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Relíquias de Casa Velha

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Não me censurem. Sincero fui longos dias calados e reclusos. Quis uma vez ir para oarmarinho, que se abriu <strong>de</strong>pois do enterro, on<strong>de</strong> o caixeiro continuou a servir. Conversariacom este, assistiria à venda <strong>de</strong> linhas e agulhas, à medição <strong>de</strong> fitas, iria à porta, à calçada, àesquina da rua... Minha mãe sufocou este sonho pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le nascer. Mal chegara aobalcão, mandou-me buscar pela escrava; lá fui para o interior da casa e para o estudo.Arrepelei-me, apertei os <strong>de</strong>dos à guisa <strong>de</strong> quem quer dar murro; não me lembra se chorei <strong>de</strong>raiva.O livro lembrou-me a escola, e a imagem da escola consolou-me. Já então lhe tinha gran<strong>de</strong>ssauda<strong>de</strong>s. Via <strong>de</strong> longe as caras dos meninos, os nossos gestos <strong>de</strong> troça nos bancos, e os saltosà saída. Senti cair-me na cara uma daquelas bolinhas <strong>de</strong> papel com que nos espertávamos unsaos outros, e fiz a minha e atirei-a ao meu suposto espertador. A bolinha, como acontecia àsvezes, foi cair na cabeça <strong>de</strong> terceiro, que se <strong>de</strong>sforrou <strong>de</strong>pressa. Alguns, mais tímidos,limitavam-se a fazer caretas. Não era folguedo franco, mas já me valia por ele. Aquele<strong>de</strong>gredo que eu <strong>de</strong>ixei tão alegremente com tio Zeca parecia-me agora um céu remoto, e tinhamedo <strong>de</strong> o per<strong>de</strong>r. Nenhuma festa em casa, poucas palavras, raro movimento. Foi por essetempo que eu <strong>de</strong>senhei a lápis maior número <strong>de</strong> gatos nas margens do livro <strong>de</strong> leitura; gatos eporcos. Não alegrava, mas distraía.A missa do sétimo dia restituiu-me à rua; no sábado não fui a escola, fui à casa <strong>de</strong> meupadrinho, on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong> falar um pouco mais, e no domingo estive à porta da loja. Não eraalegria completa. A total alegria foi segunda-feira, na escola. Entrei vestido <strong>de</strong> preto, fuimirado com curiosida<strong>de</strong>, mas tão outro ao pé dos meus condiscípulos, que me esqueceram asférias sem gosto, e achei uma gran<strong>de</strong> alegria sem férias.EVOLUÇÃOCHAMO-ME INÁCIO; ele, Benedito. Não digo o resto dos nossos nomes por um sentimento<strong>de</strong> compostura, que toda a gente discreta apreciará. Inácio basta. Contentem-se com Benedito.Não é muito, mas é alguma cousa, e está com a filosofia <strong>de</strong> Julieta: "Que valem nomes,perguntava ela ao namorado. A rosa, como quer que se lhe chame, terá sempre o mesmocheiro." Vamos ao cheiro do Benedito.E <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo assentemos que ele era o menos Romeu <strong>de</strong>ste mundo. Tinha quarenta e cincoanos, quando o conheci; não <strong>de</strong>claro em que tempo, porque tudo neste conto há <strong>de</strong> sermisterioso e truncado. Quarenta e cinco anos, e muitos cabelos pretos; para os que o não eramusava um processo químico, tão eficaz que não se lhe distinguiam os pretos dos outros-- salvoao levantar da cama; mas ao levantar da cama não aparecia a ninguém. Tudo mais era natural,pernas, braços, cabeça, olhos, roupa, sapatos, corrente do relógio e bengala. O próprio alfinete<strong>de</strong> diamante, que trazia na gravata, um dos mais lindos que tenho visto, era natural e legítimo,custou-lhe bom dinheiro; eu mesmo o vi comprar na casa do... Já me ia escapando o nome dojoalheiro;-- fiquemos na Rua do Ouvidor.Moralmente, era ele mesmo. Ninguém muda <strong>de</strong> caráter, e o do Benedito era bom,-- ou paramelhor dizer, pacato. Mas, intelectualmente, é que ele era menos original. Po<strong>de</strong>mos comparáloa uma hospedaria bem afreguesada, aon<strong>de</strong> iam ter idéias <strong>de</strong> toda parte e <strong>de</strong> toda sorte, quese sentavam à mesa com a família da casa. Às vezes, acontecia acharem-se ali duas pessoasinimigas, ou simplesmente antipáticas, ninguém brigava, o dono da casa impunha aoshóspe<strong>de</strong>s a indulgência recíproca. Era assim que ele conseguia ajustar uma espécie <strong>de</strong> ateísmovago com duas irmanda<strong>de</strong>s que fundou, não sei se na Gávea, na Tijuca ou no Engenho Velho.Usava assim, promiscuamente, a <strong>de</strong>voção, a irreligião e as meias <strong>de</strong> seda. Nunca lhe vi asmeias, note-se; mas ele não tinha segredos para os amigos.Conhecemo-nos em viagem para Vassouras. Tínhamos <strong>de</strong>ixado o trem e entrado na diligência

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