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ALEXANDRA_versão final - UNISC Universidade de Santa Cruz do ...

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADOÁREA DE CONCENTRAÇÃO LEITURA E COGNIÇÃOAlexandra Munareto SoaresLITERATURA E HISTÓRIA: NARRATIVAS DE OPRESSÃO ESILÊNCIO EM CYRO MARTINS<strong>Santa</strong> <strong>Cruz</strong> <strong>do</strong> Sul, julho <strong>de</strong> 2009


35Alexandra Munareto SoaresLITERATURA E HISTÓRIA: NARRATIVAS DE OPRESSÃO ESILÊNCIO EM CYRO MARTINSDissertação apresentada ao Programa <strong>de</strong> Pós-Graduaçãoem Letras – Mestra<strong>do</strong> – Área <strong>de</strong> Concentração em Leiturae Cognição, <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Santa</strong> <strong>Cruz</strong> <strong>do</strong> Sul – <strong>UNISC</strong>,como requisito parcial para obtenção <strong>do</strong> título <strong>de</strong> Mestreem Letras.Orienta<strong>do</strong>ra: Prof.a Dr. Eunice Piazza Gai<strong>Santa</strong> <strong>Cruz</strong> <strong>do</strong> Sul, junho <strong>de</strong> 2009


COMISSÃO EXAMINADORATitularesProf.a Dr . Eunice Piazza GaiOrienta<strong>do</strong>raProf.a Dr. Nize Maria Campos PellandaProf.a Dr. Maria Helena <strong>de</strong> Sousa Martins


S676LSoares, Alexandra MunaretoLiteratura e história : narrativas <strong>de</strong> opressão e silêncio em Cyro Martins / AlexandraMunareto Soares. - 2009.124 f. ; 30 cm.Orienta<strong>do</strong>ra: Eunice Piazza Gai.Dissertação ( Mestra<strong>do</strong> ) – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Santa</strong> <strong>Cruz</strong> <strong>do</strong> Sul, 2009.Bibliografia.1. Martins, Cyro, 1908 -1995 - Crítica e interpretação. 2. Literatura e história . 3.Personagens – Mulheres. I. Gai, Eunice Piazza. II. <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Santa</strong> <strong>Cruz</strong> <strong>do</strong> Sul.Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Letras. III. Título.CDD: RS869.309Bibliotecária responsável : Muriel Thurmer – CRB 10/1558


A to<strong>do</strong>s que <strong>de</strong>ram à minha existência o prazer <strong>de</strong> tê-los a meu la<strong>do</strong>.


AGRADECIMENTOSA Deus, por me proporcionar força e proteção, também pelas oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>conhecimento e crescimento que brindam meu caminho.Aos meus pais, que se <strong>do</strong>aram por inteiro, renuncian<strong>do</strong>, muitas vezes, aos seus sonhospara que realizasse os meus, com infindável paciência e grandioso amor, meu muitíssimoobrigada e eterno reconhecimento.À professora Eunice, pelas horas <strong>de</strong> lições e incentivos em que repartia seusconhecimentos e experiências, me ensinan<strong>do</strong> além das teorias, com paciência, sensibilida<strong>de</strong> ehumanida<strong>de</strong>.À minha família, colegas, professores e amigos, pelo apoio, amiza<strong>de</strong> e companheirismodurante esses anos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>.A to<strong>do</strong>s que cruzaram o meu caminho e que auxiliaram <strong>de</strong> uma forma ou outra que esseestu<strong>do</strong> fosse realiza<strong>do</strong>, meu mais sincero agra<strong>de</strong>cimento.


6[...] o romance é um estuário. Nas suaságuas navegam quase to<strong>do</strong>s os barcosdas nossas interrogações, carrega<strong>do</strong>s <strong>do</strong>vivi<strong>do</strong>, <strong>do</strong> sonha<strong>do</strong>, <strong>do</strong> sofri<strong>do</strong> e <strong>do</strong>curti<strong>do</strong>.Cyro Martins


7RESUMOA presente dissertação analisa as relações existentes entre Literatura e História, com enfoquena análise das personagens femininas da trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé, composta por Sem rumo,Porteira fechada e Estrada nova, <strong>do</strong> escritor e psicanalista gaúcho Cyro Martins. Nesseestu<strong>do</strong>, consi<strong>de</strong>ramos que a narrativa literária <strong>do</strong> autor é constituída <strong>de</strong> um entrelaçamentoentre a imaginação cria<strong>do</strong>ra e os fatos vivi<strong>do</strong>s por ele. Isso resulta numa forma <strong>de</strong>conhecimento histórico-literário que facilita o processo <strong>de</strong> autoconhecimento <strong>do</strong> homem e <strong>de</strong>entendimento da socieda<strong>de</strong> em que está inseri<strong>do</strong>. Dessa maneira, realizamos estu<strong>do</strong>s acerca daLiteratura e da História <strong>de</strong> diversos pesquisa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> assunto, entre eles: Barthes, Kun<strong>de</strong>ra,Forster, Henry James, Antônio Cândi<strong>do</strong>, To<strong>do</strong>rov, Tacca, Hay<strong>de</strong>n White, Sandra JatahyPesavento, Paul Veyne e outros. A partir <strong>do</strong>s conceitos teóricos que enfocam esses autores,realizamos a análise das três obras <strong>do</strong> autor, publicadas entre 1937 e 1954. Observamos ahistória <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul presente na trilogia com a <strong>final</strong>ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a história dasmulheres gaúchas das décadas enfocadas nos livros. Valemo-nos da Literatura ficcional paramelhor compreen<strong>de</strong>r as questões culturais e sociais presentes na mentalida<strong>de</strong> e nas estruturasda socieda<strong>de</strong> gaúcha. Outrossim, buscamos ressaltar o caráter literário das obras <strong>de</strong> CyroMartins.Palavras-chave: Conhecimento, narrativa literária, história, Cyro Martins, personagensfemininas


8ABSTRACTThis dissertation analyzes the relationships between Literature and History, with a focus onanalysis of the female characters of the novel “Gaúcho a pé” trilogy, consisting of “SemRumo”, “Porteira Fechada” and “Estrada Nova”, written by the author and psychoanalystgaúcho Cyro Martins. In this study, we believe that the author's literary narrative consists inan interweave between the creative imagination and the facts experienced by him. This resultsin a historical-literary knowledge that facilitates the process of self-knowledge of man as wellas the un<strong>de</strong>rstanding of the society in which he is inserted in. We use then studies aboutLiterature and History from various researchers, among them: Barthes, Kun<strong>de</strong>ra, Forster,Henry James, Antonio Cândi<strong>do</strong>, To<strong>do</strong>rov, Tacca, Hay<strong>de</strong>n White, Sandra Jatahi Pesavento,Paul Veyneand others. From these theoretical assumptions we procee<strong>de</strong>d the analyzes of three theauthor's works published between 1937 and 1954. We look at the history of Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong>Sul present in the trilogy to un<strong>de</strong>rstand the history of Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul’s women of the<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s focused on the books. We used fictional literature to better un<strong>de</strong>rstand the social andcultural questions present in mentality and Rio Gran<strong>de</strong> society structures. In addition, wesought to emphasizes the literary features in the novels written by Cyro Martins.Key-words: knowledge- literary narrative- Cyro Maratins -female personages


9SUMÁRIOINTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 111 CYRO MARTINS: O AUTOR E SUA OBRA.................................................................. 211.1 Cyro Martins: vida e obra...................................................................................................211.2 Trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé: uma gênese <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradação sócio-econômica <strong>do</strong>homem <strong>do</strong> campo sul-rio-gran<strong>de</strong>nse........................................................................................ 272. LITERATURA E HISTÓRIA: A VISÃO LITERÁRIA DE FATOS HISTÓRICOS,SOCIAIS E ECONÔMICOS................................................................................................ 352.1. ASPECTOS TEÓRICOS DAS RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA......352.1.2 A relação literário-histórica..............................................................................................372.1.3 A História e o historia<strong>do</strong>r ................................................................................................392.1.4 A elaboração e criação da História e da Literatura..........................................................412.1.5 O ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r .......................................................................................422.1.6 A Literatura como fonte da pesquisa histórica ................................................................432.1.7 A vida real como influência na criação literária...............................................................452.1.8 História e Literatura na formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social e individual................................472.2 OS FATOS HISTÓRICO-SOCIAIS E SUA REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA...............492.2.1 A história <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul presente na trilogia.......................................................492.2.2 A ocupação das terras sulinas...........................................................................................522.2.3 A imigração alemã, italiana e a expansão da economia gaúcha.......................................562.2.4 A política brasileira e os parti<strong>do</strong>s políticos no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul..................................582.2.5 O governo Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros e a Primeira Guerra Mundial.........................................602.2.6 O fim da primeira gran<strong>de</strong> guerra e a crise da economia gaúcha......................................632.2.7 O governo provisório <strong>de</strong> Getúlio Vargas..........................................................................642.2.8 A ditadura Vargas.............................................................................................................682.2.9 O início <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> êxo<strong>do</strong> rural.................................................................................692.2.10 Perío<strong>do</strong> populista............................................................................................................72


103 AS VOZES AUSENTES: PERSPECTIVAS DAS PERSONAGENS FEMININASGAÚCHAS EM CYRO MARTINS.......................................................................................763.1 A história da mulher............................................................................................................763.2 A mulher nos romances Sem rumo, Porteira fechada e Estrada nova...............................863.2.1 O silêncio feminino em Sem rumo...................................................................................863.2.2 A luta das mulheres pela sobrevivência em Porteira fechada.........................................933.2.3 A opressão e as personagens femininas <strong>de</strong> Estrada nova..............................................1013.2.4 Consi<strong>de</strong>rações sobre a mulher gaúcha <strong>do</strong> início século XX <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com aspersonagens da trilogia <strong>de</strong> Cyro Martins................................................................................109CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 119REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 123


11INTRODUÇÃO“Os homens sempre procuraram instintivamente, na magia da arte o seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cura”. Cyro MartinsExistem diferentes tipos <strong>de</strong> narrativas e uma das suas mais importantes características éa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem onipresentes, <strong>de</strong> estarem em diferentes tempos, lugares e culturas. Essacaracterística levou Roland Barthes, em sua obra Análise estrutural da narrativa, a procuraruma <strong>de</strong>finição que englobasse os diversos tipos <strong>de</strong> narrativa:Inumeráveis são as narrativas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Há em primeiro lugar uma varieda<strong>de</strong>prodigiosa <strong>de</strong> gêneros, distribuí<strong>do</strong>s entre substâncias diferentes, como se todamatéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa po<strong>de</strong>ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa oumóvel, pelo gesto ou pela mistura or<strong>de</strong>nada <strong>de</strong> todas essas substâncias; está presenteno mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, natragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura (...), no vitral, no cinema,nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disso, sob essasformas quase infinitas, a narrativa está presente em to<strong>do</strong>s os tempos, em to<strong>do</strong>s oslugares, em todas as socieda<strong>de</strong>s; a narrativa começa com a própria história dahumanida<strong>de</strong>; não há, em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes,to<strong>do</strong>s os grupos humanos têm suas narrativas, e freqüentemente estas narrativas sãoapreciadas em comum por homens <strong>de</strong> cultura diferente, e mesmo oposta; a narrativaridiculariza a boa e a má literatura; internacional, trans-histórica, transcultural; anarrativa está aí, como a vida. (1971, p. 18)Neste trabalho vamos consi<strong>de</strong>rar apenas a narrativa literária ficcional a partir <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>srealiza<strong>do</strong>s por alguns críticos da teoria da narrativa e suas concepções com relação a romancee seus personagens. A narrativa ficcional é realizada no plano verbal, pois só ocorre através <strong>de</strong>palavras que expressam fatos vivi<strong>do</strong>s por diversos seres fictícios, as personagens, em umlugar já pré-estabeleci<strong>do</strong>, com duração certa. Os homens sempre usaram a narrativa comouma forma <strong>de</strong> expressar i<strong>de</strong>ias, opiniões e, sobretu<strong>do</strong>, como uma forma <strong>de</strong> autoconhecimento,<strong>de</strong> conhecer as outras pessoas, os diferentes seres com que convive, o mun<strong>do</strong> em que habita,realizan<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ssa maneira, uma busca constante para enten<strong>de</strong>r a sua existência.Para isso criou mun<strong>do</strong>s imaginários, habita<strong>do</strong>s por seres fictícios, que apresentamcaracterísticas reais, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> elas advir ou não da vida real: “Quem narra, narra o que viu, oque viveu, o que testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, o que <strong>de</strong>sejou. Por


12isso, NARRAÇÃO e FICÇÃO praticamente nascem juntas” (LEITE, 1989, p. 6). A condiçãodas personagens <strong>de</strong> serem seres fictícios com características <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real, juntamente com oenre<strong>do</strong> e a técnica utilizada pelo escritor são responsáveis pela verossimilhança interna daobra, o que permite ao leitor uma maior aproximação com texto através <strong>do</strong> processo <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ntificação leitor/personagem.Ao consi<strong>de</strong>rarmos que as primeiras narrativas oci<strong>de</strong>ntais eram em verso, convémlembrar as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Platão e Aristóteles, <strong>do</strong>is <strong>do</strong>s primeiros estudiosos da narrativa. Seusestu<strong>do</strong>s e conhecimentos serviram <strong>de</strong> base para os atuais pesquisa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> assunto. Platão eAristóteles divergiam opiniões em relação à ficcionalida<strong>de</strong> da obra. Para o primeiro, em Arepública, a arte em geral é vista como uma imitação da imitação, pois acredita que o mun<strong>do</strong>em que vive é uma cópia <strong>do</strong> “Mun<strong>do</strong> das I<strong>de</strong>ias”, verda<strong>de</strong>iro mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> on<strong>de</strong> viemos:Do mesmo mo<strong>do</strong> diremos, parece-me, que o poeta, por meio <strong>de</strong> palavras e frases,sabe colorir <strong>de</strong>vidamente cada uma das artes, sem enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong>las mais <strong>do</strong> que saberimitá-las, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que, a outros que tais, que julgam pelas palavras, parecem falarmuito bem, quan<strong>do</strong> dissertam sobre a arte <strong>de</strong> fazer sapatos, ou sobre a arte daestratégia, ou sobre qualquer outra com metro, ritmo e harmonia. Tal é a gran<strong>de</strong>sedução natural que estas têm, por si sós. (1949, p. 461)Aristóteles, por sua vez, na obra intitulada Poética, expõe suas i<strong>de</strong>ias sobre poesia, asquais diferem em parte das <strong>de</strong> Platão. Se, para esse último, a poesia e a arte em geral, eramimitação da imitação, Aristóteles crê que a poesia é e sempre será imitação, mas não umaimitação ilusória e sim revela<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> características fundamentais da constituição natural <strong>do</strong>sseres, chegan<strong>do</strong> a consi<strong>de</strong>rar o poeta um filósofo, por expressar não só fatos passa<strong>do</strong>s, mas oque po<strong>de</strong>rá acontecer futuramente. Dessa maneira, o poeta tem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> revelarpossibilida<strong>de</strong>s:Pelo que atrás fica dito, é evi<strong>de</strong>nte que não compete ao poeta narrar exatamente oque aconteceu; mas sim o que po<strong>de</strong>rias ter aconteci<strong>do</strong>, o possível, segun<strong>do</strong> averossimilhança ou a necessida<strong>de</strong>. O historia<strong>do</strong>r e o poeta não se distinguem um <strong>do</strong>outro, pelo fato <strong>do</strong> primeiro escrever em prosa e o segun<strong>do</strong> em verso (pois a obra <strong>de</strong>Heró<strong>do</strong>to houvesse si<strong>do</strong> composta em verso, nem por isso <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ser obra <strong>de</strong>história, figuran<strong>do</strong> ou não o metro nela). Diferem entre si, porque um escreveu o queaconteceu e o outro o que po<strong>de</strong>ria ter aconteci<strong>do</strong>. Para tal motivo a poesia é maisfilosófica e <strong>de</strong> caráter mais eleva<strong>do</strong> que a história, porque a poesia permanece nouniversal e a história estuda apenas o particular. (2003, cap. IX)Milan Kun<strong>de</strong>ra, em seu livro A Arte <strong>do</strong> Romance, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a importância das narrativasporque possibilitam certa “abertura ao mun<strong>do</strong> das possibilida<strong>de</strong>s” para o leitor, oferecen<strong>do</strong>lheuma realida<strong>de</strong> virtual para que possa compreen<strong>de</strong>r a sua existência e toda a complexida<strong>de</strong>


13que a acompanha: “O espírito <strong>do</strong> romance é o espírito da complexida<strong>de</strong>. Cada romance diz aoleitor: ‘As coisas são mais complicadas <strong>do</strong> que você pensa’” (1986, p. 21).Mas o romancista e crítico tcheco vai além ao afirmar que esta busca <strong>de</strong> compreensãoda vida realizada pelo homem é a verda<strong>de</strong>ira função <strong>do</strong> romance. Para ele, todas as obras <strong>de</strong>ficção narrativa <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os tempos procuram uma resposta para a difícil compreensão dapersonalida<strong>de</strong> e da individualida<strong>de</strong> humana e conclui que: “O romance que não <strong>de</strong>scobre umaporção até então <strong>de</strong>sconhecida da existência é imoral. O conhecimento é a única moral <strong>do</strong>romance” (1986, p. 11), por isso consi<strong>de</strong>ra o romance como um gran<strong>de</strong> conhece<strong>do</strong>r da almahumana:O romance conhece o inconsciente antes <strong>de</strong> Freud, a luta <strong>de</strong> classes antes <strong>de</strong> Marx,ele pratica a fenomenologia (a busca da essência das situações humanas) antes <strong>do</strong>fenomenólogos. Que soberbas <strong>de</strong>scrições ‘fenomenológicas’ em Proust que nãoconheceu nenhum fenomenólogo! (1986, p.34)Dessa maneira, Kun<strong>de</strong>ra chama o romancista não <strong>de</strong> filósofo, mas <strong>de</strong> explora<strong>do</strong>r daexistência, pois, para ele, o interessante é que o homem possa estudar a si mesmo e analisarsuas capacida<strong>de</strong>s e potencialida<strong>de</strong>s: “O romance não examina a realida<strong>de</strong>, mas sim aexistência. A existência não é o que aconteceu, a existência é o campo das potencialida<strong>de</strong>shumanas, tu<strong>do</strong> aquilo que o homem po<strong>de</strong> tornar-se, tu<strong>do</strong> aquilo que é capaz” (1986, p. 42).A mesma concepção tem Henry James. Em seu livro A arte da ficção, James expõe querepresentar a vida real é a principal função <strong>do</strong> romance e salienta que, para que isso ocorra, épreciso que haja uma total liberda<strong>de</strong> em sua composição:Um romance, em sua <strong>de</strong>finição mais ampla, é uma impressão direta e pessoal davida: isso para começar, constitui seu valor, que é maior ou menor <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com aintensida<strong>de</strong> da impressão. Mas não haverá intensida<strong>de</strong> alguma e, portanto valoralgum se não houver liberda<strong>de</strong> para sentir e dizer. (1995, p.29)Antônio Cândi<strong>do</strong> em A personagem <strong>de</strong> ficção observa que para um ser ter uma noçãoexata <strong>de</strong> outro ser são necessários <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> conhecimento, um finito e outro infinito. Oconhecimento finito correspon<strong>de</strong> ao conhecimento <strong>do</strong> corpo físico e o conhecimento infinitorelaciona-se ao da mente, sen<strong>do</strong> esse impossível <strong>de</strong> ser apreendi<strong>do</strong> em sua totalida<strong>de</strong> efinitu<strong>de</strong>, pois consi<strong>de</strong>ra as pessoas como seres complexos, que não <strong>de</strong>monstram to<strong>do</strong>s os seuspensamentos íntimos, e além disso, estão em constantes mudanças comportamentais.


14Por isso, enfoca que um ser jamais terá uma noção bem elaborada e completa sobrequais são as características psicológicas e <strong>do</strong> que se passa na mente <strong>de</strong> outro ser quanto <strong>de</strong> suaparte física. Por isso crê que o conhecimento humano é fragmentário e que <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a essa“incapacida<strong>de</strong>” <strong>do</strong> homem nasce uma das principais funções <strong>do</strong> romance: “Neste pontotocamos numa das funções capitais da ficção, que é a <strong>de</strong> nos dar um conhecimento maiscompleto, mais coerente <strong>do</strong> que o conhecimento <strong>de</strong>cepcionante e fragmentário que temos <strong>do</strong>sseres” (2002, p. 64), pois acredita que no romance os motivos <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong>sseres são explica<strong>do</strong>s pelo romancista, por isso o escritor é responsável em revelar a verda<strong>de</strong>iraessência humana, sen<strong>do</strong> essa sua principal função.Já em 1927, Edward Morgan Forster em seu livro Aspectos <strong>do</strong> romance esclarece afunção que consi<strong>de</strong>ra ter a narrativa ficcional. Para isso, preocupa-se em diferenciarhistoria<strong>do</strong>r <strong>de</strong> romancista:Tu<strong>do</strong> o que é observável num homem, quer dizer, suas ações e parte <strong>de</strong> suaexistência espiritual que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>duzida <strong>de</strong> suas ações – cai no <strong>do</strong>mínio dahistória. Mas seu la<strong>do</strong> romanesco ou romântico (sa partie romanesque ouromanrique) inclui ‘as paixões genuínas, isto é, sonhos, alegrias, tristezas emeditações que a poli<strong>de</strong>z ou vergonha impe<strong>de</strong>m-no <strong>de</strong> mencionar’; e expressar estela<strong>do</strong> da natureza humana é uma das principais funções <strong>do</strong> romance. (1970, p.35)O autor ainda menciona que o romancista busca seus fatos na realida<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>transformá-los conforme objetiva causar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s efeitos em seu leitor, por isso tem atotal liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> modificar parcialmente ou inteiramente esses fatos: “Um romance ébasea<strong>do</strong> em fatos + ou – x, sen<strong>do</strong> a incógnita o temperamento <strong>do</strong> romancista, e essa incógnitasempre modifica o efeito <strong>do</strong>s fatos e algumas vezes o transforma inteiramente” (1970, p.34 –35). Essa afirmação nos faz enten<strong>de</strong>r que a história da narrativa ficcional não precisa,necessariamente, ser retirada <strong>do</strong> que enten<strong>de</strong>mos como "lógico”. O texto literário po<strong>de</strong> (e<strong>de</strong>ve) apresentar situações incomuns, que <strong>de</strong>sloquem o leitor da sua passivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> queisso provoque uma sensação prazerosa, o prazer que se espera ao ler um texto.Se Forster enfatiza o valor e o trabalho <strong>do</strong> autor, Tacca comenta em As vozes <strong>do</strong>romance, que não só a participação <strong>do</strong> autor, mas também a <strong>do</strong> leitor é responsável para que oromance atinja sua função, ten<strong>do</strong> em vista que cabe ao escritor assentar informações em linhase cabe ao leitor empregá-las: “É em suma, uma espécie <strong>de</strong> recomposição <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, operada


15pelo leitor a partir <strong>de</strong> uma limitada quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação, habilmente repartida entreautor, narra<strong>do</strong>r e personagens”.(1983, p.18)Dessa maneira, a realida<strong>de</strong> é observada e captada pelo autor, que vai permeá-la <strong>de</strong>fantasia e imaginação, o mesmo trabalho fará o leitor. Se levarmos em conta que a palavraescrita é uma forma <strong>de</strong> comunicação, como to<strong>do</strong> ato comunicativo precisa <strong>de</strong> emissor(escritor) e receptor (leitor), esse último, portanto, faz parte <strong>do</strong> processo tanto quanto oescritor. Sem leitor não há obra literária. A Literatura existe para ser <strong>de</strong>sfrutada por outro serque não seja o autor.Para que o autor possa expressar a sua visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> através da ficção fazem-senecessárias as personagens no enre<strong>do</strong> narrativo. As personagens da narrativa são os seresresponsáveis pela vivacida<strong>de</strong> da obra, pois são elas que <strong>de</strong>sempenham um papel ativo noenre<strong>do</strong>. Elas nos são apresentadas pelas características que o autor lhes atribui, essascaracterísticas são atributos verbais, mas que dão a ilusão <strong>de</strong> pertencerem à realida<strong>de</strong>. Forsterpreocupa-se em fazer a distinção entre o homo sapiens (homem real) e o homo fictus(personagem fictício). Para esse autor o escritor escreve sobre aquilo que conhece, pois é umser humano, conhece suas características e algumas das <strong>de</strong>mais pessoas e, por isso po<strong>de</strong>utilizar esse conhecimento para compor sua ficção:É cria<strong>do</strong> nas mentes <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> romancistas, que possuem méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> gestaçãoantagônicos e a seu respeito não <strong>de</strong>vemos generalizar. Ainda assim, se po<strong>de</strong> dizeralgo sobre ele: geralmente nasce, é capaz <strong>de</strong> morrer, requer pouco alimento ou sono,está incansavelmente ocupa<strong>do</strong> com relações humanas, e – o mais importante –po<strong>de</strong>mos saber mais sobre ele <strong>do</strong> que sobre qualquer um <strong>do</strong>s nossos semelhantes,porque seu cria<strong>do</strong>r e narra<strong>do</strong>r é um só. (1970, p. 43)Dessa maneira, inicialmente, a personagem po<strong>de</strong> ter características reais criadas peloautor, mas é um ser <strong>de</strong> palavras e suas atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>vem correspon<strong>de</strong>r à verossimilhança internada obra. Isso a torna um ser livre, pois po<strong>de</strong> agir com atitu<strong>de</strong>s que não correspon<strong>de</strong>m às <strong>do</strong>autor ou <strong>de</strong> outra pessoa real em que possa ter si<strong>do</strong> inspirada Como afirma Tacca : “[...]olhan<strong>do</strong> mais <strong>de</strong> perto, <strong>de</strong>scobrimos que nenhuma <strong>de</strong>ssas entida<strong>de</strong>s correspon<strong>de</strong> a uma forma<strong>de</strong> existência (referencial, ‘real’), mas que cada uma se constitui exclusivamente no plano <strong>do</strong>discurso e só a partir <strong>de</strong>le.” (1983, p.14)


16Assim, a personagem é um ser verbal, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> intenções que apresentamcaracterísticas reais filtradas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pela sensibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> escritor, e esse, para criá-lanecessita <strong>de</strong> imaginação, observação e memória. Através <strong>de</strong>sse processo <strong>de</strong> criação é que elastornam-se transparentes à visão leitora, conforme menciona Antônio Cândi<strong>do</strong>:[...] a gran<strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte literária (ficcional) é o lugar em que nos <strong>de</strong>frontamos comseres humanos <strong>de</strong> contornos <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>finitivos, em ampla medida transparentes,viven<strong>do</strong> situações exemplares <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> exemplar (exemplar também no senti<strong>do</strong>negativo). Como seres humanos encontram-se integra<strong>do</strong>s num <strong>de</strong>nso teci<strong>do</strong> <strong>de</strong>valores <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m cognoscitiva, religiosa, moral, social e tomam <strong>de</strong>terminadasatitu<strong>de</strong>s em face <strong>de</strong>sses valores. Muitas vezes <strong>de</strong>batem-se com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>cidir-se em face da colisão <strong>de</strong> valores, passam por terríveis conflitos e enfrentamsituações-limite em que revelam aspectos essenciais da vida humana: aspectostrágicos, sublimes, <strong>de</strong>moníacos, grotescos e luminosos.Esse autor ainda enfatiza que há três elementos essenciais em um romance: o enre<strong>do</strong>, aspersonagens e a técnica utilizada pelo escritor, salientan<strong>do</strong> que esses três elementos <strong>de</strong>vemestar interliga<strong>do</strong>s para que ocorra um bom <strong>de</strong>senvolvimento da obra. Levan<strong>do</strong> emconsi<strong>de</strong>ração o que diz respeito às personagens, cabe-nos comentar que são essas asresponsáveis pelo <strong>de</strong>senrolar da trama existente na obra:Geralmente, da leitura <strong>de</strong> um romance fica a impressão duma série <strong>de</strong> fatos,organiza<strong>do</strong>s em enre<strong>do</strong>, e <strong>de</strong> personagens que vivem estes fatos. É uma impressãopraticamente indissolúvel: quan<strong>do</strong> pensamos no enre<strong>do</strong>, pensamos simultaneamentenas personagens; quan<strong>do</strong> pensamos nestas, pensamos simultaneamente na vida quevivem, nos problemas em que se enredam, na linha <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>stino – traçadaconforme uma certa duração temporal, referida a <strong>de</strong>terminadas condições <strong>de</strong>ambiente. O enre<strong>do</strong> existe através das personagens; as personagens vivem noenre<strong>do</strong>. Enre<strong>do</strong> e personagem exprimem, liga<strong>do</strong>s, os intuitos <strong>do</strong> romance, a visão davida que <strong>de</strong>corre <strong>de</strong>le, os significa<strong>do</strong>s e valores que o animam. (p. 53-54)É importante comentar que, assim como os seres humanos, as personagens apresentamcaracterísticas próprias, algumas se salientam em relação às <strong>de</strong>mais, outras são comuns,corriqueiras e triviais, há ainda as que são semelhantes às outras e as que se distinguem porterem características particulares. Devi<strong>do</strong> a isso, houve uma gran<strong>de</strong> preocupação <strong>do</strong>s críticosliterários em qualificar as personagens conforme o papel que <strong>de</strong>sempenham na obra, Forsterclassifica-as em: planas, as que “são construídas ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma única qualida<strong>de</strong>” (1974,p.54) e re<strong>do</strong>ndas, as que são capazes <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r o leitor, <strong>de</strong> causar impacto com suasatitu<strong>de</strong>s inesperadas.


17Dessa maneira, a personagem <strong>de</strong>ve ser vista como um ser fictício que existe, existe empalavras, mas existe, pois é um produto da fantasia humana, mas para essa criação o escritorprecisa observar o mun<strong>do</strong> ao seu re<strong>do</strong>r, seus problemas sociais e as pessoas que estãoenvolvidas nessa questão para compor seus romances. O que não significa que vá elaboraruma cópia idêntica <strong>de</strong> um ser vivo, ou que irá copiar totalmente a sua realida<strong>de</strong> porque isso éimpossível, como cita Cândi<strong>do</strong>:[...] é impossível, como vimos, captar a totalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser duma pessoa, ousequer conhecê-la; segun<strong>do</strong>, porque neste caso se dispensaria a criação artística;terceiro, porque, mesmo se fosse possível, uma cópia <strong>de</strong>ssas não permitiria aqueleconhecimento específico, diferente e mais completo, que é a razão <strong>de</strong> ser, ajustificativa e o encanto da ficção. (2002, p. 65)Cyro Martins em Para início <strong>de</strong> conversa, autor que estudaremos mais a fun<strong>do</strong>posteriormente, apresenta a personagem como um ser que <strong>de</strong>ve ser “livre” ao mesmo tempoem que tem uma estreita relação com o autor:[...] uma vez lança<strong>do</strong> o personagem na página em branco e permitin<strong>do</strong> que ele an<strong>de</strong>à vonta<strong>de</strong> por uma folha ou duas, precisamos então adivinhar seus pensamentos e<strong>de</strong>sejos e ir dan<strong>do</strong> corda à sua maneira <strong>de</strong> ser, <strong>de</strong> sorte que cria<strong>do</strong>r e criaturapermaneçam ao longo da estrada novelística. Claro que iremos sofrer com seustormentos. Mas, em compensação, suas alegrias também são nossa. (1990, p. 129)Esse escritor, no prefácio <strong>de</strong> Sem rumo, ainda salienta que a personagem <strong>de</strong>ve tercaracterísticas próprias para que a obra literária seja melhor aceita pelo leitor e para que possaatingir seus objetivos:Imobilizar as personagens e retalhá-las em vincos sóli<strong>do</strong>s <strong>de</strong> escultura po<strong>de</strong>constituir um processo para con<strong>de</strong>nsar o belo e atingir a eloqüência. Mas não restadúvida <strong>de</strong> que, se o ficcionista <strong>de</strong>ixar essas mesmas figuras moverem-se por simesmas, no senti<strong>do</strong> que se empresta em Literatura ao movimento espontâneo daspersonagens, impon<strong>do</strong>-se pela sua glória ou pela sua miséria, estabelecerá umaaproximação muito mais íntima com o leitor, contagiará mais facilmente a suaemoção estética, encontrará mais fraca oposição à sua mensagem. (1997, p. 16)Kun<strong>de</strong>ra salienta que não há uma fórmula mágica pra conseguir essa vivacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> serfictício, nem é necessário seguir algumas das normas <strong>do</strong> realismo psicológico, como dar omáximo <strong>de</strong> informações sobre a personagem, conhecer o passa<strong>do</strong> <strong>de</strong>la para enten<strong>de</strong>r suasatitu<strong>de</strong>s presentes, nada <strong>de</strong> intromissões <strong>do</strong> autor na obra etc., é, pois necessário dar umaespécie <strong>de</strong> “abertura” ao leitor para que ele possa se incumbir <strong>de</strong> dar vida a esse ser. Paraexemplificar essa sua tese, cita uma experiência própria sua como leitor: “Dom Quixote é


18quase impensável como ser vivo. No entanto, em nossa memória, que personagem é maisvivo <strong>do</strong> que ele? [...] Quero dizer com isto que a imaginação <strong>do</strong> leitor completaautomaticamente a <strong>do</strong> autor.” (1998, p.35)Diante <strong>do</strong>s posicionamentos apresenta<strong>do</strong>s, concluímos que os seres fictícios <strong>do</strong> romancepo<strong>de</strong>m ou não ser basea<strong>do</strong>s na vida real, são possíveis até <strong>de</strong> serem adapta<strong>do</strong>s, transforma<strong>do</strong>se modifica<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong> a intenção criativa <strong>do</strong> autor. Percebemos que há somente um tipo <strong>de</strong>personagem: a inventada. Mas que esse ser possui ligação com a realida<strong>de</strong> existencial tanto <strong>do</strong>romancista, como <strong>do</strong> leitor, o que ocasiona a inserção <strong>do</strong> leitor na história da obra.A arte, em geral, é utilizada pelo homem como uma forma <strong>de</strong> expressão <strong>do</strong>s seussentimentos, e a Literatura, ao nosso ver, é a expressão artística que mais <strong>de</strong>ixa traçosmarcantes no ser humano, pois utiliza como instrumento uma das mais importantes, senão amaior, capacida<strong>de</strong> humana: a linguagem. Por isso a narrativa literária é envolvente. Elapropicia ao leitor um conhecimento abrangente, que possibilita uma vasta gama <strong>de</strong>interpretações, auxilian<strong>do</strong> o homem na sua eterna busca <strong>de</strong> autoconhecimento e <strong>de</strong>compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em que vive.É com essa concepção, agora direcionada à narrativa ficcional, que nos lançamos àtarefa <strong>de</strong> elaborar um estu<strong>do</strong> literário e histórico, focalizan<strong>do</strong> as personagens femininas, datrilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé, composta por Sem rumo, Porteira fechada e Estrada nova <strong>do</strong>psicanalista e escritor gaúcho Cyro Martins. Essa obra é <strong>de</strong> extrema relevância por se tratar <strong>de</strong>testemunho <strong>de</strong> uma época no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul agropastoril, ten<strong>do</strong> por economia principal asativida<strong>de</strong>s pecuárias das gran<strong>de</strong>s estâncias.Optamos por esse autor <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à gran<strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> que apresenta em captar osproblemas sociais reais <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul na época histórica <strong>do</strong> início e primeira esegunda meta<strong>de</strong>s <strong>do</strong> século XX, sem se utilizar <strong>do</strong> ufanismo muito recorrente na nossaliteratura regionalista. Também por ser um gran<strong>de</strong> psicanalista e um escritor que se sobressaina cultura regional <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. Cyro Martins é um autor que consegue expor o serhumano em seus sentimentos e <strong>de</strong>sejos mais profun<strong>do</strong>s. Extremamente observa<strong>do</strong>r, realista ehumanista, ele nos propicia um conhecimento <strong>do</strong> panorama socioeconômico, histórico ecultural em que vivia a mulher gaúcha, pelo viés da sensibilida<strong>de</strong>, expressan<strong>do</strong> valores esensações que não são captadas pela realida<strong>de</strong> científica da história.


19Ao abordar o tema <strong>do</strong> êxo<strong>do</strong> rural Cyro Martins procura recriar em sua ficção literáriauma época histórica <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul no início <strong>do</strong> século XX. Dessa forma esse autor seenquadra na classificação <strong>de</strong> Fabio Lucas (1970, p. 52) como um ficcionista social, poisprocura retratar em suas personagens tipos e heróis sem perspectivas <strong>de</strong> um futuro melhor,mutila<strong>do</strong>s pela socieda<strong>de</strong>, mas que aspiram ser íntegros, mesmo que essa socieda<strong>de</strong> os force atomar atitu<strong>de</strong>s consi<strong>de</strong>radas errôneas. Para esse autor, o caráter social da ficção brasileiraaparece “[...] quan<strong>do</strong> as personagens e as situações criadas possam constituir expressão viva<strong>de</strong> relações entre grupos sociais.” ( 1970, p. 53).Ao estudarmos um autor que afirma preten<strong>de</strong>r expressar uma realida<strong>de</strong> vivenciada nacampanha gaúcha em suas páginas <strong>de</strong> ficção, a<strong>de</strong>ntramos no princípio da representaçãoliterária. Sobre esse assunto consi<strong>de</strong>ramos os estu<strong>do</strong>s e opiniões <strong>de</strong> Fabio Lucas quan<strong>do</strong>afirma que “Não po<strong>de</strong>mos esquecer nunca da obra <strong>de</strong> arte como forma <strong>de</strong> conhecimento eaprofundamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real.” (1970, p. 15), ou a reflexão <strong>de</strong> Antonio Candi<strong>do</strong> aocomentar sua visão <strong>de</strong> Literatura como uma transposição <strong>do</strong> real on<strong>de</strong> “[...] se combinam umelemento <strong>de</strong> vinculação à realida<strong>de</strong> natural ou social, e um elemento <strong>de</strong> manipulação técnica[...]” (2002, p 53) e Hay<strong>de</strong>n White, quan<strong>do</strong> expõe que na História há tanta ficção quanto naLiteratura e, por isso, essa última também po<strong>de</strong> ser vista como um registro histórico concretoe acessível para o pesquisa<strong>do</strong>r da área:Tampouco é incomum para os teóricos da literatura, quan<strong>do</strong> se referem ao“contexto” <strong>de</strong> uma obra literária, supor que esse contexto – o “meio histórico” – temuma concretu<strong>de</strong> e uma acessibilida<strong>de</strong> que a obra em si nunca po<strong>de</strong> ter, como se fossemais fácil perceber a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> constituí<strong>do</strong> com base emmilhares <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos históricos <strong>do</strong> que sondar as profun<strong>de</strong>zas <strong>de</strong> uma única obraliterária que se apresenta aos olhos <strong>do</strong> crítico que a estuda. Mas a suposta concretu<strong>de</strong>e acessibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s meios históricos, estes contextos <strong>do</strong>s textos examina<strong>do</strong>s porestudiosos da literatura, são elas próprias produtos da capacida<strong>de</strong> fictícia <strong>do</strong>shistoria<strong>do</strong>res que estudaram estes contextos. (2001, p. 106)Como enten<strong>de</strong>mos a Literatura como uma forma <strong>de</strong> conhecimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em quevivemos, temos por objetivo <strong>de</strong>sse trabalho verificar como é construída a história,principalmente a história das mulheres, nas narrativas literárias. Procuramos mostrar que aLiteratura transmite um conhecimento histórico ao leitor e, portanto, Cyro Martins, em suatrilogia, apresenta o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX com os problemas enfrenta<strong>do</strong>spelo povo gaúcho. Se ele expressa em suas linhas os problemas que enfrentava a socieda<strong>de</strong>


20gaúcha na época, também apresenta a mulher gaúcha caracterizada com sua submissão esilêncio. Poucos livros <strong>de</strong> História <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul enfocam a vida que levavam asmulheres nesse Esta<strong>do</strong>, pois houve a preocupação <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res em relatar os gran<strong>de</strong>sfeitos heróicos <strong>do</strong>s homens gaúchos nas guerras em que lutaram. Por isso buscamos naLiteratura ficcional estudar as personagens femininas <strong>de</strong> Sem rumo, Porteira fechada eEstrada nova. Acreditamos que nessas obras, Cyro Martins expõe com maestria como era avida <strong>de</strong>ssas mulheres, duplamente oprimidas em relação aos homens <strong>do</strong> tempo.Nosso trabalho será composto <strong>de</strong> três capítulos. No primeiro capítulo, <strong>de</strong>fundamentação teórica, enfocamos o psicanalista e escritor Cyro Martins e as concepções <strong>de</strong>respeitáveis escritores, críticos e psicanalistas sobre a vida e obra literária <strong>de</strong>sse importanteautor.Já no segun<strong>do</strong> capítulo realizamos, primeiramente, uma explanação teórica a respeito<strong>do</strong>s conhecimentos históricos e literários, para isso utilizamos concepções e opiniões <strong>de</strong>diversos estudiosos <strong>do</strong> assunto como Hay<strong>de</strong>n White, Elizabeth Torresini, Sandra JatahyPesavento, Paul Veyne e outros. A seguir, elaboramos uma análise literário-histórica dasobras que constituem a trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé. Nelas, observamos como a história estápresente nas narrativas literárias em estu<strong>do</strong>. Os fatos da história gaúcha em que nos baseamose elaboramos a análise foram retira<strong>do</strong>s <strong>do</strong> livro História <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul <strong>de</strong> SandraJatahy Pesavento.Por fim, no terceiro e último capítulo, organizamos um estu<strong>do</strong> histórico das mulheres,basea<strong>do</strong> na pesquisa <strong>de</strong> Rosalind Miles com a obra A história <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pela mulher e <strong>de</strong>maisobras que vieram a enriquecer o assunto. Após esse apanha<strong>do</strong> histórico formamos uma análisedas personagens das três obras em estu<strong>do</strong>, principalmente das personagens femininas,buscan<strong>do</strong> enten<strong>de</strong>r o contexto social, econômico e cultural <strong>do</strong> universo feminino presente natrilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé, <strong>de</strong> Cyro Martins.


211. CYRO MARTINS: O AUTOR E SUA OBRA1.1 Cyro Martins: vida e obraAntes <strong>de</strong> apresentar as análises das obras, lembramos, nesse capítulo, um pouco <strong>do</strong>si<strong>de</strong>ais, perspectivas e opiniões <strong>do</strong> autor. Preten<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r como se dá o seu processo <strong>de</strong>criação artística e o que ele almeja advertir às pessoas com sua trilogia. Dessa maneira, aquienfocamos Cyro Martins, o homem e o escritor, através <strong>de</strong> comentários <strong>de</strong> críticos eestudiosos <strong>de</strong> suas obras, <strong>de</strong> pessoas que conviveram com ele, e, principalmente, <strong>do</strong> próprioautor quan<strong>do</strong> comenta e explicita o seu processo <strong>de</strong> criação literária.Cyro <strong>do</strong>s Santos Martins é filho <strong>de</strong> Apolinário (chama<strong>do</strong> Bilo) e Felícia <strong>do</strong>s SantosMartins, nasceu em Quaraí – RS, em 5 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1908. Nessa pequena cida<strong>de</strong> interioranaestu<strong>do</strong>u no colégio municipal, com um professor <strong>de</strong> nome Caravaca que apresenta-se comopersonagem <strong>de</strong> duas obras <strong>do</strong> escritor: <strong>do</strong> livro <strong>de</strong> contos Ro<strong>de</strong>io, publica<strong>do</strong> em 1976 e <strong>do</strong>romance O professor, publica<strong>do</strong> em 1988. Aos 12 anos mora em Porto Alegre para estudar noconsagra<strong>do</strong> Ginásio Anchieta, experiência que resulta na novela Um menino vai para ocolégio escrita em 1942. Com apenas 15 anos começa a escrever artigos e contos.Com 19 anos ingressa na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina <strong>de</strong> Porto Alegre, retorna a Quaraí jáforma<strong>do</strong> no ano <strong>de</strong> 1934 para exercer sua ativida<strong>de</strong> médica, nesse ano publica o livro <strong>de</strong>contos Campo fora. No ano seguinte o autor utiliza o termo “gaúcho a pé” em umaconferência. Essa expressão serve para <strong>de</strong>signar sua conhecida trilogia, que traz como tema acrise enfrentada pelo homem <strong>do</strong> campo, que per<strong>de</strong> seu cavalo e sua liberda<strong>de</strong> campesina.Durante três anos <strong>de</strong> prática médica em sua cida<strong>de</strong> natal conhece a miséria social estabelecidapela crescente mo<strong>de</strong>rnização da campanha gaúcha, o que o leva a escrever o romance Semrumo, primeiro romance da trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé, em 1937 na cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiroon<strong>de</strong> foi estudar NeurologiaEm 1942, época da segunda guerra mundial, publica Mensagem errante e em 1944,Porteira fechada, segun<strong>do</strong> romance da trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé, que se encerra com Estradanova (1954), eleito o melhor romance <strong>do</strong> escritor pela crítica literária. Em 1957 lança Paz noscampos on<strong>de</strong> expõe contos e novelas que serão utiliza<strong>do</strong>s para outras publicações.


22Entre os anos <strong>de</strong> 1958 a 1964 tem vários trabalhos traduzi<strong>do</strong>s para o alemão e oespanhol. Nos anos seguintes mostra-se preocupa<strong>do</strong> com os problemas sociais e culturais <strong>de</strong>seu tempo, lançan<strong>do</strong> ensaios psicanalíticos como: Do mito à verda<strong>de</strong> científica (1964), Acriação artística e a psicanálise (1970), Perspectivas <strong>do</strong> humanismo psicanalítico (1973),Orientação educacional e profilaxia mental (1974), Rumos <strong>do</strong> humanismo médicocontemporâneo (1977). E publica antologias <strong>de</strong> contos como: A entrevista (1968) e Ro<strong>de</strong>io(estampas e perfis) (1976), também analisa obras <strong>de</strong> seus amigos em Escritores gaúchos(1976).Cyro Martins publica, além <strong>do</strong>s já menciona<strong>do</strong>s, cinco romances: Enquanto as águascorrem (1939), Sombras na correnteza (1979), on<strong>de</strong> homenageia seu pai Bilo, ten<strong>do</strong> comopano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong> a revolução <strong>de</strong>1893 e 1923; em 1980 publica A dama <strong>do</strong> sala<strong>de</strong>iro (contos),em 1982 O príncipe da vila, e em 1983 e 1984 os respectivos ensaios: O mun<strong>do</strong> em quevivemos e A mulher na socieda<strong>de</strong> atual, on<strong>de</strong> se mostra um escritor preocupa<strong>do</strong> com o papel eas condições da mulher na socieda<strong>de</strong> atual; em Gaúchos no obelisco (1984), comenta arevolução <strong>de</strong> 1930 ironicamente, e em 1985 lança Na curva <strong>do</strong> arco-íris.Em 1986 é homenagea<strong>do</strong> na 32ª Feira <strong>do</strong> Livro <strong>de</strong> Porto Alegre, homenagem tambémaos seus 80 anos, em 1990, um grupo <strong>de</strong> amigos lança o prêmio Literário Cyro Martins.Ainda nesse ano lança um livro <strong>de</strong> memórias intitula<strong>do</strong> Para início <strong>de</strong> conversa, sen<strong>do</strong> queseu último livro <strong>de</strong> ficção Um sorriso para o <strong>de</strong>stino é publica<strong>do</strong> em 1991, após esse aindalançou <strong>do</strong>is ensaios psicanalíticos: Caminhos (1993) e Páginas soltas (1994). Cyro Martinsveio a falecer em 15 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1995 em Porto Alegre, com 87 anos, ten<strong>do</strong> reformula<strong>do</strong>toda a sua obra em companhia <strong>de</strong> seu editor ainda em vida.Atualmente é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s maiores escritores sul-rio-gran<strong>de</strong>nses. Os livros dasua trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé: Sem rumo, Porteira fechada e Estrada nova, são, com certeza,exemplos <strong>de</strong> romances <strong>de</strong> cunho social <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. Foi um <strong>do</strong>s poucos escritores aser reconheci<strong>do</strong> ainda em vida e a tentar <strong>de</strong>monstrar a marginalização <strong>do</strong> homem <strong>do</strong> campoem uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tecnologias, por isso muitos críticos o consi<strong>de</strong>ram precursor <strong>de</strong>ntro dasua especificida<strong>de</strong> literária.


23Toda a bibliografia <strong>de</strong> Cyro Marins acima citada foi retirada <strong>do</strong> sitehttp://www.celpcyro.org.br, Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Literatura e Psicanálise Cyro Martins,organiza<strong>do</strong> por Maria Helena Martins, filha <strong>do</strong> escritor. Trata-se <strong>de</strong> uma instituição quetrabalha com a obra <strong>do</strong> escritor e promove estu<strong>do</strong>s acerca <strong>de</strong> literatura e psicanálise. Além <strong>de</strong>disponibilizar o acervo <strong>do</strong> autor para pesquisas, <strong>de</strong>senvolve projetos, o que resultou naqualificação OSCIP - Organização da Socieda<strong>de</strong> Civil <strong>de</strong> Interesse Público (Proc. MJ nº.08026.013493/2004-01), por ser uma instituição sem fins lucrativos e ter por <strong>final</strong>ida<strong>de</strong>promover a cultura.Após exposta a biografia, é importante para nosso estu<strong>do</strong> conhecer um pouco <strong>do</strong>homem, <strong>do</strong> escritor e <strong>do</strong> psicanalista Cyro Martins, a fim <strong>de</strong> que possamos melhorcompreen<strong>de</strong>r seus escritos, a escolha <strong>de</strong> seu tema, seus personagens, sua linguagem, seuhumanismo, enfim, sua obra literária. Os comentários sobre o escritor que se seguem foramretira<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Cyro Martins 90 anos, organiza<strong>do</strong> por Maria Helena Martins e publica<strong>do</strong> em1999. Nesse livro encontramos opiniões <strong>de</strong> críticos e estudiosos da obra <strong>do</strong> escritor gaúchotais como: CLáudio Martins, filho <strong>do</strong> escritor, Isaac Pechansky, Tânia Franco Carvalhal, LeaMasina, Liana Timm e Décio Freitas. Utilizamos ainda o site http://www.celpcyro.org.br, <strong>de</strong>on<strong>de</strong> tiramos outras explanações da vida <strong>de</strong>sse autor, essas anotações estão melhor explicadasem notas <strong>de</strong> rodapé, por fim, nos valemos das palavras <strong>do</strong> próprio Cyro em obras como: Acriação artística e a psicanálise e Para início <strong>de</strong> conversa.Primeiramente, convém apresentar um <strong>de</strong>poimento que julgamos essencial e quepertence a seu filho Cláudio Martins (1999, p.80), cuja preocupação é em apresentar o paicomo um ser humano <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> e corajoso:A sua energia <strong>de</strong> vida, permanente e admirada por to<strong>do</strong>s que ocercavam, alimentou-se muito da visão humanista, que ocaracterizou nas letras e na ciência, auxilian<strong>do</strong>-o na superação dasadversida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua vida com <strong>de</strong>terminação e coragem.Essa visão humanista que Cláudio enfoca, o autor <strong>de</strong>ixa transparecer através daLiteratura. Isaac Pechansky (1999, p. 114) o <strong>de</strong>fine como um homem extremamente sensível,<strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> um <strong>do</strong>m, o <strong>do</strong>m da palavra como forma <strong>de</strong> expressão. Para Isaac, Cyro conseguearticular perfeitamente as palavras para atingir seus objetivos, por isso é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> umgran<strong>de</strong> enten<strong>de</strong><strong>do</strong>r da alma humana:


24Dota<strong>do</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong>, bem po<strong>de</strong>ria ter envereda<strong>do</strong> por qualquer um <strong>do</strong>scaminhos da ativida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra. Mas, por um <strong>de</strong>sses mistérios ainda não bemexplica<strong>do</strong>s, o rumo que escolheu foi o da criação literária, ou seja, o caminho dapalavra como forma <strong>de</strong> expressão. Escolheu, não como resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong>consciente exclusiva, mas por uma <strong>de</strong>terminação interior, um <strong>do</strong>m, que <strong>de</strong>safia aargúcia <strong>de</strong> tantos que buscaram, e ainda buscam, uma explicação para essefenômeno quase mágico da natureza humana.O autor, no entanto, mostra-se bastante humil<strong>de</strong> em relação a sua criação artística. Noensaio A criação artística e a psicanálise, comenta que não se consi<strong>de</strong>ra um escritor <strong>de</strong>carreira visto que escreve para passar o tempo, para uma distração. Isso não significa que nãotem um certo carinho pelas suas narrativas:[...] embora tenha começa<strong>do</strong> ce<strong>do</strong>, não me tornei um escritor <strong>de</strong> carreira,permanecen<strong>do</strong> na condição <strong>de</strong> escritor bissexto, pois toda minha literatura foi feitano rabo das horas. O melhor das minhas possibilida<strong>de</strong>s intelectuais foi consagra<strong>do</strong> àmedicina, em especial à psiquiatria e à psicanálise. Mas essa afirmação não significamenos ternura pelo que realizei no plano da ficção literária. (1970, p. 87)Na narrativa ficcional <strong>de</strong> Cyro é possível observar o apego que apresenta a sua terra, aoscostumes, à linguagem e, sobretu<strong>do</strong> aos tipos humanos da campanha gaúcha que procuraretratar. Tânia Franco Carvalhal (1999, p. 35-36) aponta que “[...] a conciliação <strong>do</strong> popularcom o erudito nos permite reconhecer, <strong>de</strong> pronto, as origens gauchescas <strong>do</strong> autor cujaformação letrada levou à recriação literária <strong>de</strong> temas, personagens e cenários pertencentes ao<strong>do</strong>mínio da experiência campeira”.Sobre isso, o autor afirma que “a criação artística é concomitantemente recriação”(MARTINS, 1970, p. 34) e que o espaço utiliza<strong>do</strong> em suas narrativas foi absorvi<strong>do</strong> <strong>de</strong> suaslembranças das brinca<strong>de</strong>iras infantis no campo:[...] o rememorar a infância não me aborrece. Pelo contrário, tenho experimenta<strong>do</strong>emoções gratificantes ao <strong>de</strong>bruçar-me sobre o bocal <strong>de</strong>sse poço [...] Não tenho máslembranças <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s perturban<strong>do</strong> meus “faz-<strong>de</strong>-conta”. Assim, sozinho, no meioduma enorme gadaria <strong>de</strong> osso e com vários cavalinhos-<strong>de</strong>-pau, longe das casas, mais<strong>de</strong> cem metros, eu ficava horas inteiras inventan<strong>do</strong> histórias <strong>de</strong> vida campeira, <strong>de</strong>estância, <strong>de</strong> negócios <strong>de</strong> ga<strong>do</strong>, <strong>de</strong> tropeadas, <strong>de</strong> aparte <strong>de</strong> boi para o sala<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong><strong>do</strong>mas. Enfim, era uma construção fantástica baseada na realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> dia-a-dia queembebia os meus olhos [...] os meus brinque<strong>do</strong>s eram inventa<strong>do</strong>s por mim, com todaa pobreza <strong>de</strong> recursos da campanha [...] (MARTINS, 1990, p. 20)Da mesma maneira, ele observa que seus personagens procuram ao máximo retratar ostipos sociais da campanha, pessoas que chegavam à venda <strong>de</strong> seu pai à beira da estrada:


25Na venda chegavam tipos <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os naipes. E eu, quan<strong>do</strong> não estava lá pela minhaestância <strong>de</strong> mentira ou não andava camperean<strong>do</strong> <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s, monta<strong>do</strong> no meupetiço <strong>do</strong>radilho, estava lá na venda, bisbilhotan<strong>do</strong> os fregueses que chegavam, cadaum com seu jeito, alguns estranhos, que iam <strong>de</strong> passagem e chegavam para tomarum trago, enquanto outros eram conheci<strong>do</strong>s, fregueses <strong>de</strong> livreta. Mas bem que àsvezes apareciam uns tipos raros e meus olhos luziam indaga<strong>do</strong>res e sorrateiros,louquinhos por <strong>de</strong>scobrir as estranhezas <strong>do</strong> cabra. (MARTINS, 1990, p. 20)O autor também enfatiza que seus temas advêm das inúmeras histórias e causosconta<strong>do</strong>s pelo pai e pelos peões que chegavam à venda <strong>de</strong> seu Bilo:Juntava os causos já ouvi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> banditismo, conta<strong>do</strong>s pelo meu pai ou pelos peões,no galpão. Juntava todas essas histórias e <strong>de</strong> várias fazia uma, dramatizan<strong>do</strong>-a,solito, usan<strong>do</strong> como instrumento para armar a imaginação os meus cavalinhos-<strong>de</strong>pau,o ga<strong>do</strong> <strong>de</strong> osso ou os ro<strong>de</strong>ios <strong>de</strong> pedrinhas bonitas. (MARTINS, 1990, p. 21)E conclui que suas vivências <strong>de</strong> infância e a<strong>do</strong>lescência na campanha <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong>Sul, mais propriamente na localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cerro <strong>do</strong> Marco, distrito <strong>de</strong> Quaraí, influenciaram nacapacida<strong>de</strong> criativa <strong>de</strong> elaborar ficção literária:[...] muito antes <strong>de</strong> repensar literariamente a vida campeira, eu a dramatizei no pêloa-pêlo<strong>do</strong>s meus brinque<strong>do</strong>s <strong>de</strong> guri <strong>de</strong> campanha. Hoje não tenho dúvidas <strong>de</strong> queaqueles exercícios <strong>de</strong> imaginação, continua<strong>do</strong>s durante anos tiveram gran<strong>de</strong>influência no meu gosto pela ficção. (MARTINS, 1990, p. 21)Como um estudioso da psicanálise, Cyro consi<strong>de</strong>ra a vivência um fator fundamentalpara a criação literária acreditan<strong>do</strong> que “as que calam e dão romance são as da infância ea<strong>do</strong>lescência.” (1990, p. 117) e que, no caso <strong>do</strong>s escritores, as impressões vivenciadas no diaa-diasão as bases essenciais para <strong>de</strong>spertar emoções que mais tar<strong>de</strong> serão expostas e melhortrabalhadas nas obras literárias:Sem muitos ro<strong>de</strong>ios nem teorias, direi que arte e vida estão sempre irmanadas... Nãoque o escritor vá reproduzir nos contos e romances sua própria vida. O escritor, omais das vezes, projeta nas suas páginas <strong>de</strong> ficção, quase sempre sem se aperceber,emoções que suas vivências lhe <strong>de</strong>spertaram. (MARTINS, 1990, p. 105)Léa Masina apresenta Cyro Martins como um homem constantemente preocupa<strong>do</strong> coma questão social e com a verda<strong>de</strong>, para ela o autor era “homem <strong>de</strong> trato lhano, generoso, <strong>de</strong>gestos largos e riso fácil, que escrevia sem <strong>de</strong>magogia, manten<strong>do</strong>-se fiel a uma literaturarealista e crítica”. (1999, p.137)


26Essa mesma opinião tem o autor sobre si mesmo. Ao relatar o processo <strong>de</strong> criação darealista trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé, expõe sutilmente o olhar sensível que possuía em relação àsmisérias alheias e a preocupação que tinha em expor o mais próximo possível da realida<strong>de</strong> ocotidiano <strong>do</strong> homem pobre <strong>do</strong> campo:Os pobres da campanha não passavam fome. Tomavam leite e comiam carne, arroz,feijão preto, abóbora nascida guacha ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> rancho, sim, guacha, sem mãe. [...]Quase to<strong>do</strong>s os posteiros, os que tinham como obrigação <strong>de</strong>clarada cuidar o fun<strong>do</strong>das estâncias, aqueles plantavam uma lavourinha <strong>de</strong> milho, batata-<strong>do</strong>ce, melancia eabóbora. E o patrão sempre lhe cedia uma ou duas vacas <strong>de</strong> leite. Mas, não restamdúvidas, eram marginais, porque não tinham a menor chance <strong>de</strong> melhorar <strong>de</strong> nívelsocial e econômico. Em síntese, senti minha própria gente, e eu mesmo, muito pertoda condição <strong>de</strong> marginal, não no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>linqüente, mas no <strong>de</strong> impossibilita<strong>do</strong>,por escassez <strong>de</strong> recursos, <strong>de</strong> participar da socieda<strong>de</strong> que vive em torno. (MARTINS,1990, p. 116)Através <strong>de</strong> suas obras, Cyro impressiona por ser um gran<strong>de</strong> observa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> homem, danatureza humana, numa linguagem clara “Cyro escrevia direto e simples como falava”(PECHANSKY, 1999, p. 53), dan<strong>do</strong> a impressão <strong>de</strong> que tentava facilitar para que o enre<strong>do</strong>permanecesse na memória <strong>do</strong> leitor. A maior preocupação <strong>de</strong>sse escritor era enten<strong>de</strong>r o serhumano, talvez por isso suas personagens apresentam uma certa profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentimentosque, para Liana Timm (1999, p. 63) <strong>de</strong>rivam <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> conhecimento <strong>do</strong> autor pois “além <strong>de</strong>escritor, era um sabe<strong>do</strong>r na prática, das necessida<strong>de</strong>s, possibilida<strong>de</strong>s e dificulda<strong>de</strong>s humanas”.Nessa mesma linha, Décio Freitas (1999, p. 22) vai além e situa a importância <strong>de</strong> CyroMartins pela crítica que faz à história <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul:Curiosamente, são os escritores que fazem, na literatura, a crítica da história <strong>do</strong> RioGran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. São as visões mais lúcidas, as <strong>do</strong>s escritores. Um <strong>de</strong>les foiindubitavelmente o Cyro. Eu ficava pensan<strong>do</strong> naquele homem tão suave, como eleera e, no entanto, com tanta força em sua crítica, <strong>de</strong>vasta<strong>do</strong>ra, sobretu<strong>do</strong> corajosa.O próprio autor procura <strong>de</strong>finir-se ao comentar sobre o importante papel que o escritor<strong>de</strong>sempenha para a socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> está inseri<strong>do</strong>. Para isso, o autor observa que é precisoanalisar e transmitir às pessoas, através da escrita, algumas das experiências subjetivas vividaspara que essas possam enten<strong>de</strong>r o mun<strong>do</strong> em que vivem e melhorá-lo, tornan<strong>do</strong>-o maishumano:É assim que vemos o artista, o escritor, como órgão social, cuja função precípuaconsiste em elaborar e transmitir, esteticamente, experiências subjetivas eimpressões sensoriais provindas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior, mas transfiguradas pelaprojeção. (1999, p. 195)


271.2 Trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé: uma gênese <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradação sócio-econômica<strong>do</strong> homem <strong>do</strong> campo sul-rio-gran<strong>de</strong>nseEm sua trilogia Cyro Martins procura dar uma possível explicação para a miséria que hánas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s gaúchas, principalmente ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong>las, em sua periferia. Sua obra narra agênese <strong>de</strong>sse processo <strong>de</strong> superlotação das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, tal como se vê hoje.De certa maneira Érico Veríssimo e Cyro Martins abordam o mesmo tema: o RioGran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul em sua fase campesina, das gran<strong>de</strong>s fazendas <strong>de</strong> campanha e sua criação <strong>de</strong>ga<strong>do</strong>, base da economia sul- riogran<strong>de</strong>nse da época. Uma das diferenças <strong>de</strong> estilo entre os<strong>do</strong>is escritores está no fato <strong>de</strong> Érico enfocar preferencialmente em seus romances a classe alta,<strong>de</strong> condições sociais e econômicas elevadas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu início até seu fim, sua ruína; CyroMartins, pelo contrário, preocupa-se em dar voz aos pequenos proprietários, peões, posteiros,arrendatários, carreteiros, agrega<strong>do</strong>s e outros tipos sociais <strong>de</strong>sampara<strong>do</strong>s, que per<strong>de</strong>ram opouco que tinham e se viram obriga<strong>do</strong>s a migrar para a cida<strong>de</strong> em busca <strong>de</strong> um futuro melhorpara a família.Nesse texto, procuramos antecipar brevemente o enre<strong>do</strong> <strong>do</strong>s livros que compõem atrilogia em estu<strong>do</strong> e que será melhor <strong>de</strong>senvolvida nos capítulos <strong>de</strong> análise. Já queapresentamos comentários críticos sobre suas obras, é importante que possamos enten<strong>de</strong>r umpouco <strong>do</strong> universo ficcional <strong>de</strong> Sem rumo, Porteira fechada e Estrada nova.Em Sem rumo é narrada a vida <strong>de</strong> um peão <strong>de</strong> estância chama<strong>do</strong> Chiru, que vive naEstância <strong>do</strong> Silêncio e é cria<strong>do</strong> livremente. Devi<strong>do</strong> às surras e humilhações que sofre <strong>do</strong>capataz <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> fugir da estância ainda jovem. Após sua fuga, tenta ganhar a vida <strong>de</strong> diversasmaneiras como carreteiro, mascate e boteiro, sen<strong>do</strong> que à época <strong>de</strong>ssa última ocupação eraano <strong>de</strong> eleição (primeira vez <strong>do</strong> voto secreto no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul) e Chiru i<strong>de</strong>ntifica-se coma i<strong>de</strong>ologia <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> da oposição, por isso sofre gran<strong>de</strong> pressão <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> que está no po<strong>de</strong>r.Chega<strong>do</strong> o dia da votação ele se atrapalha ao <strong>de</strong>positar a cédula e essa sua atitu<strong>de</strong> éinterpretada como prova <strong>de</strong> infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, o que lhe causa a perda <strong>do</strong> emprego <strong>de</strong> boteiro. Aoencontrar outro serviço numa obra <strong>do</strong> governo, na construção <strong>de</strong> uma ferrovia, é novamente<strong>de</strong>miti<strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> <strong>de</strong> ter apoia<strong>do</strong> a oposição. No fim <strong>do</strong> romance Chiru não sabe em quem


28votou, e sua família está sem <strong>de</strong>stino, novamente <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>, Chiru está, literalmente, semrumo.Em Porteira fechada o autor utiliza a técnica <strong>do</strong> flash back, pois a história inicia peloseu fim, o narra<strong>do</strong>r retroce<strong>de</strong> no tempo e remete o leitor ao passa<strong>do</strong>, para relatar a vida <strong>de</strong>Gue<strong>de</strong>s e sua família. João Gue<strong>de</strong>s arrenda um pequeno pedaço <strong>de</strong> terra que lhe serve apenaspara sustento <strong>de</strong> um fazen<strong>de</strong>iro, que se enforca por causa <strong>de</strong> dívidas. A terra passa, então, paraJúlio Bica, estancieiro local que aumenta suas proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>masiadamente. Ao assumir aproprieda<strong>de</strong> Júlio Bica exige que Gue<strong>de</strong>s aban<strong>do</strong>ne sua terra com a explicação <strong>de</strong> que fará láum campo para o engor<strong>de</strong> <strong>de</strong> bois. Dessa maneira, Gue<strong>de</strong>s, sua esposa e mais cinco filhospartem à cida<strong>de</strong> para tentar uma vida melhor.Na cida<strong>de</strong> Gue<strong>de</strong>s não encontra emprego, o que o leva a beber e frequentar um boliche,on<strong>de</strong> faz amiza<strong>de</strong>s com outros que estão na mesma situação. Ao ver a família passar fome, eleobriga-se a roubar ovelhas das fazendas próximas da cida<strong>de</strong> para ven<strong>de</strong>r o pelego e utilizar acarne como alimento. Num <strong>de</strong>sses roubos é preso em flagrante e vai preso. Sua esposa tenta<strong>de</strong> todas as maneiras libertá-lo e pe<strong>de</strong> auxílio a parentes ricos, porém <strong>de</strong> nada adiantam seusapelos. Ao ser solto, Gue<strong>de</strong>s é obriga<strong>do</strong> a ven<strong>de</strong>r o único vínculo que ainda lhe resta com opassa<strong>do</strong>: os arreios, fato esse que aumenta sua tristeza e humilhação. Alguns dias após éencontra<strong>do</strong> morto perto <strong>de</strong> uma sanguinha.Em Estrada nova, Cyro preocupa-se em traçar um caminho para o processo <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rnização que ocorre na campanha gaúcha <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao gran<strong>de</strong>crescimento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> tecnológico. O romance inicia com o suicídio <strong>do</strong> velho Policarpo,homem que foi expulso <strong>do</strong> campo, e se enforca com o manea<strong>do</strong>r na pensão on<strong>de</strong> viveRicar<strong>do</strong>, um jovem contabilista que nasceu na campanha e foi para a cida<strong>de</strong> servir e estudar.Com essa triste cena, Ricar<strong>do</strong> resolve “voltar aos pagos” para ver como está seu pai Janguta, amãe e a irmã, temen<strong>do</strong> que estejam na miséria.As terras que o pai <strong>de</strong> Ricar<strong>do</strong> arrenda pertencem ao Coronel Teo<strong>do</strong>ro, estancieiro brutoe individualista, que <strong>do</strong>mina a região com seu po<strong>de</strong>rio financeiro e está muito preocupa<strong>do</strong>com o comunismo. Teo<strong>do</strong>ro expulsa a família <strong>de</strong> Janguta e Ricar<strong>do</strong> enfrenta o fazen<strong>de</strong>iro,alegan<strong>do</strong> haver pessoas que lutam pela questão social, que se preocupam com as pessoas quesaem <strong>do</strong> campo sem terem para on<strong>de</strong> ir e que logo tu<strong>do</strong> seria <strong>de</strong>muda<strong>do</strong>. Por causa <strong>de</strong>ssa


29afirmação passa a ser visto como comunista pelo Coronel Teo<strong>do</strong>ro, que faz uma queixa àpolícia e or<strong>de</strong>na a prisão <strong>do</strong> jovem, mas a polícia não chega a tempo. Ricar<strong>do</strong> sai <strong>do</strong>s camposlivre, passa em São João Batista para noivar com Celeste, moça que conhece na visita aospais, e <strong>de</strong>pois intenciona rumar para Porto Alegre.Em São João Batista, parti<strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res e progressistas se enfrentam. Lá Ricar<strong>do</strong> évisto como um alia<strong>do</strong> das mudanças políticas e luta<strong>do</strong>r pela igualda<strong>de</strong> social. O moço, porém,resolve voltar para sua casa sem engajar-se em nenhum parti<strong>do</strong> político, pois acredita quelogo as coisas irão melhorar para os homens <strong>do</strong> campo. O mesmo pensa Janguta ao ir emboraa pé da campanha, rumo à cida<strong>de</strong>, sem nada, mas esperançoso <strong>de</strong> que logo haverá um novocaminho, uma nova estrada, para sua gente.Em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> ter causa<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s esses acontecimentos, Teo<strong>do</strong>ro sente que suaganância não levou a nada e que existem pessoas que enfrentam seu man<strong>do</strong>nismo eautoritarismo, vê que os tempos estão mudan<strong>do</strong> e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> mudar-se, também, para a cida<strong>de</strong>.Dessa maneira, a trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé recria um Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul <strong>do</strong> início <strong>do</strong>século XX com seus problemas humanos, sociais, políticos e econômicos. Sem rumo mostra oinício <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> expulsão <strong>do</strong> homem <strong>do</strong> campo, <strong>de</strong> classe baixa, menos favoreci<strong>do</strong>: <strong>do</strong>peão, <strong>do</strong> carreteiro, <strong>do</strong> capataz, <strong>do</strong> agrega<strong>do</strong>, etc., Porteira fechada aborda um momento <strong>de</strong><strong>de</strong>sespero total <strong>do</strong> gaúcho, que se vê obriga<strong>do</strong> a sair <strong>do</strong> campo, <strong>de</strong>sprepara<strong>do</strong> para asexigências da vida citadina, o que o leva ao suicídio, e em Estrada nova, há um êxo<strong>do</strong> ruralcompleto, até mesmo <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s proprietários <strong>de</strong> terra pela falta <strong>de</strong> recursos e pela gran<strong>de</strong>infiltração tecnológica na campanha gaúcha, o que não impe<strong>de</strong> que o autor <strong>final</strong>ize dan<strong>do</strong> umaesperança à classe marginalizada <strong>do</strong> campo.Sobre essas obras Cyro Martins comenta que não teve em nenhum momento e intenção<strong>de</strong> elaborar uma trilogia, e sim <strong>de</strong> representar as figuras sociais da campanha rio-gran<strong>de</strong>nse:Essa trilogia, que não nasceu trilogia, mas que, embora sem intenção premeditada,ao longo <strong>do</strong> seu e <strong>do</strong> meu caminho foi adquirin<strong>do</strong> essas características, enriqueceuse<strong>de</strong> <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong> livro para livro, a ponto <strong>de</strong> eu agora po<strong>de</strong>r dizer, semexagero, que quase todas as figuras representativas das diversas camadas dapopulação da campanha rio-gran<strong>de</strong>nse e das cida<strong>de</strong>s estão aí, em <strong>de</strong>sfile, com seupitoresco, com as suas altanerias, com seus trapos, com suas humilhações, enfim,com seus aspectos formais e essenciais, principalmente. (1997, P. 12)


30Dessa maneira, a narrativa ficcional <strong>de</strong>sse autor aponta um tempo <strong>de</strong> mudanças sociais,<strong>de</strong> inconstância e <strong>de</strong> empobrecimento <strong>do</strong> povo sul-rio-gran<strong>de</strong>nse <strong>do</strong> campo, pois a socieda<strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rnizava-se, começava a aumentar a população das cida<strong>de</strong>s, a indústria e o comérciocresciam intensamente.Na verda<strong>de</strong>, as massas campeiras foram sen<strong>do</strong> pouco a pouco dispensadas – por quenão dizer excluídas? – por <strong>de</strong>snecessárias, numa <strong>de</strong>corrência lógica <strong>do</strong> rumo quetomavam as li<strong>de</strong>s campeiras. Com efeito, o gaúcho pobre não foi chama<strong>do</strong> aparticipar <strong>do</strong> ciclo que se iniciava, <strong>de</strong> intensa comercialização da pecuária.(MARTINS, 1997, p. 27)Tânia Franco Carvalhal (1999, p. 37) afirma que Cyro em sua trilogia, a que ele mesmoaplica a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé, vai contrapor à feição i<strong>de</strong>alizada <strong>do</strong> gaúchouma <strong>versão</strong> mais realista e coerente com mudanças econômicas e sociais porque a figurapassa a ser obrigada a apear <strong>do</strong> cavalo, a migrar para centros urbanos e a enfrentar aperspectiva <strong>do</strong> horizonte reduzi<strong>do</strong>.Deste mo<strong>do</strong>, não é só o gaúcho pobre que é obriga<strong>do</strong> a sair <strong>do</strong> campo por causa <strong>do</strong>sgran<strong>de</strong>s latifúndios, mas também os gran<strong>de</strong>s estancieiros, pelo progresso <strong>do</strong>s tempos e pelamo<strong>de</strong>rnização que a<strong>de</strong>ntra na campanha e expulsa aqueles que não sabem fazer outra coisasenão as li<strong>de</strong>s campeiras. Assim, a problemática que Cyro aborda é social, coletiva, comoafirma José Clemente Pozenato:Mas acredito que Cyro Martins começou a fazer romances em que as personagensaparecem quase que em plano <strong>de</strong> conjunto. Sem <strong>de</strong>smerecer a força <strong>de</strong> personagensparticulares, como Chirú e outros, o que a visão <strong>do</strong> leitor apanha é o quadro social,to<strong>do</strong>, presente na narrativa. (1999, p. 48)Carlos Jorge Appel, em seu estu<strong>do</strong> crítico As coxilhas sem monarca comenta sobre atemática <strong>de</strong> Cyro Martins, e para isso utiliza as próprias palavras <strong>do</strong> o autor quan<strong>do</strong> comentaque foi convida<strong>do</strong>, em 1935, pelas damas <strong>de</strong> carida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Quaraí para fazer uma conferênciana Semana <strong>do</strong> Cobertor, uma campanha municipal para os <strong>de</strong>sabriga<strong>do</strong>s. Para isso, Cyro seperguntava:Sobre o que falar? Qual será o assunto mais interessante para o público e, ao mesmotempo <strong>de</strong> algum valor social? Cheguei à conclusão <strong>de</strong> que o mais lógico seriaabordar um tema que incluísse fundamentalmente a gente a qual se <strong>de</strong>stinavam oscobertores e <strong>de</strong>mais abrigos que estavam sen<strong>do</strong> angaria<strong>do</strong>s na cida<strong>de</strong>. 11 http://www.celpcyro.org.br/v4/Fortuna_Critica/couxinhas.htm


31Esse mesmo autor, no texto acima referi<strong>do</strong>, enfatiza que Cyro era o médico quepercorria to<strong>do</strong>s os dias os casebres que circundavam a cida<strong>de</strong>, alguns construí<strong>do</strong>s <strong>de</strong> barro,outros <strong>de</strong> lata, <strong>de</strong> to<strong>do</strong> e qualquer material que estivesse disponível no lixo, e as cenas<strong>do</strong>lorosas que presenciou nesse submun<strong>do</strong> o fizeram refletir que eram os latifúndios osresponsáveis por esse êxo<strong>do</strong> rural. Decidi<strong>do</strong> que naquela conferência abordaria a questão <strong>do</strong>êxo<strong>do</strong> rural, afirma em Para início <strong>de</strong> conversa a forte emoção que sente quan<strong>do</strong> vê essaspessoas que migram <strong>do</strong> campo em busca <strong>de</strong> uma vida melhor na cida<strong>de</strong>:Os leitores que me per<strong>do</strong>em, mas sempre me emociono com o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> nossospatrícios, que per<strong>de</strong>ram o cavalo e a distância e foram morrer miseravelmente naal<strong>de</strong>ia das cida<strong>de</strong>zinhas, ou então são hoje maloqueiros nos arre<strong>do</strong>res das cida<strong>de</strong>sgran<strong>de</strong>s. (1990, p. 68)Em seus romances o homem campeiro está em <strong>de</strong>cadência social e moral, inapto para asmudanças que surgem, sentin<strong>do</strong>-se humilha<strong>do</strong> e sem perspectiva <strong>de</strong> um futuro melhor, porqueseu caminho não tem rumo e as estâncias estão <strong>de</strong> porteiras fechadas, o que não significa quenão haja uma solução para essa crise, uma estrada nova, uma esperança.A gran<strong>de</strong> inovação <strong>de</strong> Cyro Martins é apresentar um gaúcho pobre, marginaliza<strong>do</strong>, semo cavalo, o símbolo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za, valentia e coragem daquele gaúcho romântico até entãoretrata<strong>do</strong> pelos escritores rio-gran<strong>de</strong>nses. Seus gaúchos são homens aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s à própriasorte, como enfatiza Elizabeth Pires Rizzato, em seu texto Cyro Martins e o gaúcho: mito,i<strong>de</strong>ologia e regionalismo:Cyro Martins elege a mesma personagem usada pelos seus pares nas décadasanteriores – o gaúcho, o peão – só que <strong>de</strong>spi<strong>do</strong> <strong>de</strong> todas as glórias – um gaúcho<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, viven<strong>do</strong> numa socieda<strong>de</strong> também <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte. Ocorre agora o contrapontoentre a campanha i<strong>de</strong>alizada da estância, <strong>do</strong> galpão, da fartura, <strong>do</strong> cavalo, dadistância e a crise <strong>de</strong>ssa mesma estância, da subdivisão <strong>do</strong>s campos, da mestiçagem<strong>do</strong>s rebanhos e <strong>do</strong> <strong>de</strong>spovoamento. 2Cyro <strong>de</strong>spe esse gaúcho <strong>de</strong> suas glórias passadas <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao que observava na época <strong>de</strong>férias, quan<strong>do</strong> retorna a Quarai:Jovem, acompanhava empolga<strong>do</strong> na imprensa e nos livros o arremesso i<strong>de</strong>alístico <strong>do</strong>perfil <strong>do</strong> flete e <strong>do</strong> ginete e também ouvia nas rodas ruapraieiras entusiasmossacudin<strong>do</strong> palas. Mas nas férias, quan<strong>do</strong> voltava para a venda <strong>do</strong> meu pai, na beira2 http://www.celpcyro.org.br/v4/Estante_Autor/Cyro_Gaucho.htm


32da estrada, o <strong>de</strong>sfile que observava era bem diferente, configuran<strong>do</strong> um afresco <strong>de</strong><strong>de</strong>cadência que nenhuma retórica nativista conseguiria encaixar numa inventivarósea. Havia lugar, sim, para o patético, naquele <strong>do</strong>loroso <strong>de</strong>sandar, rumo ao semrumo. 3Sobre o seu tema literário, o escritor afirma que sua obra é consi<strong>de</strong>rada localista eestabelece uma distinção fundamental entre localismo e regionalismo:Bem diferente é o espírito que anima a literatura localista, mais prosaica, maisinclinada aos temas <strong>do</strong> cotidiano e ao estu<strong>do</strong> das <strong>de</strong>pressões coletivas. Enquanto oregionalismo sublima as suas virtu<strong>de</strong>s na glorificação <strong>do</strong> indivíduo, <strong>do</strong> tipo, <strong>do</strong>arquétipo e, no nosso caso, <strong>do</strong> “monarca das coxilhas” – o localismo evi<strong>de</strong>ncia os<strong>de</strong>feitos e as crises <strong>do</strong> grupo social em foco, sugerin<strong>do</strong> a reparação <strong>do</strong>s danos.(MARTINS, 1997, p. 25)Para Cyro Martins em Escritores gaúchos, o regionalismo apresenta seu tema segun<strong>do</strong>as necessida<strong>de</strong>s vigentes da socieda<strong>de</strong>. Assim, aquele gaúcho carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> lirismo ce<strong>de</strong> lugarao gaúcho pobre e humil<strong>de</strong>, que enfrenta a dura realida<strong>de</strong> da vida no campo:Quanto à produção regionalista contemporânea, po<strong>de</strong>mos dizer que é escassa e, <strong>de</strong>certo mo<strong>do</strong>, revolucionária. Revolucionária na forma, nos motivos e na visãosociológica da nossa gente campeira, hoje em gran<strong>de</strong> parte emparedada nosarre<strong>do</strong>res miseráveis das cida<strong>de</strong>zinhas e reduzida à condição “marginal”. É umaliteratura sem gran<strong>de</strong> brilho, mas que se esforça tenazmente por mostrar a verda<strong>de</strong>acerca da existência sem rumo <strong>do</strong> gaúcho a pé. (1981, p. 97)Dessa forma, o autor esclarece que seu tema é oriun<strong>do</strong> da realida<strong>de</strong> social e cultural dacampanha rio-gran<strong>de</strong>nse, pois a estância acaba <strong>de</strong> entrar num perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>ser um lugar <strong>de</strong> coragem, bravura, valentia, “tu<strong>do</strong> o que a cerca agora é monótono”(MARTINS, 1997, p. 24), o que faz da obra <strong>de</strong> Cyro porta<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> um conhecimento essencialda alma humana, das vivências <strong>do</strong> homem, tanto <strong>de</strong> suas alegrias quanto <strong>de</strong> suas frustrações etristezas, como salienta o autor:Como se vê, não persistem mais as condições humanas que faziam da campanha riogran<strong>de</strong>nseuma existência à parte, original, pitoresca. Além disso e em conseqüênciadisso, é fato conheci<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s que a nossa campanha dia a dia se <strong>de</strong>spovoa, nãoem benefício da cida<strong>de</strong>, mas para sobrecarga da cida<strong>de</strong>. O marginalismo é aexpressão mais dramática <strong>de</strong>ssa migração caótica, que por vezes assume ascaracterísticas abomináveis <strong>do</strong> enxotamento. (1997, p. 24)Nesse caso, a criação artística <strong>de</strong> Cyro Martins po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada <strong>do</strong>cumento <strong>de</strong> umaépoca, se levarmos em conta o esforço <strong>de</strong>sse autor em <strong>de</strong>screver o mais próximo possível a3 Nota explicativa da 2ª ed. <strong>de</strong> Estrada Nova, 1976.


33realida<strong>de</strong> da campanha gaúcha sem retratá-la com o sau<strong>do</strong>sismo <strong>do</strong> regionalismo tradicional,até então utiliza<strong>do</strong> pelos escritores gaúchos. Ernil<strong>do</strong> Stein em O anti-herói <strong>do</strong>cumento <strong>de</strong> umaépoca apresenta sua opinião a respeito <strong>de</strong>sse assunto:Ainda que a obra <strong>de</strong> Cyro Martins seja o registro <strong>de</strong> uma época que passou, poisnovas mudanças sócio-econômicas criaram outros problemas e geraram outrosfenômenos sociais, ela assume proporções <strong>de</strong>finitivas como criação literária e como<strong>do</strong>cumento histórico. Ela vale como obra <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor estético e comotestemunho humano. 4Cyro preocupa-se em apresentar o campeiro sul-rio-gran<strong>de</strong>nse como um homem quesofre, luta e enfrenta problemas, o que transforma um espaço local em um espaço universal,segun<strong>do</strong> Pozenato (1999, p. 44-45):A região, sob esse ângulo, é um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> ambiente físico, no qual vivem pessoashumanas que têm sua história. E é esse espaço com essa gente que interessa a CyroMartins. Evi<strong>de</strong>nte que esse é também o seu espaço e a sua história, um espaço e umahistória <strong>de</strong> gaúchos que se situam na região da fronteira, lin<strong>de</strong>iros com o Uruguai.Mas não é para reivindicar a gauchida<strong>de</strong> que Cyro Martins produz sua obraficcional: é para revelar, ou <strong>de</strong>svelar, esse homem <strong>de</strong>sse território.O autor procura utilizar sua ficção literária como uma forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia <strong>do</strong>man<strong>do</strong>nismo e <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> problema <strong>de</strong> má divisão da terra no Brasil. Dessa maneira, Cyroexpõe o direito <strong>do</strong> ser humano <strong>de</strong> possuir a terra, <strong>de</strong> viver nela, <strong>de</strong> ter acesso a ela, “sualiteratura tem aspectos que precisam ser ressalta<strong>do</strong>s: se liga as suas vivências da terra e a seuconhecimento da alma humana”5 ressalta Maria Helena Martins, filha <strong>do</strong> escritor, ementrevista com a jornalista Maria Wagner. Dessa maneira, po<strong>de</strong>mos afirmar que Cyro Martinsé um autor social e político ao mesmo tempo, por isso, sócio-político. Dessa maneira, ele fazuma análise das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r existentes, e posiciona-se em <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s menosprivilegia<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s oprimi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r ao emprestar sua voz àqueles que não a têm.Na mesma entrevista acima citada, on<strong>de</strong> a filha recorda suas experiências <strong>de</strong> convíviocom o pai, é enfatizada a questão da linguagem utilizada por Cyro em suas obras. Umalinguagem extremamente simples, como se estivesse falan<strong>do</strong>, entremeada por respirações epausas, <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> certa preocupação em torná-la uma linguagem “viva” possibilitan<strong>do</strong>uma maior aproximação <strong>do</strong> leitor com a obra, numa espécie <strong>de</strong> diálogo entre escritor e leitor.4 http://www.celpcyro.org.br/v4/Fortuna_Critica/anti_heroi.htm5 http://www.celpcyro.org.br/v4/html/CM_mestreSimplicida<strong>de</strong>.htm


34O próprio Cyro, em Cyro Martins 90 Anos, observa que é importantíssimo que o autor abraespaços à mente criativa <strong>do</strong> leitor, para que esse possa dar asas à sua imaginação:Entre o público e o artista, em especial entre o leitor e o ficcionista, <strong>de</strong>ve ser mantidauma certa faixa <strong>de</strong> ambigüida<strong>de</strong>, [...] para <strong>de</strong>ixar à margem a fantasia <strong>do</strong> leitor.Porque é preciso não esquecer que nos sustentamos principalmente à custa <strong>de</strong>fantasias. (1999, p. 24)Para o escritor o papel <strong>do</strong> leitor é <strong>de</strong> extrema relevância ao ler a obra, porque vai“absorver” a visão <strong>do</strong> autor e ainda acrescentar a sua: “E cabe ao leitor concluir sobre a visão<strong>de</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> escritor, só assim a leitura se tornará produtiva.” (1990, p. 103). Dessa maneiraCyro <strong>de</strong>monstra que possui uma qualida<strong>de</strong> rara como escritor: tem uma visão clara da suaobra.De certa forma Cyro criou uma realida<strong>de</strong> fictícia que procura representar a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>crises e transformações que enfrentou e ainda enfrenta o homem <strong>do</strong> campo, imortalizan<strong>do</strong>uma época histórica pelo viés da Literatura. Esse autor escreve com a pretensão <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar algo<strong>de</strong> préstimo e em benefício da socieda<strong>de</strong> rio-gran<strong>de</strong>nse <strong>do</strong> sul. Ele tenta, através das palavrasda narrativa ficcional, esclarecer o início <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> marginalização que <strong>de</strong>u origem àsperiferias urbanas, <strong>de</strong> como se formaram essas vilas populares, em que época e <strong>de</strong> on<strong>de</strong> veioessa população. Ele mostra com sabe<strong>do</strong>ria as mudanças socioeconômicas que ocorreram paraque a população campesina migrasse para as cercanias das cida<strong>de</strong>s, como afirma em CyroMartins 90 Anos: “[...] nunca quis contribuir com a ampliação da mentira <strong>do</strong> monarca dascoxilhas. Nunca tratei o gaúcho como personagem em estilo ufanista. Pelo contrário, procureiser realista, para po<strong>de</strong>r ser útil <strong>de</strong> alguma forma”.(1999, p.38)Dessa forma a relevância sociológica da obra <strong>de</strong> Cyro Martins, a atualida<strong>de</strong> e auniversalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s problemas sociais relata<strong>do</strong>s em seus romances, que <strong>de</strong>monstram arealida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada época na campanha <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul e permanecem atuais,permitem que seja consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um escritor visionário, pois enfoca em suas páginas problemassociais que permanecem até a contemporaneida<strong>de</strong>.


352. LITERATURA E HISTÓRIA: A VISÃO LITERÁRIA DE FATOSHISTÓRICOS, SOCIAIS E ECONÔMICOS2.1 Aspectos teóricos das relações entre Literatura e HistóriaNesse primeiro subtítulo, buscamos apresentar diversas contribuições teóricas <strong>de</strong>críticos que pesquisam, ou pesquisaram, sobre o assunto, <strong>de</strong>ntre eles Hay<strong>de</strong>n White, ElisabethTorresine, Sandra Jatahy Pesavento, Jacques Leenhardt, Antonio Candi<strong>do</strong> e outros. Já nosegun<strong>do</strong> subtítulo elaboramos uma análise da História presente nas obras literárias em estu<strong>do</strong>.Utilizamos a História <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul na obra <strong>de</strong> Pesavento e verificamos como osfatores sociais, econômicos e históricos <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX são representa<strong>do</strong>s em Semrumo, Porteira fechada e Estrada nova.Ao buscar um conhecimento aprofunda<strong>do</strong> <strong>do</strong> ser humano e sua relação com o meiosocial on<strong>de</strong> vive é que percebemos gran<strong>de</strong>s contradições e complexida<strong>de</strong>s presentes nesseestu<strong>do</strong>, pois, como cita Hay<strong>de</strong>n White em seu livro Trópicos <strong>do</strong> discurso: “Quan<strong>do</strong>procuramos explicar tópicos problemáticos como natureza humana, cultura, socieda<strong>de</strong> ehistória, nunca dizemos com precisão o que queremos dizer, nem expressamos o senti<strong>do</strong> exato<strong>do</strong> que dizemos.” (2001, p. 13) A natureza humana po<strong>de</strong> ser apreendida através <strong>de</strong> diversostipos <strong>de</strong> conhecimentos lega<strong>do</strong>s pelas artes, e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssas, a Literatura em geral. Em relaçãoa esses conhecimentos White acredita que “somente uma inteligência voluntariosa e tirânicapo<strong>de</strong>ria acreditar que o único tipo <strong>de</strong> conhecimento a que po<strong>de</strong>mos aspirar é o representa<strong>do</strong>pelas ciências físicas.” (2001, p. 39)Esse novo pensamento atribuiu à Literatura certas capacida<strong>de</strong>s cognitivas antesassociadas somente à História e quebrou aqueles paradigmas <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong>, racionalida<strong>de</strong> eutilitarismo das ciências sociais. A Literatura <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar somente uma função <strong>de</strong>evasão e <strong>de</strong>scontração e ganhou, com isso, uma compreensão que vai além <strong>de</strong> seu valorestético, passan<strong>do</strong> a ser consi<strong>de</strong>rada "uma manifestação cultural, portanto uma possibilida<strong>de</strong>


36<strong>de</strong> registro <strong>do</strong> movimento que realiza o homem na sua historicida<strong>de</strong>, seus anseios e suasvisões <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>...” 6 (MENDONÇA, C. V. C. <strong>de</strong>; ALVES, G. S.)Elizabeth Torresini em História e literatura menciona a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umconhecimento histórico e literário para compreen<strong>de</strong>rmos o passa<strong>do</strong> e tentar uma possívelexplicação para nosso presente. Ela salienta que <strong>de</strong>vemos pensar a: “[...] complementarida<strong>de</strong>entre História e ficção, como revela<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> particular e <strong>do</strong> universal, como possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>atingir a essência humana na sua dimensão pessoal e coletiva.” (2007, p.16)Ao discutir História e Literatura, a autora salienta que não há como subestimar osvalores <strong>de</strong> uma ou criar dívidas entre ambas, visto que cada uma apresenta conhecimentosextremamente necessários ao ser humano, na sua eterna busca <strong>de</strong> autoconhecimento: “Pensara História através da Literatura significa estabelecer um diálogo bastante particular entre afactualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> discurso histórico e a ficcionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> discurso literário, sem, no entanto,propor um juízo <strong>de</strong> valor ou uma noção <strong>de</strong> dívida.” (TORRESINI, 2007, P. 11)Desse mo<strong>do</strong>, o fato <strong>de</strong> Literatura e História serem elaboradas <strong>de</strong> maneira diferente nãosignifica que tenham utilida<strong>de</strong>s distintas. No artigo intitula<strong>do</strong> A construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>pessoal e social através da História e da Literatura <strong>do</strong> livro Discurso histórico e narrativaliterária, organiza<strong>do</strong> por Sandra Jatahy Pesavento e Jacques Leenhardt, esse mesmo autorafirma que <strong>do</strong>is discursos distintos po<strong>de</strong>m ter a mesma função social. Por isso, mesmo queelaboradas <strong>de</strong> maneiras diferentes Literatura e História buscam apresentar um conhecimentoda realida<strong>de</strong>:“Enquanto ficção, tanto a narrativa literária quanto a histórica pressupõem umaor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> real e a busca da coerência através <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong> elementos e <strong>do</strong>estabelecimento <strong>de</strong> relações entre os da<strong>do</strong>s.” (PESAVENTO, 1998, p. 12)Dessa maneira, fica claro que o conceito Aristotélico <strong>de</strong> Literatura como umarepresentação da realida<strong>de</strong> e da História como uma cópia fiel <strong>de</strong>ssa mesma realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixa a<strong>de</strong>sejar se pensarmos que caberia somente à História a única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> registro <strong>do</strong>sfatos passa<strong>do</strong>s e a Literatura teria por função tornar o real uma ficção verossímil e não retratar6Retira<strong>do</strong> <strong>do</strong> artigo “Os <strong>de</strong>safios teóricos da história e a literatura”. Disposto em:http://www.anpuh.uepg.br/historia-hoje/vol1n2/historialiterat.htm


37a realida<strong>de</strong>. Foi através <strong>de</strong>ssa antiga concepção que a História recebeu o estatuto <strong>de</strong> ciênciasocial porta<strong>do</strong>ra da verda<strong>de</strong> absoluta <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> humano.Hoje, sabemos que o texto literário, além <strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> e espaço <strong>de</strong> pesquisapara os historia<strong>do</strong>res, é uma forma <strong>de</strong> aprofundamento <strong>do</strong> real, pois foi escrita em um<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> tempo histórico, por homens que viveram aquela realida<strong>de</strong>, sentiram as emoções<strong>de</strong> seu tempo, seja por experiência <strong>de</strong> vida ou através <strong>de</strong> relatos orais e escritos <strong>de</strong> seusantepassa<strong>do</strong>s.2.1.2 A relação literário-históricaPesavento, na obra referida anteriormente, cita as concepções <strong>de</strong> <strong>do</strong>is críticos a respeitoda História e da Literatura: Paul Veyne e Carl Shorske. As concepções <strong>de</strong>sses estudiosos sãofundamentais para o entendimento da complexa relação entre Literatura e História. Ambosseguem a mesma linha <strong>de</strong> raciocínio, pois “como referem Paul Veyne e, mais recentemente,Carl Shorske, a história não é uma ciência <strong>do</strong> tipo das exatas, ou biomédicas e há muito se<strong>de</strong>spiu <strong>do</strong> manto <strong>de</strong> rainha.” (PESAVENTO, 1998, p. 14)Essa mesma linha <strong>de</strong> pensamento segue a historia<strong>do</strong>ra Maria Pilar <strong>de</strong> Araújo Vieira(ORG.) na obra A pesquisa em história. Para ela, a História não po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada umaciência exata, pois retrata os homens e seus conflitos externos e internos. Sobre isso, enfatizaque os homens sempre viveram com[...] i<strong>de</strong>ias, necessida<strong>de</strong>s, aspirações, emoções, sentimentos, razão, <strong>de</strong>sejos, comosujeitos sociais que improvisam, forjam saídas, resistin<strong>do</strong>, se submeten<strong>do</strong>, viven<strong>do</strong>enfim, numa relação contraditória, o que nos faz consi<strong>de</strong>rar essa experiência comoexperiência <strong>de</strong> luta e <strong>de</strong> luta política. Nesse senti<strong>do</strong> a luta <strong>de</strong> classe é, ao mesmotempo e na mesma medida luta <strong>de</strong> interesses e valores. (1989, p. 7)Essa autora salienta que no momento em que há uma <strong>do</strong>minação <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada classesocial sobre outra, haverá, consequentemente, uma resistência a essa <strong>do</strong>minação. Essaresistência, por sua vez, não precisa ser <strong>de</strong> forma aberta e explícita, po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> maneiraimplícita, por isso é extremamente importante, para a pesquisa em História, a maneira como a


38população organiza sua vida social. Dentro <strong>de</strong>ssa organização “certamente se articulam comformas literárias, com a música, a poesia, as práticas religiosas, etc.” (VIEIRA, 1989, p. 8)Dentro <strong>de</strong>ssa mesma linha <strong>de</strong> raciocínio, Antônio Candi<strong>do</strong>, em Literatura e socieda<strong>de</strong> –estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> teoria e história literária enfatiza que a mentalida<strong>de</strong> humana tem a mesma basepara to<strong>do</strong>s: um la<strong>do</strong> mágico e um la<strong>do</strong> lógico. Ambos os la<strong>do</strong>s trabalham juntos e éimpossível separá-los completamente. Por isso, comenta que, se o pensamento humano temuma mesma base o que difere são as manifestações <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos e opiniões <strong>de</strong>sse homem, queserão expressos <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o meio social on<strong>de</strong> vive: “... pois se a mentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> homemé basicamente a mesma, e as diferenças ocorrem, sobretu<strong>do</strong> nas suas manifestações, estas<strong>de</strong>vem ser relacionadas às condições <strong>do</strong> meio social e cultural.” (2002, p. 43-44)A arte é uma criação humana e a Literatura representa uma ativida<strong>de</strong> artística <strong>do</strong>homem, que se faz necessária à socieda<strong>de</strong>, como afirma Candi<strong>do</strong>: “...a criação literáriacorrespon<strong>de</strong> a certas necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> representação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, às vezes como preâmbulo auma práxis socialmente condicionada.”(2002, p. 55) Essa práxis artística, para o autor, éfundamental tanto para a sobrevivência social <strong>do</strong> homem, quanto à uma boa organização davida em socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse, pois acredita que as manifestações artísticas são manifestações eatuações <strong>do</strong> ser humano, numa busca <strong>de</strong> um equilíbrio individual e coletivo no meio on<strong>de</strong>vive.Se a Literatura é, também, uma forma <strong>de</strong> organização social, traz consigo seu valor <strong>de</strong>historicida<strong>de</strong>, que consiste em uma carga histórica expressa através <strong>de</strong> palavras, que buscamretratar a realida<strong>de</strong>, virtu<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>feitos, anseios e <strong>de</strong>sejos, <strong>do</strong> homem <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada época,apresentan<strong>do</strong>-o ao leitor. Sobre isso já discutia White ao afirmar que: “A maioria <strong>do</strong>spensa<strong>do</strong>res contemporâneos não concorda com a hipótese <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r convencional <strong>de</strong> quea arte e a ciência são meios essencialmente distintos <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o mun<strong>do</strong>.” (2001, p. 40)Pesavento observa que “as vinculações entre literatura e história correspon<strong>de</strong>m a umaabordagem bastante antiga” (1998, p. 19), e que o principal vínculo que as liga é o fato <strong>de</strong>ambas utilizarem o discurso escrito narrativo para apresentar seus conhecimentos. Porém, seas duas utilizam a linguagem como meio <strong>de</strong> expressão, a História para narrar osacontecimentos passa<strong>do</strong>s e a Literatura para utilizar os fatos passa<strong>do</strong>s na composição <strong>de</strong> seudiscurso, on<strong>de</strong> está e quais são os limites, igualda<strong>de</strong>s e diferenças entre História e Literatura?


39A autora acima referida acredita que o entrecruzamento entre a ciência histórica e a arteliterária está na noção <strong>de</strong> representação. Pesavento cita a representação como uma“presentificação <strong>de</strong> um ausente, que é dada a ver por uma imagem mental ou visual que, porsua vez, suporta uma imagem discursiva.” (1998, p. 19) o que estabelece uma relação entreimaginário e realida<strong>de</strong> concreta.Com isso, po<strong>de</strong>mos afirmar que História e Literatura são narrativas que buscam dar umaexplicação para o real, estão presentes em to<strong>do</strong>s os espaços e tempos, pois as pessoas semprese expressaram através da linguagem oral, escrita, não-verbal (imagem), sonora (música), etc.Concordamos com Sandra Jatahy Pesavento quan<strong>do</strong> afirma que ambas as disciplinas buscamacima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> um conhecimento, uma explicação para a vida e o ser humano, por isso,História e Literatura possuem relações muito estreitas.Assim, literatura e história são narrativas que tem o real como referente, paraconfirmá-lo ou negá-lo, construin<strong>do</strong> sobre ele toda uma outra <strong>versão</strong> oriunda paraultrapassá-lo. Como narrativas, são representações que se referem a vida e que aexplicam.7 (2006)2.1.3 A História e o historia<strong>do</strong>rO historia<strong>do</strong>r é um ser humano, e, portanto, é pesquisa<strong>do</strong>r ao mesmo tempo em que éagente na História. Sua função é reunir e selecionar da<strong>do</strong>s para estabelecer ligações entre umfato e outro, com o objetivo <strong>de</strong> aproximar-se o máximo possível da realida<strong>de</strong> passada. Demo<strong>do</strong> que o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa seleção serão fatos interpreta<strong>do</strong>s pelo historia<strong>do</strong>r em resposta àsperguntas que foram feitas durante a pesquisa, o que confirma que a História <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> quaseque totalmente da interpretação <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r. Pesavento posiciona-se a respeito <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>rna História. Para ela, o historia<strong>do</strong>r se transforma em narra<strong>do</strong>r ao relatar os fatos ocorri<strong>do</strong>s<strong>de</strong>scobertos em sua pesquisa:Neste campo temos também o narra<strong>do</strong>r – o historia<strong>do</strong>r – que tem também tarefasnarrativas a cumprir: ele reúne os da<strong>do</strong>s, seleciona, estabelece conexões ecruzamentos entre eles, elabora uma trama, apresenta soluções para <strong>de</strong>cifrar a intrigamontada e se vale <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> retórica para convencer o leitor, com vistas aoferecer uma <strong>versão</strong> o mais possível aproximada <strong>do</strong> real aconteci<strong>do</strong>. 8 (2006)7 Disposto em: http://nuevomun<strong>do</strong>.revues.org/in<strong>de</strong>x1560.html8 Ibi<strong>de</strong>m.


40Dessa forma, o historia<strong>do</strong>r apresenta fatos verossímeis com a realida<strong>de</strong> passada, nãototalmente reais, mas passíveis <strong>de</strong> concordância, já que não irá criar os fatos no seu senti<strong>do</strong>absoluto, vai <strong>de</strong>scobri-los e atribuir-lhes senti<strong>do</strong>. Paul Veyne em Como se escreve a históriamenciona que o historia<strong>do</strong>r simplifica e organiza os fatos durante sua pesquisa, <strong>de</strong> maneiraque faz uma síntese narrativa parecida com o nosso procedimento ao lembrar os últimos <strong>de</strong>zanos que vivemos. Devi<strong>do</strong> a isso o historia<strong>do</strong>r “tem a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> recortar a história a seumo<strong>do</strong> [...] pois a história não possui articulação natural.” (1982, p. 19)Além disso, Veyne salienta que um leitor crítico e profissional não acreditará fielmenteem um texto histórico, também não o subestimará, irá vê-lo com um amplo campo <strong>de</strong>possibilida<strong>de</strong>s: “Para to<strong>do</strong> o leitor <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> espírito crítico e para a maior parte <strong>do</strong>sprofissionais, um livro <strong>de</strong> história não é, na realida<strong>de</strong>, o que aparenta ser, assim, ele não trata<strong>do</strong> Império Romano, mas daquilo que ainda po<strong>de</strong>mos saber sobre esse império.” (1982, p. 18)Hay<strong>de</strong>n White afirma que o historia<strong>do</strong>r, no momento em que recolhe os fatos e pesquisaos acontecimentos passa<strong>do</strong>s, irá salientar alguns e suprimir outros, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o fim que<strong>de</strong>seja obter durante o ato da leitura:[...] nenhum conjunto da<strong>do</strong> <strong>de</strong> acontecimentos históricos casualmente registra<strong>do</strong>spo<strong>de</strong> por si só constituir uma estória; o máximo que po<strong>de</strong> oferecer ao historia<strong>do</strong>r sãoos elementos <strong>de</strong> estória. Os acontecimentos são converti<strong>do</strong>s em estória pelasupressão ou subordinação <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>les e pelo realce <strong>de</strong> outros, porcaracterização, repetição <strong>do</strong> motivo, variação <strong>do</strong> tom e <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista, estratégias<strong>de</strong>scritivas alternativas e assim por diante – em suma, por todas as técnicas quenormalmente se espera encontrar na urdidura <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> <strong>de</strong> um romance ou umapeça. (2001, p. 100)Dessa maneira, a História <strong>de</strong>ve reimaginar alguns aspectos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e apresentá-los<strong>de</strong> maneira verossímil e persuasiva. As fontes históricas são indícios forma<strong>do</strong>s acerca <strong>do</strong> quepo<strong>de</strong> ter aconteci<strong>do</strong>, com a <strong>versão</strong> <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r e o enre<strong>do</strong> elabora<strong>do</strong> por esse a partir daseleção <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos. Através <strong>de</strong>sses fatores existentes na pesquisa em História é quenotamos a presença da ficcionalida<strong>de</strong> em seu discurso.


412.1.4 A elaboração e criação da História e da LiteraturaPara Droysen, cita<strong>do</strong> por White (2001, p 68) o registro histórico é incompleto porquepo<strong>de</strong>mos saber o que aconteceu, mas não há como saber exatamente o porquê <strong>do</strong>s fatos teremocorri<strong>do</strong> <strong>de</strong> tal maneira. Isso significa que o pesquisa<strong>do</strong>r em História <strong>de</strong>ve fazer certasinferências sobre os acontecimentos passa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> maneira que possa visualizá-los como umarealida<strong>de</strong> constituída <strong>de</strong> ações entrelaçadas, forma<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> contexto histórico-social da época.Essa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “ver” um acontecimento passa<strong>do</strong>, para Droysen, é um ato cognitivodiferente <strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong> pelo romancista ao elaborar uma obra, pois esse último elabora umaativida<strong>de</strong> artística, enquanto o primeiro elabora uma representação literária a<strong>de</strong>quada àrealida<strong>de</strong>.9Entretanto, sabemos que o romancista, ao narrar fatos, expõe crenças, sentimentos,me<strong>do</strong>s, organizações, reações, possibilida<strong>de</strong>s e outros fatores sociais <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada épocatanto quanto o historia<strong>do</strong>r, talvez <strong>de</strong> maneira mais fiel que esse. A gran<strong>de</strong> diferença consisteno fato <strong>de</strong> que o ficcionista tem a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar fatos e personagens, enquanto ohistoria<strong>do</strong>r utilizará personagens já existentes e irá apresentá-los conforme seu ponto <strong>de</strong> vista.Isso porque a História <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> arquivos e o historia<strong>do</strong>r parte <strong>de</strong> fatos ou fontes paracompor sua narração: “Todavia como a história preserva sua ambição <strong>de</strong> construir umconhecimento científico, é <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong>s arquivos, <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> pesquisa e <strong>do</strong>s critérios<strong>de</strong> cientificida<strong>de</strong> aplica<strong>do</strong>s a estes.” (PESAVENTO, 1998, p. 11)Essa mesma pesquisa<strong>do</strong>ra afirma que a Literatura, por usa vez, utiliza da liberda<strong>de</strong> dacriação artística para expressar sua voz narrativa. Dessa maneira, para elaborar uma narrativaliterária, não é necessário partir <strong>do</strong> fato aconteci<strong>do</strong>, pois o fato será o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> seudiscurso:A narrativa literária, no caso, não exige a “pesquisa <strong>do</strong>cumental”, típica da ativida<strong>de</strong><strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r e que se encontra na base <strong>de</strong> seu trabalho, mas não dispensa oconhecimento/leitura daquele conjunto <strong>de</strong> informações que lhe dará o suporte para acontextualização da narrativa. (PESAVENTO, 1998, p. 11)Assim, o historia<strong>do</strong>r tem um compromisso com as evidências na sua tarefa <strong>de</strong>reconstruir o real, e seu trabalho é testa<strong>do</strong> e comprova<strong>do</strong>, mas a leitura que faz <strong>de</strong> uma época


42é uma <strong>de</strong>ntre tantas possíveis <strong>de</strong> serem elaboradas. Vieira comenta que a investigação daexperiência humana é modificada, <strong>de</strong> historia<strong>do</strong>r para historia<strong>do</strong>r <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com asexperiências <strong>de</strong> vida e as concepções <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> que cada um tem: “A subjetivida<strong>de</strong> estápresente no trabalho <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> ele se dar conta ou não, influin<strong>do</strong> nacompreensão <strong>do</strong>s nexos e das relações sociais imbricadas na forma <strong>de</strong> expressão da ativida<strong>de</strong>humana.” (1989, p. 29).No entanto, essa autora cita que mesmo que a experiência <strong>de</strong> vida <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r estejapresente em seu trabalho, esses conhecimentos também são históricos, pois o historia<strong>do</strong>r é umresulta<strong>do</strong>, um filho <strong>de</strong> seu tempo. Devi<strong>do</strong> a isso po<strong>de</strong>mos concluir que a história tem umduplo senti<strong>do</strong>, já que é modificada pelo ser humano ao mesmo tempo que modifica-o pela suanarração, interpretação e projeção. É nesse ponto que entra em discussão uma questãoextremamente complexa: o olhar <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r.2.1.5 O ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>rNo livro Discurso histórico e narrativa literária, organiza<strong>do</strong> por Pesavento, Roberto Reisem seu artigo (Re) len<strong>do</strong> a história, enfatiza que a interpretação histórica existe em um<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> tempo e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá muito <strong>do</strong> meio social on<strong>de</strong> está inseri<strong>do</strong> o historia<strong>do</strong>r. Esseautor acredita que: “Lê-se sempre a partir <strong>de</strong> uma dada posição social, i<strong>de</strong>ológica,institucional, lugar este passível <strong>de</strong> ter seu perfil histórico <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>” (1998, p. 235). Da mesmamaneira, Reis consi<strong>de</strong>ra a inserção <strong>do</strong> escritor, seja ele ficcionista ou historia<strong>do</strong>r, em umtempo histórico porque acredita que to<strong>do</strong> texto é produzi<strong>do</strong> em <strong>de</strong>terminadas circunstânciashistóricas e expressa to<strong>do</strong> um projeto i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> uma classe.Hy<strong>de</strong>n White comenta que: “[...] a noção <strong>do</strong> que possa parecer uma percepção clara eprecisa <strong>de</strong> um <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> acontecimento histórico difere <strong>de</strong> historia<strong>do</strong>r para historia<strong>do</strong>r”(2001, p. 81), por isso é difícil para o historia<strong>do</strong>r lidar com os diferentes testemunhos <strong>de</strong> ummesmo fato histórico, já que muitas versões e relatos são elabora<strong>do</strong>s em cima <strong>de</strong> um sóinci<strong>de</strong>nte.9 O comentário <strong>de</strong> White refere-se à obra “Grundriss <strong>de</strong>r Historik” <strong>de</strong> Droysen.


43White ainda consi<strong>de</strong>ra o bom historia<strong>do</strong>r aquele que tem consciência <strong>do</strong> trabalho e dapesquisa que elabora, que consi<strong>de</strong>ra a brevida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>scobertas, que po<strong>de</strong>m, ou não,serem passageiras. Esse historia<strong>do</strong>r é aquele que lembra seu leitor sobre a natureza provisória<strong>de</strong> suas <strong>de</strong>scobertas e reconhece seus registros como incompletos. Esse crítico <strong>final</strong>iza<strong>de</strong>finin<strong>do</strong> a escrita histórica como literária, cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> ficção:O mo<strong>do</strong> como uma <strong>de</strong>terminada situação histórica <strong>de</strong>ve ser configurada <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> dasutileza com que o historia<strong>do</strong>r harmoniza a estrutura específica <strong>de</strong> enre<strong>do</strong> comoconjunto <strong>de</strong> acontecimentos históricos aos quais <strong>de</strong>seja conferir um senti<strong>do</strong>particular. Trata-se essencialmente <strong>de</strong> uma operação literária, vale dizer, cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong>ficção. (2001, p. 102)Dessa maneira, po<strong>de</strong>mos concluir que o ponto <strong>de</strong> vista difere <strong>de</strong> historia<strong>do</strong>r parahistoria<strong>do</strong>r, pois um mesmo fato po<strong>de</strong> ser conta<strong>do</strong> sob diversos ângulos, diferentes opiniões einterpretações. O autor <strong>de</strong> História tem certa liberda<strong>de</strong> em escolher a maneira como irá relataros fatos <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o público a que se <strong>de</strong>stina. Por isso, a História está a to<strong>do</strong> o momentopermeada <strong>de</strong> ficção, mesmo que tenha que provar seus fatos, existe a liberda<strong>de</strong> imaginária nomomento em que o historia<strong>do</strong>r relata os fatos que pesquisou. Portanto, a História possuificção em suas páginas, não tanto como no texto literário, mas mais <strong>do</strong> que muitas vezessupomos.2.1.6 A Literatura como fonte da pesquisa históricaAo pensarem na complexida<strong>de</strong> da História, os historia<strong>do</strong>res voltaram-se para o estu<strong>do</strong>das diversas linguagens presentes na vida cotidiana <strong>do</strong> ser humano e que po<strong>de</strong>m revelar muito<strong>de</strong> seu passa<strong>do</strong>. Para dar conta da tarefa que lhe cabe, o historia<strong>do</strong>r atual sente-se na obrigação<strong>de</strong> variar seu material investigativo, voltan<strong>do</strong> sua atenção para as diversas formas <strong>de</strong>expressão humana: literatura, música, pintura, relatos, etc. Tu<strong>do</strong> se constitui em fontes para apesquisa histórica, basta que o pesquisa<strong>do</strong>r tenha seleciona<strong>do</strong> seu tema e elabora<strong>do</strong> suasperguntas. Através disso, ele <strong>de</strong>scobre e coleta da<strong>do</strong>s que buscam explicar como ocorreu<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> fato passa<strong>do</strong>.A narrativa ficcional tornou-se um objeto extremamente valioso para o historia<strong>do</strong>r, porrevelar tensões e testemunhos <strong>de</strong> uma época, conforme comenta Maria Pilar <strong>de</strong> Araújo Vieira:


44“É um objeto privilegia<strong>do</strong> para alcançar mudanças não apenas registradas pela Literatura, masprincipalmente, mudanças que se transformaram em literatura, pois, mais <strong>do</strong> que dar umtestemunho, ela revelará momentos <strong>de</strong> tensão” (1989, p.21)A Literatura constitui uma fonte para a História porque representa sensivelmente omun<strong>do</strong> e essa outra maneira <strong>de</strong> ver a realida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> orientar o historia<strong>do</strong>r para outras fontes,on<strong>de</strong> ele possa observar com um olhar diferencia<strong>do</strong> <strong>do</strong> costumeiro. Dessa maneira, aLiteratura torna-se uma fonte especial para o historia<strong>do</strong>r, ao lhe oferecer acesso ao imaginário,que, por sua vez, permitirá que ele enxergue traços e pistas diferentes das oferecidas poroutras fontes.Sandra Jatahy Pesavento concorda que a Literatura é uma gran<strong>de</strong> fonte <strong>de</strong> pesquisahistórica e salienta que o historia<strong>do</strong>r, ao pesquisar um acontecimento em uma obra literária<strong>de</strong>ve examinar, acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, a representação <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> presente nela: “Para o historia<strong>do</strong>r aliteratura continua a ser <strong>do</strong>cumento ou fonte, mas o que há para ler nela é a representação queela comporta.” (1998, p.22)De certa maneira o texto literário apresenta um engajamento político, pois para serformula<strong>do</strong> houve uma seleção, por parte <strong>do</strong> escritor, <strong>de</strong> imagens e discursos, recrian<strong>do</strong> amemória social <strong>de</strong> um povo <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada época. Cyro Martins em A criação artística e apsicanálise apresenta o escritor como um ser que expressa o seu tempo, participante ativo dasocieda<strong>de</strong>: “Na verda<strong>de</strong>, a gran<strong>de</strong>za <strong>do</strong> artista <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> essencialmente <strong>de</strong> sua autenticida<strong>de</strong>. Eesta <strong>de</strong>corre da fertilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> solo humano no qual sua inspiração se enraíza. Essas raízes ofazem necessariamente partícipe <strong>do</strong> campo social.” (1970, p. 40)Vieira menciona a gran<strong>de</strong> carga <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> social expressa no livro <strong>de</strong> ficção literária,e comenta a gran<strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> da ficção literária em formular para o leitor problemas sociaismuito pareci<strong>do</strong>s com os reais enfrenta<strong>do</strong>s pelas pessoas <strong>de</strong> diferentes épocas, com ahabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enfocar por vários ângulos a situação vivenciada:Ela po<strong>de</strong> expressar possíveis não realiza<strong>do</strong>s. Oferece uma avaliação <strong>do</strong> real namedida em que tem uma visão problemática da realida<strong>de</strong>. Nessa avaliação acabaselecionan<strong>do</strong> a existência <strong>de</strong> elementos que obstaculizam a realização das propostase elementos que ajudam. ( 1989, p. 21)


45Antônio Candi<strong>do</strong> afirma que: “Com efeito, to<strong>do</strong>s sabemos que a literatura, comofenômeno <strong>de</strong> civilização, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, para se constituir e caracterizar, <strong>do</strong> entrelaçamento <strong>de</strong>vários fatores sociais.” (2002, p.12). É nessa liberda<strong>de</strong> da elaboração literária que o escritor sepermite modificar o mun<strong>do</strong> real com o objetivo <strong>de</strong> tornar a escrita mais expressiva, masprocuran<strong>do</strong> transparecer a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu tempo.2.1.7 A vida real como influência na criação literáriaAntonio Candi<strong>do</strong> acredita no valor social da arte e nos efeitos que ela causa no públicoreceptor, pois enfatiza que na obra estão fatores <strong>do</strong> meio on<strong>de</strong> foi elaborada e isso produz nosindivíduos um efeito prático que modifica “[...] sua conduta e concepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, oureforçan<strong>do</strong> neles o sentimento <strong>do</strong>s valores sociais.” (2002, p. 21)Fabio Lucas (1970) comenta sobre o valor da narrativa ficcional como expressão social<strong>de</strong> uma época. Para esse autor, a narrativa novelesca fornece, com uma maior niti<strong>de</strong>z, oselementos daquilo que po<strong>de</strong>mos chamar <strong>de</strong> opinião ou espírito <strong>de</strong> época.No momento em que procuramos relacionar romance e socieda<strong>de</strong>, levamos emconsi<strong>de</strong>ração não só o que a Literatura significa, mas o seu uso social através <strong>do</strong>s processos<strong>de</strong> interpretação. Leenhardt (1998) observa que no momento da ativida<strong>de</strong> leitora, ocorremdiversas mediações, entre elas, a i<strong>de</strong>ntificação leitor/texto é a mais importante, juntamentecom a função cognitiva <strong>de</strong> a Literatura estar ligada ao meio social. Devi<strong>do</strong> a isso, Pesaventoafirma que um <strong>do</strong>s pontos em que diferem Literatura e História está justamente no público aque cada uma se <strong>de</strong>stina:O que distingue o discurso literário <strong>do</strong> histórico é a modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura que eletenta provocar. O texto mais radicalmente ficcional é <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pela categoria daempatia, da i<strong>de</strong>ntificação, a qual está presente também na obra histórica. Já o textohistórico inclui alguma distância entre o leitor e o discurso <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r. (1998, p.13)A escritora ressalta que História e Literatura são passiveis <strong>de</strong> interpretação, cada uma asua maneira, já que na narrativa histórica não há muita liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação, enquanto


46no texto literário há aberturas que permitem uma gama maior <strong>de</strong> interpretações por parte <strong>do</strong>leitor.Hay<strong>de</strong>n White (2001) assinala que o historia<strong>do</strong>r, ao utilizar como meio <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong>seus conhecimentos a narração escrita, vai utilizá-la para um propósito específico, já que vaiescolher os fatos e “recortá-los” segun<strong>do</strong> seus interesses narrativos. Nessa ativida<strong>de</strong> os fatoshistóricos passam <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s para constituírem um plano verbal que é escrito com um propósito<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>. Devi<strong>do</strong> a isso, o autor acredita que a História é uma “história – para”, porque<strong>de</strong>stina-se a um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> público com algum objetivo.Se ambas, tanto a narrativa literária como a histórica <strong>de</strong>stinam-se a um público seleto,<strong>de</strong>vemos consi<strong>de</strong>rar o papel forma<strong>do</strong>r da narrativa em relação ao leitor. Jacques Leenhardt,afirma que: “[...] a leitura, aquela da história como aquela da ficção, é constitutiva <strong>do</strong> cidadãocomo tal.” (1998, p. 44), e para dar crédito à sua afirmação o autor utiliza Rousseau, queacredita na capacida<strong>de</strong> da Literatura em auxiliar na construção <strong>do</strong> cidadão por causa <strong>do</strong>smecanismos psicológicos que coloca em ação.Cyro Martins, sobre um ângulo psicanalítico acredita nesse po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> “construção” <strong>do</strong>homem presente na Literatura, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que, entre o leitor e o escritor haja uma certa distância,que consiste em pouco envolvimento emocional, para que o leitor possa fantasiar ao ler otexto:Entre o público e o artista, em especial entre leitor e ficcionista, <strong>de</strong>ve ser mantidauma certa faixa <strong>de</strong> ambigüida<strong>de</strong> [...] para <strong>de</strong>ixar margem à fantasia <strong>do</strong> leitor. Porqueé preciso não esquecer que nos sustentamos principalmente à custa <strong>de</strong> fantasias.(1970, p.12)Esse escritor também salienta que o público é o gran<strong>de</strong> responsável em estabelecer umarelação entre o próprio escritor e sua obra, já que, ao ler, o público auxilia o escritor noentendimento <strong>de</strong> si mesmo, <strong>de</strong> sua self image 10 :10 Imagem que uma pessoa faz <strong>de</strong> si mesma num da<strong>do</strong> momento e numa <strong>de</strong>terminada situação.


47E a arte surge, na plenitu<strong>de</strong> da sua função expressiva e catártica, como objeto bom,como objeto i<strong>de</strong>al. Para o artista e para o especta<strong>do</strong>r. Para o artista, porque vivenciaa obra como um complemento <strong>do</strong> próprio ser que a ajuda, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>de</strong> fora, aconfigurar a imagem que faz <strong>de</strong> sua ‘self image’ e a compreen<strong>de</strong>r o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> suaexistência. Para o especta<strong>do</strong>r, pela função especular e as conseqüentes oportunida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação projetiva que tôda obra <strong>de</strong> natureza artística oferece a quem admira.(1970, p. 26)Além <strong>de</strong> auxiliar o escritor na sua busca <strong>de</strong> conhecimento, a arte será elaborada segun<strong>do</strong><strong>de</strong>termina<strong>do</strong> público receptor, isto é, um público projeta<strong>do</strong> pelo artista no momento <strong>de</strong> feitura:“Ao contrário <strong>do</strong> que possa transparecer <strong>de</strong> certos conceitos <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> narcisistas <strong>de</strong> arte, acriação artística, quanto mais genuína, mais ligada estará à imagem <strong>do</strong> público fantasiada peloautor, através <strong>de</strong> um mecanismo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação projetiva” (MARTINS, 1970, p. 27). Assim,o escritor, ao elaborar sua narrativa, <strong>de</strong>ve investigar os fatores socioculturais e suasinfluências, isto é, a estrutura social, as i<strong>de</strong>ologias e aos valores presentes naquela socieda<strong>de</strong>que <strong>de</strong>seja retratar.Dessa maneira, po<strong>de</strong>mos refletir sobre a gran<strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> e abrangência da Literaturaem elaborar e expressar problemas sociais individuais, mas que po<strong>de</strong>m ser inseri<strong>do</strong>s em umcontexto universal: “A construção literária po<strong>de</strong>ria atingir o universal pelo tratamento <strong>do</strong>stemas particulares e regionais, sem que com isso se empobrecesse.” (PESAVENTO, 1998, p.27)Sociologicamente, po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar a obra literária acabada no momento em queexerce alguma função, em que atua na socieda<strong>de</strong>. Ora, como já dissemos anteriormente, a arteé uma forma <strong>de</strong> comunicação que exige um comunicante (artista), um comunica<strong>do</strong> (obra) eum comunican<strong>do</strong> (público), através <strong>de</strong>sses surge um quarto elemento: o efeito que essa obrarepercute no indivíduo e, consequentemente, no meio on<strong>de</strong> se insere.2.1.8 Literatura e História na formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social e individualA História e a Literatura seguem caminhos distintos, mas que convergem no momentoem que representam uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> porque ambas jogam com estratégias <strong>de</strong> convicção, daverossimilhança, da credibilida<strong>de</strong> e da autorida<strong>de</strong> da fala, pois, “literatura e históriacontribuem para a atribuição <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, social e individual, provocan<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong>


48comportamento”. (PESAVENTO, 1998, p. 14). Ambas apreen<strong>de</strong>m o real e oferecem leituraspossíveis da vida, além <strong>de</strong> apresentarem ao leitor o jogo <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e forças sociais existentesna socieda<strong>de</strong> que buscam retratar.Ao longo <strong>de</strong>ssa pesquisa po<strong>de</strong>mos constatar o gran<strong>de</strong> esforço empreendi<strong>do</strong> pelaLiteratura e pela História para apresentar uma realida<strong>de</strong> que, por mais que não seja totalmenteverda<strong>de</strong>ira, possa ser aceita, pois, as duas permitem ao presente uma leitura <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Semdúvida é a história que tem uma fala “autorizada” sobre os acontecimentos passa<strong>do</strong>s, já que aLiteratura não tem intenção <strong>de</strong> comprovar a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s fatos narra<strong>do</strong>s. Essa última, porém,também expressa uma carga <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> em suas linhas: “Há, pois, um componentemanifesto <strong>de</strong> ficcionalida<strong>de</strong> no discurso histórico, assim como, da parte da narrativa literária,constata-se o empenho <strong>de</strong> dar veracida<strong>de</strong> à ficção literária” (PESAVENTO, 1998, p.22)Cyro Martins enfatiza que o passa<strong>do</strong> é <strong>de</strong> extrema relevância para a criação artística:“Parece, pois, que estamos no caminho certo quan<strong>do</strong> afirmamos que na criação artística opassa<strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenha um papel importante” (1970, p. 30)Hay<strong>de</strong>n White afirma que não há Literatura sem historicida<strong>de</strong> nem História sem ficção:“Com efeito, po<strong>de</strong>-se afirmar que, assim como não po<strong>de</strong> haver explicação na história semuma estória, também não po<strong>de</strong> haver estória sem um enre<strong>do</strong> por meio <strong>do</strong> qual ela sejaconvertida num tipo particular <strong>de</strong> estória.” (2001, p. 79)Dessa maneira, indiferente <strong>de</strong> ser um texto literário ou histórico, ele precisa ser bemarticula<strong>do</strong> e convincente para passar uma impressão <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong> ao leitor. Devi<strong>do</strong> a issoescritores <strong>de</strong> ficção buscam contextualizar seus personagens, ambientes e acontecimentos paraque sejam aceitos pelo público leitor. Mas é preciso ter em conta que Literatura e História têmmaneiras diferentes <strong>de</strong> expressar a realida<strong>de</strong>, procuram recriar o mun<strong>do</strong>, cada uma com níveisdistintos <strong>de</strong> aproximação da realida<strong>de</strong>.O texto literário é uma forma <strong>de</strong> expressão da maneira <strong>de</strong> sentir, pensar e agir, aLiteratura é um objeto que testemunha o seu tempo, é um registro <strong>do</strong>s seres humanos <strong>de</strong> ummomento histórico porque é escrita com a sensibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> homem em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> momentohistórico. Assim, a Literatura elabora e transmite a energia que a envolve, entran<strong>do</strong> nos<strong>do</strong>mínios da História Cultural, já que procura registrar a vida e, sobretu<strong>do</strong>, impressão <strong>de</strong> vida,


49e com isso vai na raiz <strong>do</strong>s problemas e das possíveis explicações para os diferentes atoshumanos.Se o texto literário constitui um relato <strong>de</strong> impressão <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s sereshumanos, po<strong>de</strong>mos concordar com Cyro Martins quan<strong>do</strong> afirma que: [...] aceitamosfacilmente que o artista seja órgão social, cuja função precípua consiste em elaborar etransmitir esteticamente experiências subjetivas e impressões sensoriais provindas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>exterior” (1970, p. 40)O escritor e o historia<strong>do</strong>r <strong>de</strong>sempenham uma tarefa <strong>de</strong> extrema relevância. De certamaneira eles expõem, refletem e analisam o comportamento humano e a realida<strong>de</strong> social on<strong>de</strong>este comportamento aflora. Elizabeth Torresini afirma que:Romancista e historia<strong>do</strong>r são profissionais da nova sensibilida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal. Ao longo<strong>do</strong> tempo, eles transformam-se em intérpretes especializa<strong>do</strong>s <strong>de</strong>sse mun<strong>do</strong> emprofunda transformação, propon<strong>do</strong> novas maneiras <strong>de</strong> entendimento <strong>do</strong> cotidiano, davida em socieda<strong>de</strong>, das relações <strong>do</strong>s homens com a natureza e com o sobrenatural.(2007, P. 35)Literatura e História são narrações que possibilitam e facilitam ao ser humano enten<strong>de</strong>rsea si próprio e aos <strong>de</strong>mais. Também facilitam às pessoas o entendimento <strong>de</strong> seu passa<strong>do</strong>para que possam apreen<strong>de</strong>r o mun<strong>do</strong> que as ro<strong>de</strong>ia no presente e dar uma possível explicaçãopara o futuro. Ambas têm a capacida<strong>de</strong> mobiliza<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> influenciar os seres a procuraremsoluções para os problemas enfrenta<strong>do</strong>s na atualida<strong>de</strong>, principalmente, para as crises nasrelações humanas <strong>do</strong>s tempos mo<strong>de</strong>rnos.2.2 Os fatos histórico-sociais e a Literatura2.2.1 A história <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul presente na trilogiaLiteratura e História são complementares. Mesmo que sejam elaboradas <strong>de</strong> maneiradiferente, ambas exercem a mesma função social no auxílio ao ser humano na sua eternabusca <strong>de</strong> conhecimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em que habita e também <strong>de</strong> seu mun<strong>do</strong> interior. É possívelencontrar situações históricas nas obras literárias, bem como situações literárias na História,


50pois muitas vezes o conhecimento histórico é elabora<strong>do</strong> a partir das impressões pessoais <strong>do</strong>autor.Na trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé, <strong>de</strong> Cyro Martins, composta por Sem rumo, Porteira fechadae Estrada nova, encontramos situações históricas que também estão retratadas nos livros <strong>de</strong>História <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. O principal livro utiliza<strong>do</strong> para essa pesquisa foi História <strong>do</strong>Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul <strong>de</strong> Sandra Jatay Pesavento. Através <strong>de</strong>ssa obra buscamos relacionar osfatos históricos apresenta<strong>do</strong>s pela História verifican<strong>do</strong> sua presença na literatura. Procuramosestabelecer os contrapontos e pontos <strong>de</strong> vista entre ambas <strong>de</strong> maneira que elaboramos aanálise que segue nesse texto, a qual visa a um entrelaçamento entre os fatos da História <strong>do</strong>Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul com o enre<strong>do</strong> das três obras estudadas. É certo que se a Literatura é umaarte, portanto uma criação quase instintiva e tem seu próprio tempo, algumas situaçõesencaixam-se perfeitamente com a época retratada na história, já algumas apresentam-se<strong>de</strong>slocadas, por vezes antes <strong>do</strong> fato histórico, por vezes após.Dessa maneira ao unir Literatura e História julgamos po<strong>de</strong>r extrair um realconhecimento da História <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul e <strong>de</strong> seu povo. A “exatidão” da História écomplementada pelos dramas pessoais vivencia<strong>do</strong>s pelas personagens <strong>de</strong> Cyro Martins. Dessemo<strong>do</strong>, o pesquisa<strong>do</strong>r obtém um conhecimento mais abrangente da vivência <strong>do</strong>s homens daépoca, <strong>de</strong> seus anseios, <strong>de</strong>sejos, me<strong>do</strong>s e das situações impostas pela socieda<strong>de</strong> em constantecrescimento e industrialização. É importante salientar que as obras possuem um tempohistórico pre<strong>do</strong>minante em seu enre<strong>do</strong>, que engloba <strong>de</strong>, aproximadamente 1923 a 1954, porémalguns fatos <strong>de</strong>slocam-se no tempo, são cita<strong>do</strong>s no livro <strong>de</strong> História <strong>de</strong> Pesavento em<strong>de</strong>terminada época e nas obras literárias outras distintas, por isso é impossível retratar os fatoshistóricos com uma sequência exata nas narrativas literárias em estu<strong>do</strong>.Sem rumo inicia a história <strong>de</strong> sua narrativa em aproximadamente 1923, quan<strong>do</strong> Borges<strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros estava no governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul e concorria a reeleição: “[...]teremos eleições este ano. O nosso candidato, como sempre será o impoluto Dr. Borges <strong>de</strong>Me<strong>de</strong>iros, presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> [...]”( 1997, p. 67) e esten<strong>de</strong>-se até mea<strong>do</strong>s a década <strong>de</strong> 1930,mais aproximadamente nos anos <strong>de</strong> 1933 ou 1934, no perío<strong>do</strong> da República Nova quan<strong>do</strong>ocorre a primeira eleição municipal após Getúlio Vargas ter assumi<strong>do</strong> o governo provisório<strong>do</strong> país, pois estão renovan<strong>do</strong> os títulos eleitorais para o pleito municipal: “Ah, não, esse título


51não serve. Agora é tu<strong>do</strong> novo, liso e direito. Estamos na República Nova, amigo. O Brasilcomeçou outra vez!” (1997, p. 115)Porteira fechada apresenta seu enre<strong>do</strong> no tempo <strong>de</strong> 1938, durante o Esta<strong>do</strong> Novo:“Queve<strong>do</strong> tentou em vão tirar uma sesta naquele meio-dia escaldante <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1938,reviran<strong>do</strong>-se na cama, com uma inquietação <strong>de</strong> pesa<strong>de</strong>lo” (1993, p.72), mas, apresentasituações que envolvem Borges como governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e que datam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos <strong>de</strong>1917 até 1927, quan<strong>do</strong> Getúlio Vargas é indica<strong>do</strong> como sucessor governamental <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. Isso acontece quan<strong>do</strong> as personagens recordam-se <strong>de</strong>ssa época e relatamnaem flash-backs:“O coronel, enquanto mateava resolvia. E resolvia com cautela, porque queriaresolver bem. Não <strong>de</strong>sejava, <strong>de</strong> maneira nenhuma, trazer dissidências para o seio <strong>do</strong>parti<strong>do</strong>. Não ignorava o quanto isso <strong>de</strong>sagradava o Dr. Borges. Deveria agir compolítica, sem <strong>de</strong>ixar transparecer a cilada” (1993, p. 106).A obra Estrada nova apresenta situações <strong>de</strong> 1923, com Borges no governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,enquanto as personagens relembram o passa<strong>do</strong>. Isso também ocorre em 1937, durante oEsta<strong>do</strong> Novo: “Mas um belo dia, isso não foi muito antes da guerra, lá por fim <strong>de</strong> 37, no ano<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, apareceu um castelhano endinheira<strong>do</strong> e o <strong>do</strong>no não teve dúvidas <strong>de</strong> negociarcom ele” (1992, p. 26). A guerra referida acima, é a Segunda Guerra Mundial, que eclodiu em1939. As personagens <strong>de</strong>ssa obra vivem atualmente no perío<strong>do</strong> populista: “[...] E hoje?Quan<strong>do</strong> se interroga assim, tem pensamentos melancólicos. Hoje, numa eleição, naquela, porexemplo, que estava pintan<strong>do</strong>, a <strong>do</strong> Getúlio novamente? [...]” (1992, p.59), a eleição <strong>de</strong>Getúlio para presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> país novamente ocorreu em 1951 e o tempo histórico da obrasegue durante o governo <strong>de</strong> Getúlio, antes <strong>de</strong> seu suicídio em 1954, um perío<strong>do</strong> on<strong>de</strong> ocorremdiversas mudanças no campo social:[...] com a Guerra recém terminada, o Esta<strong>do</strong> Novo caí<strong>do</strong>, o comunismo mandan<strong>do</strong>na meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. E os jornais e os rádios não cessavam <strong>de</strong> falar em reformassociais, em direitos <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, em greves, em Reforma Agrária, emassistência social, em salário mínimo e outras complicações pelo estilo. (1992, p. 60)Essas mudanças no campo social acima expressas, são reflexos <strong>de</strong> to<strong>do</strong> um processohistórico, social e econômico <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, pois foi o último Esta<strong>do</strong> a serintegra<strong>do</strong> no Brasil Colonial. Sua <strong>de</strong>scoberta ocorreu no século XVI através <strong>de</strong> expediçõeslitorâneas que buscavam pau-brasil para comércio.


522.2.2 A ocupação e exploração das terras sulinasO esta<strong>do</strong> gaúcho permaneceu inexplora<strong>do</strong> durante anos, visto que não oferecia atrativoslucrativos, pois na Europa ocorria a fase <strong>de</strong> transição <strong>do</strong> Feudalismo para o Capitalismo e osprincipais produtos <strong>de</strong> exploração no Brasil eram as riquezas minerais e a cana-<strong>de</strong>-açúcar.Somente no século XVII os interesses da coroa portuguesa, que intitulou-se a <strong>do</strong>na dasterras brasileiras por tê-las <strong>de</strong>scoberto, voltaram-se para o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. Esse interesserepentino pelas terras gaúchas <strong>de</strong>via-se ao fato <strong>de</strong> que nesse Esta<strong>do</strong> havia índios, quetornavam-se necessários para a mão-<strong>de</strong>-obra escrava e que eram leva<strong>do</strong>s ao centro <strong>do</strong> paíspelos ban<strong>de</strong>irantes. Em 1626, com os ataques <strong>do</strong>s ban<strong>de</strong>irantes paulistas às MissõesJesuíticas, localizadas on<strong>de</strong> hoje está o país <strong>do</strong> Paraguai, os indígenas fugiram para o territóriogaúcho. Em 1640 houve um gran<strong>de</strong> combate entre indígenas e ban<strong>de</strong>irantes paulistas queresultou no aprisionamento <strong>de</strong> muitos índios, a população restante localizou-se nasproximida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> Rio Uruguai, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> o ga<strong>do</strong> que pertencia às reduções livres no território<strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. Esses rebanhos, livres, reproduziram e produziram uma imensa gadariaselvagem que foi a fonte básica da economia sulina durante anos e motivo <strong>de</strong> apropriação dasterras <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul para a caça <strong>do</strong> ga<strong>do</strong> xucro.Em 1680 foi funda<strong>do</strong> o primeiro núcleo português na região <strong>do</strong> Rio da Prata, chama<strong>do</strong>Colônia <strong>do</strong> Sacramento, essa localização proporcionou o conhecimento aos portugueses dasimensas reservas <strong>de</strong> ga<strong>do</strong>, <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ssa maneira, uma ativida<strong>de</strong> predatória. O ga<strong>do</strong>xucro era caça<strong>do</strong> para a exportação <strong>de</strong> couro para a Europa o que atraiu olhares para o Esta<strong>do</strong>até então sem ocupação e o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul tornou-se conheci<strong>do</strong> pela forte riquezapecuária. Com isso, os Jesuítas voltaram para o esta<strong>do</strong> com a intenção <strong>de</strong> fundar as Missões ecriar ga<strong>do</strong>.No fim <strong>do</strong> século XVII ocorreu uma gran<strong>de</strong> mudança no sistema econômico brasileiro,o açúcar entrou em <strong>de</strong>cadência e a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> minas on<strong>de</strong> hoje localiza-se o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>Minas Gerais compensou os problemas da baixa açucareira. Como era necessária muita mão<strong>de</strong>-obrapara o trabalho <strong>de</strong> escavações nas minas, os ban<strong>de</strong>irantes voltaram ao Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong>


53Sul buscan<strong>do</strong> comida e matan<strong>do</strong> ga<strong>do</strong> xucro para o abastecimento da gran<strong>de</strong> massapopulacional que concentravam as minera<strong>do</strong>ras. As vacarias eram atacadas por tropeiros econtrabandistas, tipos sociais da época, <strong>de</strong>scritos por Sandra Jatay Pesavento: “O tipo socialpor excelência <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong> – o tropeiro – era necessariamente um chefe <strong>de</strong> ban<strong>do</strong> arma<strong>do</strong>”(2002, p. 14).A distribuição das sesmarias gaúchas ocorreu na década <strong>de</strong> 1730. Ga<strong>do</strong>s e terras foramdistribuí<strong>do</strong>s para tropeiros e militares que <strong>de</strong>ram baixa, assim surgiram as primeiras gran<strong>de</strong>sestâncias Sul- riogran<strong>de</strong>nses. Essas estâncias possuíam expressivos rebanhos e tinham comomão-<strong>de</strong>-obra para os serviços campesinos os peões, que nada mais eram que homens sempara<strong>de</strong>iro, sem moradia, como alguns índios fugitivos e tropeiros <strong>de</strong> ga<strong>do</strong>, sempre subalternosa seus senhores. Nas obras literárias encontramos a Estância <strong>do</strong> Silêncio, <strong>de</strong> Sem rumo, aEstância <strong>do</strong>s Salsos, <strong>de</strong> Porteira fechada e a Estância Velha <strong>de</strong> Estrada nova paraexemplificar essas gran<strong>de</strong>s fazendas retratadas na história, que, mesmo estan<strong>do</strong>exemplificadas em obras literárias que focalizam um tempo posterior, resquícios da época dacolonização.Os estancieiros tinham como mão-<strong>de</strong>-obra barata os peões, que eram geralmente,homens sem um rumo <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> para suas vidas, sem, muitas vezes saber <strong>de</strong> on<strong>de</strong> surgiram,qual era sua origem e <strong>de</strong>scendência. Esses tipos humanos são representa<strong>do</strong>s em Sem rumopelas personagens <strong>de</strong> Clarimun<strong>do</strong> e Chiru.Clarimun<strong>do</strong> é retrata<strong>do</strong> pelo narra<strong>do</strong>r como um homem seco e <strong>de</strong> traços indígenas, sua<strong>de</strong>scendência, talvez, viesse <strong>do</strong>s índios que fugiram das Missões e buscaram abrigos nasfazendas: “Clarimun<strong>do</strong> não a cumprimentou nem olhou para ela. Arrastou o banco com o pé esentou-se com o porte entona<strong>do</strong> <strong>de</strong> quem manda. Torceu <strong>de</strong>vagar, distraí<strong>do</strong>, as pontas <strong>do</strong>bigo<strong>de</strong> ralo, <strong>de</strong> índio” (1997, p.40).Chiru é um menino que vive na Estância <strong>do</strong> Silêncio. Não lembra <strong>do</strong>s pais, nem sabequem são e <strong>de</strong>sconhece seu local <strong>de</strong> origem. Não tem um nome propriamente dito, conhece-seapenas por Chiru, afilha<strong>do</strong> <strong>de</strong> Nicanor Ayres, <strong>do</strong>no <strong>do</strong> Silêncio:


54Em to<strong>do</strong> o caso, se chegasse a vez...não <strong>de</strong>smentiria a raça. Raça? Quem seria o seupai? Um índio guapo, talvez um índio vago... Se lhe perguntassem na coluna o nome<strong>de</strong> seu pai, o que respon<strong>de</strong>ria? Diria a verda<strong>de</strong>? Diria? Uma pergunta daquelas lhefaria um re<strong>de</strong>moinho nas i<strong>de</strong>ias. Mas, se fosse o caso, total, na guerra como naguerra... Respon<strong>de</strong>ria , até meio entona<strong>do</strong>: “Seu comandante, eu não tenho marca,não conheço pai nem mãe! Não sou <strong>de</strong> gente <strong>de</strong> condição. Sou afilha<strong>do</strong> <strong>de</strong> seuNicanor Ayres, isso sim, <strong>do</strong>no <strong>do</strong> Silêncio.” (1997, p. 82-83)Através <strong>do</strong> trabalho árduo e não recompensa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s peões <strong>de</strong> estância o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong>Sul <strong>de</strong>senvolveu como fruto principal <strong>de</strong> sua economia o charque e com o crescimento dascharqueadas foi sen<strong>do</strong> introduzi<strong>do</strong> no Esta<strong>do</strong> o trabalho escravo. O negro foi o principaltrabalha<strong>do</strong>r das charqueadas sulinas e permaneceu como serviçal nas fazendas duranteséculos, já que a lei Áurea foi assinada em 1888 e em mea<strong>do</strong>s da década <strong>de</strong> 1950 no livroEstrada nova Dona Almerinda tem como serviçais <strong>do</strong>mésticas e amigas duas negras, umavelha, chamada Anastácia, outra nova com o nome <strong>de</strong> Amélia, que trabalham na Estância etem como pagamento <strong>de</strong> seus serviços o local para morar e a comida, em nenhum momento émenciona<strong>do</strong> o pagamento das duas serviçais.A atitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> Coronel Teo<strong>do</strong>ro com Anastácia revela o autoritarismo e o man<strong>do</strong>nismocom que agia em relação a seus emprega<strong>do</strong>s. Após uma gran<strong>de</strong> reflexão a respeito da vida quelevava, e <strong>do</strong>s tempos que apresentavam mudanças no seu sistema <strong>de</strong> vida, fatiga<strong>do</strong> da vida e<strong>do</strong>s homens, Teo<strong>do</strong>ro pe<strong>de</strong> um copo <strong>de</strong> água à negra Anastácia e lhe agra<strong>de</strong>ce pela primeiravez em anos <strong>de</strong> serviço, expressan<strong>do</strong> que recém havia se da<strong>do</strong> conta <strong>de</strong> que a negra não tinhaobrigação <strong>de</strong> servi-lo como pensava:- Me dá um copo d’água, Anastácia! – disse Teo<strong>do</strong>ro, com uma maciez que não lheera comum. Ao mesmo tempo pensava: garanti<strong>do</strong> que o diabo da china já havia <strong>de</strong>estar farejan<strong>do</strong> o que lhe passava pela cabeça. Aquilo era um azougue.- Gracias, estava bem fresca.Anastácia branqueou os olhos com espanto. Ué, o que estaria para acontecer santoDeus? Não tinha lembrança <strong>de</strong> lhe ouvir um muito obriga<strong>do</strong>, por mais que ela lheservisse com o melhor jeito <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. (1992, p. 191)Com a gran<strong>de</strong> produção e venda <strong>de</strong> charque para as minera<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> centro <strong>do</strong> país,surgiu, no esta<strong>do</strong> gaúcho a primeira camada social rica, não tão aristocrática quanto aaçucareira nor<strong>de</strong>stina, mas com vozes <strong>de</strong> man<strong>do</strong> muita vezes autoritárias, pois mesmo que oEsta<strong>do</strong> fosse o último a ser coloniza<strong>do</strong> em nível nacional e o último a utilizar trabalho escravosempre houve relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre as camadas sociais: “Isso todavia não indica quepadrões autoritários <strong>de</strong> man<strong>do</strong> não tenham existi<strong>do</strong> e se exerci<strong>do</strong> violentamente, numa


55socieda<strong>de</strong> composta <strong>de</strong> senhores <strong>de</strong> terra, ga<strong>do</strong>, charqueadas e escravos” (PESAVENTO,2002, p. 19). Teo<strong>do</strong>ro, personagem principal <strong>de</strong> Estrada nova, representa o fazen<strong>de</strong>iropo<strong>de</strong>roso, senhor <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> e temi<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s que vivem em sua fazenda e na vizinhança, suaautorida<strong>de</strong> oprime a to<strong>do</strong>s.Como o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul estava geran<strong>do</strong> lucros no <strong>final</strong> <strong>do</strong> século XVIII e início <strong>do</strong>século XIX, a coroa portuguesa e a coroa espanhola ambicionavam o seu solo, por issolutaram por séculos até <strong>de</strong>finirem sua posse. Durante essas lutas, surgiram vários trata<strong>do</strong>s,como o <strong>de</strong> Utrecht, <strong>de</strong> Madrid, <strong>de</strong> El Par<strong>do</strong> e <strong>de</strong> Santo I<strong>de</strong>lfonso. Nesses trata<strong>do</strong>s pouco o RioGran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul pertencia a Portugal pouco à Espanha, por isso a língua espanhola éfrequentemente utilizada no Esta<strong>do</strong> até os dias atuais, principalmente nas regiões fronteiriças.Essa linguagem híbrida é encontrada diversas vezes nas falas <strong>de</strong> vários personagens <strong>de</strong> Cyroem toda a trilogia.As disputas pelas terras sulinas, causou certa revolta nas populações indígenas, quereconheciam-se como <strong>do</strong>nos e recusavam-se a entregar suas posses, o que ocasionou a GuerraGuaranítica, on<strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> índios foram extermina<strong>do</strong>s. Muitos <strong>de</strong>sses índios ficaram semmoradia e sem família. Com as Missões <strong>de</strong>struídas e aban<strong>do</strong>nadas pelos padres algunspartiram em busca <strong>de</strong> trabalho e abrigo, alojan<strong>do</strong>-se como peões nas estâncias.Com me<strong>do</strong> <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r as terras gaúchas para a Espanha, a coroa portuguesa obrigou-se aoutorgar po<strong>de</strong>r e autorida<strong>de</strong> aos estancieiros gaúchos e distribuiu cargos e o restante dassesmarias entre eles. Ao possuir o po<strong>de</strong>r, os estancieiros usavam-no para seus interessesparticulares e tornavam-se cada vez mais ricos e po<strong>de</strong>rosos com a crescente venda <strong>do</strong> charque.A solução encontrada pela coroa foi a <strong>de</strong> povoar o restante das terras <strong>de</strong>socupadas comimigrantes.Os primeiros coloniza<strong>do</strong>res foram trazi<strong>do</strong>s da ilha <strong>de</strong> Açores e buscavam uma vidamelhor em terras <strong>de</strong>sconhecidas, mas mesmo que a colonização açoriana começasse em 1764,em mea<strong>do</strong>s <strong>de</strong> 1922, 1923, o agricultor segue seu trabalho com poucos recursos e incentivosgovernamentais como po<strong>de</strong>mos perceber em Sem rumo. Nesse romance, Tomás Barbosarepresenta o imigrante e lavra o pequeno pedaço <strong>de</strong> terra pertencente à Estância <strong>do</strong> Silêncio,on<strong>de</strong> trabalha como chacareiro. Não possui terra própria e seu trabalho é árduo, trabalhatradicionalmente, da mesma maneira <strong>do</strong>s imigrantes <strong>de</strong> quase <strong>do</strong>is séculos passa<strong>do</strong>s, mas


56<strong>de</strong>monstra o gran<strong>de</strong> prazer que sente em cultivar e trabalhar na terra, próprio <strong>do</strong>s imigrantesque eram trabalha<strong>do</strong>res esforça<strong>do</strong>s e disciplina<strong>do</strong>s:Chupou o beiço, sacudiu a regeira, convidan<strong>do</strong> a junta: Negrito, Sinuelo, bamo, boivéio!O capim ergueu-se, on<strong>de</strong>ou, a terra se abriu, as raízes viraram para cima. Um cheirobom <strong>de</strong> terra fresca subia <strong>do</strong>s regos recém-abertos. Lento, pesa<strong>do</strong>, o andar <strong>do</strong>s bois.Mas o ferro se arrastava, viran<strong>do</strong> a terra, daqui pra lá, <strong>de</strong> lá pra cá, <strong>de</strong> ponta a ponta<strong>do</strong> eito. Cumprin<strong>do</strong> o seu <strong>de</strong>stino. [...] Ele, ara<strong>do</strong> e bois formavam um bloco único,semovente, uma força telúrica os levava <strong>de</strong> rastos. (1997, p. 87)2.2.3 A imigração alemã, italiana e a expansão da economia gaúchaO surgimento da fábrica mo<strong>de</strong>rna fez com que nascessem relações assalariadas <strong>de</strong>produção. Quan<strong>do</strong> foi proclamada a in<strong>de</strong>pendência em 1822, o café estava em ascensão comoo primeiro produto <strong>de</strong> exportação brasileira, o que fez surgir uma classe social <strong>de</strong> eliteformada pelos gran<strong>de</strong>s cafeeiros, que começaram a controlar a política <strong>do</strong> país.O Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, nesse perío<strong>do</strong>, apresentava forte <strong>de</strong>senvolvimento da pecuáriavoltada para o charque que abastecia o merca<strong>do</strong> interno brasileiro. Os presi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>províncias eram nomea<strong>do</strong>s pelo centro e governavam segun<strong>do</strong> os interesses <strong>de</strong>sse, o queresultou em diversas rebeliões nos Esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> zonas periféricas Brasileiras. No Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong>Sul eclodiu, em 1835, a Revolução Farroupilha, que durou <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> constantes lutas entregaúchos e o governo central. Os farrapos acusavam o governo <strong>de</strong> má gestão <strong>do</strong> dinheiropúblico e <strong>de</strong> gastar segun<strong>do</strong> seus interesses ao cobrarem impostos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Sul-Riogran<strong>de</strong>nse exploran<strong>do</strong>-o, por isso[...] tornava-se claro para os gaúchos que o Rio Gran<strong>de</strong> era relega<strong>do</strong> à posição <strong>de</strong>“estalagem <strong>do</strong> Império”: fornecia solda<strong>do</strong>s, cavalos e alimento durante as lutasfronteiriças; a guerra <strong>de</strong>sorganizava sua produção mas não recebia in<strong>de</strong>nização pordanos sofri<strong>do</strong>s. (PESAVENTO, 2002, p. 38)A Revolução Farroupilha era sustentada pelos estancieiros que cediam seus peões paraservirem ao exército revolucionário porque i<strong>de</strong>alizavam a in<strong>de</strong>pendência política <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>gaúcho em relação ao centro, mas com a continuação <strong>do</strong>s laços econômicos. Como o Esta<strong>do</strong>gaúcho não conseguiu competir economicamente com o centro, estava empobreci<strong>do</strong>, foiassinada a paz dia 28 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1845, em Ponche Ver<strong>de</strong>, com o acor<strong>do</strong> entre o Esta<strong>do</strong> e


57os po<strong>de</strong>res centrais <strong>de</strong>: liberda<strong>de</strong> aos escravos, incorporação <strong>do</strong>s oficiais gaúchos no exércitobrasileiro com o mesmo cargo que já possuíam, estabelecimento da linha divisória com oUruguai, as dívidas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> gaúcho seriam pagas pelo governo central, entre outras <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m militar. Esses acor<strong>do</strong>s vieram a beneficiar, acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, a pecuária sulina e osgran<strong>de</strong>s cria<strong>do</strong>res, que foram os que tiveram gastos com a Revolução.Ainda no século XIX ocorreu a vinda <strong>do</strong>s imigrantes para o solo brasileiro. O forte<strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> capitalismo fez com que em alguns países, como a Alemanha, o capitalse acumulasse nas mãos <strong>de</strong> poucos e a indústria fez com que o camponês aban<strong>do</strong>nasse ocampo e o trabalho artesanal. Isso acarretou numa massa populacional sem terra e semtrabalho que viram na imigração para o Brasil a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reverter essa situação emudar sua condição <strong>de</strong> vida para melhor. Já para os países que recebiam esses imigrantes avantagem era a <strong>de</strong> aban<strong>do</strong>nar o trabalho escravo e utilizar a mão-<strong>de</strong>-obra livre, que ren<strong>de</strong>riamais lucros.Os alemães chegaram ao Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul em 1824, sua chegada respondia aosinteresses <strong>do</strong> governo em povoar as áreas ainda virgens, porque as terras <strong>de</strong> fácil ocupação jápertenciam aos estancieiros e açorianos, que chegaram primeiro, restan<strong>do</strong> somente áreas <strong>de</strong>intensa vegetação e difícil localização. O po<strong>de</strong>rio central também interessava-se nacolonização alemã para uma certa “neutralização” <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r exerci<strong>do</strong> pela oligarquia regionale diversificação <strong>do</strong>s produtos internos <strong>do</strong> país. A primeira colônia alemã <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> localizouseem São Leopol<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> fundaram escolas, cemitérios, vendas, etc. Os imigrantes que nãose adaptaram à agricultura fixaram-se na ce<strong>de</strong> <strong>do</strong> município dan<strong>do</strong> início à indústria familiar,exercen<strong>do</strong> profissões como sapateiros, carpinteiros, marceneiros, moleiros, etc. Deve-se muitoaos colonos alemães, que contribuíram para o <strong>de</strong>senvolvimento econômico e cultural <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> gaúcho.A imigração italiana veio com outra <strong>final</strong>ida<strong>de</strong>: “[...]formar no sul núcleos coloniaisimigrantes bem sucedi<strong>do</strong>s que pu<strong>de</strong>ssem servir como foco <strong>de</strong> atração à imigração estrangeirapara o país” (PESAVENTO, 2002, p. 46). Como chegaram ao Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul após osalemães, somente em 1875, os italianos receberam lotes menores <strong>de</strong> terra na serra, já que asmelhores terras estavam ocupadas. Enfrentavam a comercialização alemã e a concorrência <strong>de</strong>uma re<strong>de</strong> comercial já montada, o que os levou a comercializar produtos que ainda não haviano merca<strong>do</strong>, como o vinho.


58Acontece que, acostumada a mandar e ter o controle da situação, para a elite regional, aimigração não atendia a seus interesses porque que os imigrantes trabalhavam para si e nãopara os estancieiros no trabalho pecuário. Dessa maneira a agricultura <strong>do</strong>s imigrantes nãorecebeu auxílio <strong>do</strong> governo até 1840. Prosperaram intensamente e rapidamente as colôniasbem localizadas, que conseguiram fornecer seus produtos ao centro urbano mais próximo.Nos anos <strong>de</strong> 1870 a agricultura imigrante já exportava seus produtos para o centro <strong>do</strong> país, oque beneficiava o comerciante e não o pequeno proprietário.É preciso ressaltar que os imigrantes tinham por função básica somente o trabalho, nãolhes era dada voz atuante na política estadual:“Dentro <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r regionalera <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por latifundiários da pecuária, as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atuação política <strong>do</strong>simigrantes foram quase nulas” (PESAVENTO, 2002, p. 49).2.2.4 A política brasileira e os parti<strong>do</strong>s políticos no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> SulA política brasileira <strong>do</strong> século XIX constava duma relação dualista partidária: o centrocafeeiro era governa<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira que permitia a circulação <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r por toda a classe<strong>do</strong>minante. No Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul havia o PL (Parti<strong>do</strong> Liberal) que lutava pelos interesses <strong>do</strong>sestancieiros locais e o Parti<strong>do</strong> Conserva<strong>do</strong>r, funda<strong>do</strong> em 1848, que, ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os interesses<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r central, garantia recebimento <strong>de</strong> parte da classe <strong>do</strong>minante regional <strong>do</strong>s benefíciospolíticos. Em <strong>de</strong>terminadas situações eram realizadas “ligas” partidárias, com a <strong>final</strong>ida<strong>de</strong> <strong>de</strong>manter o po<strong>de</strong>r da classe <strong>do</strong>minante e excluir a voz <strong>do</strong> povo humil<strong>de</strong>.Na década <strong>de</strong> 60, parte <strong>do</strong>s liberais reagiu contra as coligações, forman<strong>do</strong> o Parti<strong>do</strong>Liberal Histórico, que recebeu muitas a<strong>de</strong>sões. Mas, ao chegar ao po<strong>de</strong>r da AssembléiaLegislativa houve uma forte contradição: agiam <strong>de</strong> maneira conserva<strong>do</strong>ra, o que causou afundação <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Republicano Rio-Gran<strong>de</strong>nse em 1882.Nesse mesmo século a<strong>de</strong>ntrou o capitalismo no Brasil, resulta<strong>do</strong> das gran<strong>de</strong>sexportações <strong>de</strong> café e com ele a introdução <strong>do</strong> trabalho assalaria<strong>do</strong>, a indústria, bancos,urbanização e outros adventos. Mas o capital permanecia acumula<strong>do</strong> nas mãos <strong>de</strong> poucos.


59Algumas classes trabalha<strong>do</strong>ras começaram a se <strong>de</strong>stacar, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à circulação <strong>do</strong> capital. Astransformações ocorridas fizeram surgir novas classes como a burguesia e a classe média quese revoltaram e organizaram a queda <strong>do</strong> regime monárquico para o republicano.No Esta<strong>do</strong> gaúcho ocorreu uma baixa no capital <strong>de</strong> giro em relação às outras áreas, vistoque exportava para o abastecimento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> interno brasileiro. A zona <strong>de</strong> imigraçãoalemã e italiana apresentava uma maior facilida<strong>de</strong> para abraçar o sistema capitalista aocontrário da pecuária, que ainda era a principal ativida<strong>de</strong> econômica <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. Teo<strong>do</strong>ro, <strong>de</strong>Estrada nova, reflete sobre essa mudança econômica e chega a pensar na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>trocar a pecuária pela agricultura: “Entretanto, o seu ramo era aquele, a pecuária. Sair <strong>de</strong>le,meter-se em qualquer outro negócio, seria arriscar-se sem necessida<strong>de</strong>, nada aconselhável nasua ida<strong>de</strong>” (1992, p. 61).O PL pouco po<strong>de</strong> fazer para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os interesses <strong>do</strong>s sesmeiros e diante <strong>de</strong>ssa crisesurge nova i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> República <strong>do</strong> PRR (Parti<strong>do</strong> Republicano Rio-Gran<strong>de</strong>nse) que,fundamenta<strong>do</strong> no Positivismo <strong>de</strong> Comte, tinha Júlio <strong>de</strong> Castilhos como representanteprincipal. Em 1891 Castilhos foi eleito governa<strong>do</strong>r estadual e, nesse mesmo ano, <strong>de</strong>posto peloParti<strong>do</strong> Republicano Fe<strong>de</strong>ral e novamente reconduzi<strong>do</strong> ao po<strong>de</strong>r em 1892, o que ocasionou aRevolução Fe<strong>de</strong>ralista em 1893: os liberais li<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s por Silveira Martins formaram o Parti<strong>do</strong>Fe<strong>de</strong>ralista Brasileiro opon<strong>do</strong>-se ao governo <strong>de</strong> Júlio <strong>de</strong> Castilhos no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul eFloriano Peixoto no Brasil. A vitória ficou com Floriano e Castilhos porque uniram-se aoexército.Os fe<strong>de</strong>ralistas <strong>de</strong>puseram as armas em 1895, com a condição <strong>de</strong> que a constituiçãofosse revista e <strong>de</strong> que a reeleição fosse proibida no Esta<strong>do</strong>. A Revolução Fe<strong>de</strong>ralista garantiua continuação e centralização <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, pois em 1898 Castilhos passou o po<strong>de</strong>r a Borges <strong>de</strong>Me<strong>de</strong>iros: “[...] Borges <strong>de</strong>u seguimento à obra <strong>de</strong> Castilhos, consolidan<strong>do</strong> no Esta<strong>do</strong> o regimerepublicano autoritário e centraliza<strong>do</strong>” (PESAVENTO, 2002, p. 79). Esse regime autoritário<strong>de</strong> Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros comprova-se em Estrada nova na voz <strong>do</strong> Coronel Teo<strong>do</strong>ro, aorecordar as “boas lembranças” <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, tempos on<strong>de</strong> os fazen<strong>de</strong>iros não eram tãosacrifica<strong>do</strong>s: “No tempo <strong>do</strong> Dr. Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros, no Esta<strong>do</strong>, e <strong>do</strong> coronel Januário noMunicípio, as eleições se faziam por assim dizer a grito “no mais”. Ninguém vinha amolar apaciência <strong>do</strong>s outros com ‘problemas nacionais’” (1992, p. 44).


602.2.5 O governo Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros e a Primeira Guerra MundialA filosofia <strong>do</strong> PRR <strong>de</strong> “viver as claras” revoltou certa parcela da população. Com aimposição por parte <strong>do</strong> governo <strong>do</strong> voto a <strong>de</strong>scoberto, estava garanti<strong>do</strong> ao parti<strong>do</strong> apermanência no po<strong>de</strong>r estadual. Algumas pessoas se rebelaram contra essa imposição, autilização <strong>do</strong> termo “algumas”, dá-se ao fato <strong>de</strong> que muitos aceitaram as medidas autoritárias<strong>do</strong> governo, pois, na política positivista, essa atitu<strong>de</strong> não era algo fora da realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> povogaúcho que, ao longo <strong>de</strong> seu perío<strong>do</strong> formativo, viveu sob violências e arbitrarieda<strong>de</strong>s. Dessamaneira, a cada eleição ganha, mesmo que trocasse o governante, a i<strong>de</strong>ologia partidáriapermanecia a mesma, o que permitia que houvessem mais eleições com a vitória garantida.Em Estrada nova, Teo<strong>do</strong>ro recorda o passa<strong>do</strong> e comenta o governo <strong>de</strong> Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros:O borgismo mandava e <strong>de</strong>smandava no Esta<strong>do</strong>, discricionariamente, monta<strong>do</strong> numalei eleitoral que facilitava a votação em massa <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>funtos <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong>,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que fosse <strong>do</strong> interesse <strong>do</strong> governo, o que acontecia sempre. Os <strong>de</strong>funtos eramgovernistas. Talvez viesse daí a frase que vezes sem conta lera e ouvira no tempo <strong>do</strong>borgismo: “Os vivos são sempre e cada vez mais governa<strong>do</strong>s pelos mortos”. (1992,p. 63)Se, em Estrada nova o Coronel Teo<strong>do</strong>ro recorda esse passa<strong>do</strong>, em Sem rumo ManoelGarcia recebe, nos dias em que vive, uma proposta <strong>de</strong> trabalhar como professor <strong>do</strong> distrito.Em troca <strong>de</strong>ssa ajuda o Coronel Dutra não lhe exige nada <strong>de</strong>mais, apenas seu voto para o PRRe seu candidato Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros:- Pois então ficamos acerta<strong>do</strong>s. Você será nomea<strong>do</strong> professor rural, <strong>de</strong>ixará estavidinha miserável, própria <strong>de</strong> indivíduos incapazes, porque rabiça <strong>de</strong> ara<strong>do</strong> não foifeita para mãos <strong>de</strong> têmpera <strong>de</strong> um Manuel Garcia. E em troca <strong>de</strong>ssa mudança <strong>de</strong>vida, uma verda<strong>de</strong>ira loteria, o que lhe exigimos? Veja o nosso <strong>de</strong>sprendimento –nada! Apenas o seu voto e a sua cabala nas re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>zas para o dr. Borges <strong>de</strong>Me<strong>de</strong>iros, o maior rio-gran<strong>de</strong>nse vivo! (1997, p. 67-68)Com o direito à reeleição proibi<strong>do</strong>, o PRF contava que havia encontra<strong>do</strong> uma maneira<strong>de</strong> voltar a ter certos po<strong>de</strong>res políticos, esquecen<strong>do</strong>-se que a filosofia <strong>do</strong> PRR continuaria vivamesmo com novos governa<strong>do</strong>res no po<strong>de</strong>r. Dessa maneira, os anos que se seguiram foramótimos para o Parti<strong>do</strong> Republicano Rio-Gran<strong>de</strong>nse, que recebia to<strong>do</strong> apoio <strong>do</strong> governo centralaté mesmo para a implantação da viação férrea nas terras gaúchas.


61Nessa época, o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul abastecia o merca<strong>do</strong> interno brasileiro com produtosagropecuários (charque e couros); o maior problema enfrenta<strong>do</strong> foi a falta <strong>de</strong> acesso àtecnologia <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ga<strong>do</strong>, pois os rebanhos não cresciam <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a <strong>do</strong>enças e pestesque causavam gran<strong>de</strong>s perdas e prejuízos econômicos, pois, muitas vezes, era volumoso onúmero <strong>de</strong> bovinos mortos e sacrifica<strong>do</strong>s. Também houve poucos cuida<strong>do</strong>s com a questãogenética, o cruzamento <strong>do</strong> mesmo sangue durante anos tornou o ga<strong>do</strong> enfraqueci<strong>do</strong>, issoresultou em pouco peso. Os campos também não estavam bem cerca<strong>do</strong>s, as divisóriaspermaneciam in<strong>de</strong>finidas.Os cria<strong>do</strong>res ainda <strong>de</strong>pendiam <strong>do</strong> tempo, os fenômenos meteorológicos precisavamestar <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com seus interesses, pois, com os campos cheios <strong>de</strong> ga<strong>do</strong> uma simples seca,ou alguns dias <strong>de</strong> chuva além <strong>do</strong> previsto, causavam gran<strong>de</strong>s perdas já que o campo nãopropiciava espaço suficiente para o alimento bovino. Essa questão é retratada em Estradanova e é um <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s me<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Coronel Teo<strong>do</strong>ro: “- Mas os meus campos – acentuouTeo<strong>do</strong>ro, com um certo exagero na fala e no gesto – estão muito povoa<strong>do</strong>s. Por isso receioque uma sequinha qualquer se faça sentir logo-logo” (1992, p. 69).Com to<strong>do</strong>s esses problemas, o estancieiro ainda <strong>de</strong>pendia <strong>do</strong>s preços ofereci<strong>do</strong>s peloscompra<strong>do</strong>res <strong>de</strong> charque, <strong>de</strong> lã, carne, e outros produtos ofereci<strong>do</strong>s pela pecuária. Oscompra<strong>do</strong>res, por sua vez, <strong>de</strong>pendiam <strong>do</strong> preço <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> interno brasileiro. Não haviapossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> competir com o preço estabeleci<strong>do</strong> pelos frigoríficos, o lucro, então,permanecia nas mãos das casas <strong>de</strong> comércio on<strong>de</strong> esses produtos eram vendi<strong>do</strong>s. Dessamaneira os cria<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ga<strong>do</strong> também sofriam explorações, claro que nada comparável àmiséria em que viviam os peões <strong>de</strong> estâncias, os agricultores, os carreteiros e os emprega<strong>do</strong>sdas lojas <strong>de</strong> comércio como comenta Chiru em Sem rumo:Estavam se logran<strong>do</strong>, os trouxas. Os cria<strong>do</strong>res, os compra<strong>do</strong>res e reven<strong>de</strong><strong>do</strong>res <strong>de</strong>ga<strong>do</strong>, os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong>s sala<strong>de</strong>iros e seus emprega<strong>do</strong>s mais copetu<strong>do</strong>s, a gringada <strong>do</strong>sfrigoríficos, então, esses to<strong>do</strong>s, sim, tinham razão <strong>de</strong> falar. E os <strong>do</strong>nos <strong>de</strong> venda. Eos capatazes <strong>de</strong> tropas. Mas já o peão <strong>de</strong> tropa, o peão <strong>de</strong> estância, o agrega<strong>do</strong>, oplanta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> chacra, o caixeiro <strong>de</strong> venda e o peão <strong>de</strong> carreteiro como ele já fora...Ospatrões que pra eles também interessava. Mas o certo era que, vinha ano, passavaano, e eles, essa gentinha toda, ele inclusive, cada vez mais pelas caronas. (1997, p.99-100)A falta <strong>de</strong> recursos levou os estancieiros a fundarem a União <strong>do</strong>s Cria<strong>do</strong>res, em 1912,órgão que passou a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r seus interesses, buscan<strong>do</strong> novas técnicas, promoven<strong>do</strong> <strong>de</strong>bates,


62sempre com o objetivo <strong>de</strong> formar um frigorífico que respon<strong>de</strong>sse aos apelos <strong>do</strong>s pecuaristas: ofrigorífico Rio-Gran<strong>de</strong>nse. A eclosão da Primeira Guerra Mundial foi o fator que propiciouuma melhora na economia gaúcha, que exportava carne e <strong>de</strong>mais alimentos produzi<strong>do</strong>s paraos países bélicos.Paralelamente a essa crise superada pela pecuária, a agricultura colonial passava porgraves problemas com a competição <strong>de</strong> produtos agrícolas <strong>de</strong> outros Esta<strong>do</strong>s que selocalizavam no centro <strong>do</strong> país. Também ocorria esgotamento <strong>do</strong> solo e a divisão da terracomo herança <strong>de</strong> pai para filho, <strong>de</strong> filho para neto e assim por diante com famílias numerosasa ponto <strong>de</strong> não ter mais como fracionar. Também ocorria uma monopolização <strong>do</strong>s lucrospelos comerciantes que pagavam preços baixos ao produtor.A maneira que os produtores rurais encontraram para sair da crise foi exportar paranovos merca<strong>do</strong>s, como o Prata. As necessida<strong>de</strong>s criadas pela guerra também favoreceram aagricultura gaúcha a sair da crise, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que em 1920 o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul aumentou aprodução e exportação. A cultura <strong>do</strong> arroz expandiu-se nesse perío<strong>do</strong> e tornou-se uma gran<strong>de</strong>fonte <strong>de</strong> renda, muitas terras on<strong>de</strong> havia criações <strong>de</strong> ga<strong>do</strong> foram arrendadas para o cultivo<strong>de</strong>sse grão. Esse fato econômico é menciona<strong>do</strong> no início <strong>do</strong> romance Estrada nova, quan<strong>do</strong>seu Fábio recorda a crise que o fez ven<strong>de</strong>r seu campo e lembra <strong>do</strong> alto valor <strong>do</strong> arroz naépoca:- Pois é, mas o linho estava em moda naqueles anos.- Eu me lembro, <strong>de</strong>u a febre <strong>do</strong> linho neste Rio Gran<strong>de</strong>.- Aguar<strong>de</strong> até o fim <strong>do</strong> causo. O linho só me <strong>de</strong>u prejuízo. Mas o arroz, no primeiroano, livrou as <strong>de</strong>spesa. (1992, p. 27)Com a agricultura e a pecuária fortifica<strong>do</strong>s pelas necessida<strong>de</strong>s geradas pela guerra, oRio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul acumulava dinheiro e, por isso, começava, calmamente, o processo <strong>de</strong>industrialização. Esse processo recebeu to<strong>do</strong> o apoio necessário <strong>do</strong> governo que pretendiaobter apoio político e financeiro <strong>do</strong>s pecuaristas.O perío<strong>do</strong> da Guerra, como dispunha <strong>de</strong> um ótimo merca<strong>do</strong> para o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul,foi o melhor perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> governo Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros. Mas no plano social a situação estava<strong>de</strong>licada, greves agitavam o Esta<strong>do</strong>, os operários estavam organiza<strong>do</strong>s em sindicatos, haviatendências socialistas, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a isso o governo


63[...] se dispunha a ‘incorporar o proletaria<strong>do</strong> à socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna’, o que, em últimaanálise, traduzia-se, na prática, em fazê-lo trabalhar para o progresso econômico <strong>de</strong>forma or<strong>de</strong>nada. Consi<strong>de</strong>rava, também, que as questões que surgissem <strong>de</strong>veriam sersolucionadas entre patrões e emprega<strong>do</strong>s. O esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>veria interferir, comomedia<strong>do</strong>r, quan<strong>do</strong> se dificultasse o acerto, ou como órgão repressor, quan<strong>do</strong> asegurança fosse ameaçada. (PESAVENTO, 2002, p. 81)Na década <strong>de</strong> vinte o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, enfrentou um momento difícil. O fim daPrimeira Guerra Mundial em 1918 ocasionou um baixo consumo e uma baixa na exportação<strong>de</strong> carnes, assolou, então, uma crise financeira que ocasionou inflação, concessões <strong>de</strong>empréstimos, recessão e redução <strong>de</strong> créditos aos <strong>do</strong>nos <strong>de</strong> campo.2.2.6 O fim da primeira gran<strong>de</strong> guerra e a crise da economia gaúchaCom o fim da Primeira Guerra Mundial o governo precisava <strong>de</strong> dinheiro para fazerfuncionar a viação férrea implantada em 1920 e o Porto <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> em 1919, por issoobrigou os cria<strong>do</strong>res a <strong>de</strong>volver no prazo <strong>de</strong> noventa dias o dinheiro empresta<strong>do</strong> pelo esta<strong>do</strong>durante o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> guerra: “Sem ter para quem ven<strong>de</strong>r seu ga<strong>do</strong> e ten<strong>do</strong> <strong>de</strong> pagar, nummomento <strong>de</strong> crise, empréstimos contraí<strong>do</strong>s em momentos <strong>de</strong> euforia, muitos cria<strong>do</strong>res foram afalência” (PESAVENTO, 2002, p. 84).Sem encontrar uma saída para a forte crise que enfrentavam, os estancieirospressionavam Borges para que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>sse a pecuária, mas o governa<strong>do</strong>r não abriu mão <strong>de</strong>priorizar a solução <strong>do</strong>s transportes, por isso a eleição estadual <strong>de</strong> 1923 ocorreuconturbadamente. Em Sem rumo o PRR é o parti<strong>do</strong> situacionista da época e que busca areeleição <strong>de</strong> Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros: “- O que eu ia dizer, e disto você <strong>de</strong>ve estar cientifica<strong>do</strong>, éque teremos eleições este ano. O nosso candidato, como sempre, será o impoluto Dr. Borges<strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros, presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e chefe incontestável <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> republicano Rio-Gran<strong>de</strong>nse.” (1997, p. 67)


64Em 1923 Borges, que concorria ao quinto mandato contra Assis Brasil, obtém vitórianas eleições, isso causou revolta nos oposicionistas que alegavam frau<strong>de</strong> e organizaram umarevolta armada com a intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrubar Borges <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e modificar a Constituição <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> para proibir a reeleição consecutiva. Em Estrada nova é mencionada essa passagemhistórica em 1922, quan<strong>do</strong> estavam acontecen<strong>do</strong> as campanhas políticas <strong>de</strong> ambos oscandidatos: “Em 22, por ocasião <strong>do</strong> pleito Assis-Borges, o Rio Gran<strong>de</strong> se alvorotara <strong>de</strong> novo[...]” (1992, p. 63)A classe <strong>do</strong>minante fora <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r revoltou-se com a situação e exigiu <strong>do</strong> governoBorges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros <strong>de</strong>dicação exclusiva aos problemas pecuários, não obten<strong>do</strong> resposta aosseus apelos organizou a Revolução <strong>de</strong> 23, comandada por Assis Brasil. Em 1923 <strong>do</strong>is gruposdisputavam o po<strong>de</strong>r: <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> os fe<strong>de</strong>ralistas, com a Aliança Liberta<strong>do</strong>ra que pregava oliberalismo e <strong>de</strong>mocracia, <strong>de</strong> outro la<strong>do</strong> os partidários <strong>de</strong> Borges, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a centralizaçãoe o autoritarismo. A Revolução <strong>de</strong> 23 é <strong>de</strong>scrita em Sem rumo por Chiru, enquanto <strong>de</strong>scansajunto ao oitão <strong>do</strong> rancho e pensa na solidão em que se encontra a Estância <strong>do</strong> Silêncio:Ah! Estava bom. Solzinho morno. Um rincão, aquele, mais bem <strong>de</strong> João Antônioque <strong>de</strong> Chiru. No entanto, gostava <strong>de</strong> ficar horas perdidas, solito, no oitão já meioalcatruza<strong>do</strong> <strong>do</strong> galpão velho. Apreciava muito corara-se ali. Pucha! Que estava tristeaquela estância...No galpão, apenas Clarimun<strong>do</strong>, Felipe e o velho João Antônio, quedia a dia mais se encorujava no seu canto e minguava no porte. Os mais andavamquem sabe <strong>do</strong>n<strong>de</strong>, gau<strong>de</strong>rian<strong>do</strong> nos matos, nas grotas, emigra<strong>do</strong>s para o Uruguaialguns, e outros, <strong>de</strong>certo, já incorpora<strong>do</strong>s. Nas tropas <strong>do</strong> governo ou da revolução?(1997, p. 75)Ainda em 1923 houve um acor<strong>do</strong> entre ambos os parti<strong>do</strong>s. Com o pacto <strong>de</strong> Pedras Altas<strong>de</strong>finiu-se que a Constituição seria revista e que Borges, <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> quinto mandato, não maisse reelegeria. No <strong>final</strong> da década <strong>de</strong> vinte, o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul apresentava uma organizaçãosocial baseada nos sindicatos, que eram apoia<strong>do</strong>s pelo governo para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os setoreslucrativos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira que tornava-se permanente o apoio político.2.2.7 O governo provisório <strong>de</strong> Getúlio VargasCom o <strong>final</strong> <strong>do</strong> governo Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros ascen<strong>de</strong>u Getúlio Vargas ao governogaúcho em 1928. Sua política baseou-se na <strong>de</strong>fesa da pecuária gaúcha, para isso criou o


65Banco <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul e conce<strong>de</strong>u crédito fácil, juro baixo e prazo longo aoscria<strong>do</strong>res. Houve redução <strong>de</strong> tarifas ferroviárias e apoio à i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> frigorífico nacional, issocontentou a ambas as facções ao verem seus interesses atendi<strong>do</strong>s e resultou na sua união coma formação da Frente Única Rio-Gran<strong>de</strong>nse (PRR e PL). Com essa união partidária, os riogran<strong>de</strong>nsesli<strong>de</strong>raram a oposição à Washington Luís, para o governo central e para issocriaram a “Aliança Liberal” que foi vencida pelas urnas, causan<strong>do</strong> outra revolta armada: aRevolução <strong>de</strong> 30.A “Aliança Liberal” formada por Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Minas Gerais e Paraíba, <strong>de</strong>fendiaseus interesses contra a monopolização <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r que exercia São Paulo. Para isso indicaram àpresidência <strong>do</strong> país Getúlio Vargas contra Júlio Prestes, candidato da situação. Esse últimoganhou: “Os aliancistas i<strong>de</strong>ntificavam o voto a <strong>de</strong>scoberto – ‘a cabresto’ – como responsávelpelas frau<strong>de</strong>s eleitorais que ocorriam” (PESAVENTO, 2002, p. 103).Com a vitória <strong>de</strong> Júlio Prestes no país em 1930, e a morte <strong>do</strong> paraibano João Pessoa quehavia <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> os interesses da Aliança, eclodiu a Revolução <strong>de</strong> 30 , que constava <strong>de</strong> gruposarma<strong>do</strong>s que partiam <strong>do</strong>s três esta<strong>do</strong>s e que terminaram por <strong>de</strong>rrubar Washington Luís <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r e empoçar Getúlio Vargas como presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> governo provisório: “Vitoriosa aRevolução, iniciou-se o perío<strong>do</strong> da chamada República Nova, que se esten<strong>de</strong>u até 1937,quan<strong>do</strong> se instalou a ditadura no país” (PESAVENTO, 2002, p. 104).Durante a República Nova o po<strong>de</strong>r continuou nas mãos <strong>do</strong>s poucos, enganou-se quempensou que com a troca <strong>de</strong> governantes a situação ia mudar. A classe <strong>do</strong>minante continuou amesma, pois era a <strong>do</strong>na <strong>do</strong> capital e utilizou-o a seu favor com o suborno para continuar nopo<strong>de</strong>r. Nessa mesma época o café brasileiro enfrentava uma gran<strong>de</strong> crise, o que significava afalência <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo agroexporta<strong>do</strong>r que havia si<strong>do</strong> tão beneficia<strong>do</strong> até o momento. Isso fezcom que o governo enten<strong>de</strong>sse que a economia <strong>de</strong> um país não podia ser baseada unicamenteem um só produto e começasse a incentivar a produção <strong>de</strong> outros gêneros como o algodão,por exemplo. Esse incentivo à produção ocasionou o crescimento da indústria, que<strong>de</strong>senvolveria o capitalismo como o sistema econômico vigente até os dia atuais no Brasil.Com a queda <strong>do</strong> café a elite cafeicultora começou a per<strong>de</strong>r seu po<strong>de</strong>r, a burguesiaindustrial ainda não estava forte o suficiente para assumir o po<strong>de</strong>r e não havia uma classesocial em condições <strong>de</strong> ocupar o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s cafeicultores. Com isso o Governo da década <strong>de</strong>


6630 preocupou-se em estabelecer uma cooperação mútua entre os burgueses, respeitan<strong>do</strong> osdiferentes interesses <strong>de</strong>sses, seja nos setores comerciais, financeiros e industriais, o queoriginou uma nova elite que mesmo não sen<strong>do</strong> parte da burguesia <strong>de</strong> exportação, continuou a<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os interesses da burguesia interna e <strong>de</strong>u seguimento ao processo <strong>de</strong> capitalismo ecentralização <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e capital que se instalou no país.Na República Nova o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul ocupava posição importante com relação aoutros Esta<strong>do</strong>s brasileiros, pois com a Revolução <strong>de</strong> 30 e a ascensão <strong>de</strong> um gaúcho ao posto<strong>de</strong> presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> país, o povo esperava um governo que melhor aten<strong>de</strong>sse aos seus interesses.Os agropecuaristas e <strong>de</strong>mais participantes da elite regional esperavam obter o apoio antes<strong>de</strong>stina<strong>do</strong> aos cafeicultores paulistas. Isso não ocorreu e parte <strong>do</strong>s pecuaristas gaúchos, uni<strong>do</strong>saos paulistas, organizou em 1932 um movimento contra-revolucionário.O governo central tinha por objetivo diversificar e integrar a economia produzida nopaís, uma medida capitalista, que só não seria feita caso os interesses das regiões nãoconcordassem com os objetivos maiores <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. O esta<strong>do</strong> gaúcho também fazia parte <strong>do</strong>sinteresses <strong>do</strong> governo, pois tinha o papel <strong>de</strong> fornecer gêneros <strong>de</strong> subsistência para o merca<strong>do</strong>interno nacional, porém, os agropecuaristas não percebiam os problemas que esse sistema <strong>de</strong><strong>de</strong>pendência e ao mesmo tempo complementarida<strong>de</strong> trazia consigo.O charque ainda era o principal produto sulino, mas enfrentava a forte oscilação <strong>de</strong>preço <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> interno cada vez mais competitivo com a entrada <strong>do</strong>s frigoríficosestrangeiros, o que resultava em novas divergências entre os cria<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ga<strong>do</strong> e o governoque começava a acreditar na agricultura como mais ren<strong>do</strong>sa que a criação <strong>de</strong> ga<strong>do</strong>. Aospoucos a pecuária começou a entrar em crise novamente.Apesar <strong>de</strong> agricultura se mostrar mais ren<strong>do</strong>sa, em Estrada nova o Coronel Teo<strong>do</strong>roacredita que um fazen<strong>de</strong>iro possui mais prestígios em relação a um agricultor, por issoestranha quan<strong>do</strong> Leandro Antunes, seu vizinho, comenta que outro fazen<strong>de</strong>iro da região,Alfeu, começará o plantio em suas terras. Teo<strong>do</strong>ro vê essa atitu<strong>de</strong> como uma tolice <strong>do</strong> outro:- Decididamente, está <strong>do</strong>i<strong>do</strong> varri<strong>do</strong>. Isso não é cousa <strong>de</strong> gente certa, não. Tem jeito<strong>de</strong> ser chacoalhada <strong>de</strong> livro. On<strong>de</strong> é que já se viu um fazen<strong>de</strong>iro que se preze semeter em plantações <strong>de</strong>sse tipo, em gran<strong>de</strong> escala? Por aqui nunca se viu! (1992, p.96-97)


67Mesmo que o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul e o governo fe<strong>de</strong>ral soubessem daimportância da relação e integração entre ambos, a classe <strong>do</strong>minante local não aceitou asmedidas <strong>de</strong> centralização praticadas pelo po<strong>de</strong>r executivo no pós-30, porque na verda<strong>de</strong>: “Oatendimento aos problemas econômicos das regiões periféricas por parte <strong>do</strong> governo centraltinha como contrapartida a submissão política das oligarquias regionais” (PESAVENTO,2002, p. 108). É claro que os pecuaristas gaúchos queriam manter seu po<strong>de</strong>r frente ao governofe<strong>de</strong>ral. Em 1932, Flores da Cunha (interventor fe<strong>de</strong>ral no Esta<strong>do</strong>) fun<strong>do</strong>u o Parti<strong>do</strong>Republicano Liberal – PRL – que aceitava os “cuida<strong>do</strong>s” <strong>do</strong> centro como colaboração e nãosubordinação. Esse parti<strong>do</strong> abrigou diversas camadas da burguesia gaúcha comoagropecuaristas, comerciantes e industriais. Ainda nesse ano Flores da Cunha passou <strong>de</strong>interventor a governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> gaúcho.A união pelo po<strong>de</strong>r entre as classes <strong>do</strong>minantes era resulta<strong>do</strong> da crise que enfrentava apecuária. Os estancieiros buscavam apoio <strong>do</strong>s setores mais ricos da socieda<strong>de</strong> e “Osrepresentantes da burguesia industrial, por seu turno viam, no apoio à situação política noesta<strong>do</strong> e na sua participação ativa no Congresso <strong>de</strong> instalação <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> setornarem co-participantes <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r” (PESAVENTO, 2002, p. 109). Assim foi até 1934quan<strong>do</strong> fin<strong>do</strong>u o governo provisório e Getúlio Vargas permaneceu como presi<strong>de</strong>nte pelo PRL.Contra ele oposicionou-se a Frente única Rio-Gran<strong>de</strong>nse, composta por PRR e PL.A década <strong>de</strong> 30 foi marcada pela cooperação sindicalista, pois os produtores cediamapoio político ao governo em troca <strong>de</strong> favores, <strong>de</strong>ssa maneira qualquer manifestação <strong>de</strong><strong>de</strong>scontentamento da classe <strong>do</strong>minante que não estava no po<strong>de</strong>r seria controlada, além <strong>do</strong>ssindicatos garantirem seu po<strong>de</strong>rio frente às classes humil<strong>de</strong>s, manten<strong>do</strong>-as submissas. Umexemplo disso encontramos em Estrada nova, na personagem <strong>de</strong> Leandro Antunes, umfazen<strong>de</strong>iro que costuma presentear políticos em troca <strong>de</strong> favores pessoais:- Agora, cá pra nós, não é nada cavalheiro. Muito engran<strong>de</strong>ci<strong>do</strong>, isso sim. Gosta<strong>de</strong>mais <strong>de</strong> ostentar as amiza<strong>de</strong>s importantes. Até dá nojo. Pra esses tais <strong>de</strong> <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>se secretários, está seguidamente regalan<strong>do</strong> potrilhos <strong>de</strong> raça ou tourinhos e novilhos<strong>do</strong> plantel. Pra esses, se faz <strong>de</strong> buenaço. Pra um pobre, não dá nem um naco <strong>de</strong>carne. (1992, p. 37)Como forma <strong>de</strong> reação aos sindicatos que obtinham apoio governamental pagan<strong>do</strong>poucos impostos ou nem pagan<strong>do</strong>, a população colonial começou a criar cooperativas, com a


68intensão <strong>de</strong> unir-se para impedir o monopólio da classe <strong>do</strong>minante. É sobre essa exploraçãoao colono que o jovem Ricar<strong>do</strong>, <strong>de</strong> Estrada nova, pensa enquanto galopa pelos campos:Além disso, comentava-se que os impostos, os institutos, os sindicatos e mil outrasexigências oficiais estavam liquidan<strong>do</strong> os colonos e, com isso, a própria economia<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, pois esses colonos, meios <strong>de</strong>sespera<strong>do</strong>s, emigravam para <strong>Santa</strong> Catarinaou, o que era muito pior, se mudavam para a cida<strong>de</strong>. (1992, p. 55-56)2.2.8 A ditadura VargasComo a população estava se unin<strong>do</strong> em grupos <strong>de</strong> sindicatos e cooperativas, em 1935Vargas implantou algumas medidas como um meio <strong>de</strong> segurança nacional. Uma das medidastomadas pelo governo foi a criação da legislação social, que regulou as relações entre patrõese emprega<strong>do</strong>s, mas que tinha por objetivo principal submeter os emprega<strong>do</strong>s às leis vigentespara que não houvesse revoltas como na República Velha. Essas atitu<strong>de</strong>s por parte <strong>do</strong> governoforam uma marcha para a ditadura que se instalaria no perío<strong>do</strong> a seguir <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> esta<strong>do</strong>Novo.Mesmo que Estrada nova situe seu tempo histórico após a República Nova no Perío<strong>do</strong>Poulista, as personagens se cuidam para falar <strong>de</strong> certos assuntos o que comprova que aditadura po<strong>de</strong> ter saí<strong>do</strong> <strong>do</strong> papel, mas na verda<strong>de</strong>, custou a ser extinta nas ações humanas.Ricar<strong>do</strong> comenta sobre homens que lutam para o bem <strong>do</strong>s pobres e dá uma ponta <strong>de</strong> esperançaa seu Osório, mas o moço o previne que não <strong>de</strong>ve sair por aí falan<strong>do</strong> sobre isso, e que <strong>de</strong>veolhar bem a quem comenta sobre i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> reformas sociais:- Quero lhe prevenir, seu Osório, que os homens que falam nisso têm que falar comcuida<strong>do</strong>, olhar para os la<strong>do</strong>s, averiguar bem com quem conversam, porque às vezesaté são presos. Uma coisa que não <strong>de</strong>via <strong>de</strong> ser, mas é. Acontece, por exemplo, queos fazen<strong>de</strong>iros não querem saber <strong>do</strong>s campos povoa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> gente, como antes, notempo <strong>do</strong>s agrega<strong>do</strong>s. Eu não lhes tiro a razão <strong>de</strong> um tu<strong>do</strong>, mas que <strong>de</strong>stino agarramos viventes <strong>de</strong>sse rancherio? (1992, p. 42)De início, a criação da legislação social, foi aplaudida pelos funcionários, mas apósalgum tempo, a real intenção <strong>do</strong> governo salientou-se aos olhos <strong>do</strong> funcionalismo, quecomeçou a revoltar-se contra essa repressão: “Enquanto <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, recru<strong>de</strong>scia a ação <strong>do</strong>


69Parti<strong>do</strong> Comunista, outras organizações, contesta<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> regime vigente, apareciam nocenário nacional, encontran<strong>do</strong> repercussão no Rio Gran<strong>de</strong>” (PESAVENTO, 2002, p. 113),<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a essas manifestações, o governo estadual, ainda representa<strong>do</strong> por Flores da Cunha,preparou-se com armas e materiais para a ditadura, mas o centro cortou suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>articulação, obrigan<strong>do</strong>-o a renunciar e fugir para o Uruguai. O interventor fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> RioGran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul passou a ser o General Manoel <strong>de</strong> Cergueira Daltro Filho.Em 10 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1937 fin<strong>do</strong>u-se a República Nova e começou o Esta<strong>do</strong> Novo. OEsta<strong>do</strong> Novo (1937 – 1945) só po<strong>de</strong> ser implanta<strong>do</strong> porque a burguesia nacional ce<strong>de</strong>u seuspo<strong>de</strong>res ao governo em troca <strong>de</strong> segurança, progresso e paz social. Quem governou o país foiuma <strong>de</strong>terminada classe apoiada pelo exército e que promoveu o golpe. Essa classe <strong>de</strong>fendia ocapitalismo e a burguesia e <strong>de</strong>fendia como sistema vigente o autoritário-corporativo.Durante o Esta<strong>do</strong> Novo se solidificou a indústria e caiu o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> agroexportação,benefician<strong>do</strong> o industrial <strong>do</strong> centro <strong>do</strong> país que já se beneficiava há algum tempo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> café. Mas o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul continuou com a sua função <strong>de</strong> abastecero merca<strong>do</strong> interno com produtos agropecuários, <strong>de</strong>ssa maneira, cada vez tornava-se maisvisível a distância entre o Esta<strong>do</strong> gaúcho e São Paulo no processo industrial. Na década <strong>de</strong>1940, por fim, <strong>de</strong>sapareceram as charqueadas e surgiram cooperativas com melhorestecnologias para transformação da carne.Acentuava-se o problema da divisão das terras, pois os minifúndios eram cada vez maisdividi<strong>do</strong>s entre her<strong>de</strong>iros, que eram muitos para que o trabalho ren<strong>de</strong>sse, <strong>de</strong> maneira que empouco tempo a terra tornava-se escassa e o solo enfraqueci<strong>do</strong>. A personagem <strong>de</strong> seu Osório,em Estrada nova representa esses pequenos proprietários que não têm como subdividir entreos filhos a pouca terra que lhe cabe: “- Escute só o meu caso. Eu, por exemplo, estou com opé no estribo. Vendi o campito faz poucos dias. Ora, eu, me diga que é que eu ia fazer comessas poucas braças e este mundaréu <strong>de</strong> filhos?” (1992, p. 34).2.2.9 O início <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> êxo<strong>do</strong> ruralCom a <strong>de</strong>svalorização da agricultura e da pecuária, Os peões das estâncias que aindarestavam não recebiam pagamento pelos serviços presta<strong>do</strong>s, seu salário consistia no direito à


70alimentação e moradia. Alguns recebiam pequenos pedaços <strong>de</strong> terra para sobrevivência dafamília. A agricultura e a pecuária estavam <strong>de</strong>svalorizadas e, aos poucos, a tecnologia foia<strong>de</strong>ntran<strong>do</strong> nos campos sulinos, trazen<strong>do</strong> alguns benefícios aos cria<strong>do</strong>res e muitas tristezasaos emprega<strong>do</strong>s:Entretanto, o completo cercamento <strong>do</strong>s campos e a introdução <strong>de</strong> alguma tecnologianos méto<strong>do</strong>s criatórios foi fazen<strong>do</strong> com que houvesse menor necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> braçospara a criação. Acentuou-se, com isso, o processo <strong>de</strong> êxo<strong>do</strong> rural que já semanifestava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos trinta. (PESAVENTO, 2002, p. 116)Em Porteira fechada Júlio Bica, estancieiro da região, pensa na ocupação que dará aocampo que acaba <strong>de</strong> comprar, que é on<strong>de</strong> vivem Gue<strong>de</strong>s e a família. Caso o arrendatário lhepeça para permanecer no local alegará que nos dias atuais não são mais necessários posteiros<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à tecnologia atual: “Além disso, posteiro não se usava mais. Pra quê? Uma estânciacomo a sua, toda tapada, marchava lin<strong>do</strong> com três ou quatro peães. E isso mesmo porque eracaprichoso, gostava <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> arregla<strong>do</strong>. A rigor, até <strong>do</strong>is mensuais bastavam” (1993, p. 20).Também Eusébio, carreteiro antigo, recorda, no velório <strong>de</strong> Gue<strong>de</strong>s, a conversa que tevecom esse há algum tempo atrás, quan<strong>do</strong> o campeiro procurava um lugar para morar erecomeçar a vida. Nessa conversa, Eusébio comenta a difícil e dura vida <strong>do</strong>s homenscampesinos, <strong>do</strong>s peões <strong>de</strong> estâncias, a <strong>de</strong>svalorização da moeda e <strong>final</strong>iza seu pensamentocom a certeza <strong>de</strong> que não há outra solução para os pobres da campanha senão morar nacida<strong>de</strong>:“O que eu vinha enxergan<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempito largo – prosseguiu Eusébio, altean<strong>do</strong>levemente a cabeça e a voz – era que nós to<strong>do</strong>s, os pobres da campanha, ia acabaemangueira<strong>do</strong>s, como capão pra consumo. E sabem on<strong>de</strong>? Aqui mesmo na al<strong>de</strong>ia,nesse cisco.” (1993, p. 40)Os trabalha<strong>do</strong>res que aban<strong>do</strong>navam o campo e iam pra cida<strong>de</strong> esperavam uma melhorqualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, mas não estavam prepara<strong>do</strong>s para o trabalho citadino, sabiam apenas otrabalho campesino, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que muitos não se acertaram com a vida na cida<strong>de</strong> e morreramna miséria: “Uma vez fora <strong>do</strong> latifúndio, este trabalha<strong>do</strong>r buscava cida<strong>de</strong>s. Todavia,constituía-se uma mão-<strong>de</strong>-obra que era jogada no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho sem ter especializaçãonenhuma, pois suas habilida<strong>de</strong>s na vida campeira nada valiam para a vida urbana”(PESAVENTO, 2002, p. 116).


71Isso ocorre com Chiru, em Sem rumo. Ao perceber que a cida<strong>de</strong> não é o melhor localpara se viver, essa personagem reflete sobre a vida que leva ali e vê seu envelhecimentoprecoce: “Meio-dia. Mortas, a cida<strong>de</strong>, a praça, as ruas. Meio morto, ele mesmo. Massacra<strong>do</strong>.Um caco <strong>de</strong> gente, e tão novo! (1997, p. 99).Em Estrada nova, Osório comenta a falta <strong>de</strong> preparo que tem para a vida citadina, poissabe que só enten<strong>de</strong> <strong>de</strong> li<strong>de</strong>s campeiras e <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> com os animais, mas não encontra umasolução a não ser aban<strong>do</strong>nar o campo e tentar a vida no centro urbano mais próximo: “Tiran<strong>do</strong>disso, eu e toda essa gauchada pobre que anda passan<strong>do</strong> quem sabe o quê por aí afora, nãoenten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong> cousa nenhuma.” (1992, p. 34). A indústria não estava <strong>de</strong>senvolvida a ponto<strong>de</strong> acolher toda essa massa populacional campesina que chegava para viver na cida<strong>de</strong>. Dessamaneira, esse povo alojou-se pelas vilas marginais <strong>de</strong> periferia, num nível <strong>de</strong> subemprego,muitos migraram para <strong>Santa</strong> Catarina e Paraná.As condições <strong>de</strong> vida na cida<strong>de</strong> já eram precárias na década <strong>de</strong> 30. Chiru, em Sem rumo,sente sauda<strong>de</strong> da vida no campo, mas sabe que essa crise não é só ele que enfrenta, são to<strong>do</strong>sos homens da campanha gaúcha, e, por isso, <strong>de</strong>sola-se ao pensar em voltar para o interior, jáque a vida lá não é mais a mesma: “E <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito engrolar, concluíram: é que não tinhamais ‘antigamente’! Ser peão <strong>de</strong> estância como os <strong>de</strong> agora, não.” (1997, p. 111)Durante a ditadura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, os Esta<strong>do</strong>s eram governa<strong>do</strong>s por interventoresnomea<strong>do</strong>s pelo centro. Por causa <strong>do</strong> regime autoritário, os parti<strong>do</strong>s gaúchos foram extintos, esímbolos estaduais como a ban<strong>de</strong>ira e o escu<strong>do</strong> foram queima<strong>do</strong>s. O governo queria obterpo<strong>de</strong>r absoluto e incontestável sobre a população e o Esta<strong>do</strong>. Com isso, a população começoua revoltar-se e a fundar novos parti<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>ntre eles o Parti<strong>do</strong> Social Democrático e o Parti<strong>do</strong>Comunista Brasileiro.Em 1939 eclodiu a Segunda Guerra Mundial, e em 1942 o Brasil entra na Guerra aola<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, sua posição foi tomada por interesses e ligações econômicas, pois osEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s <strong>de</strong>veriam emprestar dinheiro ao Brasil para que esse pu<strong>de</strong>sse aumentar emelhorar sua industrialização.


72Durante esse perío<strong>do</strong> conturba<strong>do</strong> mundialmente, as forças anti-Vargas uniram-se com aUnião Democrática Nacional (UDN), que <strong>de</strong>fendiam um liberalismo <strong>de</strong>mocrático e atraíam asclasses médias. Os principais nomes levanta<strong>do</strong>s contra Vargas eram: Osval<strong>do</strong> Aranha, Floresda Cunha e Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros. Mas, Getúlio Vargas só foi <strong>de</strong>posto <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r em 1945 peloministro da guerra Góes Monteiro durante o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> campanha eleitoral. No <strong>final</strong> <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> Novo o país passou, então, a ser governa<strong>do</strong> pelo po<strong>de</strong>r judiciário.2.2.10 Perío<strong>do</strong> Populista.Em 1945 iniciou-se o perío<strong>do</strong> da história <strong>do</strong> Brasil chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> Populista. E nessaépoca, a economia nacional <strong>final</strong>mente baseou-se, em primeiro lugar na indústria, aagroexportação passou a segun<strong>do</strong> plano já que a industrialização crescia e se fortalecia cadavez mais. As massas urbanas começaram a influir nas eleições <strong>do</strong> país porque a populaçãoemergente aumentava, e em uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática, o voto passou a ser uma maneira <strong>de</strong>solucionar problemas <strong>de</strong>ssa classe, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que, em muitos casos, ele era vendi<strong>do</strong> em troca<strong>de</strong> favores pessoais. Assim, quem votava com o governo tinha po<strong>de</strong>r e liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ações,como observamos na personagem <strong>de</strong> Lopes, em Sem rumo, que obtém lucros com frau<strong>de</strong>s,mas não é preso por causa <strong>do</strong> apoio ao governo: “Ladrão <strong>de</strong> ga<strong>do</strong> prova<strong>do</strong>, joga<strong>do</strong>r, assassino(levava já duas ou três mortes na cacunda...) [...] No entanto, está aí, atira<strong>do</strong> pra trás,protegi<strong>do</strong> pelos graú<strong>do</strong>s [...]” (1997, p. 112)Em 1946 foi eleito para presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> Brasil o General Eurico Gaspar Dutra, que, naverda<strong>de</strong>, representava a continuação <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Vargas, mesmo que longe <strong>do</strong>s seus olhos. Ogoverna<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> gaúcho foi Walter Jobin. A economia estadual continuava com base naagropecuária, mesmo que o centro favorecesse a indústria, por isso, o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sulcontinuava em crise, pois, mesmo com frigoríficos à disposição <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>res as empresasnacionais não obtiveram o “padrão <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>” exigi<strong>do</strong> pelo merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> exportação. Essasexigências com as carnes gaúchas levaram muitos estancieiros à falência já que a maioria <strong>do</strong>scria<strong>do</strong>res possuía dívidas com o governo pelos empréstimos concedi<strong>do</strong>s na era Vargas: “Asproprieda<strong>de</strong>s, ante a insolvência por dívidas <strong>do</strong>s pecuaristas, passavam para a esfera bancária,


73sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>pois arrematadas por outros gran<strong>de</strong>s fazen<strong>de</strong>iros, com o que se incrementou oprocesso <strong>de</strong> concentração da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> terra” (PESAVENTO, 2002, p. 123).Seu Osório, <strong>de</strong> Estrada nova, comenta sobre essa qualida<strong>de</strong> exigida pelo merca<strong>do</strong>, eexpressa que a situação <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s pecuaristas também não é fácil nas relações comerciais:“- Apesar <strong>de</strong> que, noutras partes mais adiantadas, no estrangeiro, dizem que os cuida<strong>do</strong>s coma criação exigem muito trabalho, muita circunspeção” (1992, p. 34). Com isso, a proprieda<strong>de</strong>permanecia nas mãos <strong>de</strong> poucos que ainda mantinham áreas improdutivas, o que ocasionavaum baixo capital <strong>de</strong> giro e a continuação da crise na economia sulina.Em 1951, Getúlio Vargas retorna ao po<strong>de</strong>r novamente e o governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> RioGran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul é Ernesto Dornelles. Em 1954 Getúlio suicida-se e em 1955 faz-se necessáriaoutra eleição para presidência da república, on<strong>de</strong> entra Juscelino Kubitschek. Também em1955 é eleito Il<strong>do</strong> Meneghetti como governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> gaúcho. Devi<strong>do</strong> à baixa naeconomia, na década <strong>de</strong> 50, o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul representava o Esta<strong>do</strong> com maior número <strong>de</strong>emigrantes e menor número <strong>de</strong> imigrantes. Em 1958 assume o po<strong>de</strong>r estadual Leonel Brizola.Já em 1961 Jânio Quadros assume o po<strong>de</strong>r central e renuncia em agosto, <strong>de</strong>ssa maneiraassume seu vice João Goulart. As principais transformações econômicas <strong>de</strong>ssa épocaocorriam no centro, Rio <strong>de</strong> Janeiro e São Paulo. A União centrava suas atenções para essesEsta<strong>do</strong>s e o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul estava à margem <strong>do</strong>s planos <strong>do</strong> governo central, que começavaa perceber as dificulda<strong>de</strong>s em tornar a nação auto-suficiente, pois havia necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> capitale tecnologia para a indústria brasileira crescer e o capitalismo autônomo entrou em falência. Opaís em geral estava em <strong>de</strong>sequilíbrio econômico durante o governo <strong>de</strong> João Goulart. Dessamaneiram seu governo foi marca<strong>do</strong> por radicalismos <strong>de</strong> posições, com grupos interessa<strong>do</strong>s emreformas sociais e econômicas, uma inflação crescente e gran<strong>de</strong> tensão social, o que levava aelite a acreditar que o governo era <strong>de</strong> esquerda.Os principais parti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> eram o PSD, PL e PTB, cada um <strong>de</strong>fendia diferentessoluções e i<strong>de</strong>ias para a crise <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. O Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, no Perío<strong>do</strong> Populista, tevealternância partidária nos governa<strong>do</strong>res estaduais. Em 1963, Il<strong>do</strong> Meneghetti foi reeleitogoverna<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> já no governo central, João Goulart foi <strong>de</strong>posto <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, em 1964, eseu cunha<strong>do</strong> Leonel Brizola, agora <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> fe<strong>de</strong>ral, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a política <strong>de</strong> reforma <strong>de</strong> base,com atitu<strong>de</strong>s mais radicais que Jango. No Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, fora eleito Il<strong>do</strong> Meneghetti, que


74era contra as posições tomadas por Jango e Brizola. Em março/abril <strong>de</strong>sse mesmo ano, oexército <strong>de</strong>u o golpe militar, obrigan<strong>do</strong> Jango e Brizola a refugiar-se no Uruguai, após ossofoi implantada a Ditadura Militar que durou até 1985.Nesse estu<strong>do</strong>, utilizamos a obra <strong>de</strong> Pesavento por apresentar a História <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong><strong>do</strong> Sul até o ano <strong>de</strong> 1964, e se enquadrar no tempo em que se <strong>de</strong>senvolvem os fatosapresenta<strong>do</strong>s na trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé. O que observamos, ao realizar essa análise literáriahistórica,é que apesar <strong>de</strong> alguns personagens viverem em épocas históricas distintas e serem<strong>de</strong> classes sociais diferentes, os problemas que enfrentam, na gran<strong>de</strong> maioria das vezes, serepetem. Dessa maneira os tempos mudam, mas as questões a serem resolvidas permanecemas mesmas. As épocas mudam e o po<strong>de</strong>r permanece nas mãos das mesmas pessoas opulentasque seguem seu <strong>do</strong>mínio aos mais fracos e menos privilegia<strong>do</strong>s financeiramente.Ao utilizar fatos literários e históricos, torna-se possível obter novos conhecimentos,concepções e valores diferentes <strong>do</strong>s já estabeleci<strong>do</strong>s, pois a Literatura trabalha com o homem,seus sentimentos e emoções, o que empresta à História uma nova maneira <strong>de</strong> se ver o mun<strong>do</strong>.Desse mo<strong>do</strong>, nos é permiti<strong>do</strong> que alguns fatos sejam reconta<strong>do</strong>s sob uma nova ótica, um novoponto <strong>de</strong> vista com um conhecimento original e incomum <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s seres humanos.As esperanças <strong>de</strong> uma mudança para as crises econômicas, sociais e humanasenfrentadas repetidamente ao longo da História nos vêm porque, assim como nas obrasliterárias estudadas, sempre haverá alguém na luta em favor <strong>de</strong>ssas classes oprimidas. Semprehaverá um Dr. Alci<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> Porteira fechada, que <strong>de</strong>posita esperança e fé em umatransformação social, expõe suas brilhantes i<strong>de</strong>ias e lega novas formas <strong>de</strong> agir e pensar àsgerações futuras, pois, apresenta maneiras <strong>de</strong> analisar e apontar possíveis soluções para osproblemas sociais que se apresentam.Personagens essas, que ensinam ao leitor as diferentes formas <strong>de</strong> se ver a vida, <strong>de</strong> vivêla,e expressam extraordinárias concepções <strong>do</strong> ser - humano. Criadas, obviamente, por alguémque realmente enten<strong>de</strong> o homem, seus instintos e suas emoções na vida individual e emconjunto: Cyro Martins. Esse autor <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> os menos favoreci<strong>do</strong>s, em uma socieda<strong>de</strong>autoritária e egoísta <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> um i<strong>de</strong>al para que o leitor possa se apropriar e lutar diante dasdificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu tempo:


“Nesta crise tão prolongada e tão asfixiante, conforta-nos a crença <strong>de</strong> que,quaisquer que sejam as artimanhas <strong>do</strong>s ‘coronéis’, os instintos <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>do</strong> povonão <strong>de</strong>ixarão nunca <strong>de</strong> se expandir e crescer, como esses umbus gigantes das nossastaperas, que resistem aos tufões, às geadas e aos sóis calcinantes, enquanto tu<strong>do</strong>esboroa em re<strong>do</strong>r!” (1993, p.118)75


763. AS VOZES AUSENTES: PERSPECTIVAS DAS PERSONAGENSFEMININAS GAÚCHAS EM CYRO MARTINS3.1 A História da mulherNesse capítulo, enfocamos as personagens femininas <strong>de</strong> Sem rumo, Porteira fechada eEstrada nova. Buscamos analisar a vida da mulher gaúcha apresentada nos romances, comoeram as regras da socieda<strong>de</strong>, conceitos e valores a que eram submetidas e como eram tratadaspelo companheiro, quais eram suas obrigações e funções na socieda<strong>de</strong> gaúcha <strong>do</strong> início <strong>do</strong>século XX. Primeiramente apresentamos um estu<strong>do</strong> introdutório sobre a história da mulher. Aprincipal autora que utilizamos nessa pesquisa é Rosalind Miles em sua obra A história <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> pela mulher, e <strong>de</strong>mais autores que vieram a contribuir para o assunto em questão.Após essa retomada histórica que reflete as mudanças e transformações enfrentadas evividas pelas mulheres durante séculos, voltamos nossa atenção para as personagens dasnarrativas literárias em estu<strong>do</strong>. Nelas, buscamos analisar as situações <strong>de</strong> opressão queenfrentam as personagens na projeção da socieda<strong>de</strong> rio-gran<strong>de</strong>nse <strong>do</strong> Sul <strong>do</strong> início <strong>do</strong> séculoXX realizada pelo autor Cyro Martins.Nosso enfoque principal nessa análise é verificar <strong>de</strong> que maneira as personagensfemininas vivem em uma socieda<strong>de</strong> extremamente rígida, machista e autoritária, regida porconceitos opressivos principalmente com o sexo feminino. Para isso consi<strong>de</strong>ramos a opinião<strong>de</strong> Fábio Lucas quan<strong>do</strong> afirma que “[...] a personagem po<strong>de</strong> exprimir, em côres vivas, umconflito essencial da socieda<strong>de</strong>.” (1970, p. 51)Rosalind Miles salienta que a mulher sempre foi excluída da história, raramenteencontramos registros que retratam a participação feminina nos acontecimentos etransformações sociais. Mas sabemos que a mulher sempre existiu, e, portanto, estavapresente nos gran<strong>de</strong>s fatos históricos que hoje temos conhecimento. Dessa maneira, a mulhertambém fez a história:


77O passa<strong>do</strong> <strong>de</strong> nosso mun<strong>do</strong> está atulha<strong>do</strong> <strong>de</strong> incontáveis estórias <strong>de</strong> Amazonas erainhas assírias guerreiras, <strong>de</strong>usas-mães e Gran<strong>de</strong>s Elefantas, concumbinas imperiaisque subiram até governar o mun<strong>do</strong>, cientistas, psicopatas, santas e peca<strong>do</strong>ras,Brunhilds, Marie <strong>de</strong> Branvilliers, madre Teresa, Chiang Ch’ing. (MILES, 1989, p.09)Porém, apenas no século XIX começou o reconhecimento <strong>do</strong> papel histórico-social damulher, já que antes disso eram os homens que na maioria das vezes, registravam, <strong>de</strong>finiam einterpretavam os fatos. Devi<strong>do</strong> a isso o <strong>do</strong>mínio da história pertencia ao sexo masculino queretratava os gran<strong>de</strong>s feitos <strong>de</strong> homens governantes e gênios, excluin<strong>do</strong> e sufocan<strong>do</strong> diversasvozes femininas. Essa atitu<strong>de</strong> machista acabou por sufocar muitas i<strong>de</strong>ias e opiniões femininasque po<strong>de</strong>riam acrescentar novos conhecimentos aos atuais.Rosalind Miles cita que as mulheres constituem a maior gênero <strong>de</strong> oprimi<strong>do</strong>s que se temnotícia. Devi<strong>do</strong> a essa opressão, os interesses masculinos e femininos sempre divergiam e obom <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um significava uma baixa no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> outro: “Não épara<strong>do</strong>xal que perío<strong>do</strong>s históricos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> progresso para os homens tenham muitas vezes,implica<strong>do</strong> em perdas e recuos para as mulheres” (MILES, 1989, p. 11).Algumas mulheres permitiam a <strong>do</strong>minação masculina pelo fato <strong>de</strong> seremsobrecarregadas com as tarefas que lhes cabia e mais a maternida<strong>de</strong>, que envolvia tempo eproteção, proteção essa, que aceitavam vinda <strong>de</strong> seu mari<strong>do</strong>. Dessa maneira, durante séculos amulher foi sujeitada fisicamente e economicamente ao po<strong>de</strong>rio masculino, sen<strong>do</strong> concedi<strong>do</strong>aos homens, inclusive, o direito <strong>de</strong> matá-la sob suspeita <strong>de</strong> adultério.[...] a <strong>do</strong>minação masculina foi elaborada em to<strong>do</strong>s os aspectos da vida, sen<strong>do</strong>, naverda<strong>de</strong>, reinventada a cada época com vasta bateria <strong>de</strong> arrazoa<strong>do</strong>s religiosos,biológicos, ‘científicos’, psicológicos e econômicos que suce<strong>de</strong>m na tarefa sem fim<strong>de</strong> justificar a inferiorida<strong>de</strong> da mulher em relação ao homem. (MILES, 1989, p. 12)De início, as mulheres primitivas, segun<strong>do</strong> registros históricos, possuíam mais liberda<strong>de</strong>e igualda<strong>de</strong> <strong>do</strong> que as <strong>de</strong> certas culturas que viriam se impor mais tar<strong>de</strong>. Nos temposprimitivos a mulher <strong>de</strong>senvolvia muitas ativida<strong>de</strong>s. Arqueólogos citam que na Ida<strong>de</strong> da Pedraas mulheres ocupavam-se com tarefas como: coletar comida, cuidar <strong>do</strong>s filhos, trabalhar comcouro fazen<strong>do</strong> roupas e <strong>de</strong>mais artigos com peles <strong>de</strong> animais, cozinhar, fazer artesanatos comopotes e cestas com cerâmica, capins, cascas <strong>de</strong> árvores e fibras, além <strong>de</strong> enfeites com <strong>de</strong>ntes eossos como colares, construir abrigos, fabricar as ferramentas necessárias para asobrevivência <strong>do</strong>s seus, utilizar ervas para tratamentos medicinais. Além disso, elas


78trabalhavam junto com os homens e não eram exploradas em seu trabalho, não havia fetichessobre virginda<strong>de</strong>, nem existia a exclusivida<strong>de</strong> sexual.O primeiro pensamento simbólico <strong>de</strong> que se tem notícia é o da mulher en<strong>de</strong>usada. Deusera uma mulher para os povos primitivos, que a chamavam <strong>de</strong> “Gran<strong>de</strong> Deusa”,reverencian<strong>do</strong>-a com mitos e cultos. O principal fato que contribuiu para a exaltação <strong>do</strong>feminino foi o nascimento, pois antes <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> reprodução, os bebêssimplesmente nasciam das mulheres, portanto, a mulher era responsável pela vida e suacontinuida<strong>de</strong>. Por causa <strong>de</strong>ssa falta <strong>de</strong> conhecimento sobre a reprodução humana, as mulherespossuíam o po<strong>de</strong>r, tinham o controle <strong>do</strong> dinheiro, das proprieda<strong>de</strong>s, possuíam direitosconjugais respeita<strong>do</strong>s e gozavam <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>.Esse po<strong>de</strong>rio feminino durou até o homem enten<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> reprodução. A partirdaí surgiu uma guerra entre os sexos que dividiu a socieda<strong>de</strong> por milênios. Os homens nãobuscavam a igualda<strong>de</strong> e sim a superiorida<strong>de</strong> masculina, já que eles eram os filhos da Deusa,pois carregavam a “semente” da vida que cabia a mulher receber e servir-lhe como uma terra<strong>de</strong> plantio. Para esse fim, os homens usaram da morte e <strong>de</strong>struição, articularam ataques contraa natureza feminina e aos seus direitos, levaram as mulheres a um nível <strong>de</strong> quase servidão,como se fossem proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses gran<strong>de</strong>s filhos da Deusa: “Os novos sistemas social emental, roubavam-lhes sua liberda<strong>de</strong>, autonomia, controle, e até mesmo o mais básico direito<strong>de</strong> controle <strong>do</strong> próprio corpo. Pois elas agora pertenciam aos homens – ou antes, a umhomem”. (MILES, 1989, p. 77)Com o surgimento <strong>do</strong> Judaísmo e <strong>do</strong> Islamismo em aproximadamente 600 ac – 600 dc,as mulheres sofreram um gran<strong>de</strong> impacto, pois em qualquer sistema – judaísmo,confucionismo, Budismo, Cristianismo ou Islamismo – os homens eram apresenta<strong>do</strong>s comosantos, filhos <strong>de</strong> um Deus único. Essa crença em um Deus único criava uma relação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<strong>do</strong> mais forte sobre o mais fraco quase in<strong>de</strong>strutível. É importante salientar que qualquer um<strong>de</strong>sses sistemas religiosos enaltecia a supremacia masculina ante a inferiorida<strong>de</strong> feminina.A auto-elevação <strong>do</strong> homem transformou a mulher num ser inferior e a excluiu <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>era consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> importante. A fé em um único Deus fazia acreditar que homens e mulhereseram seres opostos e, portanto, se o homem era o escolhi<strong>do</strong> por Deus e possui<strong>do</strong>r <strong>de</strong> todaforça e virtu<strong>de</strong>, a mulher era consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong>feituosa e fraca:


79[...] pois se os machos corporificam um certo grupo <strong>de</strong> características, e se comtípica modéstia eles reclamam para si toda a força e todas as virtu<strong>de</strong>s, então,necessariamente, as mulheres são criaturas opostas, e menores: fracas on<strong>de</strong> oshomens são fortes, medrosas quan<strong>do</strong> eles são bravos e estúpidas quan<strong>do</strong> eles sãointeligentes. (MILES, 1989, p. 112-113)Com isso, as mulheres per<strong>de</strong>ram seus direitos em escolher o companheiro e a separação<strong>de</strong> casais era, exclusivamente, uma vonta<strong>de</strong> masculina. Além disso, elas eram proibidas <strong>de</strong>sair <strong>de</strong> casa, sujeitavam-se a toda e qualquer vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> homem e foram consi<strong>de</strong>radasinferiores e con<strong>de</strong>nadas perpetuamente da condição <strong>de</strong> seres humanos. Por isso, o ataque aocorpo feminino é uma das consequências mais marcantes da história das mulheres,principalmente nessa socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> prevalece o po<strong>de</strong>r monoteísta patriarcal:Na luta pela supremacia, as i<strong>de</strong>ologias em botão tiveram a feliz inspiração <strong>de</strong> mudaro campo <strong>de</strong> batalha para uma área na qual até hoje as mulheres sentem-se expostas evulneráveis – o corpo feminino. Virulentamente atacadas em função e através <strong>de</strong>seus seios, ca<strong>de</strong>iras, coxas e acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> sua “vagina insaciável”, muitas mulheresforam perdidas para além <strong>de</strong> qualquer esperança <strong>de</strong> recuperação. (MILES, 1989, p.116)Na socieda<strong>de</strong> monoteísta, a mulher era vista como mera reprodutora e somente essa eraa sua função, para isso houve uma gran<strong>de</strong> influência <strong>de</strong> literatura i<strong>de</strong>ológica, religiosa, social,biológica e psicológica pregan<strong>do</strong> que o sexo feminino era em tu<strong>do</strong> inferior ao masculino. Paracomprovar essa i<strong>de</strong>ia, os homens atacavam o corpo feminino com a intenção <strong>de</strong> causarinsegurança na mulher, já que esse é o local da sua individualida<strong>de</strong>. Vários são os escritos quecomprovam os maus-tratos e violências sofridas pelas mulheres porque eram consi<strong>de</strong>radasperigosas, seus cabelos po<strong>de</strong>riam provocar o sentimento <strong>de</strong> luxúria, seu rosto era umaarmadilha <strong>de</strong> Vênus, mas sua arma mais potente era a língua, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que por muito tempoelas foram proibidas <strong>de</strong> falar.O corpo feminino era visto como fonte <strong>de</strong> poluição, infecção e contaminação <strong>do</strong>homem, isso explica a violência sexual a que as mulheres eram submetidas: “Pois para amaioria das mulheres, criada na ignorância quanto ao que esperar, sem conhecer o homem emquestão, e mal saída da infância, se tanto, a introdução à experiência sexual <strong>de</strong>ve ter si<strong>do</strong>traumática”. (MILES, 1989, p. 128)Michelle Perrot em Os excluí<strong>do</strong>s da história, comenta sobre esse silêncio femininocitan<strong>do</strong> uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Georges Duby: “[...] as mulheres se mantêm objeto <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r masculino,


80elemento <strong>de</strong> troca nos arranjos matrimoniais e, <strong>final</strong>mente, muito silenciosas. ‘Fala-se muito.O que se sabe <strong>de</strong>las?’, pergunta ele em conclusão.” (1992, p. 171)No entanto é importante ressaltar que nem todas as mulheres aceitavam as condiçõesimpostas e alguns homens já começavam a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que a mulher <strong>de</strong>veria ler e escrever, pois,no fim da Ida<strong>de</strong> Média o conceito <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r estava mudan<strong>do</strong>, a força bruta <strong>de</strong>svalorizava-se.Dessa maneira, a mulher percebeu uma forma <strong>de</strong> mudar seu <strong>de</strong>stino através <strong>do</strong> conhecimento,transmiti<strong>do</strong> através da escrita e da leitura, por isso “[...] a principal via <strong>de</strong> escape da mulherpara o mun<strong>do</strong> maior <strong>do</strong> conhecimento residia para<strong>do</strong>xalmente atrás das portas trancadas <strong>de</strong>uma comunida<strong>de</strong> enclausurada”. (MILES, 1989, p. 149)Os conventos europeus obtinham a <strong>do</strong>minação e po<strong>de</strong>rio da socieda<strong>de</strong> patriarcal erepresentavam para as mulheres a única maneira <strong>de</strong> fugir da maternida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> casamentoforça<strong>do</strong> e da tirania <strong>do</strong>s pais. Como abdicavam <strong>de</strong> sua vida sexual, as religiosas eraminvioladas, portanto, i<strong>do</strong>latradas por homens e mulheres, isso lhes fornecia certos po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>li<strong>de</strong>rança além <strong>do</strong>s políticos, que, como cita Perrot, permaneceu durante anos nas mãos <strong>do</strong>shomens para que houvesse “equilíbrio” social: “O po<strong>de</strong>r político é apanágio <strong>do</strong>s homens – e<strong>do</strong>s homens viris. A<strong>de</strong>mais, a or<strong>de</strong>m patriarcal <strong>de</strong>ve reinar em tu<strong>do</strong>: na família e no Esta<strong>do</strong>.”(1992, p. 175)À medida que as mentalida<strong>de</strong>s foram evoluin<strong>do</strong> o terror sexual envolven<strong>do</strong> a mulher foidiminuin<strong>do</strong>. Essa mudança na forma <strong>de</strong> pensar <strong>do</strong>s homens na época ocasionou, porém, outrafalsa i<strong>de</strong>ia: a <strong>de</strong> que o cérebro feminino era fraco em comparação com o masculino e, por isso,muitas mulheres que tinham conhecimento <strong>de</strong> Química, Alquimia, Botânica, Astrologia,Ciências Naturais e Farmacologia eram consi<strong>de</strong>radas feiticeiras, com po<strong>de</strong>res sobrenaturaispara saberem tanto, já que sua inteligência era limitada.A penalida<strong>de</strong> para a sabe<strong>do</strong>ria feminina era a morte. Muitas mulheres que tiveramcoragem <strong>de</strong> lutar contra a socieda<strong>de</strong> patriarcal e expressavam seus pensamentos e opiniões,além <strong>de</strong> criticarem as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s entre os sexos, eram queimadas, enforcadas ou<strong>de</strong>capitadas em cerimônias públicas para que servissem <strong>de</strong> exemplo à outras mulheres,intimidan<strong>do</strong> as <strong>de</strong>mais para que não buscassem esse tipo <strong>de</strong> conhecimento, que <strong>de</strong>veriapertencer exclusivamente ao <strong>do</strong>mínio masculino.


81Juntamente com essa revolta feminina, em diversas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, as mulherescomeçavam seu po<strong>de</strong>rio político como, por exemplo, Branca <strong>de</strong> Castela, que governou aFrança em 1226. Em várias socieda<strong>de</strong>s surgiram mudanças na mentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s homens e dasmulheres, que entendiam o conhecimento como a única forma <strong>de</strong> libertação da tirania em queviviam: “Com a emergência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno, o conhecimento <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brou-se como aestrada principal para a liberda<strong>de</strong> e o futuro.” (MILES, 1989, p. 164)Mesmo com todas essas mudanças na forma <strong>de</strong> agir e pensar da socieda<strong>de</strong> houveresistência à educação feminina no início da Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna. Na convicção <strong>de</strong> que asmulheres não tinham função fora <strong>do</strong> casamento, a socieda<strong>de</strong> não via a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> educálasse para conceber, gerar e criar os filhos, além disso não havia uma vantagem econômicaem ensinar novos conhecimentos a quem não sairia <strong>de</strong> casa para trabalhar.No início <strong>do</strong> século XVI o mun<strong>do</strong> passava por mudanças. A principal era o processo <strong>de</strong><strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> novas terras através das gran<strong>de</strong>s navegações. Nessa época o homem estavapreocupa<strong>do</strong> em <strong>de</strong>scobrir novas fronteiras, com isso, suas mulheres eram responsáveis em,além <strong>de</strong> cuidar <strong>do</strong>s filhos, or<strong>de</strong>nar vacas, lavrar os campos, lavar, assar, limpar, cozinhar,cuidar <strong>do</strong>s <strong>do</strong>entes, preparar os mortos, entre tantas outras tarefas. Indiferente <strong>do</strong> país a qualpertencia, os afazeres femininos eram <strong>de</strong>svaloriza<strong>do</strong>s, assim, ver uma mulher amamentan<strong>do</strong>ou limpan<strong>do</strong> o chão era tão natural quanto o ato <strong>de</strong> respirar, e tanto quanto o ar querespiramos mereceu pouca atenção durante séculos, foi pouco estuda<strong>do</strong>.Faz poucos anos que a história da mulher passou a ser estudada. Ela só ganhou <strong>de</strong>staquequan<strong>do</strong> as pessoas se conscientizaram que nas ativida<strong>de</strong>s e gran<strong>de</strong>s feitos históricos, queenvolviam guerreiros, <strong>de</strong>scobri<strong>do</strong>res, reis e papas, estavam as mulheres sustentan<strong>do</strong> a base daverda<strong>de</strong>ira história, mesmo sem saberem a importância <strong>de</strong> seu papel:Pois em todas as épocas elas simplesmente faziam o que precisava ser feito, fosse oque fosse. As mulheres jamais questionaram , por exemplo, o fato que, jásobrecarregadas com parcela <strong>de</strong>sigual no trabalho da procriação da raça, tivessemque trabalhar também nos campos e fábricas – nem tampouco seus papéis <strong>de</strong>esposas, mães e <strong>do</strong>nas-<strong>de</strong>-casa também implicassem em quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sproporcionale gran<strong>de</strong> varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> outros tipos <strong>de</strong> trabalho – <strong>do</strong>méstico, social, médico,educativo, emocional e sexual. ( MILES, 1989, p. 175)É preciso salientar que a mulher da cida<strong>de</strong> possuía certas mor<strong>do</strong>mias que as campesinasnão tinham. Na cida<strong>de</strong> a mulher podia receber certo grau <strong>de</strong> instrução, enquanto no campo


82milhares trabalhavam e morriam em condições péssimas, sem ninguém para apontar porescrito o que sentiam, seus <strong>de</strong>sejos, me<strong>do</strong>s e frustrações, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que <strong>de</strong>ssa classe houvepoucos registros <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> vida, sobraram somente os <strong>do</strong>cumentos que resistiram aotempo e persistiram até que a história da mulher interessasse aos pesquisa<strong>do</strong>res.O interessante é que mesmo antes da revolução industrial, as mulheres faziam to<strong>do</strong> equalquer tipo <strong>de</strong> trabalho, atuan<strong>do</strong> em campos, minas, lojas, estradas, merca<strong>do</strong>s, oficinas e emcasa. Viviam ocupadas e nenhum trabalho era consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> em <strong>de</strong>masia para elas. Algumasinclusive utilizaram o comércio como meio <strong>de</strong> vida, já que sabiam as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> suafamília, saíam até os merca<strong>do</strong>s para a venda daquilo que não havia necessida<strong>de</strong> em seu lar.Foi durante os anos da época pré-industrial que surgiram as primeiras mulheresprofissionais e as precursoras <strong>do</strong> trabalho intelectual remunera<strong>do</strong>. Indiferente <strong>do</strong> trabalho queassumia, a mulher <strong>de</strong>sempenhou com competência e gran<strong>de</strong> empenho <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> queConquanto o homem controlasse a terra <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral, seu controle não negava àmulher uma participação importante no processo <strong>de</strong> arar, plantar e crescer queestava acontecen<strong>do</strong>; e as mulheres, por seu la<strong>do</strong>, controlavam o produto, tanto nomicronível <strong>do</strong> lar, quanto no macronível da disposição <strong>do</strong> excesso por troca oucomercialização. (MILES, 1989, p. 196)No século XVII começam as gran<strong>de</strong>s revoluções. Na conquista <strong>de</strong> novos territórios asmulheres auxiliaram os homens durante as lutas numa participação igualitária, sem se abalarcom os preconceitos existentes <strong>de</strong> fraqueza física e incompetência mental, pois o sexomasculino ainda era ti<strong>do</strong> como o melhor, mais forte e inteligente:Mas na era <strong>de</strong> revoluções na qual agora o mun<strong>do</strong> estava entran<strong>do</strong>, esse foi apenasum <strong>do</strong>s muitos lembretes às mulheres que, embora to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vessem ser iguais nanova comunida<strong>de</strong> revolucionária, alguns nasceram com aquela coisinha que os faziaum pouco mais que os outros. ( MILES, 1989, p. 205)Mesmo que na coletivida<strong>de</strong> a ação feminina tenha si<strong>do</strong> pouco valorizada,individualmente, as mulheres eram muito úteis, pois lutavam como solda<strong>do</strong>s na proteção <strong>de</strong>suas proprieda<strong>de</strong>s, além <strong>de</strong> auxiliarem nas batalhas e cuidarem <strong>do</strong>s combatentes feri<strong>do</strong>s.Dessa maneira, as mulheres sempre estiveram presentes e fizeram seu papel da melhormaneira possível: “Pois as mulheres lá estiveram, como anjos anota<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s fatos, como<strong>de</strong>usas vinga<strong>do</strong>ras, ou como monstros furiosos (<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>r)<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da luta.” (MILES, 1989, p. 207)


83Com a mudança da economia agrícola para a industrial, a valorização da cida<strong>de</strong> e o<strong>de</strong>scaso com o campo, a mulher saiu da casa para o trabalho fabril que lhes submeteu aocupações exploradas, inferiores e <strong>de</strong> carga horária maior que a <strong>do</strong>s homens. Em to<strong>do</strong> lugar asmulheres trabalhavam mais por menores salários. O argumento utiliza<strong>do</strong> pelos emprega<strong>do</strong>ressobre os baixos salários das mulheres era a sua falta <strong>de</strong> preparo para o emprego <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> àeducação ina<strong>de</strong>quada. Dessa maneira, a perspectiva <strong>de</strong> futuro da gran<strong>de</strong> maioria <strong>do</strong> sexofeminino era o casamento ou a vida nas ruas. A falta <strong>de</strong> qualificação ocasionava a exclusãopolítica, o que tornava impossível às mulheres qualquer reforma <strong>de</strong> direito à educação, àuniformida<strong>de</strong> salarial ou igualda<strong>de</strong> diante da lei.Durante a Revolução Industrial as mulheres foram projetadas <strong>de</strong> suas vidas <strong>de</strong> trabalhorotineiras no lar para o trabalho da fábrica, sua disciplina e rigi<strong>de</strong>z. O trabalho fora se tornouuma necessida<strong>de</strong>, pois só com seus salários era impossível sobreviver, obrigan<strong>do</strong>-as, portanto,a ficarem presas ao matrimônio pela necessida<strong>de</strong> da sobrevivência, <strong>de</strong>ssa maneira os homensainda conservavam seu <strong>do</strong>mínio:Toda revolução é uma revolução <strong>de</strong> idéias – no entanto, inovar não é reformar. Asrevoluções <strong>do</strong> século XVIII, tão diferentes umas das outras em alguns <strong>de</strong> seusaspectos mais profun<strong>do</strong>s, mesmo assim tiveram uma verda<strong>de</strong> singela em comum –todas elas foram a revolução para alguns, não para to<strong>do</strong>s. E apenas algumas idéiasforam <strong>de</strong>rrubadas [...]. Das que sobreviveram, a mais resistente e dura<strong>do</strong>ura foi a dasuperiorida<strong>de</strong> natural <strong>do</strong> homem. ( MILES, 1989, p. 224)No o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> colonização, as mulheres estiveram sempre presentes, não só pela mão<strong>de</strong>-obrapara o trabalho, mas principalmente para a reprodução, já que os territórios <strong>de</strong>colonização apresentavam climas hostis e <strong>do</strong>enças, o que facilitava a morte infantil. Na vidanos impérios, as mulheres <strong>de</strong>senvolveram toda espécie <strong>de</strong> novas habilida<strong>de</strong>s com a mesmafacilida<strong>de</strong> que aprendiam os serviços <strong>do</strong>mésticos, essas habilida<strong>de</strong>s constavam <strong>de</strong> maneiras <strong>de</strong>sobreviver no local on<strong>de</strong> ocorria a colonização. Dessa maneira, muitas mulheres apren<strong>de</strong>ram acavalgar em mulas, camelos, cavalos, bois, ou elefantes por distâncias imensas, a navegar ànoite e enfrentar to<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> crise que aparecesse no novo mun<strong>do</strong>. A vida da mulher <strong>do</strong>scoloniza<strong>do</strong>res e construtores <strong>de</strong> impérios era muito dura.No século XIX as novas condições <strong>de</strong> trabalho que surgiram serviram para afastar maisa mulher <strong>de</strong> seu mari<strong>do</strong> e <strong>de</strong> seus trabalhos <strong>do</strong>mésticos pois, com um crescente


84<strong>de</strong>senvolvimento, a ciência ficou com po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir o que era natural e normal no mun<strong>do</strong>.À mulher foi ofereci<strong>do</strong> um status <strong>de</strong> segunda classe, pois a ciência a consi<strong>de</strong>rava um ser frágilfisicamente e intelectualmente, uma vez que a “Craneologia”, havia <strong>de</strong>scoberto que a massacerebral <strong>do</strong> homem era maior que a da mulher. O cérebro masculino era, portanto, maisinteligente que o cérebro feminino. Devi<strong>do</strong> a isso, as mulheres que forçassem em <strong>de</strong>masia autilização <strong>do</strong> seu cérebro podiam ter consequências gravíssimas: “[...] diátese (nervosismo),clorose (‘<strong>do</strong>ença ver<strong>de</strong>’ ou anemia, histeria, tamanho mirra<strong>do</strong> e magreza excessiva eram omenos que elas po<strong>de</strong>riam esperar por, sequer, tocar numa página <strong>de</strong> Catulo.” ( MILES, 1989,p. 265)As leis <strong>do</strong> século XIX foram as mais opressivas à emancipação feminina. Porém,mesmo com essa opressão, as mulheres conseguiram alguns <strong>de</strong> seus direitos, como o voto e oacesso à educação:E sem dúvida falaram, levantan<strong>do</strong> suas vozes por toda parte em favor da educação,da reforma das leis, <strong>do</strong> emprego, <strong>do</strong>s direitos civis e acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, <strong>do</strong> “Voto para asMulheres!”. [...] as mulheres foram admitidas aos colégios secundários, àsuniversida<strong>de</strong>s e às profissões; receberam seus direitos à proprieda<strong>de</strong> e às leis <strong>do</strong>divórcio antes que lhes fosse concedi<strong>do</strong> o sagra<strong>do</strong> símbolo da cidadania plena.(MILES, 1989, p. 280)No século XX <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> cristão, permanecia a crença na superiorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> masculino:“Todas as mulheres continuavam a apren<strong>de</strong>r no colo <strong>de</strong> suas mães que os homens eram maisimportantes” (MILES, 1989, p. 259). Os homens estavam com me<strong>do</strong> <strong>de</strong> que a mulherconseguisse, pelos direitos conquista<strong>do</strong>s, libertar-se da tirania sofrida e tornar-se umindivíduo autônomo. Esse receio masculino começou a concretizar-se, pois, nesse mesmoséculo, a luta feminina começou a dar resulta<strong>do</strong> e a mulher conquistou o direito <strong>de</strong> recusarcasar e ter filhos, com a <strong>de</strong>scoberta da pílula anticoncepcional “[...] que consistiu em umimpacto capaz <strong>de</strong> mudar um número <strong>de</strong> vidas tão gran<strong>de</strong> quanto qualquer outra revolução<strong>de</strong>ste século.” (MILES, 1989, p. 313)Cyro Martins, nosso autor em estu<strong>do</strong>, comenta que a invenção da pílulaanticoncepcional foi a responsável pelo fato <strong>de</strong> a mulher perceber as suas potencialida<strong>de</strong>s, oque auxiliou em gran<strong>de</strong> parte para o seu <strong>de</strong>senvolvimento e reconhecimento. Ao po<strong>de</strong>r optarem ser mãe ou não, a mulher oci<strong>de</strong>ntal não tolerou mais o seu confinamento e começou abuscar igualda<strong>de</strong>: “A mulher principiou a prestar mais atenção sobre si mesma como ser


85biológico, em especial às suas funções sexuais, e partiu em busca <strong>de</strong> aprendiza<strong>do</strong> objetivoacerca da natureza <strong>do</strong> seu ciclo hormonal e das vicissitu<strong>de</strong>s da feminilida<strong>de</strong>.” (1984, p. 12)Aos poucos as mulheres conseguiram ir a<strong>de</strong>ntran<strong>do</strong> nas ativida<strong>de</strong>s sociais e políticas dasocieda<strong>de</strong> principalmente em épocas <strong>de</strong> mudanças e crises nos sistemas vigentes <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r.Dessa maneira, elas iam se infiltran<strong>do</strong> e penetran<strong>do</strong> na vida pública, em perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong>inquietação e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m como mudanças sociais e guerras, já que era nesses momentos quesurgiam espaços e que tornava-se necessário a atuação feminina em diversos setores da vidaeconômica e social. Por isso, são poucos registros históricos em que aparece a voz feminina,uma vez que foram sempre os homens que organizaram as ativida<strong>de</strong>s públicas e <strong>de</strong> trabalho, ehouve pouca aceitação e possibilida<strong>de</strong>s para a mulher exercer alguma ação política.Por isso ao voltarem sua atenção para os fatos passa<strong>do</strong>s as mulheres percebem que suahistória precisa ser a to<strong>do</strong> tempo reinventada e re<strong>de</strong>scoberta. Os sofrimentos femininos forammuitos, até nos dias atuais, percebemos que a igualda<strong>de</strong> sexual não existe totalmente, ainda hásistemas <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação que situam o homem acima da mulher em diversas socieda<strong>de</strong>s <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>:Em lugar nenhum socieda<strong>de</strong> nenhuma acabou realmente com a arcaica divisão <strong>do</strong>trabalho segun<strong>do</strong> o sexo, ou com as recompensas em bens e po<strong>de</strong>r que aacompanham. Em lugar nenhum as mulheres gozam <strong>do</strong>s direitos, privilégios,possibilida<strong>de</strong>s e lazer <strong>de</strong> que gozam os homens. Em toda parte o homem ainda seinterpõe entre a mulher e o po<strong>de</strong>r, a mulher e o esta<strong>do</strong>, a mulher e a liberda<strong>de</strong>, amulher e si mesma. ( MILES, 1989, p. 330)A História da mulher acima relatada e estudada se refere às mulheres européias e pareceter pouco em comum com a história da mulher gaúcha, mas sabemos que o Brasil foi um paíscoloniza<strong>do</strong> em gran<strong>de</strong> parte por socieda<strong>de</strong>s européias que traziam seus costumes, tradições esua organização patriarcal. Esses imigrantes localizaram-se, principalmente na região sul, porisso o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul foi um Esta<strong>do</strong> que, durante séculos, a<strong>do</strong>tou os costumes europeus,principalmente no que se refere a maneira <strong>de</strong> tratar a mulher.Cyro Martins, em sua Trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé, retrata a péssima situação <strong>do</strong> homem <strong>do</strong>campo no início <strong>do</strong> século XX, pois a<strong>de</strong>ntravam os campos <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul atecnologia. Esse avanço da indústria começava a causar o êxo<strong>do</strong> rural e o aumento dapopulação urbana, o que gerava uma situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego e empobrecimento das


86populações rurais <strong>de</strong>sse Esta<strong>do</strong>. Esse autor <strong>de</strong>screve com sabe<strong>do</strong>ria e conhecimento essa criseenfrentada pelas famílias gaúchas nas primeiras décadas <strong>do</strong> século menciona<strong>do</strong>, mas o quenos interessa em suas obras é, principalmente, a situação da mulher gaúcha <strong>de</strong>sse tempo.Temos pouquíssimos registros históricos que comentam a situação da mulher nessa época,razão pela qual usamos a literatura como meio <strong>de</strong> conhecimento e entendimento <strong>de</strong>ssasocieda<strong>de</strong> patriarcal.3.2 A mulher nos romances Sem rumo, Porteira fechada e Estrada nova3. 2. 1 O silêncio feminino em Sem rumoCom Sem rumo, Cyro Martins inicia a trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé, que consta também dasobras Porteira fechada e Estrada nova. Já analisamos que o enre<strong>do</strong> <strong>de</strong> Sem rumo inicia emaproximadamente 1923 e esten<strong>de</strong>-se até 1933 ou 1934, também já comentamos no estu<strong>do</strong>anterior que a história se passa na Estância <strong>do</strong> Silêncio, proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nicanor Ayres,consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um bom patrão pelos peões e <strong>de</strong>mais serviçais.O personagem central <strong>do</strong> romance é Chiru, menino que sempre viveu na fazenda e nãosabe sua origem, <strong>de</strong> seu parentesco sabe apenas que é afilha<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu Nicanor, mas não possuiregalias por essa proteção, vive como os <strong>de</strong>mais peões <strong>do</strong> local. Na fazenda tambémtrabalham outros personagens como Clarimun<strong>do</strong>, companheiro <strong>de</strong> Evarista, Maria e Manuel,que são casa<strong>do</strong>s, o viúvo Tomás Barbosa com os filhos, as empregadas Siá catarina e Leonore os <strong>de</strong>mais peões como Chiru: o anão Velasquez, o velho João Antônio, Felipe, Florin<strong>do</strong>, onegro Quileto e outros que não são menciona<strong>do</strong>s mas que existem na obra porque são cita<strong>do</strong>s.Em uma li<strong>de</strong> campeira, em que os peões precisavam atravessar um rio, há <strong>de</strong>z cavalos querealizam a tarefa, mas em toda obra aparecem somente os nomes <strong>de</strong> Clarimun<strong>do</strong>, Chiru,Felipe e negro Quileto como aptos a realizarem o serviço campeiro: “Dez encontros <strong>de</strong>cavalos em fila começaram a cortar a corrente” (1997, p.61). Supõe-se, <strong>de</strong>ssa maneira, que afazenda tinha mais agrega<strong>do</strong>s que não são personagens da história narrada.Doente e velho, seu Nicanor obriga-se a ir embora para a cida<strong>de</strong> em busca <strong>de</strong> um maiorconforto e tratamentos médicos, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> a estância aos cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Clarimun<strong>do</strong>, seu


87capataz, que é um homem extremamente severo, autoritário e violento. Em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>momento surra Chiru, já moço, com agressivida<strong>de</strong>. O jovem não aceita os maus-tratosrecebi<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ir embora da Estância para juntar-se a uma coluna revolucionária daRevolução <strong>de</strong> 23 que passava perto da Estância naquele dia. Como não consegue alcançar astropas, Chiru aloja-se na pequena chácara <strong>de</strong> Tomás Barbosa, o chacareiro antigo da Estância<strong>do</strong> Silêncio, que tem um filho carreteiro.Após essa estadia na casa <strong>de</strong> Tomás Barbosa, a história toma novos rumos e Chiru já écarreteiro há <strong>do</strong>is anos, emprega<strong>do</strong> <strong>de</strong> André Barbosa, filho <strong>de</strong> Tomás. Já está adulto o Chiru,encorpa<strong>do</strong> e aparentemente mais maduro: “Estava entronca<strong>do</strong> e <strong>de</strong> braços grossos, bem outro,o Chiru.” (1997, p. 88). Esse seu emprego, porém, dura pouco, o rapaz é <strong>de</strong>spedi<strong>do</strong> porquebebe em serviço. A partir daí começa seu processo <strong>de</strong> ruína e <strong>de</strong>cadência, pois não conseguepermanecer por muito tempo em nenhum emprego. No último, <strong>de</strong> boteiro, não teve êxito pormotivos políticos.Com o passar <strong>do</strong> tempo, Chiru forma família com Alzira, filha <strong>do</strong>s posteiros daEstância. Isso ocorre quan<strong>do</strong> ele se vê <strong>de</strong>snortea<strong>do</strong> e sem emprego, o que o leva a voltar aospagos da infância para reviver boas lembranças. Ao retornar encontra Alzira a banhar-se norio e sente <strong>de</strong>sejo pela moça, enlaça-a pela cintura e a leva para viver com ele na cida<strong>de</strong>.Alzira, porém, já o esperava há alguns dias, pois os <strong>do</strong>is já haviam combina<strong>do</strong> a fuga hátempos. Na cida<strong>de</strong> o casal tem um filho, Joãozinho. Após passar por diversos empregosfracassa<strong>do</strong>s Chiru trabalha na construção <strong>de</strong> uma linha férrea, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> também é <strong>de</strong>spedi<strong>do</strong>por motivos políticos. Seu chefe, na construção, era ninguém menos que Clarimun<strong>do</strong>, ocapataz que o agrediu na Estância. No <strong>final</strong> da obra, Chiru e sua família estão partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>sseúltimo emprego, a pé, sem rumo.Chiru é um personagem que representa a população pobre <strong>de</strong> um Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul emcrescente transformação sócio-econômica, ele está <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, humilha<strong>do</strong>, marginaliza<strong>do</strong>,<strong>de</strong>semprega<strong>do</strong> e sem perspectiva <strong>de</strong> um futuro melhor na cida<strong>de</strong>. As exigências da vidacitadina, o fazem terminar na miséria, na periferia <strong>do</strong>s centros urbanos.Nessa obra encontramos muitos casais, alguns são casa<strong>do</strong>s, outros vivem juntos sem a<strong>do</strong>cumentação que estabelece a união conjugal, são eles: Clarimun<strong>do</strong> e Evarista, Manuel eMaria e Alzira e Chiru. Vamos analisar cada um <strong>de</strong>sses casais, com o objetivo <strong>de</strong> verificar a


88maneira como se dá a relação homem/mulher nas situações apresentadas na obra. Tambémbuscamos constatar como era o tratamento <strong>do</strong> companheiro e da socieda<strong>de</strong> em geral, com asmulheres <strong>de</strong>sse tempo na Literatura ficcional. Dessa forma se enquadram em nossa análiseigualmente as mulheres solteiras que participam ativamente <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>.Clarimun<strong>do</strong> e Evarista vivem na Estância <strong>do</strong> Silêncio em uma pequena casa, humil<strong>de</strong> esimples, coberta <strong>de</strong> capim, sem reboco, com pare<strong>de</strong>s tortas e pequenas peças. Evaristatrabalha <strong>de</strong> <strong>do</strong>na-<strong>de</strong>-casa e realiza to<strong>do</strong>s os afazeres <strong>de</strong> uma mulher: cuida da casa, dasgalinhas, <strong>do</strong>s filhos, lava roupas, etc. Evarista não gosta da presença <strong>de</strong> Clarimun<strong>do</strong> em casa,vive amedrontada pelo companheiro, um homem seco, autoritário e violento.De início o casal tinha um bom relacionamento. Clarimun<strong>do</strong> uniu-se com Evaristaquan<strong>do</strong> essa já tinha filhos, e isso não foi empecilho para o casal até que Florin<strong>do</strong>, um peão dafazenda, ridiculariza a atitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> capataz, zomban<strong>do</strong> <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong>le para com aquelascrianças que não eram seus filhos. Diante disso, o capataz sente-se envergonha<strong>do</strong> em assumirEvarista e os filhos, passa, então, a rejeitá-los com gestos e atitu<strong>de</strong>s grosseiras e frias, apesar<strong>de</strong> ter um forte sentimento que o pren<strong>de</strong> à mulher e o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> aban<strong>do</strong>ná-la:Aquela mulher, com filhos que não eram seus – embora soubesse disso quan<strong>do</strong> aligou à sua vida – não lhe servia. Mas havia qualquer coisa, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si, maispo<strong>de</strong>rosa que a sua vonta<strong>de</strong>, que o impedia <strong>de</strong> encilhar o pingo e ir embora, aqualquer rumo. (1997, p. 40-41)Em consequência <strong>de</strong>ssas atitu<strong>de</strong>s, Evarista sente-se reprimida diante da figura agressiva<strong>do</strong> companheiro e só se atreve a acariciar os filhos quan<strong>do</strong> ele não está em casa:Àquela hora era a única em que cevava o mate ao mari<strong>do</strong> com prazer! Não tardava,ele saía para o galpão, para as mangueiras, para o campo, para a lida diária, enfim, adar or<strong>de</strong>ns. Ficava <strong>de</strong>pois tão bom aquele quartinho aperta<strong>do</strong> <strong>de</strong> cozinheira, pare<strong>de</strong>stortas, sem reboco, e coberta <strong>de</strong> capim. Então, ela podia chegar sem constrangimentoao catrezinho <strong>do</strong>s filhos e mimá-los, acariciá-los, sem pensar, por momentos, nainclemência da vida. E tinha to<strong>do</strong> o pátio para andar à vonta<strong>de</strong>. Ficava ligeira,remoçada. (1997, p. 39)Evarista vive angustiada, sem saber o que se passa na cabeça <strong>de</strong> Clarimun<strong>do</strong> que estásempre distante, frio e silencioso, até mesmo na hora <strong>do</strong> mate, <strong>de</strong> manhã, antes <strong>de</strong> sair para asli<strong>de</strong>s. O silêncio <strong>de</strong>le torna o clima pesa<strong>do</strong> entre o casal e não permite nenhuma expressão damulher, que não se atreve a sequer olhá-lo no rosto: “Evarista ergueu mais o olhar. Viu olenço encarna<strong>do</strong> enrolan<strong>do</strong> o pescoço <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Viu o queixo pontu<strong>do</strong>, a boca, os lábios


89finos e contraí<strong>do</strong>s, o bigo<strong>de</strong> arisco, o nariz reto. Aí parou. Não se atreveu a fitar-lhe nosolhos.” (1997, p. 40)Infeliz com a situação em que vive, ela <strong>de</strong>seja profundamente que o companheiro seaborreça <strong>de</strong>la e <strong>de</strong> seus filhos, que <strong>de</strong>sista da vida conjugal e que os aban<strong>do</strong>ne, mas teme queClarimun<strong>do</strong> possa imaginar o que se passa em seu íntimo, isso a torna uma mulher oprimida eamedrontada até em pensamentos: “Evarista pensava assim, mas tremia só <strong>de</strong> imaginar queele um dia adivinhasse o seu <strong>de</strong>sejo. Sabia, Clarimun<strong>do</strong> era capaz <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, até... Surpreen<strong>de</strong>usefitan<strong>do</strong> o cabo da adaga <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>.” (1997, p. 41)Seus momentos <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> são quan<strong>do</strong> o companheiro sai para o campo. Nessas horasEvarista sente-se <strong>do</strong>na <strong>de</strong> si e gosta <strong>de</strong> viver, diferente <strong>do</strong>s momentos em que se sente umaprisioneira com a simples presença <strong>de</strong>le:Sim, ainda estava presa, acolherada à sorte daquele indivíduo, que nem ao menos atemia, embora a odiasse. Se ele tivesse receio <strong>de</strong> sua traição e temesse umapunhalada bandida, ao menos estariam em igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> condições. Mas não. Era sóela, a amedrontada! (1997, p. 43)Numa socieda<strong>de</strong> machista como a que vivia Evarista, ser mãe solteira era sinônimo <strong>de</strong><strong>de</strong>svalorização e repressão feminina. No sistema patriarcal, a gravi<strong>de</strong>z antes <strong>do</strong> casamento eravergonhosa, atribuía à mulher o conceito <strong>de</strong> fácil, prostituta. Esse foi o fator básico que levouClarimun<strong>do</strong> ao distanciamento da mulher e <strong>do</strong>s filhos mesmo que a amasse. Evarista foimarginalizada e repudiada pelo companheiro <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aos valores impostos pela socieda<strong>de</strong>.Outro casal da história é Manuel Garcia e Maria. Esse casal parece ter um bomrelacionamento. Manuel morou na cida<strong>de</strong>, trabalhou no comércio, em firmas, foi reservista <strong>do</strong>exército e funcionário <strong>do</strong> banco, é um homem que sabe ler, e por isso, recebe um convite <strong>do</strong>coronel Dutra para ser o professor rural daquele distrito. Para <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a vida <strong>de</strong>chacareiro, vista pelo coronel como “[...] vidinha miserável, própria <strong>de</strong> indivíduos incapazes[...]” (1997, p. 67), <strong>de</strong>ve em troca, votar no Dr. Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros, já presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> echefe <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Republicano. Em sua visita a Manuel o coronel Dutra almeja conseguir maisvotos para o parti<strong>do</strong> e por isso, convence o chacareiro <strong>de</strong> que ele é o homem certo para ocargo <strong>de</strong> professor, já que tem caráter e sabe ler. Manuel Garcia, por sua vez, vê nessaproposta possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adquirir respeito e prestígio na vizinhança. Crê que esse trabalho


90resultará em uma maior influência sua no distrito em que vive, e acaba por <strong>de</strong>sistir <strong>do</strong> trabalhorural e aceitar a nova profissão.Maria, esposa <strong>de</strong> Manuel, é a típica mulher <strong>de</strong> agricultor. Ela auxilia o mari<strong>do</strong> nosserviços rurais: “Os bois, que Manuel e a mulher repontavam, pararam, enrolan<strong>do</strong> a língua nopastiçal orvalha<strong>do</strong> da beira <strong>do</strong> cerca<strong>do</strong>.” (1997, p.65). Quan<strong>do</strong> o coronel Dutra chega, ela seretira para <strong>de</strong>ixar os homens conversarem e, ao perceber que o coronel foi embora, ela segue omari<strong>do</strong> sem ele perceber, ao vê-lo soltar os bois <strong>do</strong> ara<strong>do</strong> interroga-o sobre o porquê <strong>de</strong> suaatitu<strong>de</strong> já que o serviço se atrasará. Ao perceber um comportamento diferente no mari<strong>do</strong>frente a sua pergunta interroga-o com certo espanto: “O que é que tu tem, meu Deus <strong>do</strong> céu?”(1997, p. 69), ele lhe informa, então, a nova profissão que irá exercer.Maria não gosta <strong>de</strong>ssa atitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, preocupa-se com o sustento da casa, percebeque Manuel está iludi<strong>do</strong> com a conversa <strong>do</strong> coronel e tenta alertá-lo: “Tão <strong>de</strong> bobean<strong>do</strong>,home! Isso são lorotas...” (1997, p. 69). Manuel não a ouve, está a pensar em sua nova eimportante posição.A preocupação <strong>de</strong> Maria se confirma quan<strong>do</strong> Manuel Garcia cai em si, vê que aprofissão <strong>de</strong> professor rural não é promissora e se arrepen<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter vendi<strong>do</strong> os bois quepuxavam o ara<strong>do</strong> no serviço da lavoura:Manuel Garcia ficou para<strong>do</strong> na porta, bestifica<strong>do</strong> diante <strong>do</strong> espetáculo. O que seria<strong>de</strong>le, <strong>do</strong> seu colégio, da sua vida, <strong>de</strong>pois que os alunos apren<strong>de</strong>sse o ABC? Quem omandara ser tão estúpi<strong>do</strong> a ponto <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r baratinho o “laranja” e o “an<strong>do</strong>rinha”?além <strong>do</strong> ABC tu<strong>do</strong> era uma cerração para ele.” (1997, p.72)Po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r a relação <strong>de</strong> Manuel Garcia com Maria por não ser tão opressiva pelofato <strong>de</strong> ele ser da cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> teve acesso a outros conhecimentos, culturas e à leitura. Manuelpermite que a esposa se expresse, e isso nos leva a perceber que Maria possui uma visão darealida<strong>de</strong> e da vida tal qual ela se apresenta, com muito realismo, o que a leva a não crer naspromessas <strong>do</strong> coronel Dutra. Ela é uma mulher que fala, extremamente lúcida.Apesar <strong>de</strong> ser uma mulher inteligente e perspicaz, sua opinião não importa ao mari<strong>do</strong>,ele é quem toma as <strong>de</strong>cisões, mesmo que essas envolvam o futuro <strong>de</strong> toda a família. Maria,mesmo que viva em melhores condições comparada a Evarista, também sofre com os valores


91impostos pela socieda<strong>de</strong>, pois, mesmo que fale, não é ouvida, é oprimida, não tem voz ativa,vive em função da casa, <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s filhos.O casal Alzira e Chiru merece <strong>de</strong>staque em Sem rumo. A jovem Alzira sempre viveu nocampo, a auxiliar sua mãe no serviço da casa. Ela sente-se presa e só naquele fun<strong>do</strong> <strong>de</strong> campo,não gosta da solidão em que vive, on<strong>de</strong> nem mesmo segre<strong>do</strong>s é possível existir entre ela e suamãe já que não há novida<strong>de</strong>s naquela vida rotineira <strong>de</strong> rincão: “E que segre<strong>do</strong>s iam ter elas,trancafiadas toda vida naquele rincão?” (1997, p. 103)Ao tomar banho na sanga próxima a sua casa, a menina reencontra Chiru, antigo amorjuvenil, que rumava à cida<strong>de</strong> na busca <strong>de</strong> uma vida melhor. A jovem vê nisso a oportunida<strong>de</strong><strong>de</strong> conhecer algo novo, <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> vida, e vai com ele, porém <strong>de</strong>cepciona-se ao conhecer acida<strong>de</strong>. É a primeira vez que ela entra num povoa<strong>do</strong> e imagina encontrar muito requinte econforto, mas se <strong>de</strong>para com a miséria da vida citadina, casas velhas sem reboco, bêba<strong>do</strong>s eruas estreitas. Sua casa é <strong>de</strong> um lance, um rancho <strong>de</strong> capim e torrão.Chiru e Alzira têm um filho. A moça cuida <strong>do</strong>s serviços caseiros enquanto Chiru éboteiro, faz fretes entre Brasil e Uruguai. Essa profissão, porém, não lhe agrada, pois, sereconhece como um homem <strong>do</strong> campo, que já experimentara a liberda<strong>de</strong> e largueza da vida nacampanha:A sua sina tinha que ser outra...outra...bem outra! Os filhos da puta! Quem? To<strong>do</strong>s.Fodam-se! Não nascera para viver arro<strong>de</strong>an<strong>do</strong> o povo. Carregava no sangue umperpétuo apelo á vida que mal esboçara na campanha, guri ainda. Agora, os seusvizinhos, que viviam (viviam?) amontoa<strong>do</strong>s na imundície daquelas bibocas,achavam que estavam bem <strong>de</strong> vida. A profissão <strong>de</strong> boteiro era das melhorzinhas porali... Muitos o invejavam. Coita<strong>do</strong>s, não tinham mais o que invejar! (1997, p. 110)Alzira enfrenta com Chiru todas as dificulda<strong>de</strong>s da vida e assiste a <strong>de</strong>cadência <strong>do</strong>companheiro. Vive sem esperanças <strong>de</strong> um futuro melhor, jamais expressa seus <strong>de</strong>sejos paraChiru, permanece calada, resignada com a vida que leva, aparenta não ter forças, ser tomadapela timi<strong>de</strong>z e aceitar a condição sub-humana <strong>de</strong> miséria em que se encontra:Quan<strong>do</strong> o índio chegou ao rancho, à meia-noite, quase borracho, Alzira, <strong>de</strong> cócoras,assoprava os carvões <strong>do</strong> fogareiro para refogar o guisa<strong>do</strong>. Ao vê-lo, levantou-se comdificulda<strong>de</strong>, que a barriga pesava. [...] Soprou uma viração fresca no oitão,arrepian<strong>do</strong> a quincha mal feita da cumeeira. Dentro <strong>do</strong> rancho ventava como na rua.(1997, p. 110)


92À mulher, na socieda<strong>de</strong>, cabe a condição incontestável <strong>de</strong> cuidar <strong>do</strong> filho e <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>.Essa regra imposta à conduta feminina fica expressa na atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Alzira em um velório. Jácansada <strong>de</strong> segurar o filho, que não para <strong>de</strong> chorar, ela sente os braços cansa<strong>do</strong>s, uma certafraqueza. Pensa em pedir ajuda ao pai da criança, mas ligeiramente muda <strong>de</strong> opinião aoverificar que na sala há mais mulheres com seus filhos no colo. Rapidamente se recompõe etorna a embalar Joãozinho.Ela, como todas as personagens femininas até aqui mencionadas, é uma mulher semcoragem <strong>de</strong> tentar um <strong>de</strong>stino melhor para sua família, pois mesmo com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>voltar para o campo, on<strong>de</strong> vivem seus pais, acata as <strong>de</strong>cisões <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e vive uma vida <strong>de</strong>miséria, cuidan<strong>do</strong> da casa, <strong>do</strong> companheiro e <strong>do</strong> filho. A moça também não sabe como seriasua recepção caso retornasse para o campo, porque sua atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> fugir com um rapaz sem sercasada na Igreja é vista como uma postura indigna <strong>de</strong> uma boa moça.Leonor e Siá Catarina também surgem no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>. Em nenhum momento datrama é mencionada alguma união conjugal <strong>de</strong> ambas. Em uma passagem são cita<strong>do</strong>s os filhos<strong>de</strong> Leonor e nunca o seu mari<strong>do</strong>, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r que ela é mãe solteira e,portanto, <strong>de</strong>svalorizada perante a socieda<strong>de</strong>. Siá Catarina e Leonor são negras e empregadas<strong>de</strong> seu Nicanor, auxiliam D. Eufrásia, esposa <strong>do</strong> fazen<strong>de</strong>iro, nas tarefas <strong>do</strong> lar na casa gran<strong>de</strong>da Estância. Quan<strong>do</strong> o patrão muda-se para a cida<strong>de</strong>, cabe às duas serviçais tomar conta dacasa, abrir as janelas <strong>de</strong> vez em quan<strong>do</strong> para arejá-la e evitar o mofo, lavar, passar, cozinhar ecosturar.Ambas presenciam a cena em que Clarimun<strong>do</strong> bate violentamente em Chiru epenalizam-se, sentem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> interce<strong>de</strong>r e pedir pelo menino, <strong>de</strong> o <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r das relhadas<strong>do</strong> capataz, porém, a única coisa que Siá Catarina consegue dizer durante aquela cena bruta éuma frase <strong>de</strong> aparente indiferença, com a intensão <strong>de</strong> disfarçar seu me<strong>do</strong>: “-Está quente achaleira Evarista? Botou erva nova na cuia? Tu sabes como é esse teu mari<strong>do</strong>.” (1997, p.80)Siá Catarina assume o papel <strong>de</strong> mãe <strong>de</strong> Chiru e auxilia na criação <strong>do</strong> menino, por isso,ao fugir da Estância, ele admite que sentirá sauda<strong>de</strong>s da negra velha: “Siá Catarina, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>,a negra velha, nem sonhava com aquilo... Era só <strong>de</strong> quem levava sauda<strong>de</strong>.” (1997, p. 82)


93Essas duas mulheres, apesar <strong>de</strong> não serem casadas, <strong>de</strong>sempenham o mesmo papel dasesposas: lavam, passam e cozinham para os peões da fazenda. Também assumem o papel <strong>de</strong>mãe se esse for preciso, como no caso <strong>de</strong> Chiru. Suas vidas são rotineiras, são apenasserviçais, mulheres e ainda por cima negras, <strong>do</strong>is motivos que as impe<strong>de</strong>m <strong>de</strong> serem ouvidas.Amedrontadas, limitam-se a realizar suas tarefas diárias silenciosas, sem nunca dirigir a vozou pedir algo a algum <strong>do</strong>s peões <strong>do</strong> lugar.Dessa maneira, todas as personagens femininas <strong>de</strong> Sem rumo são mulheresamedrontadas, sem voz e participação nenhuma na socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> vivem. Passam seus dias atrabalhar, cuidar <strong>do</strong>s filhos, <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e da casa. Quan<strong>do</strong> expressam opiniões não sãoouvidas, são menosprezadas e na maioria das vezes, não revelam o que pensam, vivemtemerosas uma vida <strong>de</strong> silêncio na fazenda que já carrega esse nome: Estância <strong>do</strong> Silêncio.Sem perspectivas <strong>de</strong> um futuro melhor e sem esperança, apenas sobrevivem, <strong>de</strong>siludidas.Nenhum caminho aponta um novo horizonte com melhores condições <strong>de</strong> vida. Elas vivemsem rumo.3.2.2 A luta das mulheres pela sobrevivência em Porteira fechadaO segun<strong>do</strong> livro da Trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé foi lança<strong>do</strong> em 1944, se intitula Porteirafechada e apresenta seu enre<strong>do</strong> no tempo <strong>de</strong> 1938, mas envolve situações anteriores, <strong>do</strong>s anos<strong>de</strong> 1917 a 1927.Esse título refere-se à falta <strong>de</strong> esperanças em uma vida melhor <strong>de</strong> vários personagens daobra, o principal é João Gue<strong>de</strong>s. João Gue<strong>de</strong>s é um homem trabalha<strong>do</strong>r, mas não encontrauma solução para seus problemas financeiros e não consegue dar uma vida digna a suafamília. Ele é arrendatário <strong>de</strong> um pequeno pedaço <strong>de</strong> terra que pertence à fazenda <strong>de</strong> SeuBento. Vive no interior <strong>de</strong> Boa Ventura, com a mulher Maria José e os filhos. Certo dia pelamanhã, recebe a visita <strong>de</strong> Júlio Bica, fazen<strong>de</strong>iro da região, que vem comunicar ser o novo<strong>do</strong>no <strong>de</strong> duas quadras <strong>de</strong> campos pertencentes a Seu Bento, nessas duas quadras que agora lhepertencem está o pequeno pedaço on<strong>de</strong> Gue<strong>de</strong>s e sua família vivem.


94Após três anos à procura <strong>de</strong> um lugar para viver com sua família no campo, já<strong>de</strong>siludi<strong>do</strong> <strong>de</strong> encontrar, João Gue<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> mudar-se com a mulher e filhos para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Boa Ventura, seu último recurso. Maria José parte antes que o mari<strong>do</strong> para a cida<strong>de</strong> e aloja-sena casa da prima, amiga <strong>de</strong> infância e juventu<strong>de</strong>, Querubina. Por causa <strong>do</strong> parentesco MariaJosé imagina que receberá auxílio da prima nesse momento difícil em que se encontra e ficana casa <strong>de</strong>la até que Gue<strong>de</strong>s encontre uma casa para morarem.Já <strong>de</strong> início Maria José sente a diferença <strong>de</strong> classe entre sua família e a <strong>de</strong> Querubina. Acomeçar pelas filhas, as <strong>de</strong> Maria José permanecem acanhadas, ariscas, as mãos coladas aocorpo, a cabecinha torcida, sempre juntinhas, Maria Inês, filha <strong>de</strong> Querubina e Oscar,<strong>de</strong>monstra ser divertida, espontânea e muito comunicativa ao cumprimentar as visitas.Oscar, por sua vez, é um homem <strong>de</strong> posses e bem sucedi<strong>do</strong>, ao contrário <strong>de</strong> JoãoGue<strong>de</strong>s que não consegue emprego na cida<strong>de</strong>, pois só sabe trabalhar em serviços campesinose não está prepara<strong>do</strong> para as exigências da vida citadina. Para fugir da miséria em que vivebebe no boliche <strong>do</strong> Capitão Fagun<strong>de</strong>s.Fagun<strong>de</strong>s é um ex-subinten<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um distrito <strong>de</strong> Boa Ventura, trabalhou como políciarural durante anos, on<strong>de</strong> abusou <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r por motivos políticos, e usou da força bruta pormotivos banais, foi agressivo e cometeu diversos crimes. Cansa<strong>do</strong> da vida <strong>de</strong> polícia rural, elerecebe promessas <strong>de</strong> aposenta<strong>do</strong>ria e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> aban<strong>do</strong>nar o campo, ir para a cida<strong>de</strong> com amulher Fausta e os filhos para abrir uma venda on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse trabalhar em seus dias <strong>de</strong>aposenta<strong>do</strong>. As lembranças e remorsos das cruelda<strong>de</strong>s praticadas como polícia, porém, olevam à loucura.Gue<strong>de</strong>s bebe to<strong>do</strong>s os dias no boliche <strong>de</strong> Fagun<strong>de</strong>s, acompanha<strong>do</strong> <strong>de</strong> Queve<strong>do</strong> e JoãoBiga. To<strong>do</strong>s se encontram na mesma situação <strong>de</strong> miséria e reúnem-se para trocar lembranças<strong>do</strong>s tempos <strong>de</strong> “dantes” e embriagar as tristezas da vida atual. O tempo passa e Gue<strong>de</strong>s nãoconsegue emprego. Maria José resolve costurar, para manter a casa com o pouco que ganha.A família passa por necessida<strong>de</strong>s e Gue<strong>de</strong>s apela para a última alternativa <strong>de</strong> sustento da casa:roubar ovelhas <strong>de</strong> Júlio Bica, aproveitar a carne para consumo e ven<strong>de</strong>r o pelego. Maria Josésabe <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem o dinheiro <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, mas não tem coragem <strong>de</strong> impedi-lo, está <strong>de</strong>sesperada,pois vê os filhos com fome.


95Certo dia Gue<strong>de</strong>s é preso em flagrante. Maria José busca o apoio <strong>de</strong> Querubina porquesente-se culpada pela situação. A prima reluta para não envolver-se no caso, mas, por fim,resolve ajudá-la, para isso conta com o namora<strong>do</strong> <strong>de</strong> Maria Inês, Hélio Bica, filho <strong>de</strong> JúlioBica. Recém forma<strong>do</strong> em Direito, Hélio ainda não exerce a profissão, Querubina vê nessasituação a possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> jovem ingressar no mun<strong>do</strong> profissional e ainda adquirir um gran<strong>de</strong>prestígio, pois, “Um moço rico, jovem advoga<strong>do</strong>, baten<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>sinteressadamente por ummiserável que roubara <strong>de</strong> seu próprio pai para matar a fome <strong>do</strong>s filhinhos!” (1993, p 81)parecia-lhe uma i<strong>de</strong>ia esplêndida e que a colocaria numa posição superior em relação à prima.Mas, o jovem não aceita a proposta porque é filho <strong>de</strong> Júlio Bica e não quer ficar contra aclasse <strong>do</strong>s fazen<strong>de</strong>iros, também está esperan<strong>do</strong> uma nomeação para promotor ou juizmunicipal.João Gue<strong>de</strong>s é con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> a três meses <strong>de</strong> prisão e adapta-se à vida na ca<strong>de</strong>ia por nãoconsi<strong>de</strong>rar uma das piores. Ao ser solto encontra a família com uma alegria acanhada emedrosa. Ele agora está hesitante e angustia<strong>do</strong>, sente que sai <strong>de</strong> uma prisão para outra pior epor isso não <strong>de</strong>monstra alegria em se ver livre, pelo contrário, <strong>de</strong>seja não ter saí<strong>do</strong> dapenitenciária:Homem sem exaltação, sem rebeldia, sem rancor, mas bastante sincero para nãoenfrentar a realida<strong>de</strong> com cinismo, obstinava-se na idéia da pobreza irremediável,pensan<strong>do</strong> unicamente nisto: não tinha nem on<strong>de</strong> cair morto! Não haveria meio <strong>de</strong>voltar pra lá, pra ca<strong>de</strong>ia? (1993, p. 90)Ao fitar a magreza <strong>do</strong>s filhos e o rosto sofri<strong>do</strong> <strong>de</strong> Maria José, ao ver os filhos com fomee quase a morrer por falta <strong>de</strong> recursos financeiros, ele <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r seus apetrechoscampeiros, primeiro o cavalo e <strong>de</strong>pois os arreios para não ven<strong>de</strong>r a máquina <strong>de</strong> costura daesposa. Assim, Gue<strong>de</strong>s corta <strong>de</strong> uma vez seu vínculo com o campo e a vida passada. Apósalguns dias é encontra<strong>do</strong> morto com um tiro na cabeça perto <strong>de</strong> uma sanga próxima da cida<strong>de</strong>.Maria José, esposa <strong>de</strong> João Gue<strong>de</strong>s, é ativa. A obra apresenta-a como uma mulhertrabalha<strong>de</strong>ira. De manhã, enquanto senta para matear com o mari<strong>do</strong>, ela vai dan<strong>do</strong> or<strong>de</strong>ns aosfilhos e acompanha o andamento das ativida<strong>de</strong>s com olhos vigilantes, enquanto Gue<strong>de</strong>smateia <strong>de</strong> cabeça baixa e pensativo. Sempre viveu na cida<strong>de</strong>, mas muda-se para o campoquan<strong>do</strong> se apaixona por João Gue<strong>de</strong>s, um peão <strong>de</strong> estância. Ela aceita se casar com o moçomesmo saben<strong>do</strong> que esse não po<strong>de</strong>rá lhe dar uma vida estável financeiramente, o que nos leva


96a acreditar que se casou por amor, diferentemente da gran<strong>de</strong> maioria das mulheres danarrativa.Quan<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong> recebe a visita <strong>de</strong> Júlio Bica ela e os filhos se recolhem, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> oshomens conversarem sozinhos. Após a conversa ela pergunta a Gue<strong>de</strong>s o que o fazen<strong>de</strong>iroquer e ao saber que <strong>de</strong>vem ir embora ela explo<strong>de</strong>, expressa a raiva que sente com relação àclasse <strong>do</strong>s fazen<strong>de</strong>iros: “Gananciosos, quanto mais têm, mais querem!” (1993, p. 22)Ao mudar-se para a cida<strong>de</strong>, Maria José, agora acolhida na casa da prima, vivencia adiferença social e cultural entre as duas famílias, o que a leva a <strong>de</strong>sejar uma vida diferente. O<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> subir na condição social torna-a soberba e a faz esquecer da vida mo<strong>de</strong>sta que omari<strong>do</strong> lhe proporciona: “O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> subir um ou, se possível, vários <strong>de</strong>graus <strong>de</strong> condiçãosocial, o conforto e a fartura que se gozava naquela casa ampla, fizeram-na esquecer a suahumilda<strong>de</strong> e os precários recursos <strong>de</strong> que dispunha.” (1993, p. 50)Com o pouco dinheiro que possui, Gue<strong>de</strong>s aluga uma pequena casa, retirada <strong>do</strong> centro,em um bairro simples <strong>de</strong> Boa Ventura. Maria José não gosta da casa nem <strong>do</strong> local e exige queo proprietário troque as tábuas <strong>do</strong> assoalho, <strong>do</strong> forro e os vidros quebra<strong>do</strong>s. Essa sua atitu<strong>de</strong>lhe ren<strong>de</strong> um elogio <strong>de</strong> Querubina: “Tu ainda és a mesma, Maria José!” (1993,p.51). Aoreceber esse comentário da prima, enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-o como um estímulo, ela faz o mari<strong>do</strong> comprarum novo fogão <strong>de</strong> ferro, uma máquina <strong>de</strong> costurar também nova e cortinas para as portasprincipais da casa.Apesar <strong>de</strong> estar consciente <strong>do</strong> pouco dinheiro que possuem e das condições humil<strong>de</strong>sem que vivem, Maria José não sabe se <strong>de</strong>ve ou não matricular as meninas em um agência <strong>de</strong>corte e costura. Querubina comenta, diante da dúvida da prima, sobre a importância dasmulheres saberem costurar, bordar e coser para o futuro casamento. A prima ainda enfatizaque esses pequenos afazeres auxiliam muito as moças pobres, que po<strong>de</strong>m ajudar com seusserviços, no sustento da família. Maria José gosta da opinião da prima por coincidir com asua, mas a palavra “pobre” utilizada por Querubina, lhe causa certo <strong>de</strong>sconforto: “Maria Josépor um la<strong>do</strong> ficou satisfeita, porque a opinião da prima, uma senhora tão sensata, coincidiaexatamente com a sua, porém, por outro, <strong>do</strong>era-lhe aquele ‘pobre’, que caiu como umagotinha ácida na sua ferida.” (1993, p. 51)


97Aos poucos Maria José percebe a falta <strong>de</strong> interesse da prima em auxiliá-la e começa atrabalhar porque nota que a vida está cada vez mais difícil. Gue<strong>de</strong>s vê a mulher emagrecer, orosto murchar com expressões <strong>de</strong> rancor e <strong>de</strong>sesperança, por isso <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> roubar para sustentarsua família e sobreviver na cida<strong>de</strong>. Maria José sabe a maneira como o mari<strong>do</strong> conseguealguns troca<strong>do</strong>s e silencia, não tem forças para reagir contra essa atitu<strong>de</strong>, está fraca e cansadada vida que leva.Quan<strong>do</strong> a filha mais velha, Isabel, também cansada da miséria em que vive, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sair<strong>de</strong> casa e ir morar com o namora<strong>do</strong>, Maria José se opõe, pe<strong>de</strong>, suplica choran<strong>do</strong> para que nãová. A jovem persiste em sua i<strong>de</strong>ia e as duas mulheres lutam. Isabel <strong>de</strong>rruba a mãe e sai <strong>de</strong> casa<strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>-a caída em um canto a chorar. Para a mãe aquela atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sonra a família que erapobre, mas honrada, até que não fossem <strong>de</strong>scobertos os furtos <strong>de</strong> Gue<strong>de</strong>s. Como vê a<strong>de</strong>gradação financeira e moral <strong>de</strong> sua família, Maria José começa a reconhecer seus erros:“Ela também tinha os seus erros, reconhecia. Sempre fora uma boba, uma ridícula, compretensões a coisas que não estava ao seu alcance.” (1993, p. 65)Maria José <strong>final</strong>mente cai em si quan<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong> é preso. Ela recorre à Querubina, poisimagina que é a única pessoa a po<strong>de</strong>r ajudá-la e, pela primeira vez, comenta sobre suasatitu<strong>de</strong>s e afirma seus erros:E o pior é que fui eu a culpada! Eu é que <strong>de</strong>via <strong>de</strong> estar lá on<strong>de</strong> o coita<strong>do</strong> está! Sabia<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> e não me importava. Até encorajei o pobre pra essa coisa horrível! Nocomeço sentia vergonha e me<strong>do</strong> que nos <strong>de</strong>scobrissem. Mas <strong>de</strong>pois fui meacostuman<strong>do</strong>. E não era só por costume que eu não dizia nada, não era, te juro. Eratambém porque via aqueles inocentes com fome, esfarrapa<strong>do</strong>s, quase a ponto <strong>de</strong>saírem a pedir esmolas pelas ruas! Que suplício, meu Deus! Que ingratidão! (1993,p. 79)Sem o auxílio da prima, Maria José espera o mari<strong>do</strong> sair da ca<strong>de</strong>ia enquanto costura. Elaagora está seca, esverdinhada, suan<strong>do</strong> <strong>de</strong> noite e com tosse. Durante seus serviços ela pensa:“Esta máquina é o meu mari<strong>do</strong>.” (1993, p. 94), mas com a morte <strong>de</strong> uma das filhas portuberculose a freguesia se ausenta e ela não consegue dinheiro nem para comprar leite, razãopela qual aceita um litro que Querubina lhe manda diariamente.Após a morte <strong>de</strong> Gue<strong>de</strong>s, Maria José segue na luta pela sobrevivência sua e <strong>de</strong> seusfilhos. Querubina penaliza-se ao ver tanto sofrimento, e sente que <strong>de</strong>ve ajudá-la, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> tirar a


98prima daquele casebre horrível, comprar-lhe uma casinha e auxiliá-la to<strong>do</strong> mês, porém, MariaJosé prefere ficar on<strong>de</strong> está e seguir sua luta sozinha, porque não acredita mais na bonda<strong>de</strong> daprima.Maria José é uma mulher diferente das já estudadas. Ela é ativa e expressa o que sente.Enquanto mora no interior, não passa necessida<strong>de</strong>s e o mari<strong>do</strong> tem forças, ela retira-se e nãoouve a conversa <strong>do</strong>s homens, mas quan<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência começa e ela percebe o<strong>de</strong>samparo <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, começa a impor suas vonta<strong>de</strong>s e toma a frente da situação. Mas,mesmo com essa força <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> ela segue as normas <strong>de</strong> boa conduta da socieda<strong>de</strong>, por issoluta com a filha que <strong>de</strong>seja aban<strong>do</strong>nar a casa e morar com o namora<strong>do</strong> chaman<strong>do</strong>-a <strong>de</strong> “ca<strong>de</strong>laesquentada” (1993, p. 65)Essas atitu<strong>de</strong>s da personagem nos levam a enten<strong>de</strong>r que Maria José torna-se diferente<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à situação <strong>de</strong> miséria em que vive. Ela fala e dá or<strong>de</strong>ns porque vê que o mari<strong>do</strong> está<strong>de</strong>smotiva<strong>do</strong> e não reage, não tem ânimo para tentar uma vida melhor. O mesmo motivo aleva a costurar e adquirir seu próprio dinheiro com negócio próprio. Ela age <strong>de</strong> maneiradiferente das <strong>de</strong>mais personagens femininas por causa da situação miserável em que seencontra, <strong>de</strong>ssa maneira, ela luta para sobreviver e ao mesmo tempo incentiva e quebra certospadrões que viam a mulher como uma serviçal <strong>do</strong> lar.Outro casal que merece <strong>de</strong>staque em Porteira fechada é Querubina e Oscar. Esse casalvive na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boa Ventura e possuem um nível social bem diferente <strong>de</strong> Maria José eGue<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que as mulheres da cida<strong>de</strong> que conheceram as duas primas quan<strong>do</strong> moças esolteiras comentam: “Vejam só o que é o <strong>de</strong>stino. Hoje, a Querubina é uma senhora rica, <strong>de</strong>posição, da primeira socieda<strong>de</strong>, e a outra, a coitada da Maria José, vive atirada, casada comum peão <strong>de</strong> estância...” (1993, p. 43)Oscar trabalha numa repartição e to<strong>do</strong> o dia vai ao clube da cida<strong>de</strong> jogar e distrai-secom os amigos. É um homem que ganha bem e possui certo prestígio na cida<strong>de</strong>, é leitor epertence à camada social mais alta <strong>de</strong> Boa Ventura. Sua esposa vive em uma casa espaçosa,bonita e florida. Possui serviçais para a realização <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico. Em muitosmomentos ela <strong>do</strong>mina o mari<strong>do</strong>, fala-lhe com energia e <strong>de</strong> cabeça erguida, a fitar-lhe os olhoscom <strong>de</strong>terminação, o mari<strong>do</strong>, por sua vez, respon<strong>de</strong> frouxamente. O casal leva uma vidatranqüila, Querubina senta-se em sua ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> embalo, acaricia Sultão, seu gato <strong>de</strong> luxo, e lê


99revistas <strong>de</strong> moda, enquanto Oscar recosta-se para ler o jornal. Eles têm uma vidaaparentemente calma, <strong>de</strong>spreocupada e requintada.Ao receber Maria José, Querubina procura <strong>de</strong>monstrar o mais rápi<strong>do</strong> possível adiferença <strong>de</strong> nível social entre as duas famílias, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que recebe a prima vestin<strong>do</strong> umquimono <strong>de</strong> seda azul-claro, conversa com a filha, Maria Inês, sobre os trabalhos sociais quepresta, dá or<strong>de</strong>ns aos emprega<strong>do</strong>s e elogia o mari<strong>do</strong>: “O Oscar é tão bom, Maria José!” (1993,p.48)Maria Inês chega em casa com a fisionomia alegre e atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sembaraçadas. Aocumprimentar as primas, a jovem distribui beijos entre risos e ditos graciosos. A mãe apreciao <strong>de</strong>slumbramento que ela causa em Maria José e suas filhas, que permanecem acanhadas eassustadas. Após sua chegada, Querubina e a filha iniciam um diálogo on<strong>de</strong> excluem asrecém-chegadas: “As recém-chegadas ficaram <strong>de</strong> la<strong>do</strong>, como meras especta<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> diálogoentre mãe e filha. E era justamente isso que a repousada senhora queria, para <strong>de</strong>ixar bemnítida <strong>de</strong> início a diferença <strong>de</strong> nível social existente entre as duas famílias.” (1993, p. 48)Somente com a morte <strong>de</strong> Gue<strong>de</strong>s e o aban<strong>do</strong>no miserável em que se encontram MariaJosé e os filhos, Querubina lembra <strong>de</strong> comprar uma casa e auxiliar a prima. Sente-se com aobrigação <strong>de</strong> ajudar uma parenta pobre, <strong>de</strong>samparada e viúva, mas Maria José recusa suaajuda. Querubina, então, tem a sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>ver cumpri<strong>do</strong> e ao <strong>de</strong>ixar sua prima no casebreon<strong>de</strong> vive, após o enterro <strong>de</strong> Gue<strong>de</strong>s, vai à modista para ver o andamento das costuras <strong>do</strong>casamento <strong>de</strong> Maria Inês.Dessa maneira, Querubina e Maria Inês representam a mulher da classe social rica. Sãocitadinas, tem acesso à leitura e à escrita. Querubina, como a gran<strong>de</strong> maioria das mulheres daépoca, exerce seu papel <strong>de</strong> esposa dan<strong>do</strong> or<strong>de</strong>ns aos emprega<strong>do</strong>s e averiguan<strong>do</strong> seus serviços,além <strong>de</strong> cuidar <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e da filha. Ambas, mãe e filha são fúteis e ambiciosas.A diferença na educação que Maria Inês recebe expressa uma mudança social no papelda mulher, por isso a jovem tem liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sair a sós com o namora<strong>do</strong> à noitinha. Isso é umreflexo das mudanças que começavam a ocorrer no papel social <strong>de</strong> cada sexo e que davam-sevagarosamente. Querubina expressa seus <strong>de</strong>sejos, dá or<strong>de</strong>ns, mas continua exercen<strong>do</strong>ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>mésticas, seu mun<strong>do</strong> ainda é o lar.


100No <strong>de</strong>correr da trama são apresenta<strong>do</strong>s Fausta e Fagun<strong>de</strong>s. Fagun<strong>de</strong>s é ex-policial rurale veio para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boa Ventura há <strong>do</strong>is anos com a ilusória promessa <strong>de</strong> aposenta<strong>do</strong>riaque o coronel Ramiro lhe propôs para tirá-lo <strong>do</strong> cargo e colocar um partidário mais jovem eparticipante nas eleições, mais ativo no parti<strong>do</strong>.Enquanto espera a aposenta<strong>do</strong>ria prometida ele abre um boliche e passa as tar<strong>de</strong>s<strong>de</strong>bruça<strong>do</strong> no balcão a aten<strong>de</strong>r seus poucos fregueses, a cumprimentar quem passa na rua emfrente e a pensar nas <strong>de</strong>sgraças <strong>de</strong> sua vida e nos crimes terríveis que cometeu na época <strong>de</strong>polícia em favor <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> e que agora lhe tiram o sono:Reminiscências turbulentas avivaram-se na memória <strong>do</strong> capitão. Descomposturas,sovas <strong>de</strong> relho, estaqueamentos, talhos, homens ensangüenta<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>tonações <strong>de</strong>revólver! Fez um gran<strong>de</strong> esforço para readquirir o <strong>do</strong>mínio das idéias, conseguin<strong>do</strong>que as representações terrificantes <strong>de</strong>bandassem como morcegos espalha<strong>do</strong>s pelovento. Gozou uns instantes <strong>de</strong> repouso e aos poucos submergiu num sono profun<strong>do</strong>.(1993, p. 58)Fausta, por sua vez, veio para a cida<strong>de</strong> na expectativa <strong>de</strong> melhorar <strong>de</strong> vida. Ela percebeque o mari<strong>do</strong> está em uma crise cada vez maior e não se conforma com a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le aocoronel Ramiro: “Se tu ainda votá nessa gente, tu é um sem-vergonha.” (1993, p. 58). Duranteas brigas mais prolongadas ele se encerra no boliche, mas continua a ouvir as reclamações damulher através da pare<strong>de</strong>. Em algumas discussões chegam quase a uma agressão física.Fagun<strong>de</strong>s pensa em tomar essa atitu<strong>de</strong>: “Ela andava era apetecen<strong>do</strong> outra sova, como aquela<strong>de</strong> <strong>do</strong>is anos atrás, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar o lombo brasino, em ponto <strong>de</strong> salga.” (1993, p. 13)Ela, no entanto, o enfrenta sem me<strong>do</strong>. Há <strong>do</strong>is anos ele po<strong>de</strong>ria lhe bater, pois nãosofreria nenhuma pena por isso, já que era a maior autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> distrito on<strong>de</strong> viviam, masagora, que não possuía mais o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia e o apoio <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> ela o ameaça com aprisão: “Me toca com um <strong>de</strong><strong>do</strong>, cachorro, que te <strong>de</strong>nuncio! Pensa que eu não tenho coragem<strong>de</strong> aguentá solita o resto da vida? Eu ainda tenho força, não estou cozida pela cachaça comotu.” (1993, p. 13)Ao lhe servir a comida, Fausta não lhe dirige palavras, apenas <strong>de</strong>posita o prato com arefeição em sua frente, vira-lhe as costas e sai resmungan<strong>do</strong> “Este borracho” (1993, . 60),


101enquanto ele retruca “Que animal!” (1993, p. 60). O Capitão, porém, reconhece sua miséria esabe que foi iludi<strong>do</strong> com falsas promessas, por isso não tem esperanças <strong>de</strong> um futuro melhor:Naturalmente, fora vítima, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>-se iludir, não atinan<strong>do</strong> nas conseqüências más,pensan<strong>do</strong> só nas vantagens. E que vantagens tirara? O coronel sim, vira-se livre <strong>de</strong>mais um adversário perigoso. Mas ele... Bem-feito, um índio cru se meten<strong>do</strong> com osgraú<strong>do</strong>s! (1993, p 60-61)No <strong>final</strong> da história, Fagun<strong>de</strong>s recebe uma intimação da Higiene, ou coloca o bolicheem perfeitas condições, ou fecha. O capitão sabe que irá fechar e com o tempo enlouquece,por culpa <strong>do</strong>s crimes cometi<strong>do</strong>s e pela falta <strong>de</strong> perspectiva <strong>de</strong> um futuro melhor.Em Porteira fechada, encontramos uma reação feminina frente às regras machistas quepermeavam a socieda<strong>de</strong> da época. Querubina representa a mulher leitora <strong>de</strong> revistas que,mesmo que seja uma futilida<strong>de</strong>, pelo menos já tem acesso à leitura. Maria José é a mulhertrabalha<strong>do</strong>ra, que auxilia no sustento da família com o trabalho autônomo e Fausta é aimagem <strong>de</strong> uma mulher que começa a enfrentar o homem em busca <strong>de</strong> seus direitos humanos.Esse romance, <strong>de</strong>ntre os três que compõem a trilogia, é o que mostra que a mulher estáconseguin<strong>do</strong> um espaço na socieda<strong>de</strong>, recém começa a encontrar aberturas para expressari<strong>de</strong>ias e sentimentos e, muitas vezes, impõe limites ao mari<strong>do</strong>. As mulheres <strong>de</strong>ssa obra dão osprimeiros passos em um caminho que ainda está com a porteira fechada.3.2.3 A opressão e as personagens femininas <strong>de</strong> Estrada novaO terceiro romance da trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé engloba situações <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1922 até os anos<strong>de</strong> 1951 a 1954 e narra os conflitos sociais, existenciais e econômicos <strong>do</strong> homem <strong>do</strong> campo<strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. A história se passa no município fronteiriço <strong>de</strong> São João Batista e seuinterior, on<strong>de</strong> se localiza a Estância Velha, fazenda que pertence ao Coronel Teo<strong>do</strong>ro, um <strong>do</strong>sprincipais personagens da obra.A primeira personagem apresentada no romance é Ricar<strong>do</strong>, um jovem <strong>de</strong> aparênciadiscreta, que <strong>de</strong>ixa o campo para prestar o serviço militar na cida<strong>de</strong>. O rapaz vive em Porto


102Alegre e trabalha como conta<strong>do</strong>r. É filho <strong>de</strong> Janguta e Francisca que vivem no interior <strong>de</strong> SãoJoão Batista nas terras pertencentes à viúva Antônia. Na cida<strong>de</strong>, o jovem mora em umapensão e ao presenciar o suicídio <strong>do</strong> velho Policarpo, amigo e companheiro <strong>de</strong> pensão que<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> morrer por ter perdi<strong>do</strong> suas proprieda<strong>de</strong>s e ter si<strong>do</strong> obriga<strong>do</strong> a aban<strong>do</strong>nar o campo, ojovem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> visitar sua família “uma visita, na verda<strong>de</strong>, bastante forçada pelascircunstâncias” (1992, p. 14). Visita forçada porque sente a obrigação <strong>de</strong> ver como estão ospais já que a cada ano mais campesinos são obriga<strong>do</strong>s a mudarem para a cida<strong>de</strong> por não teron<strong>de</strong> morar no interior.No trem on<strong>de</strong> rumava para a casa <strong>de</strong> seus pais, Ricar<strong>do</strong> encontra seu Fábio, arrendatáriodas terras <strong>do</strong> Espinilho, gran<strong>de</strong> fazenda da região <strong>de</strong> São João Batista. Os <strong>do</strong>is começam aconversar e o jovem percebe que Fábio está encolhi<strong>do</strong>, com a voz preocupada e tristonha.Então Ricar<strong>do</strong> <strong>de</strong>scobre que a fazenda <strong>do</strong> Espinilho fora comprada por um castelhanoendinheira<strong>do</strong> e que Fábio ficara sem moradia, na verda<strong>de</strong>, estava viajan<strong>do</strong> à procura <strong>de</strong>emprego, mas sentia que sua vida terminaria nos arrabal<strong>de</strong>s <strong>de</strong> alguma cida<strong>de</strong>.Quan<strong>do</strong> chega ao seu <strong>de</strong>stino, São João Batista, Ricar<strong>do</strong> avista um rancho compri<strong>do</strong>,distante uns mil metros da estação e pergunta a um menino se ali ainda mora o seu Osório,como o garoto lhe respon<strong>de</strong> que sim, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> visitar o velho amigo que o conhece <strong>de</strong>s<strong>de</strong> guripara passar a noite e seguir seu caminho <strong>de</strong> manhã ce<strong>do</strong>.De Osório, Ricar<strong>do</strong> ouve o drama que enfrentam os pobres da campanha: “[...] não haymais pobres, porque os ricos correram com to<strong>do</strong>s que havia por aqui!” (1992, p. 34). Issoporque os fazen<strong>de</strong>iros cercavam as pequenas proprieda<strong>de</strong>s compran<strong>do</strong> terras ao re<strong>do</strong>r parapressionar, <strong>de</strong> toda forma, os minifundiários à venda das suas. Quan<strong>do</strong> isso acontecia ospequenos proprietários eram obriga<strong>do</strong>s a <strong>de</strong>ixar a fazenda. Enquanto conversam, Ricar<strong>do</strong>encanta-se pelas feições bonitas <strong>de</strong> Celeste, filha <strong>de</strong> Osório, ainda moça que vem chamá-lospara jantar.No outro dia, <strong>de</strong> manhã, Ricar<strong>do</strong> <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> seguir viagem e consegue um cavaloempresta<strong>do</strong> com o amigo. Ao avistar o rancho humil<strong>de</strong> on<strong>de</strong> vivem Janguta, Francisca e afilha Rosa, Ricar<strong>do</strong> sente sauda<strong>de</strong>s e relembra seu tempo <strong>de</strong> infância. Tu<strong>do</strong> parece estar <strong>do</strong>mesmo jeito em que estava quan<strong>do</strong> partira, tu<strong>do</strong> parece estar tranqüilo: “- Tu<strong>do</strong> no mesmo poraqui, mocito, não se arreceie <strong>de</strong> apear! – pareciam dizer-lhe a quincha arrepiada da cumeeira,


103a porta aberta e torta, o parapeito <strong>de</strong> três cordas frouxas, a cancela caída, as aves, as poucasárvores, o cusco...” (1992, p. 56)Mas quan<strong>do</strong> começa a conversar com o pai Ricar<strong>do</strong> percebe a difícil situação em que seencontram. O Coronel Teo<strong>do</strong>ro comprou as terras da viúva Antônia e está forçan<strong>do</strong> Janguta ea família a <strong>de</strong>ixar o local há seis meses, esses estão <strong>de</strong>moran<strong>do</strong> para sair porque nãoencontram lugar para viver no campo e não querem ir para a cida<strong>de</strong>,O Coronel Teo<strong>do</strong>ro é um homem culto em relação aos outros que vivem na EstânciaVelha e nos arre<strong>do</strong>res. Ele lê o jornal Correio <strong>do</strong> Povo, escuta o noticiário da rádio eseguidamente recorre ao dicionário para o entendimento <strong>de</strong> alguma palavra <strong>de</strong>sconhecida.Apesar <strong>de</strong> ser um homem bem informa<strong>do</strong> e interessa<strong>do</strong> em adquirir novos conhecimentos,possui um temperamento forte, é agressivo e autoritário em gestos e palavras.Certo dia, enquanto escuta o noticiário, ouve a notícia <strong>de</strong> que a polícia <strong>de</strong> Porto Alegrehavia <strong>de</strong>scoberto um plano organiza<strong>do</strong> pelos comunistas. Preocupa-se com seus bens, enervasee manda o negrinho Abel chamar Miguel, seu capataz, para que faça uma recorrida em seuscampos à procura <strong>de</strong> algum vestígio <strong>de</strong> pouso ou para<strong>de</strong>iro <strong>do</strong>s comunistas que, acredita,fugiram da capital. O capataz não encontrou nada. Após isso, Teo<strong>do</strong>ro manda chamar Lobo, osubprefeito <strong>do</strong> distrito para que fosse até a casa <strong>de</strong> Janguta intimá-lo e ameaçá-lo para que<strong>de</strong>socupe, o mais rápi<strong>do</strong> possível, a terra que acabou <strong>de</strong> comprar.No outro dia, Lobo e Demenciano, seu ajudante, são recebi<strong>do</strong>s por Francisca e a filha,pois Janguta e Ricar<strong>do</strong> haviam saí<strong>do</strong>. O subprefeito <strong>de</strong>ixa o reca<strong>do</strong> para a esposa, avisa que háuma queixa <strong>do</strong> Coronel e que fora até lá levar uma intimação. Como vê o rosto assusta<strong>do</strong> dasduas mulheres, Lobo resolve explicar o que está acontecen<strong>do</strong>:- Sim. O coronel Teo<strong>do</strong>ro me <strong>de</strong>u parte <strong>do</strong> seu mari<strong>do</strong>. Ele comprou este campo háseis meses e não há jeito <strong>de</strong> vocês saíres daqui. Já man<strong>do</strong>u o capataz uma meia dúzia<strong>de</strong> vezes avisar que tinham <strong>de</strong> sair e não fizeram caso. Isto é um abuso. É invasão daproprieda<strong>de</strong> alheia. É crime. E a minha obrigação, como autorida<strong>de</strong>, é fazer cumpriro que é <strong>de</strong> direito, e pouco se me importa se o acusa<strong>do</strong> é pobre ou rico.” (1992, p.79)Quan<strong>do</strong> Janguta e o filho chegam em casa e sabem o que acontecera pouco antes,conversam, trocam opiniões. O jovem, após essa conversa, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> que vai pessoalmente


104conversar com o Coronel Teo<strong>do</strong>ro, os pais se opõem a tal i<strong>de</strong>ia, temerosos. Mas Ricar<strong>do</strong> tomauma <strong>de</strong>cisão e, mesmo contra os pais, dirige-se à Estância Velha no outro dia para falar comTeo<strong>do</strong>ro.Ao chegar à fazenda, Ricar<strong>do</strong> é recebi<strong>do</strong> com certa reserva pelo Coronel, que estranha ocostume <strong>do</strong> jovem usar calças e sapatos. Durante a conversa, Ricar<strong>do</strong> fala da miséria em quevivem os trabalha<strong>do</strong>res da campanha e faz uma comparação com a vida confortável quelevam os fazen<strong>de</strong>iros, comenta sobre a difícil situação em que se encontram seus pais e pe<strong>de</strong>para que permaneçam na fazenda, como emprega<strong>do</strong>s. O Coronel toma por <strong>de</strong>saforo essas“intromissões” <strong>do</strong> rapaz, exalta-se e o chama <strong>de</strong> comunista.Enquanto retorna para a casa <strong>do</strong>s pais, Ricar<strong>do</strong> fuma e joga o cigarro fora, o queocasiona um incêndio nas pastagens <strong>do</strong> Coronel. Isso basta para que Teo<strong>do</strong>ro tenha certeza <strong>de</strong>que o jovem realmente é um comunista, e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ligar, no dia seguinte, para o Dr. Serafim,representante político <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r estadual e advoga<strong>do</strong> <strong>do</strong> município, com a intenção <strong>de</strong> pedirapoio <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> na incriminação <strong>de</strong> Ricar<strong>do</strong>.Dr. Serafim, ao perceber o nervosismo e me<strong>do</strong> <strong>de</strong> Teo<strong>do</strong>ro, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> tirar proveito dainsegurança <strong>do</strong> fazen<strong>de</strong>iro para arrecadar algum dinheiro para os cofres <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Apósreceber a ligação <strong>do</strong> Coronel, Dr. Serafim <strong>de</strong>ixa o escritório e dirige-se ao quarto <strong>do</strong> casalon<strong>de</strong> se veste elegantemente e perfuma-se para o encontro com a amante Lolita após o jantar.Encontra sua mulher, D. Alcina, e mais seis senhoras <strong>de</strong>votas a organizar os aposentos on<strong>de</strong> obispo irá permanecer em sua visita a São João Batista, faz alguns elogios à atitu<strong>de</strong> dassenhoras e dirige-se à sala <strong>de</strong> jantar. Enquanto isso, Cabral, auxiliar <strong>de</strong> Serafim, procura o<strong>de</strong>lega<strong>do</strong> Alarico para informar da invasão comunista na Estância Velha com a intenção <strong>de</strong>pedir auxílio e homens para a proteção <strong>do</strong> local.Os planos <strong>de</strong> Serafim dão certo. Em sua visita ao Coronel consegue quinhentoscruzeiros para os cofres <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Alarico resolve ir pessoalmente à fazenda e vai, emcompanhia <strong>de</strong> Lobo, atrás <strong>de</strong> Ricar<strong>do</strong> para prendê-lo pelo crime, mas o jovem fora embora.Desse mo<strong>do</strong>, resolvem pren<strong>de</strong>r a família <strong>do</strong> rapaz. Janguta, Francisca e Rosa são leva<strong>do</strong>sprisioneiros à fazenda, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> soltos rumam para a cida<strong>de</strong>, a pé, com a esperança <strong>de</strong> um diaa vida melhorar. Enquanto caminha, Janguta se pergunta quan<strong>do</strong> virão os homens <strong>de</strong> queRicar<strong>do</strong> falara com tanta esperança, os homens que “[...] um dia viriam pela ‘estrada nova’, a


105galope, alvisseiros, cortan<strong>do</strong> os campos ver<strong>de</strong>s, acordan<strong>do</strong> os pagos, anuncian<strong>do</strong> uma fartura<strong>de</strong> verão chuvoso, enriquecen<strong>do</strong> <strong>de</strong> alegria o coração <strong>do</strong>s pobres!” (1992, p. 191)To<strong>do</strong>s esses acontecimentos fazem com que Teo<strong>do</strong>ro comesse a refletir sobre a vida queleva. Quan<strong>do</strong> Ricar<strong>do</strong> o enfrenta em igualda<strong>de</strong> ele percebe que os tempos estão mudan<strong>do</strong>,sente-se velho e fraco diante das circunstâncias. Deci<strong>de</strong> ir embora para a cida<strong>de</strong> e não temcoragem <strong>de</strong> entregar a fazenda para os filhos administrarem porque, conhecen<strong>do</strong>-os bem, sabeque logo irão botar tu<strong>do</strong> fora, então, resolve vir <strong>de</strong> vez em quan<strong>do</strong> dar uma olhada nas coisascomo vão.A partir <strong>de</strong>sses pensamentos, Coronel Teo<strong>do</strong>ro percebe que sua autorida<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s essesanos não valeu <strong>de</strong> nada, que to<strong>do</strong> seu trabalho não adiantou, e começa a valorizar as pessoasque lhe serviram a vida inteira como o capataz, a quem pensa em <strong>de</strong>ixar um pedaço <strong>de</strong> campo,mas não se anima porque sabe que os filhos tomarão quan<strong>do</strong> ele vier a falecer. Agra<strong>de</strong>ce<strong>de</strong>licadamente o copo <strong>de</strong> água que Anastácia lhe serve, o que causa espanto na criada,também preocupa-se com Almerinda, em como contar para ela que irão para a cida<strong>de</strong>, poissabe que ela gosta <strong>de</strong> viver no campo.O Coronel Teo<strong>do</strong>ro, ao saber que Janguta e a família foram presos se dá conta <strong>de</strong>tamanha injustiça que está a cometer com aquela pobre gente que não tem on<strong>de</strong> morar.Or<strong>de</strong>na que sejam soltos, mas quan<strong>do</strong> fica saben<strong>do</strong> eles já haviam parti<strong>do</strong>. Teo<strong>do</strong>ro, então seentrega às mudanças <strong>do</strong>s tempos, senta na sua ca<strong>de</strong>ira e acaricia lacrimoso o gato manhosoque lhe pulou no colo, a divagar com seus pensamentos, sentin<strong>do</strong> sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um tempo que,recém percebera, não existe mais.Ricar<strong>do</strong>, por sua vez, não toma o rumo <strong>de</strong> Porto Alegre como imagina a polícia. Ele vaia São João Batista para encontrar Celeste e noivar com a moça. Ao chegar à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>para-secom a homenagem ao bispo que acontecia, mas quem discursava sobre os gran<strong>de</strong>sacontecimentos da Estância Velha era Dr. Serafim, que aproveitara o alvoroço para adquirirprestígio para o parti<strong>do</strong> e afirmar que tu<strong>do</strong> estava sob controle, que os comunistas estavampresos e a vida voltaria ao normal. Com essa atitu<strong>de</strong>, ele foi proclama<strong>do</strong> o herói <strong>do</strong> dia.Ricar<strong>do</strong> limita-se a ouvir as mentiras contadas pelo advoga<strong>do</strong> e <strong>de</strong>pois segue seu rumo.


106D. Almerinda e Teo<strong>do</strong>ro constituem o principal casal da história. Teo<strong>do</strong>ro casa-se comAlmerinda, mulher trintona e consi<strong>de</strong>rada passada, por interesse, já que ela é irmã <strong>do</strong> CoronelJanuário, para quem trabalha como peão durante anos. Ele é um homem que utiliza palavrassecas e rígidas, também é extremamente machista. Fala a to<strong>do</strong>s com ru<strong>de</strong>za, firmeza no olhar,<strong>de</strong> cara fechada, certo <strong>de</strong> sua soberania. Apesar <strong>de</strong> ter atitu<strong>de</strong>s brutas ele busca conhecimento,faz cálculos, lê jornal e mantém-se atualiza<strong>do</strong>, admite as intervenções da tecnologia, instalaluz elétrica e telefone na Estância, além <strong>de</strong> fazer melhorias como o banheiro, construí<strong>do</strong> apouco.Seu po<strong>de</strong>r é total na região e to<strong>do</strong>s lhe dirigem a palavra <strong>de</strong> cabeça baixa, sem fitar-lheos olhos, por isso atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ricar<strong>do</strong> o enraivece. Como não consegue <strong>de</strong>scontar sua raiva nojovem, que parece indiferente ao seu rompante <strong>de</strong> ira, <strong>de</strong>sconta nas mulheres da casa quan<strong>do</strong>as vê.Quan<strong>do</strong> ocorre o incêndio em suas terras resolve chamar o Dr. Serafim para ajudá-lo,mas, por ser <strong>de</strong>sconfia<strong>do</strong>, percebe as segundas intenções <strong>do</strong> advoga<strong>do</strong>: “[...] cruzou ao mesmotempo, a galope, um pensamento <strong>de</strong>sconcertante: este alarife está mas é queren<strong>do</strong> meembromar!” (1992, p. 163), mas ce<strong>de</strong> as investidas e dá quinhentos cruzeiros ao parti<strong>do</strong> paracertificar-se que seria atendi<strong>do</strong> em seu pedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r Ricar<strong>do</strong>, como isso não acontece,fica, pela primeira vez, enfastia<strong>do</strong> da vida e <strong>do</strong>s homens, percebe que não possui tanto po<strong>de</strong>rcomo imagina e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ir embora <strong>do</strong> campo.D. Almerinda leva uma vida rotineira. Passa seus dias a cozinhar, arrumar a casa e daror<strong>de</strong>ns as suas empregadas Anastácia e Amélia. Ela não tem a quem se queixar <strong>de</strong> seusproblemas, o mari<strong>do</strong> não a escuta:A patroa retroce<strong>de</strong>u sem jeito, apertan<strong>do</strong> os cantos da boca. Ia dizer ao Teo<strong>do</strong>ro quenão agüentaria mais aquela situação um dia sequer! Que china malcriada! Quantomais velha, pior. Já estaria caducan<strong>do</strong>? Ia dizer... Ia dizer o quê? Pra quem? (1992,p. 68)Dessa maneira, ela não reclama das <strong>do</strong>res reumáticas que sente, vive encolhida emiudinha, <strong>de</strong> óculos, a fazer crochê. De manhã sempre usa um xale <strong>de</strong> lã sobre os ombrospara proteger suas costas da aragem, o que lhe dá um aspecto <strong>de</strong> velhice, aparenta ser maisi<strong>do</strong>sa <strong>do</strong> que realmente é. Quan<strong>do</strong> percebe que Teo<strong>do</strong>ro está irrita<strong>do</strong> fica ainda mais submissa,


107não lhe faz perguntas e reza pela alma pagã <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Todas as suas frustrações são<strong>de</strong>scontadas nas orações. Qualquer motivo basta-lhe para que vá silenciosamente, assustada etrêmula, rezar aos pés <strong>de</strong> <strong>Santa</strong> Catarina, sua santa <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção. Essas atitu<strong>de</strong>s são vistas como“fraquezas <strong>de</strong> mulher” (1992, p. 115) pelo mari<strong>do</strong>. Essa submissão também ocorre durante asrefeições. Nesses momentos ela espera pacientemente que Teo<strong>do</strong>ro sirva a comida primeiro epermanece calada e cabisbaixa até que ele termine <strong>de</strong> se alimentar.D. Almerinda é uma prisioneira em seu próprio lar. Não fala o que pensa por me<strong>do</strong> dasatitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, aten<strong>de</strong> as or<strong>de</strong>ns que ele lhe dá com passos ligeiros e <strong>de</strong>sliza pela casasem fazer o menor ruí<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> percebe que ele está nervoso, pois, tem por obrigaçãogarantir-lhe um ambiente <strong>de</strong> paz e tranqüilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa. Dessa maneira, vive triste esolitária. Dentre todas as personagens femininas até aqui estudadas ela é a que mais seaproxima, em seus gestos e atitu<strong>de</strong>s, <strong>do</strong> sofrimento e da repressão enfrenta<strong>do</strong>s pela mulhergaúcha da época em uma socieda<strong>de</strong> machista e autoritária.Também fazem parte <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> da obra o casal Janguta e Francisca. Eles vivem há anosno interior <strong>de</strong> São João Batista. Janguta está velho e sente-se fraco, não tem coragem <strong>de</strong>enfrentar os man<strong>do</strong>nismos <strong>do</strong> Coronel Teo<strong>do</strong>ro. Francisca e Rosa passam seus dias a cuidar<strong>do</strong> rancho e das poucas coisas que tem <strong>de</strong>ntro.Quan<strong>do</strong> recebem a visita <strong>de</strong> Lobo, para entregar a intimação, convidam-no para entrarna pequena peça on<strong>de</strong> há somente <strong>de</strong> mobília uma mesa <strong>de</strong> tábua <strong>de</strong> caixão, duas ca<strong>de</strong>irasbrancas, uma com a perna quebrada e, crava<strong>do</strong> no esteio, uma folhinha <strong>de</strong> santo. Nessemomento Francisca não compreen<strong>de</strong> o significa<strong>do</strong> da palavra “intimação”, mas suspeita quenão se trate <strong>de</strong> boa coisa pela entonação com que foi pronunciada. Isso <strong>de</strong>monstra que ela nãotem muito conhecimento <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>, pois vive isolada e em situação miserável naquele fun<strong>do</strong><strong>de</strong> campo. Essa mulher sente-se in<strong>de</strong>fesa e <strong>de</strong>samparada diante da situação em que seencontram e não se imagina moran<strong>do</strong> na cida<strong>de</strong>, está <strong>de</strong>snorteada.Ricar<strong>do</strong> é que dá um pouco <strong>de</strong> esperança à sua família, amenizan<strong>do</strong>, a situação comnovos pensamentos, pois tem um maior conhecimento <strong>do</strong> assunto, além <strong>de</strong> manter-seinforma<strong>do</strong> e com novos pensamentos em relação ao assunto. Enquanto o filho e Jangutaconversam, Francisca permanece quieta, ouvin<strong>do</strong> atenciosamente, mas não participa <strong>do</strong>assunto. Rosa, por sua vez, pouco compreen<strong>de</strong> o que o irmão fala, recosta-se na pare<strong>de</strong> e olha


108encantada, embevecida para os argumentos e expressões <strong>de</strong> Ricar<strong>do</strong>. Essa atitu<strong>de</strong> revela aaflição e a preocupação em que se encontram as duas.Francisca revolta-se com a situação, em seu íntimo sente vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gritar a Lobo e seuajudante “[...] excomunga<strong>do</strong>s!” (1992, p. 91), e em pensamento chama o Coronel Teo<strong>do</strong>ro eseus ajudantes <strong>de</strong> homens ruins, <strong>de</strong>sgraça<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>scara<strong>do</strong>s, porém, limita-se a suspirar, nãotem coragem sequer <strong>de</strong> esbravejar em voz alta, resigna-se e cala.A única saída que a família encontra é ir embora <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vivem. No <strong>final</strong> <strong>do</strong> romance,Janguta, Francisca e Rosa vão embora <strong>do</strong> campo, a pé, para a cida<strong>de</strong>, o lugar que Franciscatem me<strong>do</strong> <strong>de</strong> morar porque acredita que lá morrerão ligeiro. Seu sonho <strong>de</strong> morrer ali, no lugaron<strong>de</strong> sempre morara, termina naquele instante. Parte <strong>de</strong>siludida.A diferença <strong>de</strong> Francisca e Rosa <strong>de</strong> D. Almerinda é somente o nível social, pois nafazenda, D. Almerinda tem à disposição tecnologias e conforto enquanto Rosa e Franciscanão têm essas mor<strong>do</strong>mias. Mesmo viven<strong>do</strong> com recursos diferentes, elas sofrem da mesmamaneira. São três mulheres que não falam, não participam das <strong>de</strong>cisões e vivem em seumun<strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico, cuidan<strong>do</strong> da casa e <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, sempre angustiadas e nervosas.In<strong>do</strong> para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João Batista encontramos outro casal: Dr. Serafim e D.Alcina. Dr. Serafim é advoga<strong>do</strong>, chefe político situacionista que possui gran<strong>de</strong> prestígio juntoao governo estadual. Quan<strong>do</strong> recebe o telefonema <strong>do</strong> Coronel Teo<strong>do</strong>ro, ele preocupa-se emespalhar a notícia da invasão <strong>do</strong>s comunistas com a intenção <strong>de</strong> tirar proveito da situação paraadquirir dinheiro aos cofres <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Bastante exagera<strong>do</strong> e vai<strong>do</strong>so, Serafim gosta <strong>de</strong>ostentar seu po<strong>de</strong>r e costuma gabar-se <strong>de</strong> suas conquistas, a atual é Lolita, viuvinha discreta e<strong>do</strong> mesmo parti<strong>do</strong>. Exalta-se <strong>de</strong> sua habilida<strong>de</strong> em enganar a mulher todas as noites após ojantar, quan<strong>do</strong> alega que vai dar uma “voltinha cívica” (1992, p. 126)D. Alcina passa os dias a cuidar da casa, é uma mulher religiosa que <strong>de</strong>dica a maioria <strong>de</strong>seu tempo livre à Igreja. Com a visita <strong>do</strong> bispo à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João Batista organiza em suacasa um quarto para hospedá-lo. Passa os dias limpan<strong>do</strong>, esfregan<strong>do</strong>, preparan<strong>do</strong> pratos para obispo em companhia <strong>de</strong> suas amigas carolas e nem <strong>de</strong>sconfia <strong>do</strong> relacionamento <strong>de</strong> seumari<strong>do</strong> com Lolita. É uma mulher solitária. Sua vida gira em torno da casa e <strong>do</strong>s afazeres<strong>do</strong>mésticos, <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e da Igreja. Ela não tem a companhia <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> que trabalha to<strong>do</strong> o


109dia, à tardinha visita o centro <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> e à noite encontra-se com a amante. Ela não é amadapelo mari<strong>do</strong>, pois durante o jantar, ele não agüenta a comichão erótica que tumultua seuíntimo pensan<strong>do</strong> no encontro com Lolita e classifica a mulher e as amigas como “velhotas”(1992, p. 137) as quais não suporta a presença.Como po<strong>de</strong>mos perceber, em Estrada nova, Cyro apresenta a mulher tímida, oprimida,tratada como um objeto que pertence a seu mari<strong>do</strong>. Ela aceita o casamento por interesse, ésubmissa ao mari<strong>do</strong>, divi<strong>de</strong>-o com a amante e passa seus dias a cuidar da casa e a rezar. Aoração torna-se um meio <strong>de</strong> fuga, <strong>de</strong> esquecimento <strong>do</strong>s problemas e <strong>de</strong> aceitação dasinjustiças sofridas. Assim, indiferente da classe social a que pertencem elas são solitárias,trêmulas, não opinam, andam com passos leves, miudinhos, quase a <strong>de</strong>slizar, silenciosas,encolhidas, esperan<strong>do</strong> a primeira or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> para que possam cumpri-la rapidamente.Elas não têm nenhuma liberda<strong>de</strong>, limitam-se a suspirar e rezar quan<strong>do</strong> as coisas nãoacontecem como <strong>de</strong>sejam, estão a procura <strong>de</strong> uma esperança, melhores condições <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong>uma nova estrada on<strong>de</strong> seja possível ser feliz.3.2.4 Consi<strong>de</strong>rações sobre a mulher gaúcha <strong>do</strong> início século XX <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com aspersonagens da trilogia <strong>de</strong> Cyro MartinsApós a leitura <strong>de</strong>ssas obras refletimos a respeito da opressão vivida pelas mulheresdurante séculos. Quan<strong>do</strong> nascemos, nosso sexo é <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pela natureza, mas a condutadiferenciada <strong>de</strong>stinada a cada sexo <strong>de</strong>corre diretamente da formação e educação querecebemos no meio social. A socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>fine os papéis que <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong>s porhomens e mulheres <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com sua cultura e classes sociais. Como vimos em cada perío<strong>do</strong>histórico os sexos <strong>de</strong>sempenharam diferentes funções.As pessoas são educadas e formadas diariamente, pelas escolas, pela família, Igreja,meios <strong>de</strong> comunicação, leis, etc. Dessa maneira, a cultura <strong>de</strong> um povo torna-se responsávelpelos papéis <strong>de</strong>siguais da mulher e <strong>do</strong> homem, o que traz graves consequências à socieda<strong>de</strong>em geral. Segun<strong>do</strong> Marodim esses comportamentos diferencia<strong>do</strong>s entre os sexos parte dafamília <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascimento, já que cabe a ela a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transmitir “normas e


110valores da cultura, ensinan<strong>do</strong> aos indivíduos o que significa ser masculino e feminino a partir<strong>do</strong> nascimento.” (1997, p. 10)Dessa maneira, à mulher foi atribuída, como função primordial, a reprodução, além dasubmissão ao companheiro, pois o homem é responsável pelas relações familiares,comerciais, profissionais e intelectuais. Isso averiguamos nas personagens femininas emasculinas das três obras que compõem a trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé: Sem rumo, Porteirafechada e Estrada nova.As mulheres <strong>de</strong>ssas obras são extremamente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s em sua gran<strong>de</strong>maioria. Em Estrada nova, Almerinda, Francisca e Alcina representam esse mo<strong>de</strong>lopadroniza<strong>do</strong> pela socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> comportamento feminino. Em Sem rumo Alzira e Evaristaexpressam o sofrimento que enfrentam por causa das regras <strong>de</strong> conduta feminina que <strong>de</strong>vemseguir. Assim, Evarista sofre por ter ti<strong>do</strong> filhos antes <strong>do</strong> casamento e pela rejeição <strong>do</strong>companheiro. A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>la é <strong>de</strong> dissolver a união, mas não se atreve por me<strong>do</strong> e mantém ocompromisso nos mol<strong>de</strong>s pré-estabeleci<strong>do</strong>s pela socieda<strong>de</strong>.Alzira, por sua vez assume o papel que lhe cabe: a maternida<strong>de</strong>. Quan<strong>do</strong> foge comChiru <strong>do</strong> campo i<strong>de</strong>aliza uma vida melhor na cida<strong>de</strong>, como isso não acontece <strong>de</strong>cepciona-se esente-se oprimida, mas <strong>de</strong>sempenha a função <strong>de</strong> mãe fervorosamente. Quan<strong>do</strong> se sente fraca ecansada <strong>de</strong> carregar o filho no colo pensa em pedir ajuda ao pai <strong>do</strong> menino, porém, ao veroutras mulheres seguram seus filhos, recompõem-se <strong>do</strong> cansaço ligeiramente e ce<strong>de</strong> aosvalores que lhe cabem como mãe e esposa, obediente.Em Porteira fechada, Maria José, Querubina e Fausta são mulheres <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>sfortes, que em muitos momentos conseguem impor suas opiniões, mas <strong>de</strong> maneira algumaabdicam <strong>de</strong> suas obrigações maternas. Maria José é amiga e leal ao esposo, João Gue<strong>de</strong>s.Devi<strong>do</strong> às dificulda<strong>de</strong>s financeiras que enfrenta sua família ela cria um trabalho autônomo oque representa um novo padrão <strong>de</strong> comportamento feminino, mas quan<strong>do</strong> a filha foge com onamora<strong>do</strong> ela não aceita, chaman<strong>do</strong>-a <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>la esquentada, pois vê nisso um comportamentopecaminoso e indigno <strong>de</strong> uma moça.Fausta é uma mulher que se revolta com as atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Ela não aceita oservilismo <strong>de</strong>le para com os políticos que lhe fazem falsas promessas <strong>de</strong> aposenta<strong>do</strong>ria.


111Fagun<strong>de</strong>s está <strong>de</strong>cepciona<strong>do</strong> e sente que não tem a mesma força <strong>de</strong> antigamente, por isso ela oameaça com seus direitos caso ele venha a violentá-la. Fausta recusa-se a <strong>de</strong>sempenhar opapel <strong>de</strong> esposa e mãe, ela sente raiva e uma certa repulsa em <strong>de</strong>sempenhar a função materna,mas mesmo assim, continua casada e a cuidar da casa e <strong>do</strong>s filhos, com pouca vonta<strong>de</strong>.Querubina, mesmo viven<strong>do</strong> luxuosamente com emprega<strong>do</strong>s à disposição, é <strong>do</strong>na-<strong>de</strong>casae seus pensamentos giram em torno <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e da filha. Mesmo ten<strong>do</strong> a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> expressar certas vonta<strong>de</strong>s ela segue os interesses e gostos <strong>do</strong> companheiro, não faz nadaque vá contra as vonta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oscar e vive a planejar o casamento da filha, como se o ato <strong>de</strong>casar-se fosse a maior felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stinada a uma mulher.Através <strong>de</strong>ssas personagens percebemos que a mulher consegue se expressar e revoltarsecom as atitu<strong>de</strong>s masculinas quan<strong>do</strong> está passan<strong>do</strong> necessida<strong>de</strong>s e os homens estão fracos,<strong>de</strong>siludi<strong>do</strong>s da vida, como é o caso <strong>de</strong> Gue<strong>de</strong>s e Fagun<strong>de</strong>s. Querubina não se impõe para omari<strong>do</strong>, já que esse consegue lhe dar uma vida tranqüila e com muitas mor<strong>do</strong>mias.Po<strong>de</strong>mos observar que o mun<strong>do</strong> feminino gira em torno <strong>do</strong> casamento e <strong>do</strong>s filhos.Casar é a primeira função que a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>stina à mulher. Quan<strong>do</strong> casada ela torna-se posse<strong>de</strong> seu mari<strong>do</strong> assim como qualquer objeto que não fala, não se move e não participa <strong>de</strong> nadacomo é o caso <strong>de</strong> Almerinda, que procura permanecer invisível aos olhos <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, semqueixar-se <strong>de</strong> seus problemas.O matrimônio teve com principal difusora a Igreja que além <strong>de</strong> valorizar o casamentoimpôs as normas <strong>de</strong> boa conduta feminina nesse relacionamento, também dividiu os papéis<strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a cada sexo, além <strong>de</strong> formar padrões <strong>de</strong> comportamento para serem segui<strong>do</strong>s pelasmulheres na socieda<strong>de</strong> em geral.Criadas em uma família patriarcal, as mulheres aprendiam que, com o casamento,passavam <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> pai para o <strong>do</strong> esposo, como proprieda<strong>de</strong>s. Com o mari<strong>do</strong>, elas teriammais obrigações já que <strong>de</strong>veriam comandar o lar e os afazeres <strong>do</strong>mésticos, aten<strong>de</strong>r ao mari<strong>do</strong>e educar os filhos. Nessa forma <strong>de</strong> organização, cabia à mulher o “[...] bom <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong>governo <strong>do</strong>méstico e na assistência moral à família, fortalecen<strong>do</strong> seus laços” (SAMARA,1983, p. 59).


112Dessa maneira, a mãe <strong>de</strong>veria ser um mo<strong>de</strong>lo moral <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> e recato on<strong>de</strong> os filhospu<strong>de</strong>ssem se espelhar para viver em socieda<strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> responsabilizada caso a honra dafamília viesse a ser afetada. Essa é a culpa que sente Maria José quan<strong>do</strong> a filha resolve fugircom o namora<strong>do</strong>, porque a sexualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> homem é aceitável, mas a feminina, não.Ao homem são permiti<strong>do</strong>s relacionamentos extraconjugais sem sentimento <strong>de</strong> remorso,enquanto a mulher <strong>de</strong>ve obrigações a seu mari<strong>do</strong> e <strong>de</strong>ve assegurar a pureza familiar frentesaos olhos da socieda<strong>de</strong>. Caso a mulher não cumpra com esse papel que lhe cabe, <strong>de</strong>ve serrejeitada ou morta, como sente Evarista, que sofre pela frieza <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e teme que ele acabelhe matan<strong>do</strong>. Dessa maneira a Igreja conseguia manter-se no po<strong>de</strong>r, já que era formada, emsua maioria, por membros masculinos que obtinham o maior po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão da socieda<strong>de</strong>.À mulher, portanto, coube <strong>de</strong>sempenhar a função <strong>de</strong> serviçal e reprodutora <strong>do</strong> meioon<strong>de</strong> vive, sem direito a uma vida sexual ativa e feliz:Nos mol<strong>de</strong>s patriarcais, há gran<strong>de</strong> tolerância em relação ao comportamento sexualmasculino e gran<strong>de</strong> rigi<strong>de</strong>z em relação ao comportamento sexual feminino: a mulheré consi<strong>de</strong>rada a “<strong>de</strong>positária da honra da família”. A mulher infiel é facilmente“con<strong>de</strong>nada” pela moral familiar. (ALBORNOZ, 1985, p. 17)No casamento o homem tem o papel <strong>de</strong> tomar as <strong>de</strong>cisões familiares. A manutenção <strong>do</strong>casal e proteção <strong>do</strong>s bens também eram suas responsabilida<strong>de</strong>s. A essas <strong>de</strong>cisões cabe àmulher ser obediente, o que acarreta na renúncia das vonta<strong>de</strong>s próprias, emoções eindividualida<strong>de</strong>s femininas, e resulta na <strong>de</strong>svalorização e submissão da mulher, como ocorrecom as personagens femininas <strong>de</strong> Sem Rumo e Estrada Nova, que vivem amedrontadas àespera das or<strong>de</strong>ns dadas pelos mari<strong>do</strong>s. O que fica claro, é que a gran<strong>de</strong> maioria das mulheresvê no casamento a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> vida. Criadas com rigi<strong>de</strong>z em uma socieda<strong>de</strong>machista, elas esperam <strong>do</strong> casamento a fuga da solidão e certa proteção.Almerinda, por exemplo, vê no casamento a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser vista comouma solteirona e <strong>de</strong> escapar <strong>de</strong> uma solidão futura, Alzira foge com Chiru porque não agüentamais a vida rotineira e a solidão em que vive nos campos e espera que a cida<strong>de</strong> lhe possibilitenovida<strong>de</strong>s, Querubina, como sempre foi pobre em relação à Maria José quan<strong>do</strong> moças, casasecom Oscar, homem <strong>de</strong> posses e que po<strong>de</strong> lhe dar uma vida segura e tranqüila, o mesmoacontece com D. Alcina, esposa <strong>do</strong> Dr. Serafim.


113A vida que levam <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> casadas é uma vida <strong>de</strong> renúncia. Todas permanecem emcasa, cuidan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s assuntos <strong>do</strong>mésticos e preocupan<strong>do</strong>-se com a família. Seus compromissosenvolvem a maternida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que tornam-se escravas <strong>de</strong> regras rígidas impostas pelopo<strong>de</strong>rio masculino na socieda<strong>de</strong>.D. Almerinda, D. Alcina e Francisca, <strong>de</strong> Estrada Nova, passam seus dias <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casaa limpar, cozinhar, rezar e cuidar <strong>do</strong>s filhos. D. Almerinda faz amiza<strong>de</strong> com as empregadas,com quem convive, D. Alcina <strong>de</strong>dica-se à Igreja e Francisca conversa e <strong>de</strong>sabafa com a filha,Rosa.Maria José, no entanto, diferencia-se das <strong>de</strong>mais pelo fato <strong>de</strong> abrir seu próprio negócio even<strong>de</strong>r suas costuras. Essa sua <strong>de</strong>cisão, porém, surge <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> estarem passan<strong>do</strong>necessida<strong>de</strong>s financeiras. Dessa maneira, ela trabalha e <strong>de</strong>termina regras e normas para suafamília, mas não sai <strong>de</strong> casa, abre seu negócio ali mesmo, e segue cuidan<strong>do</strong> e protegen<strong>do</strong> osfilhos. Essa solução encontrada por Maria José para sair da crise financeira em que seencontravam é sabiamente comentada por Dirani: “Só a partir <strong>do</strong> momento em que a mulher<strong>de</strong>scobre a causa <strong>de</strong> sua “infelicida<strong>de</strong>” é que po<strong>de</strong> lutar para eliminá-la.” (1986, p. 58).Outro fator relevante no comportamento feminino nas obras em estu<strong>do</strong> é a religiosida<strong>de</strong>.Como já estudamos na história das mulheres, durante anos os homens se consi<strong>de</strong>ravamsuperiores às mulheres aos olhos <strong>de</strong> Deus, por isso receberam uma educação religiosa maislivre, enquanto as mulheres, como seres inferiores, <strong>de</strong>veriam rezar e <strong>de</strong>dicar-se à Igreja maisque os homens para que tivessem o perdão <strong>de</strong> seus peca<strong>do</strong>s. Essa norma criada pela igrejaperpassou gerações e ainda no século XX percebemos essa atitu<strong>de</strong> nas mulheres, quepermanecem mais religiosas que os homens. A personagem que mais representa esse papelque fora imposto ao comportamento feminino durante anos é D. Almerinda e D. Alcina,ambas <strong>de</strong> Estrada nova.Almerinda recorre à religião sempre que se assusta com algo. Em seu quarto tem umaltar <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> a <strong>Santa</strong> Catarina, sua santa <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção, a quem reza e ascen<strong>de</strong> velas to<strong>do</strong>s osdias. Ela acredita na força e proteção da santa contra os peca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> homem e reza para queTeo<strong>do</strong>ro possa encontrar a paz quan<strong>do</strong> falecer, pois acredita que o mari<strong>do</strong> é um herege e correrisco <strong>de</strong> ar<strong>de</strong>r no fogo <strong>do</strong> inferno. Teo<strong>do</strong>ro, por sua vez chama isso <strong>de</strong> fraquezas <strong>de</strong> mulher e


114pe<strong>de</strong> para que ela <strong>de</strong>ixe os santos em paz, dizen<strong>do</strong> que não se <strong>de</strong>ixa enganar por baboseiras <strong>de</strong>padres. Ela fica indignada com essa atitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e torna a rezar por sua alma pagã:Sob esse critério, não importa o quão uma mulher seja gentil e afetuosa, a não serque sacrifique seu próprio bem-estar (até mesmo sua vida) pelos outros(particularmente <strong>de</strong> seu mari<strong>do</strong> e filhos), nunca po<strong>de</strong>rá esperar ser consi<strong>de</strong>radaespiritualmente igual ao homem. E mesmo então, será apenas olhada com exceção àregra <strong>de</strong> mulheres serem menos <strong>de</strong>senvolvidas espiritual e moralmente que oshomens.( EISLER, 1996, p. 269)D. Alcina <strong>de</strong>dica gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> seu tempo à Igreja. Suas amigas são religiosasfervorosas e <strong>de</strong>dicadas. Sua preocupação atual é em hospedar o bispo em sua casa, para issohá dias arruma o quarto e prepara pratos, pois recepcionar o bispo ou qualquer membro daor<strong>de</strong>m religiosa é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> uma bênção para a família. Serafim, por sua vez, viveenvolvi<strong>do</strong> com a política e não se interessa por religião. Ele envergonha a mulher ao nãoreconhecer o Coração <strong>de</strong> Jesus que está na pare<strong>de</strong> <strong>do</strong> quarto prepara<strong>do</strong> para o bispo e quepertence ao quarto <strong>do</strong> casal.O interessante, é que essas duas personagens buscam nesse extremismo religioso umafuga <strong>do</strong>s problemas sociais que enfrentam. A oração é a única maneira <strong>de</strong> <strong>de</strong>sabafar queAlmerinda encontra e Alcina, preenche sua solidão com trabalhos <strong>de</strong>dica<strong>do</strong>s à igreja. De certamaneira, às vezes até inconscientemente, elas procuram uma forma <strong>de</strong> afeto e não-violência.Quan<strong>do</strong> rezam para o perdão <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> é como se estivessem pedin<strong>do</strong> para Deusmudá-los e torná-los mais humanos. Elas <strong>de</strong>positam suas esperanças no po<strong>de</strong>r divino para queEle possa agir contra a discriminação, opressão e exploração em que vivem e não encontrammaneira <strong>de</strong> mudar.As mulheres eram consi<strong>de</strong>radas inferiores aos homens também na questão dainteligência. Devi<strong>do</strong> a isso seu mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>via ser pequeno em relação ao masculino. Em Semrumo não encontramos situações que envolvessem leitura <strong>de</strong> mulheres. Evarista, Maria, SiáCatarina, Leonor e Alzira vivem em total ignorância com relação à educação formal, oshomens também vivem nesse sistema, mas <strong>de</strong>sempenham tarefas <strong>de</strong> maior importância,porque são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s melhores. Em Estrada nova percebemos que somente os homenstêm um acesso a educação. Teo<strong>do</strong>ro busca no dicionário qualquer palavra nova que não saibao significa<strong>do</strong> ao ler seu jornal, já Almerinda em nenhum momento aparece len<strong>do</strong>, e quan<strong>do</strong>fica saben<strong>do</strong> <strong>de</strong> alguma informação nova é pela boca <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>.


115Já Francisca e Rosa são consi<strong>de</strong>radas estúpidas em relação à Janguta e Ricar<strong>do</strong>. Ricar<strong>do</strong>é estuda<strong>do</strong>, mora na cida<strong>de</strong> e trabalha como conta<strong>do</strong>r, por isso tem uma visão mais ampla eum maior conhecimento <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> que seus pais, pois nunca saíram <strong>do</strong> pequeno pedaço <strong>de</strong>campo on<strong>de</strong> vivem e pouco conhecem <strong>de</strong> outras culturas. Isso <strong>de</strong>veria elevar Janguta,Francisca e Rosa ao mesmo patamar <strong>de</strong> conhecimento, mas isso não acontece. EnquantoRicar<strong>do</strong> e Janguta conversam sobre o problema que estão enfrentan<strong>do</strong>, as mulheres ficam aouvir. Francisca enten<strong>de</strong> um pouco mais que a filha <strong>do</strong> assunto e ouve maravilhada o queRicar<strong>do</strong> fala, apavorada com a inteligência daquele seu filho que nem parece ter nasci<strong>do</strong> ali eque utiliza palavras tão bonitas, que fogem ao seu entendimento. Rosa, no entanto, limita-se aouvir embasbacada, sem enten<strong>de</strong>r nada <strong>do</strong> diálogo entre os <strong>do</strong>is homens.Danda Pra<strong>do</strong> comenta que a socieda<strong>de</strong> espera da mulher comportamentos chama<strong>do</strong>s“femininos” e que “[...] prescin<strong>de</strong>m <strong>de</strong> aprendizagem. São inerentes à sua natureza pelosimples fato <strong>de</strong> ter nasci<strong>do</strong> mulher” (1979, p 58), o que nos leva a enten<strong>de</strong>r que a mulher<strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong> machista não precisa adquirir conhecimentos já que vem para o mun<strong>do</strong> comos atributos que lhes cabe para servir ao seu homem.Em Porteira fechada existem situações <strong>de</strong> leitura, mas somente na camada social alta dacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boa Ventura. Querubina e Maria José são mulheres urbanas e por isso tiveramacesso ao mun<strong>do</strong> da leitura e escrita. Maria José ao casar-se com João Gue<strong>de</strong>s, peão <strong>de</strong>estância e ir morar no interior, passa a viver numa condição inferior à da prima. Em nenhummomento <strong>do</strong> romance Maria José está a ler, mas é alfabetizada e sabe fazer cálculos, já queabre seu negócio. Querubina, por sua vez, casa-se com um homem da burguesia da cida<strong>de</strong>,tem acessos à leitura e costuma ler revistas <strong>de</strong> modas em sua ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> balanço enquanto omari<strong>do</strong> lê o jornal Correio <strong>do</strong> Povo. Mesmo sen<strong>do</strong> uma leitora, o que representa umasignificativa conquista para o mun<strong>do</strong> feminino, ela <strong>de</strong>tém-se em textos fúteis com relação aos<strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, como se não fosse capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r ou que não fosse <strong>do</strong> seu interesse o quetraz o jornal.Como po<strong>de</strong>mos perceber, nas obras que compõem a trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé <strong>de</strong> CyroMartins, em to<strong>do</strong>s os campos sociais as mulheres são submetidas à renúncia, à maternida<strong>de</strong>, àsubmissão, à opressão e passivida<strong>de</strong>. O enre<strong>do</strong> <strong>de</strong>sses romances aborda o século XX, não tãodistante, e ainda notamos as regras patriarcais e machistas da socieda<strong>de</strong> com relação ao


116comportamento feminino. As mulheres <strong>de</strong> Cyro são proibidas <strong>de</strong> expressar seus <strong>de</strong>sejos esentimentos <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aos padrões tradicionais que cabem a uma esposa digna. Seus gestos epensamentos revelam que elas estão insatisfeitas com a vida que levam, mas não conseguemtransformá-la pelo empecilho que a socieda<strong>de</strong> impõe. Assim, elas internalizam suas vonta<strong>de</strong>se não conseguem sequer falar sobre elas, calan<strong>do</strong> e buscan<strong>do</strong> refúgio para suas <strong>do</strong>res eaflições na oração.A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudança e <strong>de</strong> crescimento pessoal que surge <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssas mulheres nãoconsegue modificar o sistema on<strong>de</strong> vivem. Devi<strong>do</strong> a isso, por mais que queiram alterar asmedidas machistas que pre<strong>do</strong>minam na socieda<strong>de</strong> em geral, elas não conseguem agir,limitam-se a pensar e <strong>de</strong>sejar profundamente uma transformação.As personagens femininas <strong>de</strong> Cyro Martins revelam os sofrimentos enfrenta<strong>do</strong>s pelasmulheres, que tem como função principal procriar, cuidar da casa, <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s filhos, semuma perspectiva <strong>de</strong> futuro. Elas sofrem com irrealizações, e vão acumulan<strong>do</strong> sofrimentos queparecem passar <strong>de</strong> geração a geração. Por isso, po<strong>de</strong>mos perceber que Cyro Martinspreocupou-se em mostrar a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> homem <strong>do</strong> campo sem as valentias e honras que lhesforam atribuídas anteriormente. O autor expressa o problema <strong>do</strong> êxo<strong>do</strong> rural no seu pontomais exato, na origem <strong>do</strong> empobrecimento <strong>do</strong> campesino. Um importante lega<strong>do</strong> também, foia capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse escritor em ter observa<strong>do</strong> e escrito sobre aquelas mulheres que sofriammais que seus mari<strong>do</strong>s, que viviam duplamente <strong>de</strong>scontentes e infelizes frente a umasocieda<strong>de</strong> patriarcal e machista. Sem po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> reação ao autoritarismo masculino elas vivem arezar para um futuro melhor, a suspirar pelos cantos em silêncio e a esperar o dia em quepo<strong>de</strong>rão ser livres.As interpretações referentes às personagens femininas até aqui realizadas só forampossíveis <strong>de</strong> serem feitas por atitu<strong>de</strong>s e gestos das personagens, isto é, na trilogia em estu<strong>do</strong>temos um narra<strong>do</strong>r onisciente que narra os fatos utilizan<strong>do</strong> a terceira pessoa <strong>do</strong> singular. Elenão faz parte <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> da narrativa e não se intromete nos acontecimentos, mas sabe tu<strong>do</strong> oque se passa nos pensamentos mais íntimos <strong>de</strong> cada personagem. O interessante é que aoshomens da história ele permite que se saliente a voz enquanto as mulheres são carentes nalinguagem <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que raramente são expressos seus pensamentos, na maioria das vezessabemos o que sentem pelos gestos que fazem como no exemplo a seguir:


117Imagina só o <strong>de</strong>sastre que ia se dan<strong>do</strong>!... – exclamou Teo<strong>do</strong>ro, refletidamente,paran<strong>do</strong>-se em frente à mulher duma maneira pensativa o queixo <strong>de</strong>scansa<strong>do</strong> na mãoesquerda fechada em punho, enquanto a direita segurava com firmeza o cotovelo<strong>do</strong>bra<strong>do</strong> em ângulo agu<strong>do</strong>. Essa era uma postura que ele assumia às vezes, emocasiões <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> preocupação. Por isso, <strong>do</strong>na Almerinda largou o crochê no coloe, toda frouxa, ergueu os olhinhos apaga<strong>do</strong>s, pisca-piscas, numa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>expectativa <strong>de</strong>sagradável, esperan<strong>do</strong> o pior. (1992, p 48)Sabemos <strong>do</strong> me<strong>do</strong> que sente a personagem feminina nesse acontecimento pelo fato <strong>de</strong>ela piscar rapidamente, tomar uma atitu<strong>de</strong> receosa, olhar com olhos submissos, apaga<strong>do</strong>s,afrouxar sua postura <strong>de</strong> fazer crochê e esperar uma reação agressiva <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>.Acontecimentos como esses ocorrem na maioria <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> das três narrativas em estu<strong>do</strong>.Dessa maneira o narra<strong>do</strong>r poucas vezes permite ao leitor saber exatamente o que sepassa no íntimo <strong>de</strong>ssas mulheres, elas não falam e pouco sabemos o que se passa em seuspensamentos, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que para enten<strong>de</strong>rmos o universo ficcional on<strong>de</strong> elas estão inseridasfaz-se necessário uma leitura e análise <strong>de</strong> seus gestos na presença <strong>do</strong> companheiro: suspiros,passos leves e ligeiros, postura corporal submissa, olhar para baixo, cabeça abaixada, oraçõescom pedi<strong>do</strong>s incessantes, frases como a <strong>de</strong> Siá Catarina quan<strong>do</strong> presencia a cena em queClarimun<strong>do</strong> bate em Chiru e não se atreve a auxiliar o menino, limitan<strong>do</strong>-se a perguntar se amulher <strong>do</strong> capataz já pôs a água aquecer para o mate, comentan<strong>do</strong> “Tu sabes como é esse teumari<strong>do</strong>.” (1997, p. 80) preocupada para que não acontecesse coisa pior caso ele se aborrecessemais. Ou atitu<strong>de</strong>s como a <strong>de</strong> Evarista que não se atreve a olhar nos olhos <strong>do</strong> companheiro esurpreen<strong>de</strong>-se fitan<strong>do</strong> o cabo da adaga que ele carrega na cintura, amedrontada, temen<strong>do</strong> queele possa matá-la.Cyro Martins preocupou-se em expressar ao leitor o mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> opressão e silêncio emque viviam os pobres da campanha. Dessa maneira em Sem rumo, Porteira fechada e Estradanova percebemos que as mulheres, indiferentes da classe social e posição que ocupam nãotêm uma voz ativa, mas os peões das estâncias também não opinam. Eles conversam eexpressam o que sentem em diálogos com os companheiros <strong>de</strong> trabalho, isso raramenteaparece no enre<strong>do</strong> das obras porque o narra<strong>do</strong>r prefere dar voz aos gran<strong>de</strong>s proprietários efazen<strong>de</strong>iros, por isso o jovem Ricar<strong>do</strong> <strong>de</strong> Estrada nova causa tanto impacto quan<strong>do</strong> enfrenta oCoronel Teo<strong>do</strong>ro. Ele é um rapaz <strong>de</strong> origem pobre, mas que possui um conhecimento <strong>de</strong>mun<strong>do</strong> maior que as <strong>de</strong>mais personagens da obra, por isso o Coronel Teo<strong>do</strong>ro se ofen<strong>de</strong> comas opiniões <strong>do</strong> rapaz. Essa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ricar<strong>do</strong> assusta não só o Coronel, mas também osleitores da obra, já que é um personagem pobre que se sobressai frente a um rico.


118Após essas consi<strong>de</strong>rações po<strong>de</strong>mos observar que nas narrativas literárias em estu<strong>do</strong> háhistórias <strong>de</strong> silêncio e opressão. A opressão <strong>do</strong>s ricos para com os pobres. Dessa maneira aobra <strong>de</strong> Cyro Martins aborda um problema social enfrenta<strong>do</strong> até os dias atuais. De certamaneira, o narra<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> la<strong>do</strong> as opiniões e a voz daqueles que realmente não são ouvi<strong>do</strong>sna socieda<strong>de</strong> patriarcal e rígida <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX. Com issopercebemos a gran<strong>de</strong> tirania em que viviam os homens pobres da campanha gaúcha retrata<strong>do</strong>sna obra, mas num mun<strong>do</strong> mais sufocante <strong>do</strong> que o <strong>de</strong>sses homens, estavam as mulheres,duplamente oprimidas e silenciadas.


119CONCLUSÃOA partir das análises realizadas ao longo <strong>de</strong>ste trabalho, po<strong>de</strong>mos perceber algumascaracterísticas particulares da obra <strong>de</strong> Cyro Martins, tópicos, posicionamentos e situações quedistinguem a trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé <strong>de</strong> outros romances até então publica<strong>do</strong>s. Nesse capítuloconclusivo, almejamos fazer uma retomada daquilo que julgamos mais expressivo nasanálises.Ao estudarmos a vida e obra <strong>de</strong> Cyro Martins observamos que suas narrativas possuemum enre<strong>do</strong> complexo e abordam problemas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social, econômicos, políticos e,sobretu<strong>do</strong>, humanos. Por ser médico psiquiatra, Cyro consegue analisar profundamente ohomem marginaliza<strong>do</strong> das socieda<strong>de</strong>s gaúchas e procura expor, através da sua criaçãoliterária, as mudanças socioeconômicas que ocasiona a mo<strong>de</strong>rnização quan<strong>do</strong> a<strong>de</strong>ntra acampanha sulina nos anos iniciais <strong>do</strong> século XX. Devi<strong>do</strong> a isso, o escritor aborda um temasocial on<strong>de</strong> as personagens são extremamente intrincadas e muito bem perfiladas, além <strong>de</strong>viverem relações <strong>de</strong>nsas e intensas. Por conhecer e compreen<strong>de</strong>r a condição humana, esseautor vê os conflitos existentes no homem como uma forma <strong>de</strong> crescimento e transformação,como po<strong>de</strong>mos observar nos enre<strong>do</strong>s <strong>de</strong> suas obras on<strong>de</strong> a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, seja no campoemocional ou social das personagens, é responsável pelas mudanças nos comportamentos<strong>de</strong>ssas.Durante a elaboração <strong>de</strong>sse trabalho buscamos um conhecimento interpretativo quejamais po<strong>de</strong> ser visto como <strong>de</strong>finitivo e acaba<strong>do</strong>, pois Sem rumo, Porteira fechada e Estradanova são obras que a cada dia revitalizam sua atualida<strong>de</strong> e que revelam um gran<strong>de</strong> potencial<strong>de</strong> conhecimento crítico, cultural e histórico da socieda<strong>de</strong> gaúcha, pois abordam problemassociais que se apresentam na contemporaneida<strong>de</strong>.É importante observarmos a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> observação crítica <strong>de</strong>sse autor em criar obrasliterárias diferentes das lançadas até aquele momento. Com uma visão extremamentehumanista e sensível, Cyro Martins preocupou-se em dar voz ao gaúcho pobre, expulso <strong>do</strong>campo pela ganância <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s estancieiros e que acaba por viver na periferia <strong>do</strong>s centrosurbanos. Esse gaúcho leva uma vida miserável e não tem como mudá-la, já que não estáprepara<strong>do</strong> para as exigências da vida citadina. É na trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé que Cyro


120contrapõe à feição até então i<strong>de</strong>alizada <strong>do</strong> gaúcho, uma <strong>versão</strong> realista e coerente com asmudanças sociais e econômicas em que se encontrava o povo gaúcho no início <strong>do</strong> século XX.Quan<strong>do</strong> enfocamos as relações existentes entre História e Literatura, pontos em comume distintos entre ambas, concluímos que tanto na Literatura como na História há ficção, naprimeira em maior grau que na segunda. Também percebemos que as obras literárias, seanalisadas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o interesse <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r, po<strong>de</strong>m constituir fontes historiográficas<strong>de</strong> um povo porque o escritor é um produto <strong>de</strong> seu tempo e po<strong>de</strong> recriar a realida<strong>de</strong> que ocerca, ou que vivenciou, através <strong>de</strong> suas narrativas.Por isso, a análise que realizamos, contrapon<strong>do</strong> os fatos Históricos <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong>Sul com os fatos Literários presentes na trilogia em estu<strong>do</strong>, nos permite observar que aHistória <strong>do</strong> povo gaúcho apresentada nos livros <strong>de</strong> História está transfigurada nas obras.Dessa maneira, alguns <strong>do</strong>s fatos narra<strong>do</strong>s na ficção literária coinci<strong>de</strong>m com os narra<strong>do</strong>s pelaHistória, mas as personagens literárias veem o mun<strong>do</strong> sob um ponto <strong>de</strong> vista diferente <strong>do</strong>historia<strong>do</strong>r porque vivem aquele enre<strong>do</strong>, estão presentes naquele episódio narra<strong>do</strong>, o que nosproporciona um conhecimento aprofunda<strong>do</strong> <strong>do</strong> ser humano e sua complexida<strong>de</strong> diante <strong>do</strong>sproblemas sociais, econômicos e políticos que se apresentam.Nessa análise observamos que o tempo histórico da trilogia situa-se entre os anos <strong>de</strong>1923 a aproximadamente 1954 <strong>do</strong> tempo histórico real. O interessante é que os problemassociais e humanos que vivem as personagens são semelhantes aos que percebemos na vidareal. Isso <strong>de</strong>monstra que o problema da miséria em que vive o homem <strong>do</strong> campo é expressopela ficção literária <strong>de</strong> Cyro Martins como uma forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia que o autor faz aosgovernantes que pouco fazem por aquelas pessoas que aban<strong>do</strong>naram a vida rural e foram paraas cida<strong>de</strong>s tentar uma vida melhor, acaban<strong>do</strong> miseravelmente nas periferias <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>scentros urbanos.Cyro Martins diversas vezes afirma que em sua a trilogia <strong>do</strong> gaúcho a pé procurou aomáximo expor os tipos campeiros com os quais teve contato em suas experiências vividas nacampanha, as histórias e causos que ouvia ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> fogo <strong>de</strong> chão, no galpão da venda <strong>de</strong>seu pai, com a peonada que por ali passava e pernoitava. Essa preocupação <strong>do</strong> autor emprocurar, ao máximo, expressar a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua época torna sua obra <strong>de</strong> valor incalculável,


121já que possibilita ao leitor uma maior aproximação e conhecimento acerca da socieda<strong>de</strong>gaúcha <strong>do</strong> tempo, sua organização e valores.Dessa maneira, o autor procura transmitir ao leitor um processo <strong>de</strong> transformação quesofre a campanha gaúcha no início <strong>do</strong> século XX. Essas mudanças ocorrem não só com ospobres da campanha, mas também com os gran<strong>de</strong>s estancieiros, que começam seu processo <strong>de</strong><strong>de</strong>cadência porque não conseguem mais manter-se no po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à crise econômica que oEsta<strong>do</strong> enfrenta, já os peões, pequenos proprietários e comerciantes sofrem pela falta <strong>de</strong>trabalho <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à entrada da tecnologia nos campos sulinos que dispensa o trabalho manual.Além <strong>do</strong>s fazen<strong>de</strong>iros e <strong>do</strong>s pobres da campanha, nessas narrativas há personagens quesão duplamente reprimidas: as mulheres. Em Sem rumo, Porteira fechada e Estrada nova, oautor expõe o sofrimento das mulheres em uma socieda<strong>de</strong> patriarcal e extremamente rígidaem questão <strong>de</strong> valores. Eis aí sua gran<strong>de</strong> contribuição para os conhecimentos <strong>do</strong> leitor, pois opapel <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> pelas mulheres gaúchas permanece pouco estuda<strong>do</strong> e possui poucosregistros, já que os historia<strong>do</strong>res preocuparam-se em exaltar o homem gaúcho na <strong>de</strong>fesa pelaterra. Dessa maneira, as narrativas ficcionais <strong>de</strong> Cyro Martins proporcionam uma noção dasmulheres da época, não uma noção real, mas verossímil e <strong>de</strong> fácil aceitação, pois expressamproblemas intimistas humanos como sentimentos, i<strong>de</strong>ais, valores, sofrimentos, lutas,opressões, etc. Dessa forma as personagens transfiguram para o plano literário emoções reais,que, por sua vez, permitem ao leitor uma maior i<strong>de</strong>ntificação com a obra.As personagens femininas <strong>de</strong>sses romances raramente aparecem, andam discretamente esão carentes <strong>de</strong> linguagem. Poucas vezes o narra<strong>do</strong>r as cita com ênfase nas passagens <strong>do</strong>sromances, e quan<strong>do</strong> o faz elas expressam a infelicida<strong>de</strong> em que vivem, através <strong>de</strong> gestos,expressões corporais, vonta<strong>de</strong>s reprimidas e sonhos não realiza<strong>do</strong>s. Na trilogia existe uma<strong>de</strong>núncia para com as falhas <strong>de</strong> to<strong>do</strong> um sistema <strong>de</strong> organização social, já que os fatosnarra<strong>do</strong>s ressaltam a opressão em que viviam as mulheres e a repressão feminina muitoevi<strong>de</strong>nte no século passa<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> registra a História.Dessa maneira, as personagens femininas vivem <strong>de</strong> maneira diferente das masculinas.Elas possuem limites para toda ação que <strong>de</strong>senvolvam. Seu mun<strong>do</strong> é o lar, vivem a cozinhar,costurar, limpar a casa, educar os filhos e servir a seu mari<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> saem <strong>de</strong> casa é paraprestar serviços à Igreja, para a comunida<strong>de</strong> e auxiliar em velórios.


122Elas não têm voz e acesso ao mun<strong>do</strong> da leitura e escrita. Apesar <strong>de</strong> encontrarmossituações on<strong>de</strong> a mulher começa a procurar sua in<strong>de</strong>pendência, a maioria são submissas aomari<strong>do</strong> e às regras impostas por uma socieda<strong>de</strong> machista e autoritária. As mulheres da trilogia<strong>do</strong> gaúcho a pé são vistas por seus companheiros como posses, seres sem valor e sentimentos,que nasceram para servir a seus homens. Dessa maneira, elas são reprimidas e silenciosas, e agran<strong>de</strong> maioria, limita-se a esperar por um futuro melhor com rezas e suspiros. Permanecemcaladas em uma profunda mágoa da vida que levam.Dessa maneira, através da leitura e análise das narrativas literárias <strong>de</strong> Cyro Martinspo<strong>de</strong>mos aprofundar, <strong>de</strong> certa maneira, o conhecimento <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> das mulheres gaúchas. Épor isso que utilizamos as narrativas Sem rumo, Porteira fechada e Estrada nova como fontespara um maior entendimento <strong>do</strong> ser humano e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> atual. Buscamos compreen<strong>de</strong>r to<strong>do</strong>um processo <strong>de</strong> transformação e <strong>de</strong> lutas enfrentadas pelas mulheres, pois enten<strong>de</strong>mos aLiteratura como uma forma <strong>de</strong> conhecimento que, mesmo <strong>do</strong>tada <strong>de</strong> ficção, está inteiramentevinculada à vida real. Ao basear-se em seres humanos para compor seu enre<strong>do</strong>, a narrativaliterária possui a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transmitir ao leitor conhecimentos que envolvem o indivíduo<strong>de</strong> outras épocas. Isso facilita às pessoas enten<strong>de</strong>rem a si mesmas e ao seu passa<strong>do</strong>, o que,consequentemente, vai auxiliá-las a modificar o presente, para que tenham um futuro melhor.É <strong>de</strong>ssa maneira que a Literatura torna possível ao ser humano planejar seu futuro, plantarsementes <strong>de</strong> bonda<strong>de</strong> e fraternida<strong>de</strong> para colher sentimentos <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>, igualda<strong>de</strong> efraternida<strong>de</strong> entre homens e mulheres, indiferente da classe social a que pertencem e daposição social que ocupam.


123REFERÊNCIASALBORNOZ, Suzana (Coord.) Na condição <strong>de</strong> mulher. <strong>Santa</strong> <strong>Cruz</strong> <strong>do</strong> Sul: Faculda<strong>de</strong>sIntegradas <strong>de</strong> <strong>Santa</strong> <strong>Cruz</strong> <strong>do</strong> Sul, 1985.ARISTÓTELES. Poética. Tradução <strong>de</strong> Ana Maria Valente, Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2004.BARTHES, Roland. Análise estrutural da narrativa : pesquisas semiológicas. Tradução <strong>de</strong>Maria Zilda Barbosa Pinto. 3. ed. Petrópolis : Vozes, 1973.CANDIDO, Antonio. A personagem <strong>de</strong> ficção. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002._____. Literatura e socieda<strong>de</strong>: estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> teoria e história literária. 8. ed. São Paulo: T. A.Queiroz, 2002.DIRANI, Zenia. O <strong>de</strong>spertar da mulher é o <strong>de</strong>spertar <strong>do</strong> homem. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Espaço eTempo, 1986.EISLER, Riane. O prazer sagra<strong>do</strong>: sexo, mito e a política <strong>do</strong> corpo. Tradução <strong>de</strong> Ana LuizaDantas Borges. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1996.FORSTER, Edward Morgan. Aspectos <strong>do</strong> Romance. Tradução <strong>de</strong> Maria Helena Martins. 2 ed.Porto Alegre: Globo, 1974.JAMES, Henry. A arte <strong>de</strong> ficção. Tradução <strong>de</strong> Daniel Piza. São Paulo: Imaginário, 1995.KUNDERA, Milan. A arte <strong>do</strong> romance. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1988.LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1989.LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura brasileira. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1970.MARODIM, Marilene. As relações entre o homem e a mulher na atualida<strong>de</strong>. In STREY,Marlene Neves. Mulher estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> gênero. São leopol<strong>do</strong>: Inisinos. 1997.MARTINS, Cyro. A criação artística e a psicanálise. Porto Alegre: Sulina, 1970._____. A mulher na socieda<strong>de</strong> atual. Porto Alegre: Movimento, 1984._____. Escritores gaúchos. Porto Alegre: Movimento, 1981._____. Estrada nova. 7 ed. Porto Alegre: Movimento: 1992._____. Para início <strong>de</strong> conversa. Porto Alegre: Movimento, 1990._____. Porteira fechada. 10 ed. Porto Alegre: Movimento, 1993._____. Sem rumo.6 ed. Porto Alegre: Movimento, 1997.


124_____. Disponível em http://www.celpcyro.org.br. Acesso em: 27 abr. 2009.MARTINS, Maria Helena (Org). Cyro Martins 90 anos. Porto Alegre: CELPCyro Martins:IEL: Corag, 1999.MILES, Rosalind. A história <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pela mulher. Tradução <strong>de</strong> Bárbara Helio<strong>do</strong>ra. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Casa-Maria, 1989.PERROT, Michelle. Os excluí<strong>do</strong>s da história: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução <strong>de</strong>Denise Bottmann. 2. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1992.PESAVENTO, Sandra. J.; LEENHARDT, Jacques. Discurso histórico e narrativa literária.São Paulo: UNICAMP, 1998.PESAVENTO, Sandra. História <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. 9 ed. Porto Alegre: Merca<strong>do</strong> Aberto,2002.PLATÃO; A república. Tradução <strong>de</strong> Maria Helena da Rocha Pereira. 8. ed Lisboa: FundaçãoCalouste Gulbenkian, [1996]PRADO, Danda. Ser esposa, a mais antiga profissão. São Paulo: Brasiliense, 1979.SAMARA, Eni <strong>de</strong> Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.TACCA, Oscar. As vozes <strong>do</strong> romance. Tradução <strong>de</strong> Margarida Coutinho Gouveia. Coimbra:Almedina,1983.TORRESINI, Elizabeth W. R. História e literatura. Porto Alegre: Literalis, 2007.VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Tradução <strong>de</strong> AldaBaltar e Maria Auxilia<strong>do</strong>ra Kneipp. Brasília: Ed. da UnB, 1982.VIEIRA, Maria <strong>do</strong> Pilar <strong>de</strong> Araújo; PEIXOTO, Maria <strong>do</strong> Rosário da Cunha; KHOURY, YaraAun. A pesquisa em história. São Paulo: Ática, 1989.WHITE, Hay<strong>de</strong>n V. Trópicos <strong>do</strong> discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Tradução <strong>de</strong>Alípio Correia <strong>de</strong> Franca Neto. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2001.

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