12.07.2015 Views

Relíquias de Casa Velha

Relíquias de Casa Velha

Relíquias de Casa Velha

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Quando me <strong>de</strong>spedi <strong>de</strong> Eduardo Prado, naquele dia, vim perguntando a mim mesmo se teriavida bastante para ler e admirar as obras-primas que esse talentoso brasileiro levava nocérebro em gestação, ou em gérmen, e durante muitos anos viriam abastecer a nossa língua e anossa terra. Seis dias <strong>de</strong>pois, era ele que morria. Chamei injusta à natureza; bastaria dizer --indiferente.ANTÔNIO JOSÉUM DIA DESTES, relembrando uma passagem da tragédia que Magalhães consagrou àmemória <strong>de</strong> Antônio José, adverti na resposta dada pelo ju<strong>de</strong>u ao Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ericeira, quandoeste lhe recomenda que imite Molière; o ju<strong>de</strong>u respon<strong>de</strong> que Molière escrevia para franceses eele não. Será essa resposta a rigorosa expressão da verda<strong>de</strong>? Antônio José não se mo<strong>de</strong>lou,certamente, pelas obras do gran<strong>de</strong> cômico, não cogitou jamais da simples pintura dos vícios edos caracteres. Molière caminhou do Médico Volante e dos Zelos <strong>de</strong> Barbouillé à Escola dasMulheres e ao Tartufo; Antônio José não passou das Guerras do Alecrim e Manjerona, e,dado que tentasse fazê-lo, é certo que não po<strong>de</strong>ria ir muito além. Não tinha centro apropriado,nem largas vistas; faltavam-lhe outros meios, outros intuitos; e, se porventura entrou em seuespírito reatar a tradição <strong>de</strong> Gil Vicente, levantando sobre os alicerces lançados por esseoperário do século XVI as pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um teatro regular, convinha justamente não imitar nada,nem ninguém, não se fazer Molière, nem Plauto, ficar Antônio José; é a condição das obrasvivas.Interpretada <strong>de</strong>sse modo, é exata e verda<strong>de</strong>ira a resposta que Magalhães põe na boca doju<strong>de</strong>u; mas só <strong>de</strong>sse modo. O Anfitrião prova que o nosso poeta alguma cousa imitou etransplantou <strong>de</strong> Molière, a tal ponto que forçosamente o tinha diante <strong>de</strong> si, ou na banca <strong>de</strong>trabalho ou na memória; e, porque esta observação não haja sido feita, cuido que interessará,quando menos, a título <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong> literária. Ao mesmo tempo, direi o que me parece doescritor e da sua obra.E, antes <strong>de</strong> mais nada, ocorre pon<strong>de</strong>rar que Antônio José goza <strong>de</strong> uma reputação sobrepalavra. A fogueira <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1739 iluminou-lhe a figura <strong>de</strong> maneira que opu<strong>de</strong>ram ver todos os olhos; a tragédia do Sr. Magalhães vulgarizou-o entre as nossas platéias<strong>de</strong> há 40 anos; mas só os estudiosos o terão lido, e nem todos, porque a tarefa exigeconstância e esforço, embora <strong>de</strong> certo modo os pague. Po<strong>de</strong>-se dizer, sem erro, que elepertence à família dos poetas cômicos, qualquer que seja o grau <strong>de</strong> parentesco, -- com acircunstância que era um <strong>de</strong>sperdiçado, -- trocava a boa moeda do cômico pelo cobre vulgardo burlesco. Mas, poeta cômico era-o, e <strong>de</strong> boa veia, -- mais <strong>de</strong>certo que Nicolau Luís, quelhe suce<strong>de</strong>u na estima das platéias <strong>de</strong> Lisboa, mais ainda que Manuel <strong>de</strong> Figueiredo, cujasintenções literárias abafaram, talvez, a livre expansão do engenho, e que aliás escrevia <strong>de</strong> simesmo que -- "havendo-se enganado consigo em infinitas cousas, nunca se preocupou <strong>de</strong> quetinha graça". Acresce que o fim trágico do ju<strong>de</strong>u comunica às suas páginas alegres e juvenisum reflexo <strong>de</strong> simpática melancolia, que ainda mais nos convida a percorrê-las e estudá-las. Apieda<strong>de</strong> não é <strong>de</strong>certo razão <strong>de</strong>terminativa em pontos <strong>de</strong> críticas e tal poetastro haverá que,sucumbindo a uma gran<strong>de</strong> injustiça social, somente inspire compaixão sem <strong>de</strong>safiar a análise.Não é o caso <strong>de</strong> Antônio José; este mereceria por si só que o estudássemos, ainda <strong>de</strong>spido dasocorrências trágicas que lhe circundam o nome.Nenhuma das comédias do ju<strong>de</strong>u se po<strong>de</strong> dizer excelente e perfeita; há porém graus entre elas,e a todas sobreleva a das Guerras do Alecrim e Manjerona. Nesta, como nas <strong>de</strong>mais, nota-se,<strong>de</strong>certo muita espontaneida<strong>de</strong>, viveza <strong>de</strong> diálogo, graça <strong>de</strong> estilo, varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> situações, ecerto conhecimento <strong>de</strong> cena; mas a alma <strong>de</strong> todas elas não é gran<strong>de</strong>; vive-se ali <strong>de</strong> enredo e <strong>de</strong>aparato. Se ao poeta foi estranha a invenção dos caracteres e a pintura dos vícios, não menos ofoi a transcrição dos costumes locais. Salvo o Alecrim e Manjerona, todas as suas peças sãointeiramente alheias à socieda<strong>de</strong> e ao tempo; a Esopaida tem por base um assunto antigo; aVida <strong>de</strong> D. Quixote põe em cena o personagem <strong>de</strong> Cervantes; as outras peças são todas

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!