. Entretanto, essa <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> não é uma relaçãosimples <strong>de</strong> opressão <strong>do</strong>s <strong>do</strong>minantes sobre os <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s. Existe um espaço<strong>de</strong> negociação on<strong>de</strong> o "roubo" cometi<strong>do</strong> pelos subalternos é uma atitu<strong>de</strong>presumível, intrínseca à relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social. Quan<strong>do</strong> a patroa <strong>de</strong>Túlia estabelece um tempo para o objeto ser encontra<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> Túliatambém admite a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que talvez alguma empregada tenha pegoo anel ou quan<strong>do</strong> seu Beto compreen<strong>de</strong> o furto <strong>de</strong> pequenas coisas como


124parte da relação <strong>de</strong> troca entre emprega<strong>do</strong>s e patrões, estão reconhecen<strong>do</strong>uma lógica <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> <strong>do</strong>ns entre essas partes. Nesse senti<strong>do</strong>, ospequenos furtos po<strong>de</strong>riam ser interpreta<strong>do</strong>s como a “Vingança <strong>de</strong> Nêmisis”,um princípio moral expresso no esquema <strong>de</strong> troca-dádiva proposto por MarcelMauss (1974), que <strong>de</strong>nuncia o <strong>de</strong>sequilíb<strong>rio</strong> entre a abundância <strong>de</strong> uns e apobreza <strong>de</strong> outros. “A esmola é fruto <strong>de</strong> uma noção moral da dádiva dafortuna, por um la<strong>do</strong>, e <strong>de</strong> uma noção <strong>de</strong> sacrifício, por outro... a Nêmisisvinga os pobres e os <strong>de</strong>uses <strong>do</strong> excesso <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> certos homens, que<strong>de</strong>vem <strong>de</strong>sfazer-se <strong>de</strong>la” (MAUSS, 1974, p. 66).Embora durante meu trabalho <strong>de</strong> campo esse assunto tenha si<strong>do</strong>extremamente recorrente nas falas <strong>do</strong>s patrões (e confirma<strong>do</strong> pelasempregadas <strong>do</strong>mésticas), o "roubo" tem si<strong>do</strong> pouco analisa<strong>do</strong> na bibliografiadas Ciências Sociais. A literatura especializada sobre serviço <strong>do</strong>méstico naAmérica Latina menciona brevemente a questão <strong>do</strong>s "roubos”, remeten<strong>do</strong>-a àdiscussão sobre as condições <strong>de</strong>sfavoráveis e injustas enfrentadas pelasservi<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>mésticas. Nestas análises, o "roubo" assume uma únicaconotação: a <strong>de</strong> “acusação” <strong>do</strong>s patrões sobre as empregadas <strong>do</strong>mésticas(CHANEY, CASTRO, 1993; KOFES, 1991).As Ciências Sociais e a História têm trata<strong>do</strong>, numa referência maisampla, questões sobre marginalida<strong>de</strong>, banditismo e violência, abordan<strong>do</strong>esses temas como sintoma <strong>de</strong> “resistência” a uma lógica burguesa (Foucault,1979; Hobsbawn 1969; Ginzburg, 1987, entre outros). Em termos da produçãonas Ciências Sociais brasileiras, Alba Zaluar (1985) é um <strong>do</strong>s poucos autoresque aborda a questão. No seu estu<strong>do</strong> sobre trabalha<strong>do</strong>res e bandi<strong>do</strong>s, estaautora se opõe as interpretações que propõem uma i<strong>de</strong>ologia <strong>do</strong>minante<strong>de</strong>masiadamente avassala<strong>do</strong>ra e monolítica nas suas instituições <strong>de</strong> controle,além <strong>de</strong> não reconhecerem na atitu<strong>de</strong> <strong>do</strong>s “<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s” nada mais <strong>do</strong> quereações a estas estratégias <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação. Em sua etnografia sobre osmora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> conjunto habitacional Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus no Rio <strong>de</strong> Janeiro, Zaluarprocura mostrar que as representações sobre o universo <strong>do</strong> crime, daviolência e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>stas pessoas são construídas a partir <strong>de</strong> suas


125experiências quotidianas e concretas (“ao invés <strong>de</strong> uma idéia abstrata <strong>de</strong>justiça ou <strong>de</strong>mocracia” (1985, p.140) num intrinca<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>entre trabalha<strong>do</strong>res e bandi<strong>do</strong>s que leva em conta gênero, ida<strong>de</strong>, localida<strong>de</strong> ecódigo <strong>de</strong> honra dificilmente resumível a uma reação à moralida<strong>de</strong> <strong>do</strong>minante.Entretanto, quan<strong>do</strong> analisa o “"roubo" eventual ou pequenos furtos” (inclusivecitan<strong>do</strong> o “aumento <strong>do</strong> "’roubo’" <strong>do</strong>méstico cada vez mais conheci<strong>do</strong> pelas<strong>do</strong>nas-<strong>de</strong>-casa das classes abastadas” (nota 12, p. 171) remeteinexoravelmente a discussão ao conceito <strong>de</strong> classe e à “revolta” re<strong>sul</strong>tante dapaulatina pauperização a que é submetida a população trabalha<strong>do</strong>ra no país.As críticas <strong>de</strong> Zaluar (1985) se, por um la<strong>do</strong>, nos chamam a atençãosobre uma dimensão própria das ações <strong>do</strong>s grupos populares, por outroacabam por reproduzir um discurso economicista já critica<strong>do</strong> por E. P.Thompson. No célebre artigo A economia moral da multidão inglesa no séculoXVII (1998) o historia<strong>do</strong>r ilumina o reducionismo econômico das interpretaçõessobre os motins <strong>de</strong> subsistência no século XVIII na Inglaterra, mostran<strong>do</strong> queestas não se reduziam a “rebeliões <strong>do</strong> estômago”. Para ele, os motins <strong>de</strong>ssaépoca po<strong>de</strong>m ser analisa<strong>do</strong>s como uma forma <strong>de</strong> ação popular baseada emcostumes tradicionais:É certamente verda<strong>de</strong> que os motins eram provoca<strong>do</strong>s peloaumento <strong>de</strong> preços, por maus procedimentos <strong>do</strong>s comerciante epela fome. Mas essas queixas operavam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um consensopopular a respeito <strong>do</strong> que eram práticas legítimas e ilegítimas naativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s moleiros, <strong>do</strong>s que faziam o pão etc. Isso,por sua vez, tinha como fundamento uma visão consistentetradicional das normas e obrigações sociais, das funçõeseconômicas peculiares a vá<strong>rio</strong>s grupos na comunida<strong>de</strong>, as quais,consi<strong>de</strong>radas em conjunto, po<strong>de</strong>mos dizer que constituem aeconomia moral <strong>do</strong>s pobres. O <strong>de</strong>srespeito a esses pressupostosmorais , tanto quanto a privação real, era o motivo habitual para aação direta. Embora essa economia moral não possa ser <strong>de</strong>scritacomo “política” em nenhum senti<strong>do</strong> mais avança<strong>do</strong>, tampouco po<strong>de</strong>ser <strong>de</strong>scrita como apolítica, pois supunha noções <strong>de</strong>finidas, eapaixonadamente <strong>de</strong>fendidas, <strong>do</strong> bem-estar comum – noções quena realida<strong>de</strong> encontravam algum apoio na tradição paternalista dasautorida<strong>de</strong>s; noções que o povo, por sua vez, fazia soar tão alto queas autorida<strong>de</strong>s ficavam, em certa medida, reféns <strong>do</strong> povo. Assim,essa economia moral não se intrometia apenas nos momentos <strong>de</strong>perturbação social, mas incidia <strong>de</strong> forma muito geral sobre ogoverno e o pensamento <strong>do</strong> século XVIII. A palavra “motim” é<strong>de</strong>masia<strong>do</strong> pequena para abarcar tu<strong>do</strong> isso. (THOMPSOM, 1998,p.152-153)


126Thompson elabora uma ampla contextualização das relações <strong>de</strong> classena Inglaterra setecentista, indican<strong>do</strong> hábitos e costumes tradicionais daeconomia moral <strong>do</strong>s plebeus, mostran<strong>do</strong> como os motins se organizavam anteàs transformações que a produção capitalista incipiente tentava implantar nastransações comerciais. A “resistência” popular em Thompson não é umacategoria presumida ante<strong>rio</strong>rmente ao exame das práticas <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res.Antes ela surge em situações particulares <strong>de</strong> enfrentamento com aaristocracia e o novo mo<strong>de</strong>lo burguês. Ao analisar as relações sociais numperío<strong>do</strong> <strong>de</strong> transição, o autor ressalta os significa<strong>do</strong>s das ações populares,ante<strong>rio</strong>rmente tratadas como mera mecânica da miséria.Seguin<strong>do</strong> nesse caminho, em meu estu<strong>do</strong> o "roubo" e as acusações <strong>de</strong>"roubo" são analisadas como partes constitutivas das relações <strong>de</strong> trabalho<strong>do</strong>méstico. Ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> salá<strong>rio</strong> e <strong>do</strong>s presentes ofereci<strong>do</strong>s pelos patrões aosserviçais, o furto continua<strong>do</strong> que é efetua<strong>do</strong> (ou presumi<strong>do</strong>) pelas empregadasilustra as ambigüida<strong>de</strong>s das relações <strong>de</strong> classe que esse tipo <strong>de</strong> serviçoacarreta na socieda<strong>de</strong> brasileira. O exame das ane<strong>do</strong>tas sobre "roubo"recolhidas no trabalho <strong>de</strong> campo, permite ultrapassar os limites da“resistência” <strong>de</strong> classe, indican<strong>do</strong>, além <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> relação que se estabeleceentre subalternos e os supe<strong>rio</strong>res, uma configuração histórica <strong>de</strong> atuação <strong>de</strong>uma população subalterna que não prescin<strong>de</strong> nem se submete totalmente darelação com os grupos <strong>do</strong>minantes. O "roubo" oferece um campo <strong>de</strong>comunicação entre as classes, nesse senti<strong>do</strong> po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser pensa<strong>do</strong> comoexpressão performática, espaço pedagógico das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no país.As práticas <strong>de</strong> reutilização associadas com aquele “carregamento <strong>de</strong>formiguinhas” – os pequenos furtos <strong>de</strong> objetos busca<strong>do</strong>s na casa <strong>do</strong>s patrões– parecem muito com as “apropriações diretas da merca<strong>do</strong>ria”, das “lascas”,“retalhos”, e “cortinas”, que conforme Linebaugh (1983), compuseram osistema tradicional <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção <strong>do</strong>méstico durante o século XVIII.Segun<strong>do</strong> este mesmo autor, quan<strong>do</strong> o sistema monetá<strong>rio</strong> se implantou na


127lógica <strong>do</strong> sistema produtivo, os trabalha<strong>do</strong>res não a<strong>de</strong>riram com facilida<strong>de</strong> aoprocesso <strong>de</strong> trabalho que intensificava suas condições <strong>de</strong> exploração. Paraextinguir aquelas práticas populares <strong>de</strong> complementação <strong>de</strong> renda,<strong>de</strong>senvolveu-se um duro sistemas <strong>de</strong> punição que levou milhares <strong>de</strong>aprendizes à forca 79 .James Scott (1985; 1990) – sem dúvida, ele mesmo um her<strong>de</strong>irointelectual <strong>de</strong> Thompson 80 - nos ajuda ainda a ler estes acontecimentos comoa luta sobre a <strong>de</strong>limitação das fronteiras entre o "roteiro público" e "roteiroencoberto", quan<strong>do</strong> os subalternos aproveitam-se das brechas <strong>de</strong> um sistema<strong>de</strong> comportamentos bem <strong>de</strong>marca<strong>do</strong>s para realizar suas jogadas. Estas – comobjetivos, em geral, imediatos – nunca tomam a forma <strong>do</strong> enfrentamentodireto, nem da rebeldia suicida para obter algumas sobras da abundância <strong>do</strong>sricos. Escolhem antes a falsa conformida<strong>de</strong>, a falsa <strong>de</strong>ferência e, commaestria, procuram fazer os supe<strong>rio</strong>res mor<strong>de</strong>r a própria língua,comprometen<strong>do</strong>-os <strong>de</strong>ntro das próprias promessas implícitas propostas emseus discursos. Aqui é necessá<strong>rio</strong> lembrar que neste jogo tenso entramelementos importantes como o fato das empregadas conhecerem aprivacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus patrões e seus eventuais <strong>de</strong>svios <strong>de</strong> conduta moral.Entretanto, esses trunfos não são <strong>de</strong>finitivos para garantir uma situaçãosegura aos subalternos – são cartas que, para serem eficazes, <strong>de</strong>vem serjogadas com muita sabe<strong>do</strong>ria, obten<strong>do</strong> pequenas vitórias, às vezes apenasuma gargalhada.79 Essa parte da remuneração <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res (as lascas) foi consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> por Marx “<strong>de</strong>importância central para as relações <strong>de</strong> classe da época” (LINEBAUGHT, 1983, p. 118).80 Um <strong>de</strong> seus livros atesta no título esta filiação: “The moral economy of the peasant;rebellion and subssistence in Southeast Asia”


1284 NA CASA DAS EMPREGADAS: INTERDEPENDÊNCIA EANTAGONISMOEstan<strong>do</strong> situada a empregada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu espaço cotidiano <strong>de</strong> serviçoremunera<strong>do</strong> no último capítulo, preten<strong>do</strong> agora penetrar na sua vida fora <strong>do</strong>lugar <strong>de</strong> emprego: no seu âmbito social e familiar. Ao entrar no cotidiano emparticular <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> familiar, busco <strong>de</strong>monstrar como, para essas mulherespobres, o serviço <strong>do</strong>méstico não é uma escolha aleatória <strong>de</strong> sustento.Examinan<strong>do</strong> sua organização familiar, no seu local <strong>de</strong> moradia, ressaltarei oquanto este tipo <strong>de</strong> ocupação encaixa-se como possibilida<strong>de</strong> versátil para oseu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida, o quanto a relação patrão/empregada se insere <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>uma lógica que rege também suas próprias relações familiares.Neste capítulo, não <strong>de</strong>ixo as patroas completamente <strong>de</strong> la<strong>do</strong>. Elascontinuam estan<strong>do</strong> presentes, <strong>de</strong> maneiras diferentes, mesmo no espaço <strong>do</strong>bairro popular – pelos objetos empresta<strong>do</strong>s, pelas ajudas esperadas, pelosestilos estéticos copia<strong>do</strong>s 81 . No entanto, para não reduzir as empregadas àsua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> servi<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>mésticas, tentei reconstituir suas experiênciasnuma dimensão mais ampla, esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> meu olhar para suas relações navida privada e na sociabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> bairro.Para conhecer esse la<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua existência – um la<strong>do</strong> freqüentementeesqueci<strong>do</strong> nas análises acadêmicas sobre empregadas <strong>do</strong>mésticas –, resolvimorar por algum tempo em um bairro da periferia on<strong>de</strong> sabia que muitasempregadas viviam. Minha escolha recaiu sobre o bairro Jardim Veneza,81 No próximo capítulo, “Negocian<strong>do</strong> a igualda<strong>de</strong>...”, esta presença da patroa no bairro volta aser analisada com maior ênfase.


129localiza<strong>do</strong> a 15 quilômetros <strong>do</strong> centro <strong>de</strong> Vitória, on<strong>de</strong> residi durante 35 diasentre os meses <strong>de</strong> agosto e setembro <strong>de</strong> 1998. Lá, fiquei hospedada não emuma casa, mas em um grupo familiar, como adiante esclarecerei.Foi nessa experiência que vim apreciar o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida das mulheresque, nas casas <strong>de</strong> classe média, havia conheci<strong>do</strong> como <strong>do</strong>mésticas. Foi nainteração no cotidiano <strong>de</strong> seus bairros <strong>de</strong> moradia que pu<strong>de</strong> mais amplamentereconhecer que o serviço <strong>do</strong>méstico se encaixa complementarmente nosistema social <strong>de</strong>sigual da nossa socieda<strong>de</strong>. Nesta parte, analisarei padrões<strong>de</strong> consumo e convivência no universo <strong>do</strong>s grupos <strong>do</strong>méstico que compõemas camadas populares. Destacarei tanto a inter<strong>de</strong>pendência como osantagonismos entre os membros <strong>do</strong> grupo familiar, tentan<strong>do</strong> mostrar comonestes lugares a organização social básica extrapola os limites da famíliaconjugal. Por fim, tentarei explorar as maneiras como as mulheres lidam coma subalternida<strong>de</strong>, não apenas enquanto experiências <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho,mas também como parte <strong>de</strong> sua vida familiar.Antes <strong>de</strong> entrar nos pormenores da vida familiar, cabe melhor esboçarelementos básicos <strong>do</strong> bairro Jardim Veneza.4.1 Jardim Veneza - um bairro <strong>de</strong> invasãoSain<strong>do</strong> <strong>de</strong> Vitória em direção ao Norte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pela avenida Fernan<strong>do</strong>Ferrari, o viajante mal percebe os limites entre a capital e o município limítrofe- a Serra. Um terminal <strong>de</strong> ônibus e o início <strong>de</strong> uma ro<strong>do</strong>via são alguns indícios<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ixamos Vitória. É pela ro<strong>do</strong>via BR-101 (que liga o Espírito Santo àBahia) que temos acesso ao Jardim Veneza – bairro <strong>de</strong> invasão, surgi<strong>do</strong> nofinal <strong>do</strong>s anos 70, no qual realizei parte <strong>de</strong> meu trabalho <strong>de</strong> campo. Segun<strong>do</strong>da<strong>do</strong>s projeta<strong>do</strong>s pela prefeitura local, trata-se <strong>de</strong> uma área <strong>de</strong> manguezal“alagada e alagável” que ocupa cerca <strong>de</strong> 92 hectares e abriga uma populaçãoestimada em 12.673 habitantes (Prefeitura Municipal da Serra, 1196). O bairro


130está inscrito na história recente <strong>do</strong> Espírito Santo. Sua ocupação a partir <strong>do</strong>final <strong>do</strong>s anos 70 faz parte <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> invasões e posse <strong>de</strong> terrenosurbanos da Gran<strong>de</strong> Vitória eclodi<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong>s anos 70 como re<strong>sul</strong>ta<strong>do</strong> <strong>do</strong>projeto governamental <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento para o Esta<strong>do</strong> (como vimos naIntrodução da tese).Gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Jardim Veneza vieram da Bahia, <strong>de</strong>Minas Gerais e <strong>do</strong> inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. Entre a população <strong>do</strong> bairro não seencontram operá<strong>rio</strong>s e trabalha<strong>do</strong>res qualifica<strong>do</strong>s. Aqueles que dispõem <strong>de</strong>um emprego fixo no bairro são poucos. Em geral, trabalham na construçãocivil, no serviço informal, na prestação <strong>de</strong> serviços (como seguranças,manicures, e, sobretu<strong>do</strong>, como empregadas <strong>do</strong>mésticas) ou em pequenosbiscates (como pedreiros, árbitro <strong>de</strong> futebol, carrega<strong>do</strong>r <strong>de</strong> caminhão) e aindahá aqueles que, entre os homens, compõem a renda familiar como pequenosreven<strong>de</strong><strong>do</strong>res <strong>de</strong> maconha e cocaína e, entre as mulheres, como prostitutas 82 .82 Sobre trabalho e ocupação em um bairro popular semelhante ao que estudamos con<strong>sul</strong>teJardim (1999) e Fonseca (1993 a).


131Jardim Carapina 1978Soubemos <strong>do</strong> terreno por uma prima que tinha um lote na invasão. Ven<strong>de</strong>u por <strong>de</strong>zconto pra gente. Aí veio o sofrimento: aqui era só lama! A gente vivia na lama e commuita lata d’água na cabeça. Pra chegar aqui era só a pé. Depois botaram o Tieta –que levava até a Br. Bem <strong>de</strong>pois, veio o Tietinha – o ônibus da Transcol que vem atéaqui. A gente chamava isso aqui <strong>de</strong> Santana <strong>do</strong> Agreste. (Dona Carmelina, 62 anos).FIGURA 12: “Bairro <strong>de</strong> invasão”. Autoria: <strong>de</strong>sconhecida; Serra; 1978; fonte: Fernan<strong>de</strong>s,1991; original preto e branco; fotografia digitalizada no Photo Editor.


132Observan<strong>do</strong> o movimento <strong>de</strong> partida daqueles que trabalham fora <strong>do</strong>bairro percebe-se que a maioria <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>s é mulher. No resto <strong>do</strong> dia,as ruas ficam mais quietas e mais mornas, com a presença pre<strong>do</strong>minante dascrianças e <strong>do</strong>s homens.Outra fonte <strong>de</strong> trabalho para os mora<strong>do</strong>res <strong>de</strong> Jardim Veneza é o próp<strong>rio</strong>merca<strong>do</strong> interno. Os postos <strong>de</strong> trabalho ali são ocupa<strong>do</strong>s, em geral, pelospróp<strong>rio</strong>s proprietá<strong>rio</strong>s. Donos <strong>de</strong> pequenos armazéns, como o <strong>de</strong> <strong>do</strong>naCarmelina – que ven<strong>de</strong> cloro, canetas, pipas e meia dúzia <strong>de</strong> gênerosalimentícios – ou <strong>de</strong> prósperos negociantes – como Francisco e Camila –senhores da maior loja <strong>de</strong> material <strong>de</strong> construção. To<strong>do</strong>s aten<strong>de</strong>m nosbalcões, gerenciam seus negócios, <strong>de</strong>cidin<strong>do</strong> a quem dar e negar crédito ounegociações.A "Rua Principal" (cujo nome oficial - Avenida Boa Viagem - jamais émenciona<strong>do</strong> pelos mora<strong>do</strong>res) é marcada pelo trajeto <strong>do</strong> ônibus, pelocomércio melhor estabeleci<strong>do</strong> e pela ausência das "valas", que fazem dapaisagem <strong>do</strong> bairro uma “Veneza <strong>de</strong> esgotos”. Na rua principal, como umasíntese <strong>do</strong> bairro, convivem as Igrejas Pentecostais, as obras assistenciais daIgreja Católica, os con<strong>sul</strong>tó<strong>rio</strong>s <strong>de</strong> <strong>do</strong>is “práticos” em o<strong>do</strong>ntologia (um <strong>de</strong>lesforma<strong>do</strong> na Bolívia). Lá ficam também os poucos salões <strong>de</strong> beleza, entre eleso <strong>do</strong> Cleumar que, além <strong>de</strong> cabelereiro, é fotógrafo (mas, como diz na tabuletada porta, só mostra as revelações após o pagamento) e também faz cópias"xerox". Aqui nesta avenida ficam os <strong>do</strong>is açougues <strong>do</strong> bairro – barracos comcarnes <strong>de</strong> procedência ignorada penduradas no teto. Nesta rua concentra-seo maior número <strong>de</strong> vendinhas (contei 14 <strong>de</strong>las <strong>de</strong> médio porte) e o comércioforte <strong>do</strong> bairro: as farmácias (3), as casas <strong>de</strong> material <strong>de</strong> construção (por volta<strong>de</strong> 5), a loja <strong>de</strong> móveis <strong>de</strong> Jocilnei e o Supermerca<strong>do</strong> Canali, presente nolugar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1991. Mesmo para um bairro <strong>de</strong> invasão com uma história aindarecente e com as marcas da pobreza – evi<strong>de</strong>nciada na baixa regulamentaçãofundiária, na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> esgoto restrita a poucas ruas, na nuvem cinzenta <strong>de</strong>


133FIGURA 13: “Uma Veneza <strong>de</strong> esgotos”. Autoria: Sandro José da Silva; Serra, 1996, fonte:acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografia digitalizada no Photo Editor.Jardim Veneza foi construí<strong>do</strong> em cima <strong>de</strong> um manguezal. Forma necessáriastoneladas <strong>de</strong> lixo para aterrar as terras alagadas.FIGURA 14: “Aterro”. Autoria: Sandro José da Silva; Serra; 1996; fonte: acervopessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografia digitalizada no Photo Editor.


134mosquitos que chega ao anoitecer e na presença mínima <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> – umposto policial fecha<strong>do</strong>, uma creche e transporte coletivo – a economia localnão parece ser tão tímida.Contrastan<strong>do</strong> com a condição <strong>de</strong> precarieda<strong>de</strong> que vivem os mora<strong>do</strong>res<strong>de</strong> Jardim Veneza, um simples exame iconográfico mostra um crescimentovertiginoso da área construída <strong>do</strong> bairro. Uma das explicações possíveis é aestabilida<strong>de</strong> da moeda na década <strong>de</strong> noventa.Conforme alguns pesquisa<strong>do</strong>res, os sucessivos planos econômicos <strong>do</strong>governo <strong>de</strong> Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so contribuíram para um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>florescimento <strong>do</strong> consumo nas classes menos favorecidas (LESBAUPIN,1999). Os primeiros re<strong>sul</strong>ta<strong>do</strong>s positivos foram anuncia<strong>do</strong>s em termos damelhoria <strong>do</strong>s padrões alimentares <strong>do</strong> povo, registra<strong>do</strong>s no aumento <strong>do</strong>consumo <strong>do</strong> frango e <strong>do</strong> iogurte. Mais diretamente associa<strong>do</strong> à populaçãoestudada estaria o incremento da construção civil. Em 1997, um ano apósiniciarmos nossa pesquisa, o setor da construção civil apresentava umcrescimento <strong>de</strong> 10%. As vendas <strong>de</strong> cimento apontavam para um investimentoconcentra<strong>do</strong> na construção <strong>de</strong> casas próprias até o ano <strong>de</strong> 1996. A partir <strong>de</strong>1997, o impulso constata<strong>do</strong> foi na construção <strong>de</strong> apartamentos para famíliascom renda média <strong>de</strong> R$ 1.400,00 83 . Tanto o barateamento <strong>do</strong> cimento, quantoa melhoria da oferta <strong>de</strong> empregos na construção civil têm sua repercussão napoupança popular, como po<strong>de</strong> ser observa<strong>do</strong> pelo incremento dasconstruções <strong>de</strong> casas <strong>de</strong> alvenaria em Jardim Veneza neste perío<strong>do</strong>.Entretanto, além <strong>de</strong>stas <strong>de</strong>terminações macro-estruturais po<strong>de</strong>rem <strong>de</strong>terminaro comportamento econômico, preten<strong>do</strong> sugerir que também uma lógicacultural informe a utilização da renda entre os mora<strong>do</strong>res <strong>de</strong> Jardim Veneza,uma lógica inscrita nas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> bairro. Este padrão <strong>de</strong>inter<strong>de</strong>pendência83 Veja análises sobre a economia <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong> em Lesbaupin (1999). Os da<strong>do</strong>s sobre osetor da construção civil foram toma<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Frieldanch e Ferreira, 1997.


135Jardim Veneza 1991FIGURA 15: “Criança é vida e esperança”. Autoria: anônima; fonte: Fernan<strong>de</strong>s, 1991;original preto e branco; foto digitalizada no Photo Editor.


136As fotos 15 e 16 são da mesma rua, em épocas diferentes (1991-1996). Para umbairro <strong>de</strong> invasão, o crescimento das construções é consi<strong>de</strong>rável.FIGURA 16: “A evolução <strong>de</strong> um bairro”. Autoria: Sandro José da Silva, Serra; 1996;fonte: Careta, 1977; original colori<strong>do</strong>, tamanho 10x15; fotografia digitalizada no PhotoEditor.


137assenta-se não apenas numa forma <strong>de</strong> relacionamento familiar, mas estáinscrita em uma sociabilida<strong>de</strong> tradicional <strong>do</strong>s bairros populares 84 .Nada ilustra melhor o mun<strong>do</strong> relacional que caracteriza a vida no bairro<strong>do</strong> que os telefones públicos "Vai e Vem" (que tanto emitem, como recebemchamadas). Como o correio convencional funciona muito mal - mais emfunção da pouca penetração da escrita entre a população <strong>do</strong> que pelaprecarieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> serviço - os telefones públicos constituem-se num meioprivilegia<strong>do</strong> para amigos e parentes, <strong>de</strong> fora <strong>do</strong> bairro, se comunicarem comos mora<strong>do</strong>res. Um <strong>do</strong>s poucos telefones <strong>do</strong> bairro fica justamente ao la<strong>do</strong> dacasa em que me hospe<strong>de</strong>i. Uma das minhas diversões prediletas era observara agilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> como aquela comunicação fluía. A um chama<strong>do</strong>, o mora<strong>do</strong>rpassante aten<strong>de</strong> e pergunta: “Quer falar com quem? Emem? Qual, a mulher<strong>do</strong> Elói? Só um pouquinho”. (Vira e grita para outras pessoas paradas porperto): “Chama a Emem aí, telefone pra ela!” As pessoas são rapidamentei<strong>de</strong>ntificadas pelo nome, local <strong>de</strong> moradia, mas principalmente peloparentesco: mulher <strong>do</strong> fulano, mãe <strong>do</strong> sicrano, filha <strong>do</strong> beltrano.Este telefone está instala<strong>do</strong> num ponto comercial importante <strong>do</strong> bairro,na Rua Principal, bem perto <strong>do</strong> único supermerca<strong>do</strong>, porém um pouco além,na frente da farmácia Carvalho, <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Seu Walmir. Ali funcionatambém um pequeno brechó - pouco freqüenta<strong>do</strong>, a padaria e, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>da rua, uma loja <strong>de</strong> móveis <strong>de</strong> eletro<strong>do</strong>mésticos: a loja <strong>do</strong> Jocilnei.Jocilnei é um <strong>do</strong>s ‘telefonistas’ por excelência <strong>do</strong> bairro. Como omovimento da loja é lento, ele passa <strong>gran<strong>de</strong></strong> parte <strong>do</strong> dia conversan<strong>do</strong> com osmora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> bairro na frente da farmácia <strong>de</strong> Seu Walmir, cuja clientela éenorme. Cilnei, como é chama<strong>do</strong> carinhosamente por to<strong>do</strong>s, a<strong>do</strong>ra aten<strong>de</strong>r ao84"’Sociabilida<strong>de</strong>’" se refere ao caráter público da vida cotidiana antes da socieda<strong>de</strong>industrial, <strong>de</strong>scrita por Ariès on<strong>de</strong> "as trocas afetivas e as comunicações sociais eramrealizadas (...) fora da família, num "meio" <strong>de</strong>nso e quente, composto <strong>de</strong> vizinhos, amigos,amos e cria<strong>do</strong>s, crianças e velhos, mulheres e homens, em que a inclinação se podiamanifestar mais livremente. As famílias conjugais se diluíam nesse meio"(ARIÉS, 1981, p.11).Sobre o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> entre os grupos populares brasileiros, ver Fonseca, (1995;2000) e Brites (1993).


138telefone no seu estilo próp<strong>rio</strong>: “Funerária Boa Morte, Só Falta você, àsor<strong>de</strong>ns!" Em sua loja são vendi<strong>do</strong>s guarda-roupas e camas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira,armá<strong>rio</strong>s <strong>de</strong> cozinha, liqüidifica<strong>do</strong>res, bate<strong>de</strong>iras, mesas e ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong>polietileno. Os artigos, ao meu primeiro julgamento, pareciam ser <strong>de</strong> umaqualida<strong>de</strong> e preços supe<strong>rio</strong>res aos que a população <strong>do</strong> bairro po<strong>de</strong>ria adquirir.Todavia, a aquisição <strong>do</strong>s produtos é feita por meio <strong>de</strong> crediá<strong>rio</strong> <strong>de</strong> longasprestações (12 a 18 vezes). Cilnei mantém um pequeno fichá<strong>rio</strong> em cima damesa com o registro das vendas, mas nunca vi um compra<strong>do</strong>r preenchercadastros ou assinar promissórias. As pessoas que chegam na loja, em geral,são conhecidas e o negócio é combina<strong>do</strong> “<strong>de</strong> boca”, diretamente com Cilnei.Ele conhece com intimida<strong>de</strong> os mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> bairro: sabe seus nomes, on<strong>de</strong>moram, quem são seus parentes, se saíram ou estão pelo bairro. E, a julgarpelo Escort conversível amarelo em que ele chega to<strong>do</strong> dia, sua maneira <strong>de</strong>aten<strong>de</strong>r à clientela parece ter da<strong>do</strong> certo.Jocilnei não é um mora<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Jardim Veneza, nunca teve parentesviven<strong>do</strong> lá, nem mesmo tem uma trajetória social parecida com a <strong>do</strong>smora<strong>do</strong>res <strong>de</strong>ste lugar. (Sua esposa tem uma farmácia e seu irmão um outrosupermerca<strong>do</strong>, também em bairros <strong>de</strong> periferia.) Contu<strong>do</strong>, o que faz estehomem ter sucesso – inclusive econômico com suas lojas comerciais embairro pobres como este – é a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> imiscuir-se nas relações <strong>do</strong>bairro, <strong>do</strong>minar o estilo jocoso da interação cotidiana. Em suma, seu êxito<strong>de</strong>ve-se a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aceitar a “apren<strong>de</strong>r a linguagem” <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res.Depois <strong>de</strong>ste breve preâmbulo, chegamos ao cerne <strong>de</strong> nossas atenções:as famílias <strong>de</strong> certas empregadas <strong>do</strong>mésticas que compõem a população <strong>de</strong>Jardim Veneza.


1394.2 Moran<strong>do</strong> no bairroMorar no bairro é, como cheguei a me dar conta, muito diferente <strong>de</strong>visitá-lo. Para introduzir o grupo familiar que veio a ser alvo principal <strong>de</strong>minhas observações etnográficas, como também para situar meu próp<strong>rio</strong> lugarneste mun<strong>do</strong>, nada melhor <strong>do</strong> que citar a primeira folha <strong>de</strong> meu diá<strong>rio</strong> <strong>de</strong>campo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> chegar em Jardim Veneza.3 NDNOOD3 %- @ . - ! /" 4 " ? 3 &P ( )# % FJ @ - J - & 99 Q - / 7 ( / ) # > < @ ,HJ 4, 7 / A 1B


140Este trecho contém diversos elementos que se tornaram chave paraminha compreensão das atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Edilene, Túlia e outras empregadas<strong>do</strong>mésticas diante <strong>de</strong> suas patroas: a questão da escassez <strong>de</strong> dinheiro, aimportância da “casa para alugar” como fonte <strong>de</strong> renda, o lugar <strong>do</strong>s parentesnas estratégias <strong>de</strong> sobrevivência e ascensão, e, finalmente, a presença daspatroas – seus padrões estéticos e objetos <strong>de</strong> uso – até nos <strong>de</strong>talhes maisíntimos da vida privada das empregadas.4.3 Escassez <strong>de</strong> dinheiroNestes bairros circula muito pouco dinheiro. O <strong>de</strong>semprego massivo <strong>do</strong>shomens, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crianças e velhos – pessoas economicamente nãoativas – é enorme. Entre as famílias que pesquisei, a maioria sobreviviabasicamente com os rendimentos obti<strong>do</strong>s pela <strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa, que trabalhavafora como “empregada <strong>do</strong>méstica”.Nestas famílias, os homens permaneciam muito mais tempo<strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>s que suas mulheres. Muitos <strong>de</strong>les preferiam o <strong>de</strong>semprego a<strong>de</strong>terminadas condições <strong>de</strong> trabalho. Na perspectiva <strong>de</strong>les o merca<strong>do</strong> <strong>de</strong>trabalho formal, além <strong>de</strong> restrito, é muito pouco compensa<strong>do</strong>r, alian<strong>do</strong>situações <strong>de</strong> subalternida<strong>de</strong> a péssimas remunerações, as quais nãopermitem que eles cumpram <strong>de</strong>vidamente o papel <strong>de</strong> prove<strong>do</strong>res 85 em suasfamílias. Já as mulheres pensavam diferente, mesmo com salá<strong>rio</strong>s menores eempregos <strong>de</strong> <strong>gran<strong>de</strong></strong> rotativida<strong>de</strong>, julgavam importante manter uma renda fixa.85 Para Luiz Fernan<strong>do</strong> Duarte (1986), a família é o eixo moral on<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong> homemtrabalha<strong>do</strong>r se estrutura. A organização familiar está assentada na noção <strong>de</strong>complementarida<strong>de</strong> hierárquica entre o homem e a mulher, típica das socieda<strong>de</strong>s holísticas.Ao mari<strong>do</strong>, enquanto sujeito masculino adulto, cabe a posição supe<strong>rio</strong>r <strong>de</strong>ntro da família e é<strong>de</strong>le as funções prove<strong>do</strong>ras. À esposa, numa posição subalterna em relação ao homem,cabem as funções reprodutivas <strong>do</strong> espaço <strong>do</strong>méstico. Cinthtya Sarti (1989) analisa asdificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atualização <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo na socieda<strong>de</strong> urbana, apontan<strong>do</strong> para osantagonismos surgi<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> o homem não consegue cumprir esse papel que lhe éprescrito.


141A discussão <strong>de</strong>sse casal ilustra a lógica diferenciada entre homens e mulheresna hora <strong>de</strong> procurar emprego: #I NR ! - % #J - / Nesta discordância <strong>do</strong> casal po<strong>de</strong>mos apren<strong>de</strong>r um pouco sobre o mo<strong>do</strong><strong>de</strong>sses grupos perceberem a sua inserção no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho. Tonho, naverda<strong>de</strong>, nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> trazer alguma coisa para casa, mas nem sempre as<strong>de</strong>spensas <strong>de</strong> um trabalho formal, on<strong>de</strong> necessariamente tenha que sesubmeter à servilida<strong>de</strong>. Faz pequenos biscates e, com seu irmão, mantém umpequeno comércio <strong>de</strong> tóxico fora <strong>do</strong> bairro on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>m. Além disso, ter umaesposa empregada <strong>do</strong>méstica – mesmo que venha a gerar alguns conflitosdiante <strong>do</strong> padrão cultural que anuncia que <strong>do</strong> homem <strong>de</strong>veria vir o sustentomaterial da casa – não é <strong>de</strong> to<strong>do</strong> ruim. Sobretu<strong>do</strong> tratan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> uma mulhertalentosa para utilizar os subterfúgios a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s que garantem umaremuneração supe<strong>rio</strong>r ao ganho salarial, como veremos no <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>Edilene no prosseguimento <strong>do</strong> capítulo. Veremos no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> trabalho queessas mulheres sabiam que suas colocações em serviços <strong>do</strong>mésticos podiamgarantir mais que um salá<strong>rio</strong> restrito 86 .86 Segun<strong>do</strong> os da<strong>do</strong>s da PNAD <strong>de</strong> 1993 para o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Espírito Santo, 77,76% dasempregadas <strong>do</strong>mésticas recebe um salá<strong>rio</strong> que varia <strong>de</strong> menos que 1/2 a 1 salá<strong>rio</strong> mínimo,sen<strong>do</strong> que 29,40% <strong>de</strong>stas trabalha<strong>do</strong>ras possuem um rendimento mensal infe<strong>rio</strong>r a 1/2 salá<strong>rio</strong>mínimo, conforme tabela abaixo:TABELA 3: Rendimento Mensal das Mulheres Trabalha<strong>do</strong>ras DomésticasFaixas salariais %Até ½ salá<strong>rio</strong> mínimo 29,40%Mais <strong>de</strong> ½ a 1 salá<strong>rio</strong> mínimo 48,36%Mais <strong>de</strong> 1 a 2 salá<strong>rio</strong>s mínimos 20,26%Mais <strong>de</strong> 2 a 3 salá<strong>rio</strong>s mínimos 1,96%Fonte: PNAD – Espírito Santo, 1993.


142As mulheres parecem menos incomodadas com a subalternida<strong>de</strong> quelhes é exigida no serviço, já que no inte<strong>rio</strong>r <strong>de</strong> seu próp<strong>rio</strong> grupo social<strong>de</strong>senvolveram táticas para lidar com esta posição presumida da condiçãofeminina. Tampouco guardam muito apego por uma carreira com estabilida<strong>de</strong>no emprego. Quan<strong>do</strong> as condições <strong>de</strong> trabalho superam a medida queconsi<strong>de</strong>ram possível <strong>de</strong> ser suportada, facilmente aban<strong>do</strong>nam os empregos.Se por acaso entrar algum dinheiro extra na economia <strong>do</strong>méstica (porexemplo, se recebem alguma in<strong>de</strong>nização), este também será um bom motivopara ficarem em casa, ocupadas com suas funções <strong>de</strong> <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa.Embora mari<strong>do</strong>s e esposas possam discordar <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> capitalizar osrecursos disponíveis, sobretu<strong>do</strong> diante das opções <strong>de</strong> trabalho, em JardimVeneza, uma estratégia parece ser compartilhada: construir uma casa 87 quealém <strong>de</strong> moradia segura, possa servir <strong>de</strong> “ponto” – um espaço para alugar oumontar um pequeno negócio que garanta a sobrevivência na velhice,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da subordinação patronal.Depois <strong>de</strong> 13 anos <strong>de</strong> casamento, foi este projeto que fez com queTonho finalmente mantivesse um emprego fixo por <strong>do</strong>is anos. Neste tempo,quase tu<strong>do</strong> que ganha vai direto para a obra que constrói nos finais <strong>de</strong>semana. O sustento das outras necessida<strong>de</strong>s continua sen<strong>do</strong> manti<strong>do</strong> pelamulher. Na <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> Tonho <strong>de</strong> momentaneamente contrariar sua convicçãodas <strong>de</strong>svantagens <strong>do</strong> trabalho formal está presente o <strong>de</strong>sejo da construção dacasa própria.A construção da casa própria é um aspecto que chama a atenção emJardim Veneza; não é à toa que o comércio <strong>de</strong> materiais <strong>de</strong> construção seja omais próspero <strong>do</strong> bairro. O <strong>de</strong>talhe significativo <strong>de</strong>ste fenômeno, que nosinteressa aqui, é que a maioria das casas que estão sen<strong>do</strong> levantadas são <strong>de</strong>família que contam entre si com, pelo menos, uma mulher trabalhan<strong>do</strong> como87 Sobre a importância da casa própria para os grupos populares, con<strong>sul</strong>tar Mace<strong>do</strong> (1985) eCal<strong>de</strong>ira (1984).


143


144Ao fun<strong>do</strong> vemos a casa em 1996 (ainda por terminar) e a frente a nova casaque começa a ser construída.FIGURA 17: “Projeto da casa nova”. Autoria: Sandro José da Silva; Serra;1996; fonte: acervo pessoal, original colori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografiadigitalizada no Photo Editor.A casa nova em 1998 – que será usada como ponto comercial – emfase final <strong>de</strong> construção.FIGURA 18: “A casa nova em 1998”. Autoria: Jurema Brites; Serra;1996; fonte: acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho 10x15;fotografia digitalizada no Photo Editor.


145Barraco <strong>de</strong> Túlia em 1996FIGURA 19: “Palacete no Manguezal”. Autoria: Sandro José da Silva, Serra; 1996;fonte: acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho 10x15; fotografia digitalizada noPhoto Editor.Em 1998 o grupo <strong>do</strong>méstico comanda<strong>do</strong> por Túlia já levantou, na frente <strong>do</strong> antigobarraco, as pare<strong>de</strong>s da casa nova.FIGURA 20: “Palacete no Manguezal em 1998”. Autoria: Jurema Brites, Serra;1998; fonte: acervo pessoal, original colori<strong>do</strong>, tamanho 10x15, fotografiadigitalizada no Photo Editor.


146<strong>do</strong>méstica. Não é só na complementação econômica que os restos e asajudas que os patrões oferecem que a construção da casa se efetiva. Mas,especificamente, muitas <strong>do</strong>mésticas recebem ajuda <strong>do</strong>s patrões naempreitada da construção. Claudina a cada Natal recebia sacos <strong>de</strong> cimento,telhas, lajotas; Túlia ganhou todas as portas e janelas que saíram da reforma<strong>de</strong> Seu Arnal<strong>do</strong> e a patroa <strong>de</strong> Hortência avalizou um financiamento para aarrancada final da montagem <strong>do</strong> telha<strong>do</strong> e das aberturas.Muitos dispositivos são usa<strong>do</strong>s pelos mora<strong>do</strong>res <strong>de</strong>sse bairro paraampliar os recursos. Em primeiro lugar, essas pessoas habitam em terrenosirregulares, em bairros longínquos, longe da presença fiscal, on<strong>de</strong> até as<strong>de</strong>spesas com água e luz po<strong>de</strong>m facilmente ser <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>radas, a partir dainstalação ilegal da luz (“gatos”) 88 . Edilene, apesar <strong>de</strong> morar em terreno comescritura legalizada, não pagava água nem luz há <strong>do</strong>is anos:2 # , #@1 2 #* &, #< 1 !Em segun<strong>do</strong> lugar, até mesmo a distância entre a moradia e o serviçopo<strong>de</strong> também ser revertida em benefício. Ninguém trabalha sem “ganhar aspassagens”. Ao salá<strong>rio</strong> que recebe, a servi<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>méstica tem acrescidas as<strong>de</strong>spesas com transporte. Este é um <strong>do</strong>s itens que não abrem mão nanegociação <strong>do</strong> emprego. Os “vales”, além <strong>de</strong> garantir o ir e vir, transformamseem moeda corrente no bairro. Tu<strong>do</strong> po<strong>de</strong> ser troca<strong>do</strong> por passagens: leite,pão, verduras... Um mari<strong>do</strong> exultava sua fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, afirman<strong>do</strong>: “eu entregoto<strong>do</strong>s os vales (transporte) na mão da Túlia”.88 A opinião <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> bairro divi<strong>de</strong>-se quanto aos novos projetos da PrefeituraMunicipal <strong>de</strong> regulamentação fundiária. Muitos vêem nestes a garantia <strong>de</strong> seus terrenosinvadi<strong>do</strong>s, mas outros pon<strong>de</strong>ram que os impostos começarão a chegar e que, possivelmente,a valorização <strong>do</strong> lugar os expulse mais uma vez da região.


147A permuta também é um elemento importante <strong>de</strong>ssa economia. Trocase,por exemplo, itens que exce<strong>de</strong>m da cesta básica por outros maisnecessá<strong>rio</strong>s: ? #: #6 6 &? 2 #J /, ? # " 7 ! 1 6 / * 9; @ ( ) , " ! S Economiza-se também na comida. Na casa on<strong>de</strong> me hospe<strong>de</strong>i,raramente minha anfitriã cozinhava. Durante meus 30 e poucos dias lá, quatroou cinco vezes tivemos um jantar ou almoço completo. Um <strong>de</strong>les, em minhahomenagem, tinha no cardápio arroz com repolho, lingüiça frita e feijão compelanca <strong>de</strong> porco (que <strong>de</strong>víamos comer atrás da porta “para manter nossabeleza”). Tu<strong>do</strong> com muito coentro. Na maioria das vezes cozinhava-se à noite,<strong>de</strong>pois que a <strong>do</strong>na da casa voltava <strong>do</strong> trabalho. Em geral, Claudina fazia sopaou arroz com pata <strong>de</strong> galinha.Pela manhã, ela preparava uma <strong>gran<strong>de</strong></strong> térmica <strong>de</strong> café preto, muitofraco e muito <strong>do</strong>ce para meu paladar 89 . Mas muitas vezes, não havia refeiçãonenhuma, tal como no caso seguinte, tira<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu diá<strong>rio</strong> <strong>de</strong> campo:@ & 89 Como retribuição à hospedagem (além, evi<strong>de</strong>ntemente, <strong>do</strong> pequeno aluguel combina<strong>do</strong>),resolvi comprar pão e margarina todas as manhãs. Como minha pretensa gentileza talvezexpusesse <strong>de</strong>mais a pobreza <strong>do</strong>s meus amigos, certa manhã, <strong>de</strong>sculpan<strong>do</strong>-se da falta <strong>de</strong>ssesgêneros em casa, Seu Norberto comentou: “a mãe <strong>de</strong> Michele era casada com um pa<strong>de</strong>iroque levava pão to<strong>do</strong> dia para casa. Comiam tanto pão que a menina ficou com mania <strong>de</strong>comer pão! Quan<strong>do</strong> chegou aqui, queria comer pão to<strong>do</strong> dia!”


148 # >" % 7 %,H E ! #>= T @ U ( )%H 9 ( )! #>5 < !%HParecia subentendi<strong>do</strong> que os membros <strong>do</strong> grupo familiar <strong>de</strong>viam fazer omáximo para encher suas barrigas em outros locais. As mulheres quetrabalhavam como empregada <strong>do</strong>méstica chegavam, na medida <strong>do</strong> possível,empanturradas <strong>de</strong> comida da casa da patroa. Os outros <strong>de</strong>senvolviam otalento <strong>de</strong> aparecer na casa da vizinha logo na hora da jantar... Com dinheirovivo comprava-se somente aquilo que não se podia obter <strong>de</strong> outra forma.Nestes bairros, as pessoas vivem com realmente muito pouco. Noentanto, o investimento <strong>do</strong> mirra<strong>do</strong> dinheiro que adquirem segue uma lógicaque extrapola as explicações que reduzem as atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>stes grupos aos“apelos <strong>do</strong> estômago”.Suas atitu<strong>de</strong>s e perspectivas são influenciadas, por um la<strong>do</strong>, pelaeconomia <strong>de</strong> consumo difundida na socieda<strong>de</strong> e reforçada na casa daspatroas. Por outro la<strong>do</strong>, apoiam-se em uma acurada percepção <strong>do</strong> lugar queocupam na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe. Para a efetivação <strong>do</strong>s seus propósitos, estasfamílias <strong>de</strong> baixa renda tomam como base a tradição <strong>de</strong> organização <strong>do</strong>parentesco, forman<strong>do</strong> re<strong>de</strong>s inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes que ultrapassam os limites dafamília conjugal. Assim, não é <strong>de</strong> se admirar que, no grupo <strong>do</strong>méstico 90 <strong>de</strong>90 “Elementar, composta ou extensa, a família <strong>de</strong>ve ser claramente distinguida <strong>do</strong> grupo<strong>do</strong>méstico (household ou <strong>do</strong>mestic group), cuja característica essencial é ser uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong>residência, <strong>de</strong> produção e consumo, quer dizer, uma unida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>fine em função <strong>de</strong>outros crité<strong>rio</strong>s que não os <strong>de</strong> parentesco ou das alianças matrimoniais. O grupo <strong>do</strong>mésticopor ser composto por pessoas entre as quais não existe nenhum laço <strong>de</strong> parentesco, ou pelocontrá<strong>rio</strong>, po<strong>de</strong> reunir várias unida<strong>de</strong>s familiares. “ (MARIE, 1978, p. 52)


149Claudina, as soluções para a vida não são encontradas individualmente ou<strong>de</strong>ixadas nos ombros só <strong>do</strong>s progenitores. As residências individualizadas --como mostraremos, nem <strong>de</strong> longe supõem que o núcleo básico da vida socialseja o casal.4.4 Inter<strong>de</strong>pendência: grupo <strong>do</strong>méstico e cotidianoA casa <strong>de</strong> Edilene, on<strong>de</strong> originalmente pensava em ficar hospedada, eramuito pequena: apenas um quarto, uma cozinha e uma varanda. Eu viajavacom meu filho <strong>de</strong> <strong>do</strong>is anos e, mesmo estan<strong>do</strong> disposta ao encontroetnográfico, supus que partilhar <strong>do</strong> mesmo quarto com Edilene e seu mari<strong>do</strong>ultrapassava os limites da minha necessida<strong>de</strong> cultural <strong>de</strong> individualida<strong>de</strong>. Pormotivos diferentes <strong>do</strong>s meus, Edilene me aguardava com outra solução. Semabrir mão <strong>do</strong> prestígio <strong>de</strong> me receber, me ofereceu os melhores aposentos <strong>de</strong>seu grupo <strong>do</strong>méstico – um quarto na casa <strong>de</strong> sua sogra, Claudina, que morana segunda casa ao la<strong>do</strong>. Em pouco tempo <strong>de</strong>scobri que sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>me alojar na casa da sogra era sintomática da organização social <strong>do</strong> lugar.Embora as casas <strong>de</strong>ste grupo sejam separadas por muros, o cotidiano<strong>do</strong>s seus mora<strong>do</strong>res indica uma organização familiar comum, não apenasporque se distribuem uma ao la<strong>do</strong> da outra, mas porque – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a históriafamiliar até os acontecimentos mais comuns <strong>do</strong> dia a dia – mostram umainter<strong>de</strong>pendência entre os mora<strong>do</strong>res das diferentes casas 91 .A figura principal <strong>de</strong>ste grupo é Claudina (54 anos), empregada<strong>do</strong>méstica que trabalha há 23 anos com a mesma patroa. Nascida em91 Esta organização é reconhecida por outras etnografias que focalizam grupos populares.Jardim (1998) <strong>de</strong>screve uma organização <strong>do</strong>méstico-espacial (os pátios) na <strong>gran<strong>de</strong></strong> PortoAlegre, bastante similar às quais observei no Espírito Santo: “Na vila Tina, os pátiosconfiguram-se como uma unida<strong>de</strong> <strong>do</strong>méstica que esten<strong>de</strong>, coletivamente, os limites <strong>de</strong> cadaunida<strong>de</strong> <strong>do</strong>méstica. É neles que se concretizam as diversas trocas entre os mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong>mesmo terreno e <strong>de</strong> terrenos vizinhos, constituin<strong>do</strong>-se como pontos <strong>de</strong> referência ei<strong>de</strong>ntificação para família” (1998, p. 26).


150Jequitinhonha, Bahia, “trabalhou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ce<strong>do</strong>” na roça. Teve nove filhos <strong>do</strong>primeiro casamento, <strong>do</strong>s quais apenas três haviam sobrevivi<strong>do</strong>. Há 30 anosveio para Vitória, junto com uma irmã, ambas para trabalharem como<strong>do</strong>méstica. De um namoro malogra<strong>do</strong> com um homem casa<strong>do</strong>, nasceu Edinha– a filha caçula. Depois <strong>de</strong> alguns anos viven<strong>do</strong> em Vitória conheceu, na casa<strong>de</strong> um sobrinho, Norberto – guarda-noturno aposenta<strong>do</strong>, seu atualcompanheiro. Seu Norberto, junto com este sobrinho <strong>de</strong> Claudina, está entreos primeiros invasores <strong>do</strong>s terrenos <strong>de</strong> Jardim Veneza. Quan<strong>do</strong> Claudinareclama que ele é “um aposenta<strong>do</strong> que não serve para nada”, as pessoas <strong>do</strong>grupo reagem, lembran<strong>do</strong>-lhe como Norberto passou meses “<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> nochão puro” em um barraco improvisa<strong>do</strong>, “carregan<strong>do</strong> carroças e mais carroças<strong>de</strong> aterro”, garantin<strong>do</strong> a posse <strong>do</strong> terreno.Depois que Claudina se estabeleceu no lugar com Norberto, chamouseus <strong>do</strong>is filhos casa<strong>do</strong>s para dividir o terreno. Hoje são três terrenos comescrituras individualizadas. Porém, ali, as soluções <strong>de</strong> um grupo <strong>do</strong>mésticosobrepõem-se à organização nuclear. A mãe, com a caçula, ocupa uma ponta<strong>do</strong> terreno original e o filho mais velho (Tonho), a outra extremida<strong>de</strong>. Entreeles fica o terreno <strong>do</strong> filho <strong>do</strong> meio (Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong>).Com o velho casal resi<strong>de</strong> Michele, neta <strong>de</strong> Claudina, uma menina <strong>de</strong>sete anos cuja mãe, inician<strong>do</strong> um novo casamento, resolveu <strong>de</strong>ixar a filha coma ex-sogra. Nos fun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> terreno, junto com seu mari<strong>do</strong>, mora Edinha


FIGURA 21: Grupo <strong>do</strong>méstico <strong>de</strong> Claudina151


FIGURA 22: Grupo <strong>do</strong>méstico <strong>de</strong> Claudina 1998.152


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154(16 anos), a filha caçula <strong>de</strong> Claudina, que só saiu da casa materna há seismeses, quan<strong>do</strong> anunciou a gravi<strong>de</strong>z. Edinha, única filha sobrevivente <strong>de</strong>Claudina, é cercada <strong>de</strong> mimos e luxos pela mãe.No terreno <strong>do</strong> meio, está o barraco 92 <strong>de</strong> Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> e Beatriz e <strong>de</strong> suastrês crianças (seis, cinco e <strong>do</strong>is anos). Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> parece frustra<strong>do</strong> com a vidaque leva. Atualmente acompanha o irmão num trabalho <strong>de</strong> pedreiro em PraiaVelha. Mas como diz o irmão mais velho, “não tem cabeça”. Consome tu<strong>do</strong>que ganha em aparelhos eletrônicos (som, TVs) que são quebra<strong>do</strong>s duranteas brigas <strong>do</strong> casal. À noite, sempre tem “compromissos” em um bairro classemédia próximo <strong>do</strong> bairro ou em rinhas <strong>de</strong> galo. Segun<strong>do</strong> as críticas da família,o casal não se organiza nem mesmo para comprar tijolos para a construção<strong>de</strong> uma moradia melhor.O casal sai muito ce<strong>do</strong> – especialmente Beatriz, que trabalha comoempregada <strong>do</strong>méstica e percorre os quatro quilômetros até a casa <strong>de</strong> suapatroa a pé, para po<strong>de</strong>r trocar seus vales-transporte por leite para as crianças.No caminho para seu serviço, <strong>de</strong>ixa os <strong>do</strong>is filhos menores na única crechemunicipal <strong>do</strong> bairro. O filho maior, <strong>de</strong> 6 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, fica em casa sozinhoaté as duas horas, quan<strong>do</strong>, junto com Michele, dirige-se para a mesma creche– a qual para suas faixas etárias só dispõem <strong>de</strong> atendimento em turno parcial.No terceiro terreno, fechan<strong>do</strong> o territó<strong>rio</strong> familiar, moram Tonho (oprimogênito <strong>de</strong> Claudina) e sua mulher, Edilene. Tonho é o maior responsávelpela construção da bela casa da sua mãe. Como esteve muito tempo semocupação fixa, retribuiu os esforços maternos levantan<strong>do</strong> a casa apenas coma ajuda <strong>do</strong> velho Norberto. Como filho mais velho, é o representante oficial <strong>do</strong>“respeito” familiar. Quan<strong>do</strong> as brigas <strong>de</strong> Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> e Beatriz passam <strong>do</strong>slimites e começam a voar televisores e mesas pelos ares, ameaçan<strong>do</strong> asegurança das crianças, é ele [Tonho] que vai até a cerca e grita: “O que éisso rapaz? Passa meus sobrinhos para cá!” Como ele mesmo fala, "aqui em92 No linguajar local, “barraco” significa qualquer residência feita <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sua soli<strong>de</strong>z ou precarieda<strong>de</strong>.


155casa a gente também briga, como qualquer casal, mas não somos <strong>do</strong>i<strong>do</strong>s <strong>de</strong>quebrar o que conseguimos com tanto sacrifício".Apesar <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> alvenaria, a casa em que Tonho e Edilene moram émuito precária, com a empoeirada fiação elétrica exposta, pare<strong>de</strong>s mofadas ea laje <strong>do</strong> teto com infiltrações enormes. Nestes <strong>do</strong>is últimos anos, como jádissemos ante<strong>rio</strong>rmente, Tonho está com “carteira fixa”, trabalhan<strong>do</strong> comoazulejista em uma <strong>gran<strong>de</strong></strong> empreiteira em Vitória. Parte cedinho <strong>de</strong> bicicletacom seu irmão Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> em direção à capital. Edilene trabalha comoempregada <strong>do</strong>méstica. Não fica tanto tempo nos empregos, como sua sogra econcunhada, mas em geral mantém <strong>do</strong>is serviços.Entre essas três casas, o trânsito <strong>de</strong> pessoas, serviços e objetos éconstante, crian<strong>do</strong> tensões tanto quanto cumplicida<strong>de</strong>s. Edinha, por exemplo,não fala com Norberto (o companheiro <strong>de</strong> sua mãe) porque o julga “muitometi<strong>do</strong>”. Edilene não fala com Eltinho, pai <strong>de</strong> Michele, porque julga que “elenão tem responsabilida<strong>de</strong> como pai!” Tampouco fala com Beatriz, suaconcunhada e vizinha <strong>de</strong> cerca. A rixa entre as duas foi <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada há <strong>do</strong>isanos por acusações lançadas pela Beatriz <strong>de</strong> que Edilene teria estraga<strong>do</strong> seutanquinho novo. Edilene morre <strong>de</strong> raiva <strong>de</strong> tal calúnia e não dirige a palavra ouo olhar para a concunhada. Contu<strong>do</strong>, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> receber os filhos daquelaem casa no final da tar<strong>de</strong>, a quem dá banho e jantar, enquanto esperam amãe voltar <strong>do</strong> trabalho (pelas 20 horas). “Tenho que dar comida porque essaaí nem um prato <strong>de</strong> comida <strong>de</strong>ixa pros filhos. Só compra leite e biscoito navenda. Po<strong>de</strong> alimentar uma criança <strong>de</strong>sse jeito?”Mas não são somente os filhos <strong>de</strong> Beatriz que são alimenta<strong>do</strong>s porEdilene. Norberto é sempre chama<strong>do</strong> para receber um prato <strong>de</strong> comida eEdinha sempre que chega à casa da cunhada vai direto nas panelas. “Apostoque ainda não comeu nada <strong>de</strong>cente”, fala Edilene para Edinha, lá pelas quatrohoras da tar<strong>de</strong>:


156J 1/ & % < " < &% &% Mesmo saben<strong>do</strong> por outras etnografias (JARDIM, 1998; FONSECA,1995) que a vida cotidiana <strong>de</strong>ssas pessoas resolve-se <strong>de</strong> forma comunitária,ainda assim me perguntava como era possível sair tanta comida da casa <strong>de</strong>Edilene e Tonho. Afinal, apenas nos últimos anos ele está emprega<strong>do</strong> e acolaboração que presta à economia familiar não é muito <strong>gran<strong>de</strong></strong>: entrega acesta básica para a mulher e nada mais. Edilene arca com a carne, asverduras, o gás, o cigarro e to<strong>do</strong> o resto. Como aquelas panelas po<strong>de</strong>msempre alimentar mais um?Devemos, no entanto, lembrar que nem tu<strong>do</strong> é troca<strong>do</strong> tãogenerosamente assim. A solidarieda<strong>de</strong> é negociada a partir <strong>de</strong> um sistema,on<strong>de</strong> o peso <strong>de</strong> cada um está associa<strong>do</strong> ao seu papel social. O frame <strong>de</strong>ssasrelações está respalda<strong>do</strong> na noção <strong>de</strong> complementarida<strong>de</strong> hierárquica, masque diferentemente <strong>do</strong> que sugerem autores como Duarte (1986) e Sarti(1989) não se assenta primordialmente no eixo mari<strong>do</strong>/mulher. Estudan<strong>do</strong> asrelações <strong>de</strong> parentesco, para além <strong>do</strong>s limites da família nuclear, é possívelcompreen<strong>de</strong>r as relações numa dimensão mais processual, on<strong>de</strong> fatores taiscomo ida<strong>de</strong>, sexo e pertencimento familiar conferem um status que coloca aspessoas numa situação mais ou menos segura. É <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ste quadro que astrocas e lealda<strong>de</strong>s serão negociadas.


1574.5. “A riqueza roubada” - casamento, amor e sobrevivênciaDepois <strong>de</strong> ter visto as formas <strong>de</strong> antagonismo e reciprocida<strong>de</strong> queinformam as relações que extrapolam a conjugalida<strong>de</strong> abarcan<strong>do</strong> asdiferentes unida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>mésticas <strong>do</strong> grupo familiar, cabe agora voltar aconsi<strong>de</strong>rar o casal, trazen<strong>do</strong> à tona histórias que envolvem tanto afeto comointeresse: um outro <strong>de</strong> tipo <strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendência que liga mari<strong>do</strong> e mulher.Logo que voltei ao bairro, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>do</strong>is anos passa<strong>do</strong>s no Rio Gran<strong>de</strong><strong>do</strong> Sul, as crianças da família <strong>de</strong> Claudina não esperaram eu <strong>de</strong>scer <strong>do</strong> ônibuspara contar a <strong>gran<strong>de</strong></strong> novida<strong>de</strong>: ”Edinha tá grávida! O nenê nasce a qualquerhora!” As crianças e as cunhadas me contaram com pormenores e comevi<strong>de</strong>nte exaltação o caso to<strong>do</strong>: <strong>de</strong> como a família ficou saben<strong>do</strong> <strong>do</strong> namoro –as crianças e Edilene sabiam <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> e foram cúmplices <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início; <strong>de</strong>como Beatriz conseguiu com uma ex-patroa um enxoval inteirinho; dassimpatias com rins <strong>de</strong> porco para saber o sexo <strong>do</strong> bebê; das apostas paraadivinhar o dia <strong>do</strong> nascimento. Não era apenas pela minha chegada. Agravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Edinha era o assunto da hora para as mulheres e crianças dare<strong>de</strong> familiar e vizinhança.Edinha foi a última a aparecer, como se estivesse aguardan<strong>do</strong> omomento certo para fazer uma entrada triunfal. Chegou no pátio <strong>de</strong> Edilene,on<strong>de</strong> estávamos reuni<strong>do</strong>s, ostentan<strong>do</strong> a barriga e sua nova condição <strong>de</strong>mulher:" / ,- % F % F%E : %Antes mesmo <strong>de</strong> cumprimentar-me, a menina que <strong>de</strong>ixei há <strong>do</strong>is anosatrás exibe sua competência no quesito mais requeri<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma mulherresponsável: o capricho com as roupas que o mari<strong>do</strong> irá se apresentar àsocieda<strong>de</strong>. Tratada pelos agentes políticos como grave problema pessoal e


158social, a gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong>ssa moça aos 16 anos é muito bem assimilada pelo seugrupo 93 – ainda que haja queixas maternas.De fato, a mãe era a única pessoa abertamente lamentosa. A cadaconversa, enfiava um colar <strong>de</strong> <strong>de</strong>cepções que a filha havia lhe proporciona<strong>do</strong>: 2 % Q %- ! ! 4 % 0C%- 1 %4 % A B - # @ A1 B/ ? (T )@// , >H ( 9 ) T Claudina frisa que se sacrificou durante longos anos, e não foi parasimplesmente botar comida na mesa. Era para realizar um projeto familiar <strong>de</strong>ascensão social em que a filha, “bem criada” e acostumada a um padrãoeleva<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong>sempenhava um papel fundamental (Fonseca, 1993b).Sempre que me mostrava o luxo <strong>de</strong> cada artigo <strong>de</strong> sua casa (fogão autolimpante <strong>de</strong> seis bocas, vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> renda para Edinha, som), Claudina<strong>de</strong>screvia longamente as táticas para ter acesso a bens tão caros:financiamento em 48 vezes, comer apenas arroz, fugir <strong>do</strong>s cobra<strong>do</strong>res, nãopagar água e luz e fazer ligação <strong>de</strong> “gatos”. Algumas artimanhas não eram93 Diferentemente da situação <strong>de</strong> risco que a gravi<strong>de</strong>z nessa faixa etária apresenta para osfilhos das camadas médias e altas, nos grupos populares, a gravi<strong>de</strong>z parece ser um rito <strong>de</strong>passagem entre a infância e a vida adulta. Por meio <strong>de</strong>la, as meninas procuramin<strong>de</strong>pendência da tutela da família <strong>de</strong> origem. Engravidar faz parte <strong>de</strong> saberes femininos <strong>de</strong>sedução; forma mais tradicional das meninas assegurarem um parceiro fixo, montar uma casae tornarem-se <strong>do</strong>nas <strong>do</strong> lar, ou seja, adquirirem a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mulher adulta (ALMEIDA,1997; VÍCTORIA, 1992; PAIM, 1988) .


159mencionadas verbalmente, mas insinuaram-se durante nossa convivência:esperar que “o velho” e Edinha comam na Edilene; vir da casa da patroa bemalimentada; conquistar a cumplicida<strong>de</strong> da patroa para receber bens extrasalariais;se possível, trazer os restos que são <strong>de</strong>sperdiça<strong>do</strong>s na casa <strong>do</strong>spatrões como patas <strong>de</strong> galinha, gorduras, frutas e verduras velhas, umsabonete, um restinho <strong>de</strong> óleo. Claudina concluía nossas confidênciasressaltan<strong>do</strong> a <strong>gran<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong>r: “Tu<strong>do</strong> isso eu fiz por essa menina e ela <strong>de</strong>sperdiçouse entregan<strong>do</strong> a este rapaz!”Não apenas Claudina, mas provavelmente os irmãos cogitavam que acaçula bem-casada talvez fosse um <strong>do</strong>s trunfos contra a miséria. Depois <strong>de</strong>tu<strong>do</strong>, eles não contribuíram também, com seu trabalho e ajuda financeira, paraa construção e manutenção daquela “casa fina” com tantos móveis distintos?Mas, tem-se a impressão <strong>de</strong> que esses cálculos não são tão rígi<strong>do</strong>s assim. Édifícil esperar que o ar<strong>do</strong>r da juventu<strong>de</strong> seja tão pragmático, ou que o merca<strong>do</strong>matrimonial ofereça tão bons preten<strong>de</strong>ntes.As queixas da mãe são sinceras; entretanto, ela também teve seuprimeiro filho <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s mesmos mol<strong>de</strong>s. A mesma experiênciacompartilhada por muitas vizinhas, sem dúvida, explica por que, apesar <strong>do</strong>scomentá<strong>rio</strong>s críticos, as mulheres eram tão receptivas à nova situação. Aspessoas reconheciam dificulda<strong>de</strong>s econômicas com a chegada <strong>do</strong> bebê, masaborto jamais foi menciona<strong>do</strong> entre as formas possíveis <strong>de</strong> enfrentar taisconstrangimentos 94 . Apesar <strong>de</strong> seus parcos recursos, nenhuma mulherdaquele círculo <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> furtou-se a colaborar com algum item para oenxoval. As lamúrias da mãe não se referiam às agruras da chegada <strong>de</strong> umbebê tão ce<strong>do</strong> na vida <strong>de</strong> um casal, mas sim ao péssimo casamento que afilha realizara, pois se a filha aspirava se juntar com o homem a que amava,sua mãe tinha ti<strong>do</strong> outros planos.94 Vi<strong>de</strong> Leal (1995), sobre as circunstâncias e o momento que envolve a <strong>de</strong>cisão da realização<strong>de</strong> um aborto nos grupos populares.


160Ironicamente foi Claudina, em parte, responsável pelo encontro <strong>de</strong>Edinha e Vinicius. Este último, órfão <strong>de</strong> mãe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 11 anos, migrara <strong>do</strong>Paraná com o pai e os irmãos no início <strong>do</strong>s anos 90, vin<strong>do</strong> parar num <strong>do</strong>sbarracos que Claudina aluga. O pai arranjou uma namorada no inte<strong>rio</strong>r emu<strong>do</strong>u-se com o filho mais moço, a irmã foi morar na casa <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> eVinicius permaneceu no barraco por mais alguns meses. Foi nessa época quecomeçou o namoro. O rapaz estava sozinho e Edinha, enternecida, resolveuacolhê-lo. Namoravam escondi<strong>do</strong> no início, aproveitan<strong>do</strong> as horas que Edinhaia lavar roupa no tanque coletivo que fica justamente na frente <strong>do</strong> barraco <strong>do</strong>rapaz. O rapaz não se furtou a enfrentar o “casamento” (co-habitação), atémesmo porque Edinha tem três fortes irmãos, mas sua situação está difícil.Para enten<strong>de</strong>r a posição frágil <strong>de</strong> Vinícius <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ste grupo familiar,cabe lembrar as análises feitas em outros grupos populares (ALMEIDA, 1977;entre outros) nas quais diversos pesquisa<strong>do</strong>res têm sugeri<strong>do</strong> que, enquantopara uma menina a gravi<strong>de</strong>z representa a porta <strong>de</strong> entrada para a vida adulta,para o menino nem sempre é assim. A mãe constitui-se fisicamente atravésda gravi<strong>de</strong>z e <strong>do</strong> parto; porém, no caso <strong>do</strong> homem, quan<strong>do</strong> uma criança nasceé preciso que ele reconheça sua paternida<strong>de</strong>. Como mostrou Víctora, nosgrupos populares, mulheres têm filhos, homens assumem filhos (1992, p. 23).I<strong>de</strong>almente, a paternida<strong>de</strong> bem-assumida para estes grupos teria a ver com opapel <strong>de</strong> prove<strong>do</strong>r que se espera <strong>do</strong> sujeito maduro <strong>do</strong> sexo masculino. Se avida adulta é inaugurada com a maternida<strong>de</strong> e com casamento para aspessoas <strong>do</strong> sexo feminino 95 , no caso <strong>do</strong> rapaz ela só chega realmente quan<strong>do</strong>for capaz <strong>de</strong> responsabilizar-se economicamente por um lar. Se isto já é difícilpara homens com uma longa trajetória <strong>de</strong> trabalho, imaginem para um rapaz<strong>de</strong> 17 anos. Vinicius trabalha em uma oficina <strong>de</strong> lanternagem, recebe portarefa e o dinheiro mal dá para comprar alguma comida. Assim, é obriga<strong>do</strong> asuportar a sogra que o acusa <strong>de</strong> “não comprar nada para o bebê”, <strong>de</strong> “não dar95 A maioria <strong>do</strong>s estudiosos <strong>do</strong>s grupos populares brasileiros tem aponta<strong>do</strong> apenas amaternida<strong>de</strong> como o ritual necessá<strong>rio</strong> para inaugurar a vida adulta das meninas; porém,aprofundan<strong>do</strong> esta questão, Paula Almeida (1999) tem mostra<strong>do</strong> que consolidar a relaçãocom o pai da criança po<strong>de</strong> ser o ponto <strong>de</strong>finitivo <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> status no grupo familiar.


161uma calcinha sequer para a mulher” e <strong>de</strong> “não guardar nem mesmo o dinheiropara pagar o táxi no dia <strong>do</strong> parto”. “De certo Edinha vai ter que chamar abrigada pra levar ela para a maternida<strong>de</strong>”, vociferam as mulheres da família.O casamento <strong>do</strong> jovem casal não agra<strong>do</strong>u a Claudina que viu, assim,suas esperanças por uma vida melhor esmagadas. Vinicius encontran<strong>do</strong> <strong>de</strong>repente pressões para apressar seu ingresso na vida adulta, tampouco se vêrealiza<strong>do</strong>, mas Edinha parece, ao menos por enquanto, plenamente realizada.Afinal, como meus informantes sugeriam <strong>de</strong> tantas maneiras diferentes,comida não é tu<strong>do</strong>.Os propósitos <strong>de</strong> Claudina estão vincula<strong>do</strong>s à experiência <strong>de</strong> umamulher vivida, que almeja um <strong>de</strong>stino para sua filha melhor <strong>do</strong> que o seu:envelhecer cozinhan<strong>do</strong> e limpan<strong>do</strong> para os outros sem ter saí<strong>do</strong> muito longeda pobreza com a qual iniciou sua vida. Contu<strong>do</strong>, se essa lógica mostra umsenti<strong>do</strong> utilitarista para o casamento, não <strong>de</strong>vemos nos enganar reduzin<strong>do</strong> aexperiência <strong>de</strong>ssas pessoas aos aspectos da pura sobrevivência. Em outraspalavras, não <strong>de</strong>vemos esquecer a perspectiva <strong>de</strong> Edinha. O sustento que asmulheres costumam exigir <strong>de</strong> seus homens, para além da atitu<strong>de</strong> pragmática,é a forma legítima encontrada por elas para garantirem outra dimensãofundamental da relação: o afeto e a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>do</strong> companheiro ama<strong>do</strong>.4.6 Comida não é tu<strong>do</strong>Ao começar o trabalho <strong>de</strong> campo em Jardim Veneza, eu escondia umtemor enorme <strong>de</strong> enfrentar a convivência com o mari<strong>do</strong> <strong>de</strong> Edilene.Trabalhan<strong>do</strong> como <strong>do</strong>méstica na minha casa, Edilene foi aos poucosconquistan<strong>do</strong> nossos afetos e minha atenção. Nossas conversas, na minhacasa, durante o primeiro ano <strong>de</strong> pesquisa, foram aos poucos me convencen<strong>do</strong>a <strong>de</strong>smoronar o edifício frágil da objetivida<strong>de</strong> e acaban<strong>do</strong> por me arrebatar


162numa experiência <strong>de</strong> conhecimento, em que a amiza<strong>de</strong> acabou seconstituin<strong>do</strong>, como no Mito <strong>de</strong> Teseu e o Minotauro, no fio <strong>de</strong> Ariadne paraminha penetração no universo nebuloso <strong>do</strong> outro. Edilene foi a arquiteta <strong>do</strong>spontos <strong>de</strong> observação que me levaram, poste<strong>rio</strong>rmente, a concentrar apesquisa em Jardim Veneza. Neste nosso longo convívio <strong>de</strong> empregada epatroa, conheci uma mulher que, segun<strong>do</strong> os meus padrões, era o protótipo<strong>do</strong> sofrimento e <strong>de</strong> submissão feminina 96 . Sempre manteve <strong>do</strong>is empregospara po<strong>de</strong>r sustentar a casa, pois Tonho, seu mari<strong>do</strong>, consi<strong>de</strong>rava quetrabalhar por uma miséria não valia a pena. Entretanto, um <strong>do</strong>s empregosmantinha em segre<strong>do</strong>, para que “ele não abocanhe tu<strong>do</strong> que eu ganho”.Muitas vezes chegava na casa com as marcas <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sentendimentoscom o mari<strong>do</strong>. Certa vez, quebrou a perna e, mesmo assim, não aceitou osdias <strong>de</strong> repouso. Passa<strong>do</strong>s cerca <strong>de</strong> 15 dias, chegou na minha casamancan<strong>do</strong>, sem gesso, com olho roxo e pé quebra<strong>do</strong> em um novo lugar.Nessas horas, como diz uma amiga minha, a gente “põe a antropólogano freezer” e pára <strong>de</strong> relativizar o universo cultural <strong>do</strong> outro. On<strong>de</strong>, eu meperguntava, estavam as vantagens <strong>do</strong> casamento <strong>de</strong> Edilene? Fiqueichocadíssima e sugeri que ela po<strong>de</strong>ria ter um espaço na nossa casa paraseparar-se <strong>de</strong> Tonho. “Vou separar <strong>de</strong>le sim, mas não <strong>de</strong>ixo minha casa, não.É tu<strong>do</strong> que tenho na vida“.Edilene passou, então, a me <strong>de</strong>ixar saber que tinha se separa<strong>do</strong>,contan<strong>do</strong> inclusive histórias elaboradas sobre o estigma <strong>de</strong> ser uma mulhersem mari<strong>do</strong>. Por exemplo a história concernente a uma menininha queEdilene quase a<strong>do</strong>tou. Uma tragédia havia tira<strong>do</strong> a vida <strong>de</strong> sua prima e estahavia <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> órfã uma menininha <strong>de</strong> três anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Pensan<strong>do</strong> quepo<strong>de</strong>ria ser essa sua oportunida<strong>de</strong> para finalmente alcançar o status <strong>de</strong> mãe,ofereci to<strong>do</strong> o apoio para que ela criasse a menina. Já estava procuran<strong>do</strong> umacreche para inscrever a menina quan<strong>do</strong> Edilene me contou que uma tiamaterna havia chega<strong>do</strong> da Bahia e “carrega<strong>do</strong> com a menina”: “Ela me disse96Gregori (1992) redimensiona o discurso das queixas das mulheres vítimas <strong>de</strong>espancamento por seus mari<strong>do</strong>s, mostran<strong>do</strong> que as agressões são peças constitutivas<strong>de</strong>sses relacionamentos.


163que se eu não tenho capacida<strong>de</strong> para manter um mari<strong>do</strong>, como vou po<strong>de</strong>rcriar uma criança?”(Com esse episódio, minhas dúvidas quanto ao “mun<strong>do</strong>cultural” <strong>de</strong> Dona Edilene só aumentavam: além <strong>de</strong> sofrer a violência <strong>do</strong>mari<strong>do</strong>, agora ia ser privada <strong>de</strong>ste último prazer, <strong>de</strong> ter um filho… Foi sóalgum tempo <strong>de</strong>pois que fui apren<strong>de</strong>r coisas para atenuar minha indignação, eatiçar mais uma vez o estranhamento <strong>do</strong> antropólogo.)Quis o <strong>de</strong>stino que uma situação <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença me fizesse recorrer à únicapessoa com quem podia contar em Vitória (meu mari<strong>do</strong> estava viajan<strong>do</strong>) e,assim, fui a Jardim Veneza buscar Edilene. Não sabia exatamente on<strong>de</strong> erasua casa e fui perguntan<strong>do</strong>: ”Conhece Edilene, amiga <strong>de</strong> Túlia…” Ante asnegativas resolvi associar: “Ela foi casada muito tempo com Tonho, filho <strong>de</strong>Claudina…” No que a pessoa me respon<strong>de</strong>u: ”Foi casada? Nunca esteveseparada! Eles moram ali...” De fato, Ariadne me contava muitas mentiras,muitas! Mas não eram quaisquer mentiras: eram mentiras <strong>de</strong> mulher pobrepara uma mulher <strong>de</strong> classe média. Assim, vim a me dar conta que Edilenenunca havia se separa<strong>do</strong> <strong>de</strong> Tonho. Durante meses tinha encena<strong>do</strong> um tipo<strong>de</strong> teatro para satisfazer as sensibilida<strong>de</strong>s da patroa 97 .Não é por acaso que Edilene resolveu escon<strong>de</strong>r justamente essadimensão <strong>de</strong> sua vida privada – suas relações afetivas – <strong>do</strong>s olhos moralistas<strong>de</strong> sua patroa. Goldstein (2000), entre outros, tem escrito sobre a maneiracomo patroas censuram a vida pessoal <strong>de</strong> suas <strong>do</strong>mésticas, chegan<strong>do</strong> àconclusão <strong>de</strong> que, na maioria <strong>de</strong> casos, estas estariam melhores selargassem tu<strong>do</strong> e mudassem <strong>de</strong> vez para a casa <strong>de</strong>las. Assim, chegan<strong>do</strong> nobairro, prestei atenção particular a esses <strong>de</strong>talhes.97 Detalhe: minha filha, então com quatro anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, sabia <strong>de</strong> toda a verda<strong>de</strong>. Somentequan<strong>do</strong> eu cheguei em casa contan<strong>do</strong> a peripécia, a menina traiu seu pacto <strong>de</strong> segre<strong>do</strong> comEdilene. Neste caso, percebe-se a relação <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong> e afeto entre as crianças e asempregadas que mostramos no capítulo <strong>do</strong>is.


164Quan<strong>do</strong> Edilene e eu convivemos mais profundamente, agora eu <strong>de</strong>ntroda casa <strong>de</strong>la, fiquei saben<strong>do</strong> <strong>de</strong> todas as cartas <strong>de</strong> amor que ela havia escritopara Tonho durante o noiva<strong>do</strong>, as quais ela <strong>de</strong>scobriu, <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> casamento,guardadas por ele com muito carinho, amarradas por uma fita vermelha.Porém, estavam todas lacradas. Só então Edilene <strong>de</strong>scobriu que Tonho eraanalfabeto.Constatei que Edilene não era a única <strong>de</strong> suas vizinhas a nutrir taissentimentos. Assuntos românticos pareciam consumir muita energia dasmulheres que conheci em Jardim Veneza. Já na fase <strong>de</strong> sedução, o fascínioamoroso era previsível (Edinha não ficou seis meses planejan<strong>do</strong> táticas paracultivar a atenção <strong>de</strong> Vinicius?), mas ainda na fase <strong>de</strong> consolidação <strong>do</strong>relacionamento conjugal as mulheres investem muito. Quan<strong>do</strong> um mari<strong>do</strong>começa a passar muito tempo fora <strong>de</strong> casa, sua mulher monta estratégiaspara <strong>de</strong>scobrir on<strong>de</strong> anda seu homem e com quem gasta dinheiro. Faz rondacom as amigas passan<strong>do</strong> nos lugares suspeitos, se cerca <strong>de</strong> informações: ficasaben<strong>do</strong> que “viram ele no terminal com uma amiga da Igreja”; fulana “viuquan<strong>do</strong> ele levou a outra na excursão <strong>de</strong> futebol”, e assim por diante. Àsvezes tentam se vingar. Edilene, por exemplo, ao <strong>de</strong>scobrir que seu mari<strong>do</strong>tinha i<strong>do</strong> no jogo <strong>de</strong> futebol com uma moça jovem e bonita, “ro<strong>do</strong>u a baiana”:jogou fora toda a reserva <strong>de</strong> maconha que Tonho guarda para ven<strong>de</strong>r efechou todas as portas da casa, impedin<strong>do</strong>-o <strong>de</strong> entrar. Túlia é outra que cita ainfi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu mari<strong>do</strong> para <strong>de</strong>sculpar suas próprias aventuras. Apesar <strong>de</strong>casada e mãe <strong>de</strong> filhos adultos, passa fins <strong>de</strong> semana fora, vai a bailões, e emgeral escolhe os homens que passam na sua vida. No entanto, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>falar em romance, me confessan<strong>do</strong> que tem um <strong>gran<strong>de</strong></strong> amor, “só que ele nãopresta”. Quanto ao mari<strong>do</strong>, sua <strong>gran<strong>de</strong></strong> queixa não é que não sustenta a casa,mas que não supre suas necessida<strong>de</strong>s afetivas. Esta perspectiva fica aindamais clara na mágoa da vida conjugal expressa por Beatriz:< = 6R V ( )- %


165* T 1 - 7 O ciclo apaixona<strong>do</strong> talvez não dure a vida toda. É provável que quan<strong>do</strong> amaturida<strong>de</strong> se aproxime, o pragmatismo – como o <strong>de</strong> Claudina – fale maisalto. Mas durante muitos anos da vida <strong>de</strong> uma mulher, ela procura num mari<strong>do</strong>muito mais <strong>do</strong> que alguém para a sustentar. Procura realizar um projeto <strong>de</strong>amor que, tanto ela quanto suas vizinhas, consi<strong>de</strong>ram central na vida. Porém,diferentemente das ilusões <strong>do</strong> amor romântico, não acreditam na máxima: "umamor e uma cabana". Um <strong>do</strong>s momentos marcantes <strong>de</strong> <strong>de</strong>cepção <strong>de</strong>ssasmulheres vem quan<strong>do</strong> buscam reconhecer o afeto <strong>de</strong> seus homens através <strong>de</strong>sua disposição <strong>de</strong> sustentá-las 98 .Para as patroas, no entanto, esse tipo <strong>de</strong> interesse romântico dasempregadas permanece muito opaco. Os patrões preferem esquecer queaquelas mulheres que lhes servem necessitam, como qualquer outra pessoa,<strong>de</strong> referências i<strong>de</strong>ntitárias e afetivas próprias para almejarem a realizaçãopessoal. De uma parte, uma perspectiva mais igualitária proposta pelaspautas políticas mo<strong>de</strong>rnas não permite que as patroas compreendam osdilemas <strong>de</strong>sses casais 99 . Para aquelas mais sensíveis, as empregadas estãosubmetidas a padrões muitos brutos <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação masculina. Para outras, noentanto, os mari<strong>do</strong>s e namora<strong>do</strong>s são um empecilho para que se possa disporda “empregada perfeita”. É a “loucura por estes homens”, como me dizia umainformante, que impe<strong>de</strong> uma fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> absoluta das <strong>do</strong>mésticas às suaspatroas. Muitas vezes, é na figura <strong>de</strong>les que as patroas vêem as ameaças <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>sigual e efetivamente, <strong>de</strong>vo admitir, que assisti a empregadas queao encontrarem patrões mais refratá<strong>rio</strong>s ao cumprimento <strong>de</strong> seus direitos,levavam seus mari<strong>do</strong>s para o acerto final das contas.98 Rebhun (1993 e 1995) também <strong>de</strong>screve a dimensão romântica como uma instânciafundamental da vida <strong>de</strong> seus pesquisa<strong>do</strong>s nor<strong>de</strong>stinos. Embora ressalve que não po<strong>de</strong>mosprocurar por significa<strong>do</strong>s e expressões universais <strong>de</strong>sse sentimento.99 Alguns autores como Pereira <strong>de</strong> Melo (1993) Besse (1996) tem referi<strong>do</strong> que as lutasfeministas não parecem fazer senti<strong>do</strong> para a representação das empregadas <strong>do</strong>mésticas.


166* * *Nestes relatos sobre a inter<strong>de</strong>pendência no grupo <strong>do</strong>méstico,procuramos <strong>de</strong>screver um padrão <strong>de</strong> organização social importante entre osgrupos populares. Como Duarte (1986) e Sarti (1989), observamos a presença<strong>do</strong> código hierárquico complementar que liga mari<strong>do</strong> e mulher nestascamadas sociais. No entanto, este código não é nem estático, nem postulacomportamentos <strong>de</strong> maneira tão rígida como a regra prescreve.Em primeiro lugar, <strong>de</strong>veríamos compreen<strong>de</strong>r que, no caso pesquisa<strong>do</strong>, aposição supe<strong>rio</strong>r masculina não se sustenta necessariamente pela suacondição <strong>de</strong> prove<strong>do</strong>r – situação que é difícil <strong>de</strong> ser cumprida, como<strong>de</strong>monstra as histórias <strong>de</strong> Tonho, Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> e Vinicius. Outros fatores, taiscomo a escolha patrilocal <strong>de</strong> moradia, po<strong>de</strong>m também ajudar os homens amanterem-se numa posição vantajosa contan<strong>do</strong> com a proteção <strong>de</strong> seusconsangüíneos. Antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, a relação mari<strong>do</strong>/mulher não se reduz aosaspectos materiais da relação. As paixões e afetos entram para <strong>de</strong>sorganizaras regras da conduta social, levan<strong>do</strong> as pessoas a ajustarem suas estratégiasa novas situações.Em segun<strong>do</strong> lugar, a complementarida<strong>de</strong> não resi<strong>de</strong> apenas nasrelações <strong>do</strong> casal. Como tentamos mostrar, as relações <strong>de</strong> casal vêmembutidas numa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> a reciprocida<strong>de</strong> – ora pacífica,ora antagônica – é exercida <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o status relativo <strong>de</strong> cada um – <strong>de</strong>sexo, ida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> pertencimento familiar (ver também FONSECA, 1995;BRITES, 1993; JARDIM, 1999).Agora, para melhor enten<strong>de</strong>r o lugar <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico remunera<strong>do</strong><strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta configuração <strong>de</strong> valores, cabe consi<strong>de</strong>rar como os elementosmais fracos da ca<strong>de</strong>ia – mulheres e velhos – negociam seu lugar político nocircuito <strong>de</strong> troca social. Veremos então que a complementarida<strong>de</strong> estratificada(<strong>de</strong>scrita na relação patroa-empregada no último capítulo) engendra táticasparticulares da parte das pessoas mais abaixo na hierarquia para garantir oseu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> barganha.


1674.7. A força <strong>do</strong> fracoSeu Norberto, por exemplo, hoje não <strong>de</strong>sfruta da mesma importância <strong>de</strong>antes. É constantemente <strong>de</strong>sprestigia<strong>do</strong> pela mulher, Claudina, que,reclaman<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua avareza e impotência sexual, refere-se a ele como:“Aquele velho que não serve para nada”. Edinha, a enteada <strong>de</strong> Norberto, queele c<strong>rio</strong>u <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os três anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, embora more em um barraco nosfun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> sua casa, não lhe dirige a palavra. Aliás, a <strong>de</strong>speito <strong>do</strong>s esforços <strong>de</strong>Norberto pela conquista <strong>do</strong> lugar, ninguém duvida que o terreno seja <strong>de</strong>“mamãe”. Não fosse pela contribuição certa <strong>de</strong> sua aposenta<strong>do</strong>ria no final <strong>do</strong>mês, será que ainda restaria lugar para ele nesta família?Nos restos <strong>do</strong> uniforme <strong>de</strong> guarda-noturno e no chapéu <strong>de</strong> feltro marromusa<strong>do</strong> à Valdick Soriano, Norberto insiste nas marcas <strong>de</strong> hombrida<strong>de</strong> dasquais, como homem trabalha<strong>do</strong>r, já <strong>de</strong>sfrutou. Senta<strong>do</strong> por dias inteiros empose <strong>de</strong> garça na frente da casa <strong>de</strong> Claudina, reconhecemos nele a altivaserenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um velho aposenta<strong>do</strong>. Ou será que o <strong>de</strong>finirá melhor o lugarque escolheu para <strong>de</strong>sfrutar da sociabilida<strong>de</strong> da rua? O “banquinho dasfofoqueiras”, significativamente, o lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> Claudina retira sua reputaçãoentre os vizinhos.As acusações lançadas na sua cara, a licença <strong>de</strong> que ele dispõe parabrincar, insinuan<strong>do</strong>-se sexualmente com as mulheres casadas (chaman<strong>do</strong>-as<strong>de</strong> “meu amor”, esbarran<strong>do</strong> fingidamente entre suas pernas) parecemi<strong>de</strong>ntificá-lo com a condição <strong>de</strong> velho, sem o respeito pleno <strong>de</strong> um homemadulto (DUARTE, 1986). Ainda mais, cabe notar que ele não tem nenhumparente consangüíneo no grupo familiar, fican<strong>do</strong>, nesse senti<strong>do</strong>, periférico aogrupo familiar. Como Edilene, Beatriz e Vinicius (mari<strong>do</strong> <strong>de</strong> Edinha), resta-lhe


168apenas o status frágil <strong>de</strong> parente político 100 . Essa condição subordinada, noentanto, é compensada por uma lealda<strong>de</strong> in<strong>de</strong>fectível ao grupo e ao talento <strong>de</strong>saber como manter alia<strong>do</strong>s. Assim, os filhos homens <strong>de</strong> Claudina não <strong>de</strong>ixam<strong>de</strong> proclamar a importância da aposenta<strong>do</strong>ria <strong>do</strong> padrasto para garantir ascontas básicas da mãe (alivian<strong>do</strong> suas próprias obrigações), os parentespróximos ainda o con<strong>sul</strong>tam sobre estratégias <strong>de</strong> invasão e Edilene – suaamiga predileta –, além <strong>de</strong> provi<strong>de</strong>nciar alimento para o velho, <strong>de</strong>dica-lhecuida<strong>do</strong>s íntimos <strong>de</strong> uma filha, cortan<strong>do</strong>-lhe os cabelos e as unhas <strong>do</strong>s pés.Os vizinhos e os comerciantes da re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>za também preferem sua prosacerta <strong>do</strong> que compartilhar intimida<strong>de</strong> com Claudina, que consi<strong>de</strong>ram ter o “Reina barriga” e “a Fofoca na cabeça”. Para a maioria <strong>de</strong>stas pessoas, é o afeto,antes <strong>do</strong> que qualquer ganho material, que ganham como recompensa <strong>do</strong>apoio moral da<strong>do</strong> a esse senhor.Edilene, outra figura ligada a este grupo familiar apenas por laços <strong>de</strong>afinida<strong>de</strong>, sofre <strong>de</strong> tantas, senão mais <strong>de</strong>svantagens <strong>do</strong> que Norberto. Emprimeiro lugar, não conseguiu nem cumprir direito seu papel <strong>de</strong> esposa; nãoconseguiu ter filhos. Uma patroa a levou ao ginecologista, o qual lhe garantiuque os problemas não eram com ela. Mas, no núcleo familiar <strong>de</strong> seu mari<strong>do</strong>,não existem dúvidas <strong>de</strong> que ela é quem é a parte estéril <strong>do</strong> casal. Sua sogra,Claudina, às vezes questiona sobre o fato <strong>de</strong> Tonho ter nasci<strong>do</strong> com o cordãoumbilical enrola<strong>do</strong> no pescoço, impedin<strong>do</strong> que o sêmen percorra seu fluxonormal pelo corpo, mas logo <strong>de</strong>siste <strong>de</strong>ssa hipótese dizen<strong>do</strong>: “Do jeito queessa mulher bebe e come pimenta, duvi<strong>do</strong> que algum filho pare nesse bucho”.Além <strong>de</strong> Edilene ser estéril, sofre <strong>de</strong> epilepsia – fato que só <strong>de</strong>scobri nodia em que ouvi sua sogra falan<strong>do</strong> “daqueles ataques”:2 #,@ # 2 # %100 Fonseca (1986) discute as tensões entre alia<strong>do</strong>s e consangüíneos nas famílias <strong>de</strong> baixarenda gaúchas.


169@ #. @ 4 4I !%Para coroar seu status infe<strong>rio</strong>r – além <strong>de</strong> ser afim neste grupo familiar,mulher estéril e <strong>do</strong>ente – é consi<strong>de</strong>rada como bêbada. Esta acusação vez ououtra vem à tona. Para os padrões <strong>de</strong>sejáveis <strong>de</strong> esposa responsável, Edilenebebe <strong>de</strong>mais. Certa vez, a sogra e a cunhada esquivarem-se <strong>de</strong> lhe emprestarum cartão telefônico, comentan<strong>do</strong>:@ #- 2 %V % # %7 L %O próp<strong>rio</strong> mari<strong>do</strong> se queixa <strong>de</strong> Edilene, dizen<strong>do</strong> que tenta controlar amulher, mas nunca consegue encontrar on<strong>de</strong> ela escon<strong>de</strong> as garrafas: “Sóuma vez eu <strong>de</strong>i a sorte <strong>de</strong> abrir o forno <strong>do</strong> fogão… Mas é o diabo! Eu digo,Jurema, aqui em casa não tem harmonia; o problema <strong>de</strong>ssa mulher é bebida epimenta!”Todas estas críticas são feitas abertamente, “ditas na cara”, como elesfalam. Edilene também censura abertamente a sogra e a cunhada acusan<strong>do</strong>as<strong>de</strong> serem sovinas, não fazerem nunca comida e maltratarem o pobre velhoque entrega toda sua aposentaria para bancar o luxo das duas. Com asituação apresentada assim, é difícil compreen<strong>de</strong>r o que continua ligan<strong>do</strong>Tonho à sua mulher tão criticada por estes 13 longos anos 101 .101 Certamente, esta situação vai ao encontro <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> complementarida<strong>de</strong> hierárquicaon<strong>de</strong> homem e mulher não perseguem um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> entre si, mas seus papéis são<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes um <strong>do</strong> outro <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong> subordinação/<strong>do</strong>minação. Neste mo<strong>de</strong>lo,ao homem cabe o papel <strong>de</strong> prove<strong>do</strong>r e esteio moral da família, e à mulher, retribuin<strong>do</strong>-lhe coma exclusivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus favores sexuais, o <strong>de</strong> <strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa pacata e mãe <strong>de</strong> seus filhos. VerSarti (1989), Duarte (1986) e Víctora (1992). Entretanto, é necessá<strong>rio</strong> frisar que se estasmulheres nos seus discursos (<strong>de</strong> cobrança <strong>do</strong> rompimento <strong>do</strong> pacto <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong> alheio)acionam tal mo<strong>de</strong>lo, observan<strong>do</strong> suas práticas parece não estarem muito preocupadas emefetivá-lo.


170Para enten<strong>de</strong>r como os “fracos” <strong>de</strong>sse universo conseguem consolidarsuas bases, trocan<strong>do</strong> bens – tanto simbólicos quanto materiais – para tomarparte nas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, basta estudar as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Edilene.Quan<strong>do</strong> chega <strong>do</strong> trabalho, a primeira coisa que Edilene faz é dar águapara os porcos. Depois sai para arrecadar restos <strong>de</strong> comida na re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>zapara alimentar os animais. Apesar <strong>do</strong> andar rápi<strong>do</strong>, cumprimenta cada vizinhocom uma piada apropriada: “Que tá fazen<strong>do</strong>? Nada? Quem nada é peixe!”Pega uma criança amiga pela mão e dirige-se para a venda da frente.Enquanto escolhe um pirulito, verifica quem está aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>. Caso seja amulher <strong>do</strong> ven<strong>de</strong>iro, a um rápi<strong>do</strong> sinal, as duas entram para os fun<strong>do</strong>s eEdilene toma seu primeiro copo <strong>de</strong> rabo-<strong>de</strong>-galo (coca-cola com cachaça) <strong>do</strong>dia. Caso os fofoqueiros não estejam no bico, ela carrega para casa umagarrafa <strong>de</strong> cachaça, com a qual se embebedará pelo resto da noite.A bebe<strong>de</strong>ira provoca em Edilene uma <strong>gran<strong>de</strong></strong> energia e uma língua muitoafiada e divertida. Ela não pára um minuto: faz comida, em geral aproveitan<strong>do</strong>alguma coisa que trouxe da casa da patroa; aten<strong>de</strong> aquele séquito <strong>de</strong>sobrinhos que vão atrás <strong>de</strong>la: “Olha os meus rabos, olha os meus rabos! Hojeeu vou comer rabão assa<strong>do</strong>!” Pega um graveto <strong>do</strong> chão e brinca <strong>de</strong> pegar comas crianças. Criança na casa <strong>de</strong> Edilene é tratada com toda <strong>de</strong>ferência.Será por acaso que, na lista <strong>de</strong> prestações e contraprestações, Edileneparece ser a pessoa <strong>do</strong> grupo que mais oferece <strong>do</strong> que recebe. Mas sergenerosa não é sua única qualida<strong>de</strong>. É diverti<strong>do</strong> estar na casa <strong>de</strong> Edilene. Elaé bem dada, engraçada, servin<strong>do</strong> como bufão da vizinhança: & #" / %Em suma, Edilene, pelas suas múltiplas qualida<strong>de</strong>s, acaba sen<strong>do</strong> bemaceita no bairro, apesar <strong>de</strong> seus muitos "<strong>de</strong>feitos". Na sua casa, sempre tem


171comida. Ela <strong>de</strong>monstra que não tem preguiça para cozinhar para “toda aquelagente” e não é uma pessoa mesquinha. Tonho, seu mari<strong>do</strong>, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> uma certa satisfação <strong>de</strong>sta situação. Como mais velho <strong>de</strong> suageração, ainda goza <strong>do</strong> prestígio <strong>de</strong> ser alguém que po<strong>de</strong> alimentar muitagente na sua casa, sem passar pela <strong>de</strong>squalificação <strong>de</strong> não ter o que botar namesa. E tu<strong>do</strong> isso ele <strong>de</strong>ve à sua mulher. Afinal, naquele grupo, é ela quem,com sua astúcia, provi<strong>de</strong>ncia a multiplicação <strong>de</strong> pães.No entanto, Edilene também possui outras armas, mais agressivas, paragarantir seu lugar <strong>de</strong>ntro da re<strong>de</strong> familiar. Trata-se <strong>de</strong> uma mulher perspicazque observa e sabe <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o que acontece à sua volta. Olhan<strong>do</strong> em direçãoda casa <strong>de</strong> Beatriz, segreda-me ao ouvi<strong>do</strong>:" 3 @ 5 ,2 , ; @; 4 I : : . %Os frutos palpáveis <strong>de</strong>ste talento fofoqueiro aparecem na relação, porexemplo, com sua cunhada, Edinha. Enquanto Edilene estava no serviço,Edinha às vezes ajudava, lavan<strong>do</strong> a louça e passan<strong>do</strong> uma vassoura na casa


172Bufonaria – um <strong>do</strong>s talentos que possibilitam ao fraco inverter situações <strong>de</strong>subalternida<strong>de</strong>.FIGURA 23: “Os meus são gêmeos queridinha”. Autoria: Jurema Brites; Serra; 1998;fonte: acervo pessoal; original colorida; fotografia digitalizada no Photo Editor.


173<strong>de</strong> Edilene. Mas havia um cálculo nisso: Edilene sabia <strong>de</strong> seu namoro comVinicius e o acobertava, protegen<strong>do</strong>-os contra a resistência <strong>de</strong> Claudina. Deforma significativa, esses pequenos favores cessaram quan<strong>do</strong> Edinhaassumiu sua gravi<strong>de</strong>z e seu casamento com Vinicius.Na sua atitu<strong>de</strong> burlesca, Edilene vai brincan<strong>do</strong>, contan<strong>do</strong> piadas,<strong>de</strong>bochan<strong>do</strong> <strong>de</strong> algum lance na casa da patroa e, muitas vezes,inadvertidamente, vai jogan<strong>do</strong> as verda<strong>de</strong>s na cara: “Claudina, tá na sua hora,já abriram a sessão <strong>do</strong> banquinho das fofoqueiras. Vai per<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>sfile <strong>do</strong>scrente”. Quan<strong>do</strong> Edinha comenta que já lavou todas as roupinhas <strong>do</strong> nenê, elaemenda: “Só quero ver se você vai cuidar <strong>de</strong>ssa criança. Nem um prato <strong>de</strong>comida você faz. Vai fazer como a tua cunhada? Ecildinha morreu por quê?Jurema, uma nenenzinha <strong>de</strong> quatro meses… Morreu <strong>de</strong> relaxamento da irmã<strong>do</strong> Vinicius. Nem peito a ca<strong>de</strong>la dava pra criança!”Edilene, como os bufões, diverte aquele grupo com seu humor áci<strong>do</strong>.Mas sabe também das podridões <strong>de</strong> to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. As mais sérias não são neminsinuadas nessa brinca<strong>de</strong>ira, como a suspeita <strong>de</strong> traição <strong>de</strong> Beatriz. Edilenesabe que isso dá em morte. Beatriz sabe que Edilene sabe. Então, mesmoinimigas, mantêm uma distância respeitosa.Edilene revela no seu comportamento aquilo que, segun<strong>do</strong> Scott (1985),po<strong>de</strong>mos chamar da força <strong>do</strong> fraco. No seu relacionamento familiar, dispon<strong>do</strong><strong>de</strong> um lugar <strong>de</strong>sprivilegia<strong>do</strong> tanto na parentela (sen<strong>do</strong> uma afim) como nosvalores atribuí<strong>do</strong>s a sua posição feminina (mulher estéril e escandalosa), elaprocura amenizar suas <strong>de</strong>svantagens. Com o mari<strong>do</strong>, usa da falsaconformida<strong>de</strong> – mostra-se obediente, porém sem aban<strong>do</strong>nar a cachaça e sem<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> aproveitar as brechas que ele mesmo acaba lhe oferecen<strong>do</strong>.Quan<strong>do</strong> Tonho, à noite, sai para um la<strong>do</strong>, ela sai para outro. A<strong>do</strong>ra ir ao“Pagodão” com sua amiga Túlia – que não <strong>de</strong>ve explicações para ninguém.Reserva para a sogra avarenta os comentá<strong>rio</strong>s difamató<strong>rio</strong>s mais refina<strong>do</strong>s.Finge ignorância ante as aventuras extraconjugais da concunhada. Assim,força a anuência <strong>do</strong> grupo ao seu estilo provocativo, além <strong>de</strong>, é claro,


174propiciar-lhes abundância alimentar, que to<strong>do</strong>s sabem não sair exatamente<strong>do</strong>s bolsos <strong>de</strong> Tonho.Apesar <strong>de</strong> não ser nada explícito, é impossível <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> reconheceralgumas táticas também acionadas na casa da patroa. A “força <strong>do</strong> fraco” –que combina astúcia, humor e real prestação <strong>de</strong> serviços – é um talentocultiva<strong>do</strong> pela mulher tanto na sua re<strong>de</strong> familiar quanto na sua relação com ospatrões. E quan<strong>do</strong> funciona, como no caso <strong>de</strong> Edilene, restitui um certo po<strong>de</strong>r<strong>de</strong> barganha a quem, <strong>de</strong> outra forma, pareceria o mais <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong> dahierarquia.


1755 NEGOCIANDO A IGUALDADE: A PATROA NA VIDA ÍNTIMAE FAMILIAR DA EMPREGADA DOMÉSTICAToman<strong>do</strong> como objeto <strong>de</strong> análises as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre patroa eempregadas, tentei mostrar nos capítulos três e quatro os roteiros públicos(public transcripts) tanto <strong>do</strong>s <strong>do</strong>minantes, quanto <strong>do</strong>s subalternos, no lugarsocialmente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> para esse encontro – a casa da patroa. No capítulo 4<strong>de</strong>sloquei minha atenção para o mun<strong>do</strong> priva<strong>do</strong> das empregadas para melhorenten<strong>de</strong>r suas perspectivas no que diz respeito a suas ativida<strong>de</strong>s comoservi<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>mésticas remuneradas. Minha intenção era <strong>de</strong> mostrar acomplementarida<strong>de</strong> estratificada que torna, por um certo ângulo, o serviço<strong>do</strong>méstico uma alternativa cômoda para as patroas e, por outro, uma ativida<strong>de</strong>que – realizada nos mol<strong>de</strong>s em que ela se dá – acaba por oferecer soluçõesque se encaixam nas necessida<strong>de</strong>s concretas <strong>de</strong> sobrevivência das famíliasdas empregadas. Nestes capítulos, trabalhei com aspectos materiais eafetivos das interações, procuran<strong>do</strong> <strong>de</strong>monstrar as ambigüida<strong>de</strong>s inscritas narelação entre <strong>de</strong>siguais. Neste último capítulo etnográfico, ao enfocar minhapresença no bairro <strong>de</strong> moradia das empregadas, preten<strong>do</strong> aprofundar essasambigüida<strong>de</strong>s. Ao analisar a interação entre empregadas e seus familiarescom uma patroa “fora <strong>do</strong> lugar”, viven<strong>do</strong> no seu territó<strong>rio</strong> e presencian<strong>do</strong> o<strong>de</strong>senrolar <strong>do</strong>s roteiros encobertos (hid<strong>de</strong>n transcripts) <strong>de</strong>les, pu<strong>de</strong>, <strong>de</strong>maneira mais contun<strong>de</strong>nte, compreen<strong>de</strong>r tanto a amplitu<strong>de</strong> da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><strong>de</strong> nossa socieda<strong>de</strong>, quanto algumas táticas das quais os subalternos lançammão para relacionar-se com ela.


1765.1 O <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> lugar da patroaJá que nos últimos capítulos comecei com meu estranhamento diante dasituação <strong>de</strong> morar no bairro, cabe agora pensar transcrever um trecho <strong>do</strong>diá<strong>rio</strong> <strong>de</strong> campo que revela algo das reações <strong>do</strong>s meus anfitriões diante <strong>de</strong>minha chegada: >7 H 9& ( ? ): * # & A presença <strong>de</strong> uma patroa no bairro não é inteiramente <strong>de</strong>scabida,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se encaixe <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certos mol<strong>de</strong>s. A patroa vem geralmente aobairro não como amiga, simplesmente para passar o tempo, mas para “ajudar”com algum problema particular. Certos ritos são aciona<strong>do</strong>s para <strong>do</strong>mesticaressa presença anômala – compra-se café, prepara-se algum <strong>do</strong>ce, a casa élimpa “como a patroa gosta”, pois esse encontro <strong>de</strong>ve se <strong>de</strong>senvolverconforme o roteiro público (o public transcript) usual. Não é simplesdissimulação. A patroa já ocupa um lugar na vida <strong>de</strong>ssas pessoas – primeiroem termos simbólicos – nos padrões estéticos, por exemplo, e em segun<strong>do</strong>lugar, através <strong>de</strong> <strong>do</strong>nativos e ajudas. Antes <strong>de</strong> aprofundar minha análise sobre“a patroa fora <strong>do</strong> lugar”, gostaria <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar esse “<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> lugar” da patroa,


177já instala<strong>do</strong> no casa da empregada, em termos <strong>de</strong> algumas influências noconsumo e nos <strong>de</strong>talhes da <strong>de</strong>coração da casa.Para a empregada <strong>do</strong>méstica, a vivência na casa da patroa representauma invocação cotidiana da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo mo<strong>de</strong>rna. Limpan<strong>do</strong>,arruman<strong>do</strong> e observan<strong>do</strong> o consumo na casa da patroa, algumas <strong>de</strong>ssasempregadas começam a sonhar em ter uma vida mais confortável e, nesteprocesso, seu próp<strong>rio</strong> padrão estético po<strong>de</strong> ser modifica<strong>do</strong>. Na casa daspatroas, a empregada entra em contato com o que vem a ser para ela umaboa vida material. Esta noção é construída não em termos <strong>de</strong> dinheiro 102 , mas,sim, em termos <strong>do</strong>s objetos <strong>do</strong>s quais a patroa dispõe.Não é, portanto, surpreen<strong>de</strong>nte que algumas casas <strong>de</strong> empregadas<strong>do</strong>mésticas que visitei apresentavam claras semelhanças com a casa daspatroas. A casa <strong>de</strong> Amélia, empregada <strong>do</strong>méstica <strong>de</strong> Pilar, é paradigmática: asala <strong>de</strong> jantar <strong>de</strong> ferro, a mesa com tampo <strong>de</strong> vidro fumê, o arranjo <strong>de</strong> flores<strong>de</strong> seda, o equipamento <strong>de</strong> som, ví<strong>de</strong>o e TV parecem ter migra<strong>do</strong> da casa dapatroa, para a da empregada. Muitas <strong>de</strong>ssas coisas foram realmentepresentes da patroa, mas nem todas. Na sala, somente o vaso <strong>de</strong> flores foi<strong>do</strong>a<strong>do</strong> pela patroa. To<strong>do</strong> o resto <strong>do</strong>s móveis foi compra<strong>do</strong> pelo mari<strong>do</strong> <strong>de</strong>Pilar. Se não na qualida<strong>de</strong>, ao menos no estilo eles são muito pareci<strong>do</strong>s comos móveis da patroa.Amélia tem verda<strong>de</strong>iro fascínio pelos registros vi<strong>de</strong>ográficos efotográficos. Muito investimento financeiro familiar é <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> ao registro <strong>do</strong>srituais <strong>de</strong> seu ciclo <strong>de</strong> vida. Na filmagem <strong>de</strong> seu casamento, po<strong>de</strong>mosacompanhar a projeção <strong>de</strong> um padrão <strong>de</strong> vida calca<strong>do</strong> no das classes médias:vesti<strong>do</strong>s próp<strong>rio</strong>s para cada uma das cerimônias (no civil e no religioso),cerimônia “simples” com o corte <strong>de</strong> um bolo e champanha - tu<strong>do</strong>, mais <strong>do</strong> que102 Diante da penúria das empregadas, em geral teriam dificulda<strong>de</strong> em contabilizar a renda<strong>do</strong>s patrões. Basta uma simples observação: a média <strong>de</strong> salá<strong>rio</strong>s das empregadas queentrevistei era <strong>de</strong> um salá<strong>rio</strong> e meio. Conforme os cálculos <strong>de</strong> uma das patroas, cada uma <strong>de</strong>suas ativida<strong>de</strong>s (cabeleireiro, ginástica, manicure, compra <strong>de</strong> revistas) custa 1/3 <strong>do</strong> salá<strong>rio</strong> daempregada.


178patrocina<strong>do</strong>, orienta<strong>do</strong> pela regras <strong>de</strong> etiqueta <strong>de</strong> sua patroa, que, é claro, fazo papel <strong>de</strong> madrinha.Na casa <strong>de</strong> Amélia, pequenos <strong>de</strong>talhes testemunham a incorporação <strong>de</strong>aspectos da organização <strong>do</strong>méstica da família <strong>de</strong> classe média: Amélia, quemantém ela própria uma empregada em sua casa (uma moça <strong>de</strong> 20 e poucosanos que trabalha como <strong>do</strong>méstica em troca <strong>de</strong> casa e comida), tem afixa<strong>do</strong>na pare<strong>de</strong> da cozinha um cronograma <strong>de</strong> tarefas <strong>do</strong>mésticas, exatamenteigual àquele que ela encontra para si no mural da cozinha <strong>de</strong> sua patroa.Sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a empregada conta com filhos jovens em casa, assugestões da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo se intensificam. Roupas <strong>de</strong> segundamão não satisfazem os moços num perío<strong>do</strong> da vida em que a beleza e amoda são tão importantes, até mesmo como elemento <strong>de</strong> sedução. Queremroupas <strong>de</strong> grife, aparelhos <strong>de</strong> som, televisores, vi<strong>de</strong>ocassetes, walkman,telefones celulares – produtos banais para os a<strong>do</strong>lescentes da casa da patroa.É na aquisição <strong>de</strong>sses itens que as trabalha<strong>do</strong>ras se endividam em crediá<strong>rio</strong>s<strong>de</strong> até 48 vezes.As <strong>do</strong>mésticas, como mulheres, também elaboram seus <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong>consumo feminino – fogão auto limpante, cortinas, colchas <strong>de</strong> matelassê,móveis novos (<strong>de</strong> preferência, tu<strong>do</strong> com muito brilho) – constituem-se, muitasvezes, nas metas em que o dinheiro da casa é aplica<strong>do</strong>. De on<strong>de</strong> retiram oconhecimento <strong>do</strong>s <strong>de</strong>talhes para compor tais <strong>de</strong>sejos? Além da televisão, dacasa da patroa. Pergunto-me, por exemplo, se to<strong>do</strong> o esforço para comporuma casa chique, como a <strong>de</strong> Claudina, também não é inspira<strong>do</strong> peloselementos provenientes da casa da patroa.Se, na aquisição <strong>de</strong> eletro<strong>do</strong>mésticos e móveis que algumasempregadas se esforçam para adquirir, po<strong>de</strong>mos encontrar aproximaçõescom a vida <strong>do</strong>s patrões, no padrão <strong>de</strong>corativo se revela a diferença. Naescolha <strong>de</strong> quais objetos servirão <strong>de</strong> enfeite e na forma como eles sãoarranja<strong>do</strong>s é que se <strong>de</strong>clara toda uma reelaboração, a qual não se limita a


179arranjar “pobremente” o mo<strong>de</strong>lo recebi<strong>do</strong> <strong>de</strong> cima. Os novos elementos serãoinseri<strong>do</strong>s na <strong>de</strong>coração e organização da casa da empregada <strong>do</strong>méstica <strong>de</strong>acor<strong>do</strong> com os códigos culturais que po<strong>de</strong>rão lhes dar senti<strong>do</strong> 103 .Não se po<strong>de</strong> negar que uma certa “imitação” da vida <strong>do</strong>s patrões toqueessas mulheres em algum ponto, mas, observan<strong>do</strong> o seu estilo estético, épossível ver algo mais <strong>do</strong> que tentativas <strong>de</strong> aproximação da vida <strong>do</strong>s ricos.Na casa <strong>de</strong> Amélia, como na <strong>de</strong> sua patroa, a garrafa térmica para além<strong>de</strong> sua serventia, satisfaz também necessida<strong>de</strong>s estéticas. Ela compõe a<strong>de</strong>coração em ambas cozinhas, mas não da mesma maneira. Na casa dapatroa, a garrafa térmica é colocada em uma ban<strong>de</strong>ja com os <strong>de</strong>maisapetrechos para servir o café, como se <strong>de</strong>sempenhasse um uso estritamentefuncional, mas que para além <strong>de</strong>le revela uma estética da organizaçãoplanejada, on<strong>de</strong> a beleza se <strong>de</strong>monstra sem excessos <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes emconsonância com to<strong>do</strong>s os outros objetos da cozinha. Já na casa <strong>de</strong> Amélia, aempregada, a garrafa térmica juntamente com uma lata vazia <strong>de</strong> sorvete,aparece assumidamente como enfeite. Ela está disposta em cima <strong>do</strong> fogão103 Apoian<strong>do</strong>-se na distinção weberiana <strong>de</strong> “ter” e “ser”, Bourdieu (1983) sugere que oconsumo e a estética são um campo no qual as elites tentam construir constantemente umadistinção, ao passo que os grupos populares buscam, através <strong>do</strong> consumo, uma simplesimitação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> das elites, sem, no entanto, conseguir reproduzir o ‘’gosto <strong>de</strong> classe”. Noque pese, estarmos discutin<strong>do</strong> aproximações e distanciamentos entre <strong>do</strong>minantes esubalternos a partir <strong>do</strong> mesmo fenômeno, nossa interpretação é outra. Tomamos o cuida<strong>do</strong>para não reduzir a prática e visão <strong>do</strong>s grupos populares a uma simples tentativa <strong>de</strong> copiar aestética <strong>do</strong>s <strong>do</strong>minantes. To<strong>do</strong> o esforço <strong>de</strong>ste trabalho tem procura<strong>do</strong> ir em direção contrária.


180Na casa da patroa a garrafa térmica éum elemento usa<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneirautilitária, on<strong>de</strong> sua expressão<strong>de</strong>corativa preten<strong>de</strong>-se manifestarsubliminarmente.FIGURA 24: “Domesticida<strong>de</strong> eEstética”. Autoria: Jurema Brites,Vitória; 1996; fonte: acervo pessoal;original colori<strong>do</strong>; tamanho 10x15;fotografia digitalizada no PhotoEditor.Na casa da empregada os utensílios da cozinha não são guarda<strong>do</strong>s emarmá<strong>rio</strong>s, não por falta <strong>de</strong> espaço <strong>de</strong>ntre <strong>de</strong>les, mas porque representamelementos <strong>de</strong>corativos que expõem o valor da <strong>do</strong>na da casa.FIGURA 25: “Domesticida<strong>de</strong> e Estética”. Autoria: Sandro José da Silva, Vitória; 1996;fonte: acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15, fotografia digitalizada noPhotoEditor.


181tampa<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>stacada pelo emprego <strong>do</strong>s guardanapos <strong>de</strong> crochê <strong>de</strong>cores contrastantes.Como é comum na casa das empregadas que pesquisamos, osutensílios, geralmente brilhan<strong>do</strong> <strong>de</strong> limpeza, estão sempre expostos, não porfalta <strong>de</strong> armá<strong>rio</strong>s (Amélia ganhou to<strong>do</strong>s os móveis da cozinha antiga <strong>de</strong> suapatroa Pilar), mas para mostrar o status <strong>de</strong> boa <strong>do</strong>na <strong>de</strong> casa, <strong>de</strong> mulherorganizada, caprichosa, on<strong>de</strong> o bom gosto <strong>de</strong> embelezar a casa se manifestana exposição <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os bens que a família se esforça para adquirir.Qualquer objeto funcional na casa da empregada é <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> como o que<strong>de</strong>ve ser mostra<strong>do</strong> – tanquinho, liqüidifica<strong>do</strong>r, garrafa térmica 104 .Outra presença constante na <strong>de</strong>coração da casa das empregadas quenos <strong>de</strong>ixa pistas sobre como os mesmos objetos po<strong>de</strong>m ser ressemantiza<strong>do</strong>sem espaços culturais distintos são os relógios musicais <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>.Diferentemente <strong>do</strong>s discretos relógios na pare<strong>de</strong> da cozinha da patroa, estessão expostos na casa sempre em locais <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, na peça mais nobre,bem no alto da pare<strong>de</strong>. Tratam-se <strong>de</strong> quadros-relógio, no qual uma gravuraintensamente colorida tematiza flores ou paisagens bucólicas. Geralmente nãosão compra<strong>do</strong>s pelas próprias <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa, são recebi<strong>do</strong>s como agra<strong>do</strong> <strong>do</strong>mari<strong>do</strong> ou <strong>de</strong> alguém muito queri<strong>do</strong> - um filho, uma comadre. Além <strong>de</strong> umobjeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>coração, também é significativo no que concerne às relações <strong>de</strong>gênero: é um presente para “mulheres <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa”. Tratar-se <strong>de</strong> umrelógio é igualmente expressivo. Como mostrou Alice Inês <strong>de</strong> Oliveira e Silva(1989), estudan<strong>do</strong> a seriação <strong>do</strong>s dias da semana expressos nosguardanapos <strong>de</strong> cozinha, o tempo é um elemento importante <strong>de</strong> organização<strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico. Po<strong>de</strong>mos supor que tem como objetivo a<strong>de</strong>quar adistribuição das tarefas <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> sua própria casa – elemento tãoimportante <strong>de</strong> suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s femininas – ao tempo restrito que lhes sobra<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter cuida<strong>do</strong> da casa <strong>de</strong> outra mulher.104 Ver Rial (1991) para uma análise <strong>de</strong> padrões estéticos muito semelhante entre grupospopulares <strong>de</strong> Santa Catarina.


182A <strong>de</strong>coração bem cuidadaFIGURA 26: “Casa Chique em Jardim Veneza”. Autoria: Sandro José da Silva; 1996; fonte:acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>, tamanho 10x15; fotografia digitalizada no Photo Editor.


183FIGURA 27: “Brilho nas panelas”.Autoria: Sandro José da Silva, Serra;1996; fonte: acervo pessoal; originalcolori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografiadigitalizada no Photo Editor.FIGURA 28: “Brilho nas panelas”.Autoria: Sandro José da Silva, Serra;1996; fonte: acervo pessoal; originalcolori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografiadigitalizada no Photo Editor.


184FIGURA 29: “Bombril nelas”. Autoria: Jurema Brites, Serra; 1998;fonte: acervo pessoal; original colori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15;fotografia digitalizada no Photo Editor.O brilho das “vasilhas” – atesta<strong>do</strong> <strong>de</strong> mulhercaprichosa - é exposto, manifestan<strong>do</strong> asrepresentações <strong>de</strong> <strong>do</strong>mesticida<strong>de</strong> da <strong>do</strong>na <strong>de</strong>casa nos bairros populares.FIGURA 30: “Brilho nas panelas”.Autoria: Sandro José da Silva, Serra;1996; fonte: acervo pessoal; originalcolori<strong>do</strong>; tamanho: 10x15; fotografiadigitalizada no Photo Editor.


185Essas diferenças <strong>de</strong> estilo – calcadas sobre concepções <strong>de</strong> <strong>do</strong>mesticida<strong>de</strong> –também têm repercussão na casa da patroa. Freqüentemente patroas eempregadas divergem sobre como dispor móveis e enfeites <strong>de</strong> maneiragraciosa. As empregadas mostram predileção por móveis coloca<strong>do</strong>senviesa<strong>do</strong>s nos cantos, o que para as patroas <strong>de</strong> classe média é o símbolo <strong>de</strong>toda “breguice” 105 .Assim, vimos na articulação <strong>do</strong> gosto <strong>de</strong>corativo das empregadas<strong>do</strong>mésticas e nas práticas <strong>de</strong> consumo um diálogo entre as imposições sociaise econômicas mais amplas e elaborações culturais próprias <strong>do</strong> que signifiqueo lugar da mulher no grupo familiar. Estas mulheres constróem suas própriascasas através <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> consumo importa<strong>do</strong> <strong>do</strong> confrontoexperiencia<strong>do</strong> na casa <strong>do</strong>s patrões, mas ressemantizam os objetos, conformeos gostos compartilha<strong>do</strong>s por ela e suas vizinhas.5.2 A patroa na vida íntima e familiar da empregada <strong>do</strong>mésticaSe, para meus informantes, a presença física <strong>de</strong> uma patroa na suamoradia era um evento quase inusita<strong>do</strong>, a presença simbólica da patroa – noque pese às relações entre a empregada e os <strong>de</strong>mais membros <strong>de</strong> sua família– é algo bastante corriqueiro. Essa presença não é sempre bem-vinda. Comovimos na “história <strong>de</strong> Ariadne” (p.161), existem certas áreas <strong>de</strong> suas vidasíntimas as quais as empregadas procuram <strong>de</strong>ixar resguardadas <strong>do</strong>conhecimento da patroa. A distância social e geográfica que a separa <strong>do</strong>sbairros nobres da cida<strong>de</strong> permite que a empregada tenha algum controlesobre as áreas da sua vida privada nas quais a patroa tem permissão <strong>de</strong>penetrar. Existem, entretanto, muitas ocasiões em que a patroa é chamada aser uma aliada <strong>de</strong> sua empregada, justamente para resolver problemas105 Sobre estilo <strong>de</strong>corativo <strong>de</strong> casas <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> baixa renda, ver também Leal (1981) XXX;Cal<strong>de</strong>ira (1984).


186<strong>do</strong>mésticos. Especialmente durante <strong>de</strong>terminada fase <strong>de</strong> seu ciclo <strong>de</strong> vida 106 ,quan<strong>do</strong> ainda está crian<strong>do</strong> muitas crianças pequenas, a empregada ten<strong>de</strong> aver sua patroa como uma alternativa importante.Sabemos que, nesta fase da vida, as mulheres <strong>do</strong>s grupos popularesnem sempre conseguem manter a regularida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> prove<strong>do</strong>r em casa(FONSECA, 1995; SARTI, 1989,) e, como <strong>de</strong>monstramos acima, mesmoquan<strong>do</strong> os casamentos são dura<strong>do</strong>uros, o pauperismo a que estãosubmeti<strong>do</strong>s os trabalha<strong>do</strong>res acaba não alivian<strong>do</strong> muito as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sustento e manutenção. Assim, viven<strong>do</strong> num país em que não se po<strong>de</strong>esperar assistência a<strong>de</strong>quada <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, é a patroa, sobretu<strong>do</strong> em situaçõesmuito extremas, que muitas vezes esten<strong>de</strong> a mão à empregada. O caso <strong>de</strong>Maria – representante sindical das empregadas <strong>do</strong>mésticas <strong>de</strong> Vitória – éexemplar. Quan<strong>do</strong> seu filho foi atropela<strong>do</strong> por um ônibus, o menino tevetraumatismo craniano e não havia possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tratamento no sistemapúblico <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Maria acionou, naquele momento, seus patrões que, comseu prestígio político, conseguiram que a empresa <strong>de</strong> transporte seresponsabilizasse por to<strong>do</strong> o tratamento hospitalar <strong>do</strong> menino.O suporte que muitas patroas representam na vida <strong>de</strong> suas empregadasacaba geran<strong>do</strong> conseqüências na intimida<strong>de</strong> familiar das últimas. Os mari<strong>do</strong>sdas empregadas, seguidamente, vêem nessas alianças patroa-empregada,mais <strong>do</strong> que ajuda, uma ameaça à sua autorida<strong>de</strong> no lar 107 . É através <strong>de</strong>stasque a empregada consegue prover as necessida<strong>de</strong>s básicas <strong>de</strong> sua família,cumprin<strong>do</strong> o papel <strong>de</strong> prove<strong>do</strong>r e tornan<strong>do</strong>, assim, a presença <strong>de</strong> seu mari<strong>do</strong>quase que supérflua. Quan<strong>do</strong> um filho a<strong>do</strong>ece ou a casa alaga, é com apatroa que a empregada po<strong>de</strong> procurar ajuda, muitas vezes com melhores106 Mace<strong>do</strong> (1979) introduziu este tipo <strong>de</strong> perspectiva no estu<strong>do</strong> da família <strong>de</strong> baixa renda, vertambém Bilac (1978). Para um questionamento meto<strong>do</strong>lógico <strong>do</strong> uso das noções <strong>de</strong> ciclo <strong>de</strong>vida nos estu<strong>do</strong>s da família brasileira, ver Brites(1993).107 Também não é incomum as <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa <strong>de</strong> classe média escon<strong>de</strong>rem a ajuda queprestam às empregadas <strong>de</strong> seus mari<strong>do</strong>s. Pilar pagou durante meses o tratamento <strong>de</strong> umaex-empregada acometida pela tuberculose, mas seu mari<strong>do</strong> não po<strong>de</strong>ria ser informa<strong>do</strong> sobretais <strong>de</strong>spesas. Para uma leitura feminista sobre dinheiro e as relações homem/mulher, vejaCoria (1992).


187re<strong>sul</strong>ta<strong>do</strong>s. É com ela também que po<strong>de</strong> conseguir um apoio moral contra aautorida<strong>de</strong> abusiva – as surras – <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Por isso, na casa da empregada,são <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> as críticas mais contun<strong>de</strong>ntes em relação à sua <strong>de</strong>pendênciada patroa: “Se ela fizer cocô ali na rua, aposto que tu vai corren<strong>do</strong> com umapá limpar”, reclamava um mari<strong>do</strong> <strong>de</strong>sgostoso <strong>de</strong> ver sua mulher se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brarpara aten<strong>de</strong>r aos chama<strong>do</strong>s da patroa.Os filhos das empregadas também experimentam <strong>gran<strong>de</strong></strong> ambivalênciafrente à situação da mãe. Uma situação <strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendência que, às vezes,acaba re<strong>sul</strong>tan<strong>do</strong> em ressentimentos ásperos, po<strong>de</strong> surgir no caso daquelaspatroas que, mais sensíveis às diferenças <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s as quais seusajudantes estão submeti<strong>do</strong>s, tentam ajudar aproximan<strong>do</strong> o filho da empregada<strong>de</strong> sua própria família. Permitem que a criança freqüente a sua casa, brinquecom seus filhos, compram-lhe roupas, propiciam-lhe escola. Conheci umapatroa que, inclusive, pagava seguro <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> priva<strong>do</strong> para o filho daempregada. O problema é que, muitas vezes, esse esforço <strong>de</strong> compensar a<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> não consegue se sustentar por muito tempo. Chegada aa<strong>do</strong>lescência, quan<strong>do</strong> estas crianças começam a <strong>de</strong>finir mais claramente suassubjetivida<strong>de</strong>s, elas não são facilmente aceitas pelo mesmo círculo social <strong>do</strong>spatrões. Um menino, filho <strong>de</strong> empregada que conheci, apesar <strong>de</strong> ter si<strong>do</strong>educa<strong>do</strong> na casa da patroa, não pô<strong>de</strong> cogitar namorar as amigas <strong>do</strong>s filhos <strong>do</strong>patrão. Assim, acabou voltan<strong>do</strong> à sociabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu bairro e, neste caso,com um sentimento reforça<strong>do</strong> <strong>de</strong> infe<strong>rio</strong>rida<strong>de</strong>. Outro rapaz que teveoportunida<strong>de</strong>s excelentes na casa <strong>de</strong> patrões muito ricos, chegan<strong>do</strong> mesmo aformar-se em curso técnico <strong>de</strong> nível supe<strong>rio</strong>r, parece, segun<strong>do</strong> me relatou afilha da patroa, sua ex-companheira <strong>de</strong> folgue<strong>do</strong>s infantis, “nunca terengrena<strong>do</strong> bem na vida”. Mesmo bem emprega<strong>do</strong> e já com <strong>do</strong>is filhos, é umapessoa muito <strong>de</strong>pressiva, esquiva <strong>do</strong> convívio social – principalmente dafamília para qual a mãe trabalha há 32 anos 108 .108 O afastamento <strong>do</strong>s filhos cresci<strong>do</strong>s da empregada da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> patronallembra-nos um movimento semelhante, <strong>de</strong>scrito no capítulo <strong>do</strong>is, quan<strong>do</strong> os pequenospatrões, a certa altura da vida, afastam-se da empregada. A partir <strong>de</strong>sse momento, mesmoquan<strong>do</strong> mantêm um relacionamento afetuoso com esta, redirecionam o lugar que ela ocupaem suas vidas.


188Essas histórias, contadas tanto por empregadas quanto por patroas,parecem ensinar a lição: é inútil pensar que se po<strong>de</strong> transgredir as normas,atravessan<strong>do</strong> fronteiras <strong>de</strong> classe. A atenção da patroa para com as criançasda empregada, justamente por não ter leva<strong>do</strong> a cabo promessas implícitas,po<strong>de</strong> surtir <strong>gran<strong>de</strong></strong>s críticas e ressentimentos (SCOTT, 1990). Não é, portanto,por acaso que quan<strong>do</strong> cresci<strong>do</strong>s, os filhos das empregadas censuram comtanta emoção a submissão materna. Indignam-se com a exploração que amãe sofre “cozinhan<strong>do</strong> para toda aquela gente”, “trabalhan<strong>do</strong> até altas horas,enquanto elas [as patroas] estão lá no cafezinho, na sesta, na ginástica…”Levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração estas críticas, não é surpreen<strong>de</strong>nte que asjovens <strong>do</strong> bairro afirmem, repetidamente, que não vão trilhar o mesmocaminho profissional que a mãe. Questiono-me, no entanto, se a recusa aoserviço <strong>do</strong>méstico não seria parte <strong>de</strong> uma ilusão juvenil. O alcance <strong>de</strong> minhapesquisa não permite dizer se as jovens têm efetivamente troca<strong>do</strong> o trabalho<strong>do</strong>méstico por outras alternativas, ao seu ver, menos custosas. Maslevantamos a hipótese <strong>de</strong> que, quan<strong>do</strong> elas próprias entrarem no ciclo dareprodução familiar, acabarão por assumir que, entre as alternativasdisponíveis para a mulher pobre, essa não é a pior. Ou talvez tenhamos quenos <strong>de</strong>bruçar com mais cuida<strong>do</strong> sobre a hipótese <strong>de</strong> Gilberto Velho (1996) <strong>de</strong>que vivemos um momento <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização em nossa socieda<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> o“individualismo” e a “impessoalida<strong>de</strong>” vieram substituir uma relação tradicionalbaseada em padrões clientelistas entre as classes sem, entretanto, oferecercondições concretas para que novos valores, menos injustos, possampromover melhores negociações entre <strong>de</strong>siguais.


1895.3 Uma patroa fora <strong>de</strong> lugarComo vimos acima, a patroa tem seu “<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> lugar” na casa dasempregadas – na estética ou nas eventuais alianças pragmáticas e afetivas.Trata-se <strong>de</strong> um lugar, sem dúvida, não sem ambivalências, on<strong>de</strong> as fronteirasentre a ajuda e a intromissão <strong>de</strong>vem ser constantemente negociadas. Masessa ambigüida<strong>de</strong> faz parte estrutural da relação. Por outro la<strong>do</strong>, a minhaestadia na vila foi algo completamente fora <strong>de</strong> propósito. Essa presençaestranha aos mol<strong>de</strong>s usuais <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> bairro <strong>de</strong>via ser barganhada acada instante.Durante o tempo em que morei no Jardim Veneza, jamais meu lugarsocial foi perdi<strong>do</strong> <strong>de</strong> vista. Tornei-me íntima <strong>de</strong> muitas pessoas, ouviconfidências e nos divertimos também; no entanto, mais que estrangeira, euraramente <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> ser patroa. Fui recebida com carinho e prestígio. Foi-meofereci<strong>do</strong> o melhor <strong>do</strong>s aposentos <strong>do</strong> grupo, era con<strong>sul</strong>tada sobre o quegostaria <strong>de</strong> comer e recebia visitas. Mas além <strong>de</strong> agradar meu paladar eproporcionar meu conforto, sabiam que eu estava pagan<strong>do</strong> as guarnições.Sem nunca pedir nada diretamente, as mulheres (principalmente) insinuavamsuas necessida<strong>de</strong>s. Na verda<strong>de</strong>, não pediam muitas coisas para si, mas não<strong>de</strong>ixavam <strong>de</strong> usufruir da fartura que uma “abonada” podia proporcionar entreeles. Compran<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> remédios para piolhos, clorofila e sacos <strong>de</strong> feijão, atéchuveiros elétricos, fui ven<strong>do</strong> meu dinheiro acabar até o último níquel. Noinício, culpada pela miséria <strong>do</strong>s meus amigos, eu mesma me oferecia parapagar as <strong>de</strong>spesas. Mas, no final, me sentia como Maybury-Lewis (1990)pagan<strong>do</strong> inúmeras vezes pelo mesmo ritual.A ambigüida<strong>de</strong> da convivência fraterna com uma “patroa fora <strong>do</strong> lugar”colocava-se nos mínimos <strong>de</strong>talhes <strong>do</strong> cotidiano – ora me aproximan<strong>do</strong>, ora meseparan<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>les. Seu Norberto e Edinha chegavam mais ce<strong>do</strong> paraos almoços na casa <strong>de</strong> Edilene, dizen<strong>do</strong> que era por causa <strong>do</strong> “bom papo”,mas <strong>de</strong>sconfio que também tinha algo a ver com a comida que, graças ao


190meu patrocínio, estava mais farta. Na hora <strong>do</strong> almoço, o reconhecimento dahierarquia reservava-me um lugar na minúscula mesa ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> SeuNorberto. Já Edilene e Edinha, juntamente com as crianças, comiam no chão.É claro que somente eu e meu filho recebíamos talheres.Não <strong>de</strong>vemos ler este relacionamento <strong>de</strong> maneira extremamentepragmática, tampouco exagerar na maquilagem romântica da situação.Aproveitar as oportunida<strong>de</strong>s que minha presença no bairro favorecia não setratava <strong>de</strong> um cálculo matemático e f<strong>rio</strong>. Assemelhava-se melhor ao que DeCerteau (1994) propõe como o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> táticas – atitu<strong>de</strong>s frente acertas ocasiões, quan<strong>do</strong> as relações <strong>de</strong> força <strong>de</strong> um relacionamento nãopo<strong>de</strong>m ser claramente calculadas. Os praticantes das táticas não têm controleda situação por inteiro, diferentemente daquele que emprega a estratégia.Através das táticas, as pessoas movem-se <strong>de</strong> maneira insinuada, num jogo <strong>de</strong>aparição e sombra com o movimento <strong>do</strong> outro, não dispon<strong>do</strong> <strong>de</strong> umaavaliação <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os ganhos que a operação po<strong>de</strong> trazer 109 .Assim interpreto as lembranças e esquecimentos quanto ao meu status<strong>de</strong> patroa no bairro: como táticas usadas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um jogo, no qual algunslances não estavam <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início. Muitas vezes meu lugar eraimediatamente recupera<strong>do</strong>, às vezes para sublinhar minha “dignida<strong>de</strong>supe<strong>rio</strong>r” – como quan<strong>do</strong> me apresentavam na Igreja como visitante ilustre ousuportavam minhas visitas em horas ina<strong>de</strong>quadas, às vezes para me forçar<strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> dádivas, as quais o public transcript <strong>de</strong> nossas relaçõesprescrevia. Não eram estratagemas para explorar a “otária”. A possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> eu oferecer alguma coisa, como disse acima, ou já estava prescrita nasregras <strong>do</strong> jogo entre subalternos e patrões, ou as pessoas <strong>do</strong> bairroaproveitavam uma situação pouco <strong>de</strong>finida para angariar algum proveito.Mas houve instantes – muito breves – em que fui colocada entre osiguais, quan<strong>do</strong> o roteiro público foi, por momentos, esqueci<strong>do</strong>: quan<strong>do</strong> Edilene109 Ver as <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> tática e <strong>de</strong> estratégia na introdução <strong>de</strong>sta tese.


191jogou as cascas no chão, por exemplo, ou no dia em que para repreen<strong>de</strong>rmeu filho <strong>de</strong> uma travessura, Edilene aplicou-lhe uma palmada, sem nemquestionar qual <strong>de</strong> nós duas tinha mais autorida<strong>de</strong> naquele caso.Se a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> feminina permitiu, muitas vezes, que a intimida<strong>de</strong> comas mulheres <strong>de</strong>ixasse mais tênue a diferença <strong>de</strong> status entre eu e elas, comos homens, essa diferença nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser marcada. Apesar <strong>de</strong>, pelaida<strong>de</strong> e condição <strong>de</strong> mulher <strong>de</strong>sacompanhada, eu cair na categoria <strong>de</strong>namorada em potencial, os olhares que os homens me dirigiam nunca eram<strong>de</strong>claradamente provocativos. Diferentemente <strong>do</strong> que faziam com outrasmulheres <strong>de</strong>sacompanhadas <strong>do</strong> bairro, pareciam sempre aguardar um sinal<strong>de</strong> permissivida<strong>de</strong> da minha parte 110 . O fato <strong>de</strong> nunca essas paquerastornarem-se assuntos <strong>de</strong> jocosida<strong>de</strong>, como era o costume entre as minhasamigas <strong>do</strong> bairro, indicava com clareza a falta daquela licença que seestabelece entre iguais 111 .Certa noite, fomos to<strong>do</strong>s a um comício no bairro – uma ocasião <strong>de</strong> festa<strong>de</strong> rua para os mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Jardim Veneza. As mulheres ficavam próximasaos mari<strong>do</strong>s, mas não exatamente junto a eles, pois esses formavam umgrupinho um pouco mais à frente. Entre os homens, encontrava-se Eltinho –único filho <strong>de</strong> Claudina que não morava no bairro – que viera para participarda festa. Eltinho andava <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> a outro <strong>do</strong> comício e a cada volta ofereciaalguma coisa (refrigerante, churrasquinho, uma voltinha <strong>de</strong> bicicleta) para meufilho, Ramirinho, até finalmente chegar a me oferecer cerveja. Felizmente, euhavia percebi<strong>do</strong> uma mulher com uma latinha <strong>de</strong> cerveja nas mãosconversan<strong>do</strong> animadamente com Tonho e Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> e, a julgar pelo silêncio edistância que Claudina e Edilene mantinham, percebi que este comportamentonão era muito bem aceito. Resolvi então ficar também entre as mulheres “<strong>de</strong>bem” e, resolven<strong>do</strong> não beber, agra<strong>de</strong>ci educadamente a oferta <strong>de</strong> Eltinho.Com este gesto, parece que finalmente recebi o reconhecimento <strong>de</strong> Tonho,que comentou com a mulher na volta para casa: “A Jurema é uma mulher <strong>de</strong>110 Sobre situações <strong>de</strong> sedução e trabalho <strong>de</strong> campo, confira Buffon (1992a e 1992b).111 Radcliff- Brown (1973), Lanna (1995).


192fé mesmo. Faz um mês que está longe <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e não bebeu, nem dançoucom ninguém”.Apesar <strong>de</strong> aprovada por Tonho, mais uma vez meu status “fora <strong>de</strong> lugar”ficava evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong>, pois era patente que nada “rolou“ porque eu era diferentedas outras mulheres <strong>de</strong>sacompanhadas. Possivelmente porque eu mesma,em ocasiões <strong>de</strong> liminarida<strong>de</strong>, trazia à tona com mais veemência meu hexiscorporal para fazer retornar minha posição <strong>de</strong> patroa e manter, assim, umaprecavida distância. Mas eu não era a única <strong>do</strong>na <strong>de</strong>ssa relação. É claro quea maioria <strong>do</strong>s homens era menos ingênuo que Eltinho e, portanto, quem <strong>de</strong>lesatrever-se-ia namorar a patroa <strong>de</strong> Edilene?Edilene e eu, no outro dia, morremos <strong>de</strong> rir <strong>do</strong> comentá<strong>rio</strong> <strong>de</strong> seu mari<strong>do</strong>,pois o que Tonho não sabia é que, assim que os homens se afastaram,Edilene e eu fomos atrás <strong>do</strong> caminhão <strong>de</strong> som on<strong>de</strong> encontramos todas asnossas amigas “<strong>de</strong>centes” beben<strong>do</strong>, fuman<strong>do</strong>, dançan<strong>do</strong> e contan<strong>do</strong> piadas.Durante o restante <strong>do</strong> meu tempo em Jardim Veneza, pela ambigüida<strong>de</strong><strong>de</strong> meu status – fui apreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o tipo <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> que os grupos subalternos<strong>de</strong>senvolvem longe daqueles que os exploram, pois, cansan<strong>do</strong> <strong>de</strong> manter asaparências, aos poucos revelam os “roteiros encobertos” (hid<strong>de</strong>n transcript)aos quais não tivera acesso ante<strong>rio</strong>rmente.Se num momento eu recebia <strong>de</strong>ferência, em outro, era afrontada ou<strong>de</strong>bochada. Quan<strong>do</strong> sugeri comprar água mineral para bebermos, pois ocólera estava nas vizinhanças, Tonho me replicou irreverente: “Por que tu nãomanda encanar água mineral na casa <strong>de</strong> to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> aqui?” Outra vez,chegan<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma longa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho pelo bairro, encontrei Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> eTonho beben<strong>do</strong> cerveja e saborean<strong>do</strong> “uma galinha frita”. Insistiram para euprovar, mas o sorriso nos seus olhos me fazia pensar que um trote vinha pelascostas. No fim, confessaram estar se divertin<strong>do</strong> com a minha repugnância.Estavam comen<strong>do</strong> um coelho que Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> havia consegui<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneirapouco clara em uma loja <strong>de</strong> produtos veteriná<strong>rio</strong>s. O tom <strong>de</strong>stes encontros


193oscilava entre brinca<strong>de</strong>ira carinhosa e <strong>de</strong>safio hostil. Eu tomava esses “ritos<strong>de</strong> iniciação” (pelos quais <strong>de</strong>via passar para ser tolerada no bairro) como umaentrada para os transcripts encobertos – aquelas atitu<strong>de</strong>s que os mora<strong>do</strong>res<strong>do</strong> bairro não mostrariam normalmente na presença <strong>do</strong>s patrões. O fato <strong>de</strong> euestar no territó<strong>rio</strong> <strong>de</strong>les não me tornava jamais um nativo, mas alterava obalanço <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r o suficiente para lhes permitir empurrar os limites <strong>do</strong>transcript encoberto. Transformavam um pequeno canto <strong>de</strong>ste em transcriptpúblico, estabelecen<strong>do</strong> regras levemente modificadas para a interação comesta “patroa”....é claro que a fronteira entre os roteiros públicos e encobertos éuma zona <strong>de</strong> constante luta entre os <strong>do</strong>minantes e os subordina<strong>do</strong>s– não trata-se <strong>de</strong> um muro sóli<strong>do</strong>. A capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s grupos<strong>do</strong>minantes <strong>de</strong> impor -- embora nunca totalmente -- a <strong>de</strong>finição econstituição <strong>do</strong> que consta como roteiro encoberto e daquilo que<strong>de</strong>ve ficar por trás <strong>do</strong>s basti<strong>do</strong>res, é -- como preten<strong>de</strong>mos mostrar --uma boa indicação <strong>do</strong> seu po<strong>de</strong>r. A luta incessante sobre taisfronteiras talvez seja a arena principal <strong>do</strong>s conflitos ordiná<strong>rio</strong>s, daformas cotidianas da luta <strong>de</strong> classe... 112 .Esse episódio lembrou-me <strong>do</strong>s mesmos talentos que Edilene <strong>de</strong>senvolvenos seus relacionamentos com as patroas. É uma empregada muitorequisitada. Excelente cozinheira, muito prestativa, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>-se seu carinhocom as crianças. Entretanto, as patroas <strong>de</strong>la que conheci costumavam sequeixar <strong>de</strong> um único senão no comportamento <strong>de</strong> Edilene: ela é uma daquelasempregadas que costuma “carregar” alguma coisa para casa. Na verda<strong>de</strong>, ascoisas supostamente furtadas são muito ínfimas (sabão, pó <strong>de</strong> café) etambém muito difícil <strong>de</strong> comprovar que seja ela a responsável pelo<strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong>sses materiais. Na maioria das vezes, esse “<strong>de</strong>talhe” é<strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong>, ante as qualida<strong>de</strong>s que apresenta. Uma única vez (durante apesquisa), essa <strong>de</strong>sconfiança assumiu contornos mais <strong>de</strong>lica<strong>do</strong>s, inclusivecom conseqüências sobre as repercussões <strong>de</strong>ssa pesquisa.112 …its os clear that frontier between the public and the hid<strong>de</strong>n transcript is a zone of constantstruggle between <strong>do</strong>minant and subordinate --not a solid wall. The capacity of <strong>do</strong>minant.groups to prevail -- though never totally--in <strong>de</strong>fining and constituting what counts as the thehid<strong>de</strong>n transcript and what as offstage is, as we shall we, no samall measure of theirpower.The unremitting struggle over such boundaries is perhaps the most vital arena forordinary conflict, for everyday forms of class struggle (SCOTT, 1995, p. 14)


194Uma família emprega<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> Edilene (<strong>do</strong> meu círculo <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s)resolveu que seus “carregamentos” haviam passa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s limites e resolveram<strong>de</strong>miti-la. A patroa, constrangida pela situação, preferiu passar o ato <strong>de</strong><strong>de</strong>missão para o esposo. Este, ao anunciar-lhe o fim <strong>do</strong> contrato e acertarto<strong>do</strong>s os pagamentos <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>s, procuran<strong>do</strong> esclarecer as coisas, perguntoulhe:“Edilene, você sabe por que estamos dispensan<strong>do</strong> seus serviços? Porquevocê roubou dinheiro que estávamos juntan<strong>do</strong> para nossa filha.” Edileneretrucou que era impossível ela ter cometi<strong>do</strong> tal furto, uma vez que elespróp<strong>rio</strong>s haviam quebra<strong>do</strong> o cofre on<strong>de</strong> o dinheiro se encontrava. O patrãocompletou: “A gente sabe que foi você. Jurema, em seu trabalho, mostra quetodas as empregadas roubam”. Edilene, ofendida, <strong>de</strong>sferiu-lhe o único golpeque possuía lembran<strong>do</strong> ao patrão que ele também vem <strong>de</strong> uma origemhumil<strong>de</strong>: “Exatamente como tua mãe, não é? Ela não trabalha até hoje como<strong>do</strong>méstica?” 113 . São em breves situações como estas que os códigosencobertos <strong>do</strong>s relacionamentos <strong>de</strong>scortinam a encenação enganosa.Este episódio é ilustrativo <strong>de</strong> quão perigoso é para os subalternosexplicitar suas táticas encobertas e explica <strong>de</strong> maneira exemplar porque oenfrentamento direto geralmente não é interessante. Edilene, embora tenharetira<strong>do</strong> sua espada da cinta neste enfrentamento com seu patrão, logoretornou ao evitamento habitual. Não voltou para cobrar seus direitostrabalhistas, como não contou para sua família que havia si<strong>do</strong> <strong>de</strong>mitida,mentin<strong>do</strong> que estava <strong>de</strong> férias.Neste mesmo senti<strong>do</strong> (<strong>de</strong> <strong>de</strong>smascaramento <strong>do</strong> roteiro público), uma dascenas mais revela<strong>do</strong>ras das quais participei ocorreu na minha segunda noiteem Jardim Veneza, quan<strong>do</strong> Edilene levou-me a visitar as amigas que eu ainda113 Esse episódio me foi conta<strong>do</strong>, em primeira mão, pela própria Edilene que, emboraressentida, esperou meses até que eu voltasse para Vitória para saber se eu dizia realmentetu<strong>do</strong> isso no artigo. Depois <strong>de</strong> lermos juntas o trabalho, perguntei-lhe por que havia <strong>de</strong>cidi<strong>do</strong>me receber em sua casa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>. “Eu pensei em me vingar <strong>de</strong> você”, explicouEdilene. “Pensei assim. Tomara que eu acerte na Tele-Sena. Aí eu comprava um cartãotelefônico <strong>de</strong> 50, sabe? Ligava pra você e pedia para você vir se hospedar aqui em casa. Equan<strong>do</strong> você chegasse eu tinha i<strong>do</strong> embora para a Bahia”.


195não havia reencontra<strong>do</strong>. Vimos Emen no pátio, lavan<strong>do</strong> pilhas <strong>de</strong> roupa, a<strong>de</strong>speito <strong>do</strong> adianta<strong>do</strong> da hora. Como ainda não tinha fotos <strong>de</strong> mulhereslavan<strong>do</strong> no tanquinho, pedi a Edilene para buscar a máquina fotográfica,guardada na casa <strong>de</strong>la.>7& W XH > ,HDepois <strong>de</strong> me fazer repetir duas vezes a mesma frase acompanhada <strong>de</strong>uma reverência inclinan<strong>do</strong> a cabeça, Edilene partiu em busca da máquina,porém não retornou, obrigan<strong>do</strong>-me a voltar sozinha por ruas e becos aindaestranhos para mim.Na bufonaria <strong>de</strong>sse ritual público <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempossamento, Edilene<strong>de</strong>monstra, como sugere o trabalho <strong>de</strong> James Scott (1990), o quanto a<strong>de</strong>ferência aos patrões não é um ato internaliza<strong>do</strong> <strong>de</strong> subserviência, mas, aocontrá<strong>rio</strong>, uma atitu<strong>de</strong> planejada <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong>.Ao to<strong>do</strong>, a distância colocada pelos mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> bairro frente a mimnão foram tão contun<strong>de</strong>ntes quanto aquelas <strong>de</strong>marcadas por meus amigos <strong>de</strong>Vitória quan<strong>do</strong> encontraram com meus novos amigos <strong>do</strong> Jardim Veneza. Oepisódio que vou relatar nos dá mostras <strong>de</strong> quanto a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> marca avida <strong>de</strong>ssas pessoas na socieda<strong>de</strong> brasileira, on<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> tornarem-semuito íntimas, <strong>de</strong>vem-se manter no seu lugar.Eu precisava fazer coisas burocráticas em Vitória. Assim, resolvi passaruma tar<strong>de</strong> na casa <strong>de</strong> uma amiga – pessoa muito próxima com quem já haviadividi<strong>do</strong> a moradia e que me <strong>de</strong>ixara uma chave. Edilene e Edinha logo seapresentaram para me acompanhar, aproveitan<strong>do</strong> para fazer um passeio nacida<strong>de</strong>. Colocaram roupas <strong>de</strong> sair, batom e lá fomos enfrentar o Transcol, oônibus que em 40 minutos nos <strong>de</strong>ixava perto <strong>do</strong> nosso <strong>de</strong>stino. Minha amiganão estava, mas graças à chave emprestada, pu<strong>de</strong>mos entrar. Eu fui logopara o computa<strong>do</strong>r resolver minhas coisas, enquanto Edinha sentou-se na


196sala. Edilene, mais experiente, aguardava na cozinha brincan<strong>do</strong> comRamirinho. Quan<strong>do</strong> minha amiga chegou, olhou friamente para a cena.Saben<strong>do</strong> que, antes <strong>de</strong> minha “amiga”, aquela a<strong>do</strong>lescente no sofá eracunhada da empregada, cumprimentou-a com tamanha altivez que sentimonoscompelidas a sair logo <strong>do</strong> local.Ten<strong>do</strong> me acostuma<strong>do</strong> a ser uma patroa “fora <strong>de</strong> lugar” – incômodatalvez, mas bem tolerada, na casa das empregadas, tinha entra<strong>do</strong> na ilusãoque talvez pu<strong>de</strong>sse haver a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma situação simétrica nas casasdas patroas. A reação <strong>de</strong> minha amiga trouxe-me abruptamente <strong>de</strong> volta àrealida<strong>de</strong>. Se, por diversos motivos, ten<strong>do</strong> a ver tanto com minhapersonalida<strong>de</strong>, quanto com meu status <strong>de</strong> patroa, eu era mais ou menosaceita no bairro, minhas amigas empregadas, por charmosas que fossem,nunca teriam livre trânsito no mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> minhas vizinhas.As situações contraditórias que procurei relatar na parte etnográfica<strong>de</strong>sta tese tiveram o objetivo <strong>de</strong> nos levar a pensar nas dimensões infrapolíticas(SCOTT,1990) que estão colocadas no nosso cotidiano mais íntimo eparticular. No capítulo <strong>do</strong>is, a observação da interação entre empregadas epatroas nos lares <strong>de</strong> classe média revelaram o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong>s códigosprescritos para o contato inter-classe no Brasil, em que relações afetuosasandam <strong>de</strong> par com a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. Já nesta parte da pesquisa, as tensõesinerentes da relação apontavam para a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> táticas sutis <strong>de</strong>insubordinação. Mas foi ao chegar na casa das empregadas que tornou-seclaro que a mistura <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e afeto – presente tanto nas relaçõesintra-familiares, como na relação empregada-patroa – não indicavanecessariamente a subserviência absoluta <strong>do</strong> subalterno. Pelo contrá<strong>rio</strong>,ten<strong>do</strong> episodicamente acesso aos roteiros encobertos (<strong>de</strong> mulheres longe <strong>de</strong>seus mari<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> empregadas longe das patroas), ficou claro que a submissãonormalmente <strong>de</strong>monstrada em situações hierárquicas não é sempre fruto <strong>de</strong>cumplicida<strong>de</strong> passiva. As piadas que traduzem elementos <strong>de</strong> antagonismo eressentimentos não anulam o teor afetivo das relações entre <strong>de</strong>siguais, massugerem que atrás da aparente <strong>de</strong>ferência <strong>de</strong>stes encontros existem não


197“atitu<strong>de</strong>s alienadas”, mas sim um espírito crítico bastante lúci<strong>do</strong>, acionan<strong>do</strong>estratégias para – <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s limites <strong>do</strong> status quo – tirar o máximo <strong>de</strong>benefício. A questão permanece: por que os subalternos – e nesse caso asempregadas – não acionam outras estratégias mais coletivas e“conseqüentes” para provocar modificações dura<strong>do</strong>uras na própria situação <strong>de</strong><strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>? Sem preten<strong>de</strong>r respon<strong>de</strong>r essa questão, nas consi<strong>de</strong>raçõesfinais refletiremos acerca das noções <strong>de</strong> clientelismo e cidadania, concebidasna prática política brasileira, na expectativa <strong>de</strong> que, ao compará-las com oselementos infra políticos observa<strong>do</strong>s na prática cotidiana das empregadas<strong>do</strong>mésticas, encontremos algumas pistas para esses impasses.


198CONSIDERAÇÕES FINAISEnquanto a bibliografia <strong>de</strong>nunciava que os patrões submetiam asempregadas a um sistema <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação perverso através das relaçõesclientelistas, eu encontrava, no meu trabalho <strong>de</strong> campo, evidências cada vezmais abundantes <strong>do</strong> quanto, pelo menos as empregadas <strong>do</strong>mésticas <strong>de</strong>Jardim Veneza, valorizavam este tipo <strong>de</strong> relacionamento. Nenhuma atitu<strong>de</strong>das patroas po<strong>de</strong>ria ser mais revoltante <strong>do</strong> que a “mesquinharia”. Não passaras roupas usadas das crianças para os filhos da empregada, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong>presentear a empregada com um sofá velho, renegar sobras <strong>de</strong> comida, oureclamar <strong>do</strong> sumiço <strong>de</strong> sabonete – to<strong>do</strong>s esses “presentes”, que os analistasarrolam como o “aviltante pagamento extra-salarial”, faziam, aos olhos dasempregadas, a diferença entre uma "boas patroa" e uma que erainsuportavelmente avarenta. Num horizonte cada vez mais marca<strong>do</strong> peloschama<strong>do</strong>s da participação política mo<strong>de</strong>rna, on<strong>de</strong> a <strong>de</strong>mocracia passa peloreconhecimento <strong>do</strong>s direitos <strong>de</strong> cada um, como encarar essas atitu<strong>de</strong>s semcon<strong>de</strong>ná-las ao anacronismo político? Meu dilema era <strong>de</strong>cidir se asempregadas <strong>do</strong>mésticas vivem em um universo político tão "atrasa<strong>do</strong>" quesão levadas a avaliar positivamente aquilo que os analistas consi<strong>de</strong>ramcompletamente negativo (ver, por exemplo, FARIAS, 1983; GODSMITH, 1993;LEÓN, 1993; MOTTA, 1977), ou se os relacionamentos clientelistas com ospatrões são, <strong>de</strong> fato, táticas que lhes possibilitam tirar o melhor proveitopossível <strong>de</strong> uma situação altamente <strong>de</strong>sfavorável.Para tentar respon<strong>de</strong>r a essa pergunta, fiz um longo percurso, cheio <strong>de</strong>percalços. Aliás, diz-se da tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> que é só quan<strong>do</strong> o estudantetermina que se dá conta <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria ter começa<strong>do</strong>. Foi durante oprocesso da pesquisa que fui me dan<strong>do</strong> conta da natureza ina<strong>de</strong>quada <strong>de</strong>uma série <strong>de</strong> conceitos giran<strong>do</strong> em torno da noção <strong>de</strong> cidadania – conceitosque, até aquele momento, tinham me pareci<strong>do</strong> pertinentes. Talvez aqui,


199<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter leva<strong>do</strong> o leitor pelos caminhos da pesquisa etnográfica que eutrilhei, seja o lugar apropria<strong>do</strong> para expor as fases da minha trajetóriaintelectual. Já, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da pesquisa, vi que as críticas usuais dirigidasàs práticas "clientelistas" não esclareciam muito daquilo que queria enten<strong>de</strong>r,mas constituiam-se num ponto <strong>de</strong> partida para a construção <strong>de</strong> meu objeto.Passei também pela noção <strong>de</strong> bilinguismo à la Bakhtin, que parecia darmelhor conta da dinâmica semi-autônoma da cultura popular que eu pretendiaretratar, mas <strong>de</strong> novo, aos poucos, fui fican<strong>do</strong> insatisfeita com o que pareciacada vez mais uma análise que não levava em conta, <strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>quada, aquestão da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> política. Foi passan<strong>do</strong> por essas tentativas e errosque cheguei em teóricos tais como S. Colen, E.P. Thompson e J. Scott. Nesteúltimo capítulo, seria interessante expor o meu percurso, não somente paramelhor respon<strong>de</strong>r às perguntas que me coloquei, mas também para melhor<strong>de</strong>finir por on<strong>de</strong> começar a próxima vez, isto é para traçar pistas para futuraspesquisas.Do clientelismo à reprodução estratificadaUm <strong>do</strong>s traços aponta<strong>do</strong>s como característicos da cultura políticabrasileira, não apenas <strong>do</strong>s grupos populares, tem si<strong>do</strong> – nas análisestradicionais – o clientelismo (NUNES LEAL, 1975; LANNA, 1995). Em umaleitura que não é apenas acadêmica, mas também parte <strong>do</strong> senso comum, oclientelismo é interpreta<strong>do</strong> como a expressão mais acabada <strong>de</strong> uma herançatradicional, quase que fora <strong>de</strong> lugar, não fossem as contradições quepersistem em nosso país, fazen<strong>do</strong> conviver um mun<strong>do</strong> “arcaico” com ummun<strong>do</strong> “mo<strong>de</strong>rno”.Cabe lembrar que o clientelismo é um conceito usa<strong>do</strong> já na socieda<strong>de</strong>romana antiga para <strong>de</strong>screver as relações assimétricas entre patrícios eplebeus, num contexto on<strong>de</strong> a família patriarcal <strong>de</strong>sempenhava funções queultrapassavam as <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Esse conceito foi recupera<strong>do</strong> e tomou força na


200sociologia americana das décadas <strong>de</strong> 60 e 70, quan<strong>do</strong> muitos intelectuais seenvolveram com projetos “<strong>de</strong>senvolvimentistas" para o Terceiro Mun<strong>do</strong>. Como olhar profundamente marca<strong>do</strong> pela noção <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> que traziam <strong>de</strong>seu próp<strong>rio</strong> mun<strong>do</strong>, estes cientistas sociais criaram dicotomias para explicar o“atraso” <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas socieda<strong>de</strong>s em relação à "mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>", porexemplo, da América <strong>do</strong> Norte. As relações personalistas aqui observadaseram relacionadas a uma carência <strong>de</strong> formalizações institucionais, as quaisum Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>senvolver (LEEDS, 1977; FOSTER, 1961).Mesmo que esta visão evolucionista não fosse tão explicitamenteexpressa, pretendia-se expor uma situação política não reconhecida nospaíses anglo-saxãos, on<strong>de</strong> as articulações políticas são supostamenteelaboradas a partir <strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong>s e não a partir <strong>de</strong> arranjos pessoaliza<strong>do</strong>s.Entre as características da política baseada na coletivida<strong>de</strong> está a suposição<strong>de</strong> uma organização impessoal, on<strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s indivíduos envolvi<strong>do</strong>s serábeneficia<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira similar a to<strong>do</strong>s os outros. O outro mo<strong>de</strong>lo ("arcaico")pressupõe um sistema <strong>de</strong> trocas assimétricas e estruturadas a partir <strong>de</strong>relações pessoais ou “relações diádicas" (LANDE, 1977).O trabalho <strong>de</strong> Shellee Colen, embora não trate diretamente <strong>do</strong> problema<strong>de</strong> clientelismo, traz uma <strong>de</strong>smistificação primorosa <strong>do</strong>s princípios maisetnocêntricos <strong>de</strong>ssa teoria pois, a partir <strong>de</strong> seu estu<strong>do</strong> sobre empregadas<strong>do</strong>mésticas no coração <strong>do</strong> Primeiro Mun<strong>do</strong> (Nova Iorque), mostra que asrelações clientelistas funcionam para ambas as partes. As caribenhas sãopreferidas exatamente porque (ao contrá<strong>rio</strong> <strong>de</strong> mulheres pobres nascidas nosEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s) aceitam as longas horas, afastamento <strong>de</strong> suas própriasfamílias, e relações carinhosas com as crianças cobradas pelas patroas.Estas, por sua vez, são mulheres americanas <strong>de</strong> alto po<strong>de</strong>r aquisitivo que nãopo<strong>de</strong>riam ter carreiras <strong>de</strong> tanto êxito se não contassem com estas babás. Pelanoção <strong>de</strong> reprodução estratificada, Colen mostra como relações clientelistasse inserem perfeitamente no sistema mundial contemporâneo, reproduzin<strong>do</strong><strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s em termos <strong>de</strong> gênero, raça e em uma dimensão transnacional.


201Na verda<strong>de</strong>, a visão binária que separa atitu<strong>de</strong>s arcaicas <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>smo<strong>de</strong>rnas <strong>de</strong> participação política tem si<strong>do</strong> bastante <strong>de</strong>sconstruída peloscríticos da world system theory (ver SALHINS, 1992, e, para uma discussãocentrada no Brasil, LANNA, 1995). Estes, tal como Colen, procuram se afastar<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los interpretativos generalizantes, calca<strong>do</strong>s na realida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s paísescentrais. Destacam a importância <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s locais não apenas para oreconhecimento da diversida<strong>de</strong>, mas também para que esses novos da<strong>do</strong>ssirvam para repensar os preceitos analíticos utiliza<strong>do</strong>s para estudar asrelações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre as socieda<strong>de</strong>s.Citemos o exemplo <strong>de</strong> Geert Banck (1999), antropólogo holandês comlonga experiência no Espírito Santo. Este pesquisa<strong>do</strong>r estuda as raízes <strong>do</strong>clientelismo no Brasil, sugerin<strong>do</strong> que as análises clássicas voltadas para estetema têm trazi<strong>do</strong> certa imprecisão, pois misturam <strong>do</strong>is campos <strong>de</strong> ação erepresentação distintos: um é aquele que se refere às relações interpessoais eoutro é o da relação entre políticos e seus eleitores. Segun<strong>do</strong> Banck, noBrasil, estes campos nem sempre se misturam, sen<strong>do</strong> comum a <strong>de</strong>sconfiançapopular com tu<strong>do</strong> que se <strong>de</strong>nomina “político”, contrastan<strong>do</strong> com a confiançaque se <strong>de</strong>posita nas relações clientelistas que envolvem parentes, vizinhos epatrões.Fruto da combinação <strong>de</strong> paradigmas da Ciência Política e daAntropologia, esse conceito, para o antropólogo, acaba por se auto<strong>de</strong>squalificarquan<strong>do</strong>, no lugar <strong>de</strong> explicar, simplesmente imputa às práticas<strong>de</strong>nominadas "clientelistas" o adjetivo <strong>de</strong> “arcaicas” e “provincianas” (BANCK,1999, p.104). O que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas análises é uma suposição <strong>de</strong> queestas práticas se gestaram no contexto rural e que ao serem transpostas parao mun<strong>do</strong> urbano con<strong>de</strong>nam essas socieda<strong>de</strong>s à estagnação. Banckargumenta que “práticas clientelistas” não estiveram confinadas a áreas ruraisno passa<strong>do</strong>; antes, eram comuns na elite comercial exporta<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Brasilimperial. Rediscutin<strong>do</strong> esse conceitos e as relações que ele supõe, Banckconsi<strong>de</strong>ra,


202O processo político brasileiro era e é muito dinâmico, e atualmentetrata-se <strong>de</strong> uma bem elaborada <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> massa. Se existemdilemas, arraiga<strong>do</strong>s no seu passa<strong>do</strong> ou na sua cultura política, estaúltima não <strong>de</strong>veria ser vista como uma tabula rasa para aincapacida<strong>de</strong> estática, mas antes como um repertó<strong>rio</strong> cultural para amudança (1999, p.107) 114 .Nesta perspectiva, parece-me importante manter uma perspectiva críticasobre as categorias que até hoje <strong>de</strong>terminaram as representações dasempregadas <strong>do</strong>mésticas, procuran<strong>do</strong> reconhecer nas categorias êmicas umsenti<strong>do</strong> propositivo e não um anacronismo político.Do bilingüismo a um campo <strong>de</strong> forças "<strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong> <strong>de</strong> toda illusão"Outro ponto <strong>de</strong> interrogação já <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> no início <strong>de</strong>sta pesquisa diziarespeito ao trabalho <strong>de</strong> Pierre Bourdieu. Po<strong>de</strong>ríamos ter sublinha<strong>do</strong> a imitação<strong>de</strong> códigos culturais <strong>do</strong>s patrões por parte das empregadas, como umprocesso <strong>de</strong> reprodução da cultura <strong>do</strong>minante. Verificamos certas tentativas<strong>de</strong> aproximações ao estilo <strong>de</strong> vida <strong>do</strong>s patrões, especialmente em famílias <strong>de</strong>empregadas <strong>do</strong>mésticas ascen<strong>de</strong>ntes. Porém, comparan<strong>do</strong> as práticascotidianas <strong>de</strong> organização <strong>do</strong> espaço <strong>do</strong>méstico na casa <strong>de</strong> patroas e na casa<strong>de</strong> empregadas (os circuitos <strong>de</strong> ajuda mútua, as relações <strong>de</strong> gênero e até a<strong>de</strong>coração das casas), ficava evi<strong>de</strong>nte que as influências da cultura <strong>do</strong>sgrupos populares não <strong>de</strong>via ser subestimada. Parecia existir uma margem<strong>gran<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> operação com códigos culturais próp<strong>rio</strong>s <strong>do</strong>s grupos populares; não<strong>de</strong> forma autônoma, mas também não totalmente subjugada aos padrões<strong>do</strong>minantes.114 The Brazilian political process was and is highly dynamic, and at present it is a fully-fledgedmass <strong>de</strong>mocracy. If there are dilemas, rooted in its own past and political culture, the lattershould not be taken as a tabula rasa for static incapacity, but as a culture repertoire for change(1999, p.107).


203Procuran<strong>do</strong>, por assim dizer, marcar uma distinção entre nossa linha <strong>de</strong>investigação e a <strong>de</strong> Bourdieu, consi<strong>de</strong>ramos, durante algum tempo, o conceito<strong>de</strong> bilingüismo <strong>de</strong> Bakhtin (1987) um bom caminho para <strong>de</strong>screver ocomportamento, as ativida<strong>de</strong>s e as elaborações das empregadas <strong>do</strong>mésticasna socieda<strong>de</strong> brasileira atual. Estudan<strong>do</strong> a interação entre a nobreza e osplebeus na Ida<strong>de</strong> Média e no Renascimento, o autor diz que a nobreza,naquela época, era bilíngüe. Referia-se à maestria que os nobres possuíamda tradição da cultura popular, o que lhe possibilitava não apenas umainterpretação <strong>de</strong> seu linguajar, ritos e manifestações, como permitia trocas ecomunicabilida<strong>de</strong> entre esses estratos da socieda<strong>de</strong>, num relacionamentomais estreito <strong>do</strong> que se verifica hoje, entre a elite e os grupos populares.Pelas características que o serviço <strong>do</strong>méstico tomou na socieda<strong>de</strong>urbana atual, pensávamos que, <strong>de</strong> uma certa forma, as empregadas<strong>do</strong>mésticas é que mantinham essa característica <strong>de</strong> bilingüismo. Elastransitam em mun<strong>do</strong>s bastante diferentes – aquele <strong>de</strong> seu cotidiano <strong>do</strong>mésticoe o <strong>de</strong> seus patrões. Diariamente entram nos lares da classe média e alta e,pela natureza <strong>do</strong> trabalho que executam, acabam conhecen<strong>do</strong> os <strong>de</strong>talhesmais íntimos <strong>de</strong>ssas famílias. Passam os dias inteiros <strong>de</strong> trabalho assistin<strong>do</strong>,conviven<strong>do</strong> e participan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> on<strong>de</strong> os valores e a organização<strong>do</strong>méstica são outros daqueles <strong>de</strong> on<strong>de</strong> elas provêm. Em suma, osemprega<strong>do</strong>s, sobretu<strong>do</strong> aqueles que trabalham no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico,conhecem o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida <strong>do</strong>s patrões. Os patrões, por seu turno, no mun<strong>do</strong>urbano mo<strong>de</strong>rno, afastaram-se muito <strong>do</strong>s seus emprega<strong>do</strong>s. Se bem quepadrões <strong>de</strong> paternalismo, característico <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> rural, persistam em muitossetores da vida nas cida<strong>de</strong>s, efetivamente o contato entre as classesmu<strong>do</strong>u 115 . Patrões hoje po<strong>de</strong>m escutar os relatos <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res sobre seucotidiano, entretanto não conhecem pessoalmente suas casas, não sabem115 Anthony Gid<strong>de</strong>ns (1991) analisa as mudanças em termos <strong>do</strong> exercício da autorida<strong>de</strong> namo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, mostran<strong>do</strong> que a urbanização trouxe consigo um afastamento da pessoalida<strong>de</strong>das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. O po<strong>de</strong>r distancia-se <strong>de</strong> algo palpável nas relações pessoais e passapara uma esfera abstrata, longe da interferência direta <strong>do</strong>s atores envolvi<strong>do</strong>s nas relações <strong>de</strong><strong>do</strong>minação. Notadamente, esse “<strong>de</strong>sencaixe”, para usar os termos <strong>do</strong> autor, interfere nalógica <strong>do</strong> paternalismo por dificultar as relações pessoais.


204quem compõe sua unida<strong>de</strong> <strong>do</strong>méstica e não tomam mais seus filhos comoafilha<strong>do</strong>s 116 . Portanto, nosso raciocínio era <strong>de</strong> que, ao avesso <strong>do</strong> contexto daIda<strong>de</strong> Média, aqui quem estaria ten<strong>do</strong> maiores chances <strong>de</strong> navegar por estes<strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s, era a “plebe” e não a “nobreza”. Através <strong>do</strong> trânsito entre aspráticas e os valores que vivenciavam entre seu universo cultural e o <strong>do</strong>spatrões, parecia-nos que empregadas <strong>do</strong>mésticas eram capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrarcódigos diferentes <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> organização familiar, <strong>de</strong>concepções <strong>de</strong> organização e limpeza.Aos poucos, no entanto, o conceito <strong>de</strong> bilingüismo foi mostran<strong>do</strong>-seina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>, em primeiro lugar porque existiam espaços nos quais asempregadas <strong>do</strong>mésticas manifestamente não <strong>do</strong>minavam os códigos. Porexemplo, nenhuma empregada que estu<strong>de</strong>i saberia passar <strong>de</strong>sapercebida sefosse assistir a uma peça no teatro municipal ou se <strong>de</strong>cidisse simplesmentejantar num bom hotel. Sua habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lidar com algumas regras no espaço<strong>do</strong>méstico das classes <strong>do</strong>minantes não fazia <strong>de</strong>la uma pessoa "bilíngüe"nesse senti<strong>do</strong>.Em segun<strong>do</strong> lugar, apesar <strong>de</strong> ressaltar a diversida<strong>de</strong> cultural, o conceito<strong>de</strong> bilingüismo não leva em conta a profunda <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> que rege asrelações entre as classes. Neste senti<strong>do</strong>, Thompson (1979), mais uma vez,parecia fornecer uma saída melhor. Na sua <strong>de</strong>scrição das relaçõespaternalistas que se estabeleciam entre a “gentry” e os “plebeus” ingleses noséculo XVIII, chama atenção para um processo muito semelhante ao que nosobservamos hoje na socieda<strong>de</strong> brasileira. Mostra as estruturas <strong>de</strong>finidas pelahegemonia da gentry, mas completa colocan<strong>do</strong> em questão o que ahegemonia não pressupõe:116 Fonseca e Brites (1990) analisam crité<strong>rio</strong>s <strong>de</strong> escolha <strong>de</strong> padrinhos ao longo <strong>de</strong> gerações<strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res urbanos com maior ou menor tempo <strong>de</strong> migração. Verificam que ocompad<strong>rio</strong> tem muda<strong>do</strong> <strong>de</strong> um padrão vertical (segun<strong>do</strong> o qual pobres escolhiam umcompadre entre seus patrões) para um padrão horizontal, pois as famílias da atualida<strong>de</strong> não<strong>de</strong>sfrutam mais da mesma intimida<strong>de</strong> com membros da classe patronal.


205No supone la admisión por parte <strong>de</strong> los pobres <strong>de</strong>l paternalismo enlos propios términos <strong>de</strong> la gentry o en la imagem ratificada que éstatenía <strong>de</strong> sí misma. Es posible que los pobres estuvieran dispuestosa premiar con su <strong>de</strong>ferencia a la gentry, pero sólo a un cierto precio.El precio era substancial. Y la <strong>de</strong>ferencia estaba a menu<strong>do</strong> privada<strong>de</strong> toda ilusión: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> abajo podía consi<strong>de</strong>rarse en parte necessáriapara La autoconservación, en parte como la extracción calculada <strong>de</strong>to<strong>do</strong> lo que pudiera extraerse. Visto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esta perspectiva, lospobres impusieron a los ricos <strong>de</strong>beres y funciones paternalistas,tanto como se les imponía a ellos la diferencia. Ambas partes <strong>de</strong> laecuación estaban restringidas a um mismo campo <strong>de</strong> fuerza(THOMPSON, 1979, p.104).O jogo embuti<strong>do</strong> nas relações paternalistas, típica das relações entreempregadas <strong>do</strong>mésticas e seus patrões em nossa socieda<strong>de</strong>, é um exemploon<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos encontrar trocas semelhantes a estas <strong>de</strong>scritas por Thompson.As estruturas que or<strong>de</strong>nam a contratação/ prestação <strong>de</strong>sses serviços sãomarcadas fortemente pelos grupos <strong>do</strong>minantes que estabelecem preços <strong>do</strong>serviço <strong>do</strong>méstico e exigem atitu<strong>de</strong>s servis <strong>de</strong> seus emprega<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>marcan<strong>do</strong>sempre relações hierárquicas. Por seu la<strong>do</strong>, as empregadas retiram <strong>de</strong>ssesistema muito mais <strong>do</strong> que legitimamente ele oferece. Materialmente<strong>de</strong>sfrutam da circulação <strong>de</strong> patrimônio, seja através <strong>do</strong>s presente recebi<strong>do</strong>s,seja através <strong>do</strong>s furtos, lançan<strong>do</strong> mão <strong>do</strong> mesmo referencial i<strong>de</strong>ológico <strong>do</strong>spatrões: agem com esperteza. Em troca, <strong>de</strong>volvem-lhes servilida<strong>de</strong>, prestígioe amiza<strong>de</strong>, completan<strong>do</strong> o círculo <strong>de</strong> dádiva-<strong>do</strong>m. Trata-se <strong>de</strong> uma trocasocial, como diz Thompson, "<strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> ilusões", on<strong>de</strong> ambos os la<strong>do</strong>sestavam obriga<strong>do</strong>s a se mover num "mesmo campo <strong>de</strong> forças".Dos roteiros encobertos à cidadania contextualizadaOs ritos <strong>de</strong> interação entre a gentry e os plebeu <strong>de</strong>scritos porThompson assemelham-se aos roteiros públicos (public transcript), conceitocunha<strong>do</strong> por J. Scott. O interesse <strong>de</strong>ste último teórico, além <strong>de</strong> ter trazi<strong>do</strong>noções <strong>de</strong> Thompson para o estu<strong>do</strong> etnográfico <strong>de</strong> acontecimentos


206contemporâneos, se encontra principalmente na sua insistência em combaternoções simplistas <strong>de</strong> hegemonia. Como Thompson, Scott afirma que, atrás<strong>do</strong>s comportamentos aparentemente amistosos <strong>do</strong>s plebeus, é possíveladivinhar atitu<strong>de</strong>s críticas, até hostis. Em outras palavras, <strong>de</strong>ferência nãosignifica submissão. A abordagem <strong>de</strong> Scott pressupõe que, "atrás <strong>do</strong>sbasti<strong>do</strong>res", quan<strong>do</strong> subalternos <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> seguir as regras <strong>do</strong> roteiro público,expressam atitu<strong>de</strong>s bem menos reverentes em relação a seus supe<strong>rio</strong>res. Se,na <strong>gran<strong>de</strong></strong> maioria das vezes, os mais fracos não usam o enfrentamento diretoou práticas organizadas <strong>de</strong> reação à <strong>do</strong>minação, não é por concordarempassivamente com o sistema. É, pelo contrá<strong>rio</strong>, justamente porque taisestratégias seriam relativamente ineficazes, senão inúteis ou até suicidas. Amaneira <strong>do</strong>s subalternos agirem sabiamente, minimizan<strong>do</strong> seus prejuízos, éoperan<strong>do</strong> nas brechas, usan<strong>do</strong> astúcia para burlar, antes <strong>do</strong> que <strong>de</strong>rrubar, osistema.Trata-se <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> participação política que, na maior parte daliteratura, é colocada como oposta à cidadania. Nos últimos anos, porém,alguns antropólogos têm repensa<strong>do</strong> esse tipo <strong>de</strong> dicotomia, propon<strong>do</strong> que, noseu lugar, pensemos na contextualização da própria noção <strong>de</strong> cidadania.Estes pesquisa<strong>do</strong>res têm se <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> a refletir sobre setores dasocieda<strong>de</strong> brasileira on<strong>de</strong> valoriza-se relações menos marcadas pelo i<strong>de</strong>á<strong>rio</strong>mo<strong>de</strong>rno, isto é, on<strong>de</strong> o valor básico promulga<strong>do</strong> não é necessariamente o daigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direitos. No lugar <strong>de</strong> propor uma integração <strong>do</strong>s subalternos aosmo<strong>de</strong>los <strong>do</strong>minantes, ou tomar essas “resistências” como conserva<strong>do</strong>rismoou ignorância política, eles têm procura<strong>do</strong> reconhecer, no “ponto <strong>de</strong> vistanativo”, críticas a um projeto monolítico <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização política.Segato, (1995), <strong>de</strong>screven<strong>do</strong> as características e ações <strong>do</strong>s Orixás quecompõem o panteon afro-brasileiro, assim como as simpatias <strong>do</strong>s a<strong>de</strong>ptospelos seus <strong>de</strong>uses, indica uma leitura crítica <strong>do</strong>s padrões <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nossasocieda<strong>de</strong>. Mostra que os a<strong>de</strong>ptos <strong>do</strong> Xangô <strong>do</strong> Recife, elegem como osprediletos <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>voção Xangô e Oxum. Ambos Orixás são <strong>do</strong>nos <strong>de</strong>


207personalida<strong>de</strong>s e atitu<strong>de</strong>s muito especiais. Xangô é o Orixá mais malicioso eoportunista <strong>do</strong> panteon, lançan<strong>do</strong> mão <strong>de</strong> estratégias astutas para conseguir,da maneira mais fácil, aquilo que <strong>de</strong>seja. Oxum, por sua vez, correspon<strong>de</strong> àfeminilida<strong>de</strong> frívola, acostumada ao luxo e ao conforto, mas que afetivamenteé muito con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte com seus filhos. Contrastan<strong>do</strong> com a simpatia quesente por estas entida<strong>de</strong>s, o povo <strong>de</strong> santo nutre <strong>de</strong>sconfiança ante o po<strong>de</strong>rlegítimo que Iemanjá – a rainha-mãe – possui. Iemanjá é consi<strong>de</strong>rada fria efalsa. Defen<strong>de</strong> seus protegi<strong>do</strong>s, passan<strong>do</strong> por cima da lei e, para esquivar-se<strong>do</strong>s ataques ao seu po<strong>de</strong>r, semeia a intriga entre seus oponentes. A Oxalá,pai <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o panteon, os fiéis reservam respeito, mas o vêem como um velhoque não é mais <strong>do</strong>no <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r. Em outras palavras, o casal funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Panteon – os quais representam o po<strong>de</strong>r instituí<strong>do</strong> – não é muito aprecia<strong>do</strong>entre os filhos <strong>de</strong> santo. Descreven<strong>do</strong>, assim, as representações acerca <strong>do</strong>sOrixás, Segato aponta para uma visão muito sagaz que esta população<strong>de</strong>senvolve, tanto sobre a política nacional, quanto sobre a posição que eles<strong>de</strong>têm neste mun<strong>do</strong>.Nessa mesma linha <strong>de</strong> investigação, Regina Novaes (s/d; 1995),discordan<strong>do</strong> da apreciação que se difundiu a respeito <strong>do</strong> “conserva<strong>do</strong>rismo”das religiões pentecostais, mostra como estas incorporam elementossimbólicos muito próximos ao i<strong>de</strong>á<strong>rio</strong> mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>. Ao promoveremuma “separação entre as coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” e as <strong>de</strong> Deus, os pentecostaisconstróem uma proposta <strong>de</strong> vida, um mo<strong>de</strong>lo que dignifica a vida <strong>do</strong> pobre. Aspráticas políticas <strong>do</strong>s grupos pentencostais, sugere a autora, antes <strong>de</strong>representarem alienação diante das coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, pautam-se numaprodução <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> que p<strong>rio</strong>riza a dimensão religiosa da realida<strong>de</strong>. Entreeles, a experiência política é encompassada pela religiosida<strong>de</strong>. Assim, osseus posicionamentos políticos respeitam os princípios consonantes com as<strong>de</strong>mais representações <strong>do</strong> grupo, cujo comprometimento com a fé sesobrepõe a uma inserção racionalista na vida. Dessa forma, sacralizam apolítica. Em contraste com este tipo <strong>de</strong> inserção política, Novaes mostra comoa proposta <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> ação da CEBs (Comunida<strong>de</strong>s Eclesiais <strong>de</strong> Base) –que representa a experiência <strong>de</strong> polarização das alas progressistas da Igreja


208Católica – é <strong>de</strong> politizar a religião, trazen<strong>do</strong> a "luci<strong>de</strong>z mo<strong>de</strong>rna" aos homens<strong>de</strong> fé.No âmbito da religião, estes estu<strong>do</strong>s apontam para o questionamento <strong>do</strong>senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> “politização” que tem constituí<strong>do</strong> a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> cidadania,indican<strong>do</strong> que muitas perspectivas populares são rejeitadas enquantoexpressão <strong>do</strong> campo político.Corroboran<strong>do</strong> estas preocupações, Carvalho (1987), ao examinarparticipação popular no advento da República, <strong>de</strong>svenda um i<strong>de</strong>á<strong>rio</strong> libertá<strong>rio</strong>da elite que não era partilha<strong>do</strong> pela população em geral. Em contrapartida, asmanifestações populares eram <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>radas na construção da"<strong>de</strong>mocracia". Os valores políticos que se estabeleceram com a República,muito afasta<strong>do</strong>s das representações populares, eram, para o historia<strong>do</strong>r, umaimposição das elites. Assim, ele propõe que, em vez <strong>de</strong> surgir uma<strong>de</strong>mocracia – um espaço público em que cada um podia participar enquantocidadão – fora construí<strong>do</strong> uma "estadania".Estes autores vêm chaman<strong>do</strong> a atenção para o fato <strong>de</strong> que, como disseOtávio Velho, “até hoje , as elites [no seu apego à mo<strong>de</strong>rnização] não têm si<strong>do</strong>capazes <strong>de</strong> criar um imaginá<strong>rio</strong> que empolgue a população” (1995, p.160).Assim, estas análises procuram ver nas formulações <strong>do</strong>s grupos populares –nas suas variadas expressões – algo mais <strong>do</strong> que resistência oucomportamento arcaico. Busca-se apreen<strong>de</strong>r questionamentos sobre alegitimida<strong>de</strong> das representações hegemônicas sobre or<strong>de</strong>m e po<strong>de</strong>r.Luís Fernan<strong>do</strong> Duarte insiste sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contextualizar oi<strong>de</strong>á<strong>rio</strong> liberal-individualista se quisermos refletir sobre as possibilida<strong>de</strong>s elimites da integração das classes populares no processo <strong>de</strong> "cidadanização".Juntamente com estes outros autores, ele aponta não apenas para aincapacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> discurso oficial e hegemônico <strong>de</strong> representar/incluir as“diferenças” (até mesmo porque, segun<strong>do</strong> Duarte, faz parte <strong>de</strong>ste i<strong>de</strong>á<strong>rio</strong> “dacultura oci<strong>de</strong>ntal a conversão <strong>do</strong> ‘outro’”), mas para a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste“outro” ter o quê dizer sobre o processo da mo<strong>de</strong>rnização (1993, p.17).


209O sistema em açãoPara terminar, optamos por mais uma vez voltar aos da<strong>do</strong>s concretos <strong>de</strong>campo, procuran<strong>do</strong> enten<strong>de</strong>r como funcionam, nas atuais circunstâncias, aspolíticas que preten<strong>de</strong>m tirar a empregada <strong>do</strong>méstica das suas relaçõesclientelistas e colocá-la <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> profissional mo<strong>de</strong>rno.As perspectivas "mo<strong>de</strong>rnas" <strong>de</strong> participação política repercutem nasrelações <strong>de</strong> trabalho entre patrões e emprega<strong>do</strong>s, na atitu<strong>de</strong>, cada vez maisdifundida entre os patrões, <strong>de</strong> que um compromisso contratual, respeitan<strong>do</strong> osprincípios legais, <strong>de</strong>fine relações mais justas. Muitos patrões, bemintenciona<strong>do</strong>s, consi<strong>de</strong>ram que, como cumprem <strong>de</strong>vidamente a legislaçãotrabalhista (embora no caso <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>méstico ela ainda seja muitoprecária), estão fazen<strong>do</strong> sua parte para uma socieda<strong>de</strong> melhor. E quan<strong>do</strong>suas "funcionárias" não respon<strong>de</strong>m às regras <strong>do</strong> contrato, relegam seucomportamento ao atavismo, falta <strong>de</strong> predisposição ao trabalho ou<strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong>. O código contratualista exime os patrões <strong>de</strong> umcomprometimento com as diferenças sociais, pois ele retira a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> ea justiça <strong>do</strong> campo da moral. A igualda<strong>de</strong> passa a ser prescrita por umcontrato.A questão é: será que as empregadas reconhecem as vantagens <strong>de</strong>ssanova forma <strong>de</strong> relação? A experiência <strong>de</strong> uma empregada no seu embatecom seu patrão acerca <strong>do</strong>s direitos trabalhistas po<strong>de</strong> dar certas indicações <strong>do</strong>contrá<strong>rio</strong>.Emengarda havia si<strong>do</strong> <strong>de</strong>mitida (sem justa causa) <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter falta<strong>do</strong><strong>do</strong>is dias ao trabalho em função <strong>de</strong> uma infecção renal. Primeiramente, apeloupara a cordialida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s patrões, sugerin<strong>do</strong> que nem to<strong>do</strong>s seus direitoshaviam si<strong>do</strong> pagos (aviso prévio, décimo terceiro salá<strong>rio</strong>, etc.), mas acenan<strong>do</strong>


210com possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> algum acerto. Porém, como eles mantiveram-seirredutíveis, procurou o Sindicato <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res Domésticos. O patrão<strong>de</strong>la compareceu então ao sindicato com uma série <strong>de</strong> notas fiscais <strong>de</strong>produtos compra<strong>do</strong>s em seu nome (rádio, fogareiro, relógio), dizen<strong>do</strong> queestes itens encontravam-se na casa <strong>de</strong> Emengarda – prova que ela os haviafurta<strong>do</strong> <strong>de</strong>le. Como eu tinha acesso tanto à casa <strong>do</strong>s patrões, como à daempregada, sabia que estes não eram itens rouba<strong>do</strong>s por Emengarda. Elaapenas usou – como é <strong>de</strong> praxe nestas relações – o nome <strong>de</strong> seus patrõespara abrir um crediá<strong>rio</strong>, cujas prestações pagou sozinha.É interessante que Seu Péricles, o patrão, não foi à policia para reaveras coisas que, afinal, legalmente lhe pertenciam. Nesta falsa acusação, opatrão utilizou-se <strong>de</strong> prerrogativas <strong>de</strong> classe para obstruir um processojurídico. Em função <strong>de</strong> sua condição econômica, ele auxiliou, com os artifíciosdas relações clientelistas, o acesso da empregada aos bens <strong>de</strong> consumo.Quan<strong>do</strong> as expectativas <strong>de</strong>sse acor<strong>do</strong> foram frustradas, ele recorreu aosméto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> pressão (pouco idôneos) proporciona<strong>do</strong>s por sua posição <strong>de</strong>classe.Emengarda nem sequer cogitou <strong>de</strong> pedir a suas vizinhas, que trabalhamnas mesmas re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>zas que ela, para <strong>de</strong>porem a seu favor no sindicato. Ascolegas <strong>de</strong> Emengarda têm consciência que não é o confronto direto que lhestrará vantagens nessa briga <strong>de</strong>sigual. Para não comprometer seu merca<strong>do</strong> <strong>de</strong>trabalho, evitam mostrar-se passíveis <strong>de</strong> recorrer aos mesmos méto<strong>do</strong>s queEmem, procuran<strong>do</strong> seus direitos legais. Por outro la<strong>do</strong>, sabem que casoscomo este, quan<strong>do</strong> chegam a <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos que envolvem inquéritosjurídicos e policiais, raramente são bem sucedi<strong>do</strong>s. Até mesmo pelaoperacionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s processos que passam pelo universo da escrita (<strong>do</strong> qualestão distantes), reconhecem que facilmente po<strong>de</strong>m per<strong>de</strong>r o controle dasituação 117 . Sabem que seus <strong>de</strong>litos (quan<strong>do</strong> existem) são muito mais117 Comparan<strong>do</strong> atuação <strong>do</strong> Tribunal <strong>do</strong> Trabalho <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>sul</strong> e <strong>do</strong> Espírito Santo(quan<strong>do</strong> acompanhávamos processos <strong>de</strong> reclamação trabalhistas das empregadas),percebemos que, enquanto no Sul parece haver uma tradição <strong>de</strong> maior proteção aotrabalha<strong>do</strong>r – colocan<strong>do</strong>-se sempre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que o trabalha<strong>do</strong>r ganhe alguma


211facilmente <strong>de</strong>flagra<strong>do</strong>s pela lei <strong>do</strong> que aqueles <strong>de</strong> seu Péricles. Assim, cientes<strong>de</strong> que não <strong>do</strong>minam plenamente o jogo <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> aparato que na socieda<strong>de</strong>diz zelar por direitos igualitá<strong>rio</strong>s, procuram nas relações com os patrõescondutas que julgam capazes <strong>de</strong> negociar.Enten<strong>de</strong>-se então por que, nas disputas <strong>de</strong> direitos com seus patrões, asempregadas da nossa amostra raramente procuravam a proteção <strong>do</strong> Sindicatodas Empregadas Domésticas situa<strong>do</strong> em Vitória. A julgar pelo número <strong>de</strong>associadas que o sindicato mantinha <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> quase uma década <strong>de</strong>atuação no Espírito Santo, elas estavam <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a maioria <strong>de</strong>mulheres nesta categoria <strong>de</strong> trabalho. Em 1998, o Sindicato <strong>do</strong>sTrabalha<strong>do</strong>res Domésticos e Emprega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Edifícios <strong>do</strong> Espírito Santocontava com apenas 9 mulheres associadas.A valorização <strong>do</strong> relacionamento personaliza<strong>do</strong> com os patrões pô<strong>de</strong> serobserva<strong>do</strong> até mesmo entre as empregadas mais comprometidas com osdireitos trabalhistas, aquelas que tinham uma <strong>de</strong>dicada militância política 118 .As duas mulheres que durante <strong>de</strong>z anos mantiveram em pé o sindicato das<strong>do</strong>mésticas <strong>de</strong> Vitória sustentam laços <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> com seus ex-patrões atéhoje. Na prática política <strong>de</strong> sindicalistas, sempre buscam primeiro a via daconciliação antes <strong>de</strong> um enfrentamento judicial com os patrões. E o fazempelo profun<strong>do</strong> conhecimento que dispõem <strong>de</strong> sua categoria profissional: sãomulheres pobres que não po<strong>de</strong>m arcar com os custos <strong>de</strong> um processo e quecom muita dificulda<strong>de</strong> conseguem provar seus direitos perante a corte judicial.Certamente há inúmeros e constantes abusos da "tradicional" relaçãopaternalista da parte <strong>do</strong>s patrões. Não é nosso objetivo romantizar ocompensação, no Espírito Santo as cortes mostravam-se mais favoráveis à causa <strong>do</strong>spatrões.118 Durante alguns anos o aluguel da sala, o pagamento <strong>do</strong> telefone e a remuneração dasrepresentantes sindicais eram pagos por um certo advoga<strong>do</strong>. Ironicamente, enquanto estefinanciava as <strong>de</strong>spesas <strong>do</strong> sindicato (cerca <strong>de</strong> mil e quinhentos reais mensais), tambémmantinha, como presi<strong>de</strong>nte e assessor jurídico, o sindicato patronal. Quan<strong>do</strong> esta situaçãotornou-se insustentável e os laços foram rompi<strong>do</strong>s, a associação ficou prestes a fechar.


212clientelismo atentan<strong>do</strong> apenas para exemplos mais suaves. Muitas vezes umrelacionamento mais pessoaliza<strong>do</strong> vem acompanha<strong>do</strong> <strong>de</strong> exigências absurdase prerrogativas patronais exageradas. Para citar apenas um exemplo, posso<strong>de</strong>screver uma patroa que, ao <strong>de</strong>sconfiar que sua empregada cometiapequenos furtos, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou uma operação <strong>de</strong> investigação. Num sába<strong>do</strong>,antes que a moça partisse para seu repouso, pediu que fosse à padaria. Nointervalo, ela abriu a sacola da “malandra” e constatou que esta carregavaalgumas coisas para casa:fui tiran<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> lá <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro: olha, era mo<strong>de</strong>ss, sabonete, até umacalcinha da Clarice... Tirei tu<strong>do</strong> da sacola <strong>de</strong>la e <strong>de</strong>ixei em cima damesa da cozinha. Chamei as meninas para esperar ela chegar. Sóqueria ver a cara <strong>de</strong>la diante <strong>de</strong> nós. Quan<strong>do</strong> ela voltou e viu quetínhamos <strong>de</strong>scoberto seus roubos, ficou mais pálida que o leite!Não é pouco lembrar que esta patroa, ciosa da privacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seuspertences, não reconheceria o direito <strong>de</strong> sua empregada revirar-lhe a bolsasem permissão. Nem cabe esquecer também que essa patroa não chega apagar um salá<strong>rio</strong> mínimo para as moças que trabalham com ela – as quais sóretornam para sua casa aos sába<strong>do</strong>s à tar<strong>de</strong>. A justificativa que ela dá para abaixa remuneração e não cumprimento <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais direitos trabalhistas é que,justamente por receberem alimentação, produtos <strong>de</strong> higiene íntima, e um lugarpara <strong>do</strong>rmir sem pagar água, luz e aluguel, suas empregadas ”acabamganhan<strong>do</strong> mais que a gente, porque no final <strong>do</strong> mês, aquilo é <strong>de</strong>la, inteirinho”.Mas os freqüentes e reais casos <strong>de</strong> abuso não <strong>de</strong>vem ofuscar asvantagens que a relação paternalista é capaz <strong>de</strong> proporcionar. De maneiradiferente da postura contratualista, os patrões mais claramente clientelistas,embora possam reconhecer a hierarquia como um fato natural, em geralpagam seu tributo à Nêmises (como apontávamos nos princípios dareciprocida<strong>de</strong>, discuti<strong>do</strong>s em o “Assassino é o mor<strong>do</strong>mo”). Assim, mesmo que<strong>de</strong> maneira paternalista, <strong>de</strong>senvolvem ações ante a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. Quan<strong>do</strong>Pilar paga o tratamento <strong>de</strong> sua ex-empregada com pneumonia ou sustenta acreche para a filha da empregada atual, existe mais que cálculo <strong>do</strong> retorno da


213dádiva neste comportamento; existe um reconhecimento <strong>de</strong> que não bastatransferir a responsabilida<strong>de</strong> social para o pagamento <strong>de</strong> impostos. Afinal,Pilar sabe que, no atual contexto da socieda<strong>de</strong> brasileira (e, talvez emespecial, <strong>do</strong> Espírito Santo), essas mulheres não têm outras instâncias paralhes abrigar.Patrões bilíngües parecem, em to<strong>do</strong> caso, cada vez mais raros. No lugarda troca personalística, <strong>do</strong> discurso assimétrico <strong>do</strong> paternalismo, hoje secoloca com mais legitimida<strong>de</strong> a perspectiva igualitária da cidadania. Nestaperspectiva, a expectativa <strong>do</strong>s patrões é <strong>de</strong> encontrarem na empregada nãouma amiga leal, mas uma profissional. Desta profissional esperam quecumpram suas funções remuneradas, como a lei estabelece. Mas nãoquestionam que leis são essas, como se <strong>de</strong>termina a remuneração <strong>do</strong> serviço<strong>do</strong>méstico, nem esperam que as empregadas <strong>de</strong>sfrutem <strong>do</strong>s mesmos direitos<strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> que os patrões. Uma cidadã no cumprimento da legislação, mascom status diferencia<strong>do</strong>.Diante <strong>de</strong>ssas constatações, talvez as empregadas mantenham-se<strong>de</strong>sconfiadas quanto às benesses <strong>do</strong> regime contratual e busquem outraspossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> negociação. Sem negligenciar promessas implícitas vindas<strong>do</strong>s supe<strong>rio</strong>res, observei uma tendência entre as empregadas pesquisadas <strong>de</strong>não aceitar empregos que pagassem menos <strong>de</strong> um salá<strong>rio</strong> e os valestransporte.Carteira assinada, pagamento da previdência já po<strong>de</strong>riam sernegocia<strong>do</strong>s. Mas o contrato i<strong>de</strong>al é aquele que, respeitan<strong>do</strong> a legislação, vemalia<strong>do</strong> a patroas (tais como Pilar) que não são avarentas nem mesquinhas eque, portanto, continuam a garantir aquelas "dádivas" que, embora nãoconstem no contrato, são absolutamente essenciais.Vitória talvez não seja "típica" <strong>do</strong> Brasil. Sobretu<strong>do</strong> nos <strong>gran<strong>de</strong></strong>s centros<strong>do</strong> país (Porto Alegre, Rio <strong>de</strong> Janeiro e São Paulo), a perspectiva patronal <strong>de</strong>propor um contrato formal <strong>de</strong> serviço tem cresci<strong>do</strong>. Nestas regiões, mais <strong>de</strong>90% das <strong>do</strong>mésticas possuem carteira <strong>de</strong> trabalho e ganham pelo menos umSM. Mas também existem da<strong>do</strong>s <strong>de</strong>stoantes <strong>de</strong>ssa mo<strong>de</strong>rnização. Nos


214levantamentos estatísticos sobre a economia informal no Brasil, 74% dasempregadas <strong>do</strong>mésticas não tem carteira assinada e, se tomadas todas asmulheres (<strong>do</strong>mésticas ou não) envolvidas no setor informal, 66,2% não<strong>de</strong>monstram sequer interesse em estabelecer vínculos empregatícios nesteplano formal (ABREU et al., 1990, BRUSCHINI e LOMBARDI, 1999). Pareceque a lógica contratual nem sempre é atrativa para essas trabalha<strong>do</strong>ras, poisjunto com a regulamentação <strong>de</strong> seu trabalho, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s poucos direitosadquiri<strong>do</strong>s, os <strong>de</strong>veres são talvez mais severos.As exigências <strong>de</strong> uma regulamentação <strong>do</strong> serviço <strong>do</strong>mésticopressupõem que, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s patrões e <strong>do</strong> la<strong>do</strong> das servi<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>mésticas, ascondições para cumprimento da lei sejam idênticas. É, por exemplo, o que<strong>de</strong>monstra o Manual <strong>do</strong> Emprega<strong>do</strong>r, uma publicação <strong>do</strong> Centro <strong>de</strong>Informações e Defesa <strong>do</strong>s Emprega<strong>do</strong>res Domésticos <strong>de</strong> Porto Alegre, quepropõe-se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os direitos <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>res e das <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa, umavez que “sempre ouvimos as pessoas falarem sobre os direitos dasempregadas <strong>do</strong>mésticas, porém, poucos comentam sobre os direitos daquelesque dão emprego, os patrões”(Informativo, 1997) 119 .Mas até que ponto essa igualda<strong>de</strong> é praticável? Por exemplo, até queponto po<strong>de</strong> uma empregada <strong>do</strong>méstica cumprir aviso prévio <strong>de</strong> 30 dias, oupagá-lo, quan<strong>do</strong> a natureza <strong>do</strong> serviço as coloca numa relação tão direta comseus patrões? On<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar seus filhos enquanto cuida <strong>do</strong>s filhos <strong>de</strong> outros?Quem <strong>de</strong>fine as noções <strong>de</strong> bom cumprimento das tarefas <strong>do</strong>mésticasestipula<strong>do</strong> implicitamente no contrato? A fraca inserção no mun<strong>do</strong> letra<strong>do</strong>possibilita que os direitos e os <strong>de</strong>veres sejam fiscaliza<strong>do</strong>s e cumpri<strong>do</strong>s<strong>de</strong>vidamente pela empregada?119 Além <strong>de</strong> explicar os direitos e <strong>de</strong>veres <strong>do</strong>s patrões e das empregadas, o manual dáconselhos quase policialescos <strong>de</strong> como se precaver da moralida<strong>de</strong> e da saú<strong>de</strong> da empregada<strong>do</strong>méstica. Na sessão “Providências para Admissão <strong>de</strong> Empregada Doméstica - Cuida<strong>do</strong>snecessá<strong>rio</strong>s - Documentos a serem exigi<strong>do</strong>s”, o autor aconselha a solicitação <strong>de</strong> atesta<strong>do</strong> <strong>de</strong>bons antece<strong>de</strong>ntes criminais, a verificação <strong>de</strong> referências pessoalmente, a entrevistar acandidata na parte externa da residência “na frente <strong>de</strong> testemunhas”, a exigência <strong>de</strong> atesta<strong>do</strong><strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (CALDIERARO, 1997, p.17-18).


215Sugerimos que não são apenas essas questões pontuais que criam ummal-estar. Embutida na legislação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, é a própria lógica calcada numaperspectiva <strong>de</strong> direitos individuais que vai <strong>de</strong> encontro à noção <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong>cultural. Trata-se <strong>de</strong> uma lógica que simplesmente não leva em contaorganizações diferenciadas <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida, como aquelas que mostramosexistir entre as famílias <strong>de</strong> Jardim Veneza.Analisan<strong>do</strong> o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida, a lógica das relações hierárquicasembutidas não somente no serviço <strong>do</strong>méstico mas no dia a dia dasempregadas <strong>do</strong>mésticas <strong>de</strong> Jardim Veneza, voltamos finalmente nossareflexão para <strong>do</strong>is conceitos que têm servi<strong>do</strong> <strong>de</strong> base das análises sobre avida políticas brasileira: clientelismo e cidadania. Pon<strong>de</strong>ramos que,<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> como são emprega<strong>do</strong>s, estes termos po<strong>de</strong>m apresentar asduas faces da mesma moeda. Que assuma-se uma perspectiva fatalistalamentan<strong>do</strong> a persistência da política clientelista tradicional, ou que proponhasevisões mais otimistas em que as forças <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização prometemintegrar to<strong>do</strong>s num mo<strong>de</strong>lo globaliza<strong>do</strong> <strong>de</strong> cidadania, os grupos subalternossão coloca<strong>do</strong>s como o problema principal – retrógra<strong>do</strong>s ou aliena<strong>do</strong>s, cujoscomportamentos e atitu<strong>de</strong>s têm <strong>de</strong> evoluir. Travan<strong>do</strong> perspectivas analíticasque, nos roteiros escondi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s subalternos, revelam o caráter relativamentelúci<strong>do</strong> e plenamente mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> suas práticas, somos leva<strong>do</strong>s a pensar oquadro em outros termos. Somos obriga<strong>do</strong>s a pensar formas <strong>de</strong> cidadaniacontextualizada para garantir um espaço a partir <strong>do</strong> qual estes "outros", nãointeiramente cúmplices <strong>do</strong> i<strong>de</strong>á<strong>rio</strong> mo<strong>de</strong>rno, possam participar na própria<strong>de</strong>finição <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> participação política.Sem levar em conta as especificida<strong>de</strong>s das relações entre patrões eempregadas <strong>do</strong>mésticas que procurei <strong>de</strong>screver, corremos o risco <strong>de</strong>, a partir<strong>de</strong> generalização, jogar por terra toda uma prática política <strong>de</strong>stas mulheres emcondição <strong>de</strong> subalternida<strong>de</strong> e, no seu lugar, colocarmos nossa perspectivasobre o que seja po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>mocracia e participação.


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