Maria José <strong>de</strong> MirandaIIA <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>sob</strong> a visão da poesiaO caso <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>iraSendo a <strong>cida<strong>de</strong></strong>, passível <strong>de</strong> leitura somente no plano do imaginário, ouseja, quem consegue fazer uma leitura possível <strong>de</strong>ste espaço é o escritor que ofaz a partir do que ele po<strong>de</strong> ver. Então, é através da literatura, que a <strong>cida<strong>de</strong></strong> vemsendo representada e, na poesia, esse acontecimento vem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIXcom Charles Bau<strong>de</strong>laire e Walt Whitman, que sabiamente trouxeram, por meioda imaginação poética, a visibilida<strong>de</strong> da <strong>cida<strong>de</strong></strong> e da megalópole mo<strong>de</strong>rna, oque foi, para a época, um fenômeno relevante e especial porque <strong>de</strong>svelaramesse lugar <strong>de</strong> estranhamento, a partir do imaginário, mostrando com veemênciaa realida<strong>de</strong> citadina. Posto que, ao falarem poeticamente das experiênciasurbanas, revelaram a <strong>cida<strong>de</strong></strong>.Vários são os escritores brasileiros da prosa e da poesia que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> oséculo XX perceberam e se sensibilizaram com a situação complexa da vidaurbana, e cada um a seu modo, representou e tem representado essa angústiado espaço mais habitado na atualida<strong>de</strong>. E um <strong>de</strong>sses escritores foi o poetapernambucano mo<strong>de</strong>rnista <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>ira, que iniciou sua trajetória poética<strong>sob</strong> a ótica parnaso-simbolista, mas que soube, como poucos, transcen<strong>de</strong>r-se a sipróprio tanto nas situações pessoais quanto estéticas. Foi também o primeiropoeta brasileiro a fazer o uso do verso livre e, mesmo conhecendo o risco quecorria ao optar por tamanha inovação, não se esquivou e assim abriu caminhospara muitos outros poetas. É o que também observa o poeta e crítico AdrianoEspínola (1995, p. 120), que ao falar <strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>ira, disse: “[...] ele possibilitou ofortalecimento <strong>de</strong> toda uma concepção e prática poéticas, capazes até <strong>de</strong>popularizar a própria poesia mo<strong>de</strong>rnista entre nós.” Ban<strong>de</strong>ira queria o poemacom intencionalida<strong>de</strong>s, ou seja, além <strong>de</strong> ser lírico, é claro, e falar da experiênciaRevista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 413
A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>sob</strong> a visão lírica <strong>de</strong> <strong>Manuel</strong> Ban<strong>de</strong>irapessoal, o poema <strong>de</strong>via, principalmente, atingir o outro, alargando-se nohumano.Dessa forma, o poeta capta o conflito do ser humano, que <strong>sob</strong>revive na<strong>cida<strong>de</strong></strong>, espaço que parece não permitir o encontro do eu consigo mesmo. Eentão em “Meninos Carvoeiros”, <strong>de</strong> O Ritmo dissoluto (1924-1990), o poetaescreve:Os meninos carvoeirosPassam a caminho da <strong>cida<strong>de</strong></strong>.― Eh, carvoero!E vão tocando os animais com um relho enorme.Os burros são magrinhos e velhos.Cada um leva seis sacos <strong>de</strong> carvão <strong>de</strong> lenha.A aniagem é toda remendada.Os carvões caem.(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se comum gemido.)― Eh, carvoero!Só mesmo estas crianças raquíticasVão bem com estes burrinhos <strong>de</strong>sca<strong>de</strong>irados.A madrugada ingênua parece feita pra eles...Pequenina, ingênua miséria!Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!Eh, carvoero!Quando voltam, vêm mor<strong>de</strong>ndo num pão encarvoado,Encarapitados nas alimárias,Apostando corrida,Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos<strong>de</strong>samparados!Ban<strong>de</strong>ira, na época em que escreveu O Ritmo dissoluto, já morava na ruado Morro do Curvelo e “Meninos Carvoeiros” foi um dos poemas em que expôsRevista <strong>Eutomia</strong> Ano II – Nº 01( 408-427) 414