João da Fonseca achava-se então em um renascimento do <strong>de</strong>lírio conjugal; respon<strong>de</strong>u àmulher jurando tudo e mais alguma cousa. Aos quarenta anos, concluiu ele, não se fazem duasaventuras daquelas, e a minha foi <strong>de</strong> doer. Você verá, agora é para sempre.A vida recomeçou tão feliz, como dantes, -- ele dizia que mais. Com efeito, a paixão daesposa era violenta, e o marido tornou a amá-la como outrora. Viveram assim dous anos. Aofim <strong>de</strong>sse tempo, os ardores do marido haviam diminuído, alguns amores passageiros vierammeter-se entre ambos. Maria Cora, ao contrário do que lhe dissera, perdoou essas faltas quealiás não tiveram a extensão nem o vulto da aventura Dolores. Os <strong>de</strong>sgostos, entretanto,apareceram e gran<strong>de</strong>s. Houve cenas violentas. Ela parece que chegou mais <strong>de</strong> uma vez aameaçar que se mataria; mas, posto não lhe faltasse o preciso ânimo, não fez tentativanenhuma, a tal ponto lhe doía <strong>de</strong>ixar a própria causa do mal, que era o marido. João daFonseca percebeu isto mesmo, e acaso explorou a fascinação que exercia na mulher.Uma circunstância política veio complicar esta situação moral. João da Fonseca era pelo ladoda revolução, dava-se com vários dos seus chefes, e pessoalmente <strong>de</strong>testava alguns doscontrários. Maria Cora, por laços <strong>de</strong> família, era adversa aos fe<strong>de</strong>ralistas. Esta oposição <strong>de</strong>sentimentos não seria bastante para separá-los, nem se po<strong>de</strong> dizer que, por si mesma, azedassea vida dos dous. Embora a mulher, ar<strong>de</strong>nte em tudo, não o fosse menos em con<strong>de</strong>nar arevolução, chamando nomes crus aos seus chefes e oficiais; embora o marido, tambémexcessivo, replicasse com igual ódio, os seus arrufos políticos apenas aumentariam osdomésticos, e provavelmente não passariam <strong>de</strong>ssa troca <strong>de</strong> conceitos, se uma nova Dolores,<strong>de</strong>sta vez Prazeres, e não chilena nem saltimbanca, não revivesse os dias amargos <strong>de</strong> outrotempo. Prazeres era ligada ao partido da revolução, não só pelos sentimentos, como pelasrelações da vida com um fe<strong>de</strong>ralista. Eu a conheci pouco <strong>de</strong>pois, era bela e airosa; João daFonseca era também um homem gentil e sedutor. Podiam amar-se fortemente, e assim foi.Vieram inci<strong>de</strong>ntes, mais ou menos graves, ate que um <strong>de</strong>cisivo <strong>de</strong>terminou a separação docasal.Já cuidavam disto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> algum tempo, mas a reconciliação não seria impossível, apesar dapalavra <strong>de</strong> Maria Cora, graças à intervenção da tia; esta havia insinuado à sobrinha queresidisse três ou quatro meses no Rio <strong>de</strong> Janeiro ou em S.Paulo. Suce<strong>de</strong>u, porém, uma cousatriste <strong>de</strong> dizer. O marido, em um momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>svario, ameaçou a mulher com o rebenque.Outra versão diz que ele tentara esganá-la. Quero crer que a verídica é a primeira, e que asegunda foi inventada para tirar à violência <strong>de</strong> João da Fonseca o que pu<strong>de</strong>sse haver<strong>de</strong>primente e vulgar. Maria Cora não disse mais uma só palavra ao marido. A separação foiimediata, a mulher veio com a tia para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> arranjados amigavelmenteos interesses pecuniários. Demais, a tia era rica.João da Fonseca e Prazeres ficaram vivendo juntos uma vida <strong>de</strong> aventuras que não importaescrever aqui. Só uma cousa interessa diretamente à minha narração. Tempos <strong>de</strong>pois daseparação do casal, João da Fonseca estava alistado entre os revolucionários. A paixãopolítica, posto que forte, não o levaria a pegar em armas, se não fosse uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>safioda parte <strong>de</strong> Prazeres; assim correu entre os amigos <strong>de</strong>le, mas ainda este ponto é obscuro. Aversão é que ela, exasperada com o resultado <strong>de</strong> alguns combates, disse ao estancieiro queiria, disfarçada em homem, vestir farda <strong>de</strong> soldado e bater-se pela revolução. Era capaz disto;o amante disse-lhe que era uma loucura, ela acabou propondo-lhe que, nesse caso, fosse elebater-se em vez <strong>de</strong>la, era uma gran<strong>de</strong> prova <strong>de</strong> amor que lhe daria.-- Não te tenho dado tantas?-- Tem, sim; mas esta é a maior <strong>de</strong> todas, esta me fará cativa até à morte.-- Então agora ainda não é até à morte? perguntou ele rindo.-- Não.
Po<strong>de</strong> ser que as cousas se passassem assim. Prazeres era, com efeito, uma mulher caprichosa eimperiosa, e sabia pren<strong>de</strong>r um homem por laços <strong>de</strong> ferro. O fe<strong>de</strong>ralista, <strong>de</strong> quem se separoupara acompanhar João da Fonseca, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> fazer tudo para reavê-la, passou à campanhaoriental, on<strong>de</strong> dizem que vive pobremente, encanecido e envelhecido vinte anos, sem querersaber <strong>de</strong> mulheres nem <strong>de</strong> política. João da Fonseca acabou ce<strong>de</strong>ndo; ela pediu paraacompanhá-lo, e até bater-se, se fosse preciso; ele negou-lho. A revolução triunfaria embreve, disse; vencidas as forças do governo, tornaria à estância, on<strong>de</strong> ela o esperaria.-- Na estância, não, respon<strong>de</strong>u Prazeres; espero-te em Porto Alegre.CAPÍTULO IVNÃO IMPORTA dizer o tempo que <strong>de</strong>spendi nos inícios da minha paixão, mas não foigran<strong>de</strong>. A paixão cresceu rápida e forte. Afinal senti-me tão tomado <strong>de</strong>la que não pu<strong>de</strong> maisguardá-la comigo, e resolvi <strong>de</strong>clarar-lha uma noite; mas a tia, que usava cochilar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> asnove horas (acordava às quatro), daquela vez não pregou olho, e, ainda que o fizesse, éprovável que eu não alcançasse falar; tinha a voz presa e na rua senti uma vertigem igual àque me <strong>de</strong>u a primeira paixão da minha vida.-- Sr. Correia, não vá cair, disse a tia quando eu passei à varanda, <strong>de</strong>spedindo-me.-- Deixe estar, não caio.Passei mal a noite; não pu<strong>de</strong> dormir mais <strong>de</strong> duas horas, aos pedaços, e antes das cinco estavaem pé.-- É preciso acabar com isto! exclamei.De fato, não parecia achar em Maria Cora mais que benevolência e perdão, mas era issomesmo que a tornava apetecível. Todos os amores da minha vida tinham sido fáceis; emnenhum encontrei resistência, a nenhuma <strong>de</strong>ixei com dor; alguma pena, é possível, e umpouco <strong>de</strong> recordação. Desta vez sentia-me tomado por ganchos <strong>de</strong> ferro. Maria Cora era todavida; parece que, ao pé <strong>de</strong>la, as próprias ca<strong>de</strong>iras andavam e as figuras do tapete moviam osolhos. Põe nisso uma forte dose <strong>de</strong> meiguice e graça; finalmente, a ternura da tia fazia daquelacriatura um anjo. É banal a comparação, mas não tenho outra.Resolvi cortar o mal pela raiz, não tornando ao Engenho Velho, e assim fiz por alguns diaslargos, duas ou três semanas. Busquei distrair-me e esquecê-la, mas foi em vão. Comecei asentir a ausência como <strong>de</strong> um bem querido; apesar disso, resisti e não tornei logo. Mas,crescendo a ausência, cresceu o mal, e enfim resolvi tornar lá uma noite. Ainda assim po<strong>de</strong> serque não fosse, a não achar Maria Cora na mesma oficina da Rua da Quitanda, aon<strong>de</strong> eu foraacertar o relógio parado.-- É freguês também? perguntou-me ao entrar.-- Sou.-- Vim acertar o meu. Mas, por que não tem aparecido?-- E verda<strong>de</strong>, por que não voltou lá à casa? completou a tia.-- Uns negócios, murmurei; mas, hoje mesmo contava ir lá.-- Hoje não; vá amanhã, disse a sobrinha. Hoje vamos passar a noite fora.Pareceu-me ler naquela palavra um convite a amá-la <strong>de</strong> vez, assim como a primeira trouxeraum tom que presumi ser <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>. Realmente, no dia seguinte, fui ao Engenho Velho.
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