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Relíquias de Casa Velha

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fogueira o livro da escola, e o <strong>de</strong>la também, com os pontos <strong>de</strong> costura que estava apren<strong>de</strong>ndo.-- Isso não, acudiu Felícia.-- Eu queimava o meu livro.-- Papai comprava outro.-- Enquanto comprasse, eu ficava brincando em casa; apren<strong>de</strong>r é muito aborrecido.Nisto estávamos, quando vimos tio Zeca e o <strong>de</strong>sconhecido ao pé <strong>de</strong> nós. O <strong>de</strong>sconhecidopegou-nos nos queixos e levantou-nos a cara para ele, fitou-nos com serieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixou-nos e<strong>de</strong>spediu-se.-- Nove horas? Lá estarei, disse ele. -- Vamos, disse-nos tio Zeca.Quis perguntar-lhe quem era aquele homem, e até me pareceu conhecê-lo vagamente. Felíciatambém. Nenhum <strong>de</strong> nós acertava com a pessoa; mas a promessa <strong>de</strong> lá estar às nove horasdominou o resto. Era festa, algum baile, conquanto às nove horas, costumássemos ir para acama. Naturalmente, por exceção, estaríamos acordados. Como chegássemos a um rego <strong>de</strong>lama, peguei da mão <strong>de</strong> Felícia, e transpusemo-lo <strong>de</strong> um salto, tão violento que quase me caiuo livro. Olhei para tio Zeca, a ver o efeito do gesto; vi-o abanar a cabeça com reprovação. Ri,ela sorriu, e fomos pela calçada adiante.Era o dia dos <strong>de</strong>sconhecidos. Desta vez estavam em burros, e um dos dous era mulher.Vinham da roça. Tio Zeca foi ter com eles ao meio da rua, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dizer que esperássemos.Os animais pararam, creio que <strong>de</strong> si mesmos, por também conhecerem a tio Zeca, idéia queFelícia reprovou com o gesto, e que eu <strong>de</strong>fendi rindo. Teria apenas meia convicção; tudo erafolgar. Fosse como fosse, esperamos os dous, examinando o casal <strong>de</strong> roceiros. Eram ambosmagros, a mulher mais que o marido, e também mais moça; ele tinha os cabelos grisalhos.Não ouvimos o que disseram, ele e tio Zeca; vimo-lo, sim, o marido olhar para nós com ar <strong>de</strong>curiosida<strong>de</strong>, e falar à mulher, que também nos <strong>de</strong>itou os olhos, agora com pena ou cousaparecida. Enfim apartaram-se, tio Zeca veio ter conosco e enfiamos para casa.A casa ficava na rua próxima, perto da esquina. Ao dobrarmos esta, vimos os portais da casaforrados <strong>de</strong> preto,-- o que nos encheu <strong>de</strong> espanto. Instintivamente paramos e voltamos acabeça para tio Zeca. Este veio a nós, <strong>de</strong>u a mão a cada um e ia a dizer alguma palavra quelhe ficou na garganta; andou, levando-nos consigo. Quando chegamos, as portas estavammeio cerradas. Não sei se lhes disse que era um armarinho. Na rua, curiosos. Nas janelasfronteiras e laterais, cabeças aglomeradas. Houve certo rebuliço quando chegamos. É naturalque eu tivesse a boca aberta, como Felícia. Tio Zeca empurrou uma das meias portas,entramos os três, ele tornou a cerrá-la, meteu-se pelo corredor e fomos à sala <strong>de</strong> jantar e àalcova.Dentro, ao pé da cama, estava minha mãe com a cabeça entre as mãos. Sabendo da nossachegada, ergueu-se <strong>de</strong> salto, veio abraçar-nos entre lágrimas, bradando:-- Meus filhos, vosso pai morreu!A comoção foi gran<strong>de</strong>, por mais que o confuso e o vago entorpecessem a consciência danotícia. Não tive forças para andar, e teria medo <strong>de</strong> o fazer. Morto como? morto por quê?Estas duas perguntas, se as meto aqui, é para dar seguimento à ação; naquele momento nãoperguntei nada a mim nem a ninguém. Ouvi as palavras <strong>de</strong> minha mãe, se repetiam em mim, eos seus soluços que eram gran<strong>de</strong>s. Ela pegou em nós e arrastou-nos para a cama, on<strong>de</strong> jazia ocadáver do marido; e fez-nos beijar-lhe a mão. Tão longe estava eu daquilo que, apesar <strong>de</strong>tudo, não enten<strong>de</strong>ra nada a princípio; a tristeza e o silêncio das pessoas que ro<strong>de</strong>avam a camaajudaram a explicar que meu pai morrera <strong>de</strong>veras. Não se tratava <strong>de</strong> um dia santo, com a suafolga e recreio, não era festa, não eram as horas breves ou longas, para a gente <strong>de</strong>sfiar em

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