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Relíquias de Casa Velha

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Po<strong>de</strong> ser que as cousas se passassem assim. Prazeres era, com efeito, uma mulher caprichosa eimperiosa, e sabia pren<strong>de</strong>r um homem por laços <strong>de</strong> ferro. O fe<strong>de</strong>ralista, <strong>de</strong> quem se separoupara acompanhar João da Fonseca, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> fazer tudo para reavê-la, passou à campanhaoriental, on<strong>de</strong> dizem que vive pobremente, encanecido e envelhecido vinte anos, sem querersaber <strong>de</strong> mulheres nem <strong>de</strong> política. João da Fonseca acabou ce<strong>de</strong>ndo; ela pediu paraacompanhá-lo, e até bater-se, se fosse preciso; ele negou-lho. A revolução triunfaria embreve, disse; vencidas as forças do governo, tornaria à estância, on<strong>de</strong> ela o esperaria.-- Na estância, não, respon<strong>de</strong>u Prazeres; espero-te em Porto Alegre.CAPÍTULO IVNÃO IMPORTA dizer o tempo que <strong>de</strong>spendi nos inícios da minha paixão, mas não foigran<strong>de</strong>. A paixão cresceu rápida e forte. Afinal senti-me tão tomado <strong>de</strong>la que não pu<strong>de</strong> maisguardá-la comigo, e resolvi <strong>de</strong>clarar-lha uma noite; mas a tia, que usava cochilar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> asnove horas (acordava às quatro), daquela vez não pregou olho, e, ainda que o fizesse, éprovável que eu não alcançasse falar; tinha a voz presa e na rua senti uma vertigem igual àque me <strong>de</strong>u a primeira paixão da minha vida.-- Sr. Correia, não vá cair, disse a tia quando eu passei à varanda, <strong>de</strong>spedindo-me.-- Deixe estar, não caio.Passei mal a noite; não pu<strong>de</strong> dormir mais <strong>de</strong> duas horas, aos pedaços, e antes das cinco estavaem pé.-- É preciso acabar com isto! exclamei.De fato, não parecia achar em Maria Cora mais que benevolência e perdão, mas era issomesmo que a tornava apetecível. Todos os amores da minha vida tinham sido fáceis; emnenhum encontrei resistência, a nenhuma <strong>de</strong>ixei com dor; alguma pena, é possível, e umpouco <strong>de</strong> recordação. Desta vez sentia-me tomado por ganchos <strong>de</strong> ferro. Maria Cora era todavida; parece que, ao pé <strong>de</strong>la, as próprias ca<strong>de</strong>iras andavam e as figuras do tapete moviam osolhos. Põe nisso uma forte dose <strong>de</strong> meiguice e graça; finalmente, a ternura da tia fazia daquelacriatura um anjo. É banal a comparação, mas não tenho outra.Resolvi cortar o mal pela raiz, não tornando ao Engenho Velho, e assim fiz por alguns diaslargos, duas ou três semanas. Busquei distrair-me e esquecê-la, mas foi em vão. Comecei asentir a ausência como <strong>de</strong> um bem querido; apesar disso, resisti e não tornei logo. Mas,crescendo a ausência, cresceu o mal, e enfim resolvi tornar lá uma noite. Ainda assim po<strong>de</strong> serque não fosse, a não achar Maria Cora na mesma oficina da Rua da Quitanda, aon<strong>de</strong> eu foraacertar o relógio parado.-- É freguês também? perguntou-me ao entrar.-- Sou.-- Vim acertar o meu. Mas, por que não tem aparecido?-- E verda<strong>de</strong>, por que não voltou lá à casa? completou a tia.-- Uns negócios, murmurei; mas, hoje mesmo contava ir lá.-- Hoje não; vá amanhã, disse a sobrinha. Hoje vamos passar a noite fora.Pareceu-me ler naquela palavra um convite a amá-la <strong>de</strong> vez, assim como a primeira trouxeraum tom que presumi ser <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>. Realmente, no dia seguinte, fui ao Engenho Velho.

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