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Número 13 / 14 - uea - pós graduação

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Governador do AmazonasOmar José Abdel AzizReitor da Universidade do Estado do AmazonasProf o . Dr. José Aldemir de Oliveiralivro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 2 12/4/2011 17:33:04


ANO-7,Nº <strong>13</strong>MANAUS, JULHO-DEZEMBRO,2009ANO-8,Nº <strong>14</strong>MANAUS, JANEIRO-JUNHO,2010UNIVERSIDADEDO ESTADO DOA M A Z O N A SEdiçõeslivro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 3 12/4/2011 17:33:04


Copyright © 2007Governo do Estado do AmazonasOmar José Abidel AzisSecretaria de Estado da CulturaUniversidade do Estado do Amazonas – UEAUniversidade do Estado do AmazonasReitor José Aldemir de OliveiraVice-Reitora Marly GuimarãesPró-reitoria de Pós-Graduação e PesquisaMaria das Graças Vale BarbosaEscola Superior de Ciências SociaisDiretor Randolpho de Souza BittencourtPrograma de Pós-Graduação em Direito AmbientalCoordenador: Serguei Aily Franco de Camargo (2009-atual).Solicita-se permutaSolicitase canjeExchange desiredOn demande l’échangeVogliamo cambioWir bitten um AustauschCoordenadores(as)Prof. Dr. Serguei Aily Franco de CamargoProf. Dr. Walmir de Albuquerque BarbosaCoordenação EditorialProf. Dr. Serguei Aily Franco de CamargoProf. Dr. Walmir de Albuquerque BarbosaProf. Dr. Ozório José de Menezes FonsecaConselho EditorialProfa. Dra. Cristiane DeraniProf. Dr. David Sánchez RubioProf. Dr. Fernando Antonio de Carvalho DantasProf. Dr. Joaquim Shiraishi NetoProf. Dr. Luiz Edson FachinProf. Dr. Ozorio José de Menezes FonsecaProf. Dr. Raymundo Juliano FeitosaProf. Dr. Sandro Nahmias MeloProf. Dr. Serguei Aily Franco de CamargoProfa. Dra. Solange Teles da SilvaProf. Dr. Walmir Albuquerque BarbosaRevisão Técnica e NormativaDenison Melo de AguiarDiagramação e Projeto GráficoFrancisco Ricardo Lopes de AraújoUNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS – UEAPrograma de Pós-Graduação em Direito AmbientalRua Leonardo Malcher, n.º 1728, 5.º andar,Centro, CEP: 69010-170Manaus – Amazonas – BrasilTel./Fax. 55 92 3627-2725Revisão OrtográficaProf a . Rosa Suzana Batista FariasFicha catalográficaLucia Helena Santana Ferreira – CRB 2/1243Hiléia: Revista de Direito Ambiental daAmazônia. ano 7-9, n.º <strong>13</strong>-<strong>14</strong>. UEA - EdiçõesGoverno do Estado do Amazonas / Universidade do Estadodo Amazonas, 2010.p. 336ISSN: 1679-9321 (Semestral)E-mail: revistahileia@<strong>uea</strong>.edu.brSite: www.pos.<strong>uea</strong>.edu.br/direitoambiental/1. Direito Ambiental – Amazônia II.Universidade do Estado do Amazonas. Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental.CDD: 344.046811CDU 349.6 (811.3)(05)livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 4 12/4/2011 17:33:04


SUMÁRIOAPRESENTAÇÃO...............................................................................11PARTE IANTROPOLOGIA OU DIREITO?CRÍTICA A AUTOSUFICIÊNCIA DO DIREITOCarlos Marés.........................................................................................17AS MÚLTIPLAS TEORIAS SOBRE CRIME ORGANIZADO E ASSUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICASErivaldo Cavalcanti..............................................................................33NOTAS SOBRE O OBJETO CONTRATUAL EM FACE DABIOTECNOLOGIA A PARTIR DO “ENSAIO SOBRE A DÁDIVA”Laura Garbini BothRosalice Fidalgo Pinheiro.....................................................................57A LEI DE SEMENTES E OS SEUS IMPACTOS SOBRE AAGROBIODIVERSIDADEJuliana Santilli.......................................................................................79MEIO AMBIENTE, PROPRIEDADE E COBERTURA FLORESTALEdilson Pereira Nobre Júnior............................................................115EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS: UMABATALHA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA REGIÃOSULGladstone Leonel da Silva JúniorRoberto Martins de Souza.................................................................<strong>13</strong>3livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 5 12/4/2011 17:33:04


PARTE IIACESSO E USO DA BIODIVERSIDADEOzorio J. M. Fonseca..........................................................................157PROTEÇÃO AMBIENTAL YANOMAMI: convergências cosmológicas,culturais e de sustentabilidade com suporte constitucional no EstadoBrasileiroEdson Damas da Silveira....................................................................175A EFETIVIDADE PROCESSUAL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICANA GARANTIA DE PREVALÊNCIA DOS DIREITOSTRANSISNDIVIDUAIS EM FACE DOS DANOS AO MEIOAMBIENTEAntônio Ferreira do Norte FilhoSerguei Aily Franco de Camargo.......................................................195DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, TRIBUTAÇÃO E INDUÇÃOAMBIENTALRaymundo Juliano FeitosaAlexandre Henrique Salema Ferreira...............................................209A PÓS-MODERNIDADE E AS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃOWalmir de Albuquerque Barbosa.......................................................231A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A BIOPIRATARIANA AMAZÔNIAAline Ferreira de AlencarFernando Antônio de Carvalho DantasMaria Auxiliadora Minahim..............................................................247livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 6 12/4/2011 17:33:04


PARTE IIIPOR UMA ALTERIDADE JURÍDICA NOS CONFLITOSSOCIOAMBIENTAIS PESQUEIROS: uma análise sobre a ComunidadeSanto Antônio do Rio Urubu – AMDenison Melo de Aguiar......................................................................277A EFETIVIDADE DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICACOMO TRATADO-QUADRO DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DAFAUNA E DA FLORA DO BRASILDiogo de Oliveira Lins........................................................................303PARTE IV - RESUMOS....................................................................317DISSERTAÇÕES DE MESTRADO (JANEIRO/2008 –DEZEMBRO/2009)livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 7 12/4/2011 17:33:04


CONTENTSPRESENTATION.................................................................................11PART IANTHROPOLOGY OR RIGHT?Critical of the right to self-sufficiencyCarlos Marés.........................................................................................17THE MULTIPLE THEORIES ABOUT ORGANIZED CRIME AND ITSMAIN FEATURESErivaldo Cavalcanti..............................................................................33NOTES ON THE OBJECT IN CONTRACT FACE OFBIOTECHNOLOGY FROM THE “ESSAY ON THE GIFT”Laura Garbini BothRosalice Fidalgo Pinheiro.....................................................................57THE LAW OF SEEDS AND THEIR IMPACTS ON AGROBIOVERSITYJuliana Santilli.......................................................................................79ENVIRONMENT, PROPERTY AND FOREST COVEREdilson Pereira Nobre Júnior.............................................................115THE EFFECTUATION OF ETHNIC AND COLLECTIVES LAWS:A BATTLE FOR THE TRADITIONAL COMMUNITIES OF THESOUTH REGIONGladstone Leonel da Silva JúniorRoberto Martins de Souza..................................................................<strong>13</strong>3livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 8 12/4/2011 17:33:04


PART IIACCESS AND USE OF BIODIVERSITYOzorio J. M. Fonseca..........................................................................157ENVIRONMENTAL PROTECTION YANOMAMI: COSMOLOGICALCONVERGENCES, CULTURAL ANDA SUSTAINABILITY WITHCONSTITUTIONAL SUPPORT IN THE BRAZILIAN STATEEdson Damas da Silveira...................................................................175THE PROCEDURAL EFFECTIVENESS OF CLASS ACTION INSERVICE GUARANTEE PREVALENCE TRANSISNDIVIDUAISRIGHTS BY THE DAMAGE TO THE ENVIRONMENTAntônio Ferreira do Norte FilhoSerguei Aily Franco de Camargo......................................................195ECONOMIC DEVELOPMENT, TAXATION AND ENVIRONMENTALINDUCTIONRaymundo Juliano FeitosaAlexandre Henrique Salema Ferreira...............................................209THE POST- MODERN AND THE COMMUNICATION SCIENCESWalmir de Alburquerque Barbosa.....................................................231THE NEED FOR CRIMINAL PROTECTION AGAINST THEBIOPIRACY IN THE AMAZONAline Ferreira de AlencarFernando Antônio de Carvalho DantasMaria Auxiliadora Minahim..............................................................247livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 9 12/4/2011 17:33:04


PART IIIFOR A LEGAL ALTERY IN SOCIAL ENVIRONMENTAL FISHERIESCONFLICTS: AN ANALYSIS ABOUT SANTO ANTÔNIO DO RIOURUBU COMMUNITY – AMDenison Melo de Aguiar......................................................................277THE EFFECTIVENESS OF THE AMAZON COOPERATION TREATYORGANIZATION AS FRAMEWORK FOR ENVIRONMENTALPROTECTION OF FAUNA AND FLORA OF BRAZILDiogo de Oliveira Lins........................................................................303PART IV - MASTERS DEGREE DISSERTATIONS (JANUARY/2008– DECEMBER/2009)...........................................................................317livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 10 12/4/2011 17:33:04


APRESENTAÇÃOA Hiléia, Revista de Direito Ambiental da Amazônia, tem como objetivocontribuir para o desenvolvimento de conhecimento científico que correspondaàs realidades sociais que são estudadas por pesquisadores no campo do DireitoAmbiental e áreas afins. Possuindo, neste sentido, uma variedade de temasrelacionados à complexidade das questões Amazônicas.Esta edição é a condensação de dois números: <strong>13</strong> e <strong>14</strong> da Revista.Correspondente ao segundo semestre do ano 7 da revista (número <strong>13</strong>-julho adezembro de 2009), e primeiro semestre do ano 8 da revista (número <strong>14</strong>-janeiroa junho de 2010), na qual se encontram conteúdo científico de Direito Ambientale diversas áreas afins. Os artigos desta edição envolvem questões relativasaos povos e comunidades tradicionais, Direito Ambiental Penal, PropriedadeIntelectual e questões que se entrelaçam com as realidades da AmazôniaBrasileira.Importante também, agradecermos aos nossos (as) colaboradores(as): Professor Doutor José Aldemir de Oliveira, Magnífico Reitor da UEAe a Professora Doutora Maria das Graças Vale Barbosa, Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa que garantiram os recursos necessários à atualizaçãoda periodização da revista; aos Professores Doutores Ozorio Jose de MenezesFonseca e Walmir de Albuquerque Barbosa e ao Mestrando Denison Melode Aguiar (bolsista CAPES), aos quais foram repassados os encargos deorganização editorial dos dois números da Hiléia, agora entregues aos nossosleitores; aos professores e colaboradores externos; e, finalmente, aos mestrandose seus orientadores, e demais autores que contribuíram com seus estudos nestarevista.Agradecemos, em especial, a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estadodo Amazonas – FAPEAM, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de NívelSuperior – CAPES e ao Conselho Nacional Científico e Tecnológico - CNPQpelo apoio financeiro ao Programa de Pós-<strong>graduação</strong> em Direito Ambiental.Prof. Dr. Serguei Aily Franco de CamargoCoordenador do Programa de <strong>pós</strong>-<strong>graduação</strong>em Direito Ambiental – Universidade doEstado do AmazonasHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 11livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 11 12/4/2011 17:33:05


ÍNDICE - PARTE IANTROPOLOGIA OU DIREITO?Crítica a autosuficiência do direitoCarlos Marés...................................................................................................17Introdução;1 Os estados nacionais e os povos indígenas;2 A autosuficiência do direito;3 A autosuficiência do direito e as outras ciências;4 O direito e os direitos coletivos;5 Os direitos coletivos e a antropologia;Conclusão.AS MÚLTIPLAS TEORIAS SOBRE CRIME ORGANIZADO E ASSUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICASErivaldo Cavalcanti........................................................................................33Introdução;1 Explicado o crime organizando;1.1 Teorias centradas em patologias individuais;1.2 Teoria da desorganização social;1.3 teoria da associação diferencial;1.4 Teoria do controle social;1.5 Teoria do autocontrole;1.6 Teoria da anomia;1.7 Teoria interacional;1.8 Teoria da escolha racional;2 Escolha racional: um enfoque teórico-metodológico para a explicação de crimeorganizado;2.1 Trajetória de Jonh Elster;2.2 A explicação por meio do individualismo metodológico, do reducionismo e aintecionalidade-causalidade;2.3 A explicação por meio de mecanismos;3 as principais organizações criminosas no mundo;3.1 A Cosa Nostra Italiana;3.2 Ndrangheta;3.3. A Camorra;3.4 AS tríades chinesas;3.5 A yakusa;livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>13</strong> 12/4/2011 17:33:05


3.6 A Máfia Russa;3.7 OS Cartéis Colombianos;3.8 O Primeiro Comando da Capital;Conclusão;Referências.NOTAS SOBRE O OBJETO CONTRATUAL EM FACE DABIOTECNOLOGIA A PARTIR DO “ENSAIO SOBRE A DÁDIVA”Laura Garbini BothRosalice Fidalgo Pinheiro...............................................................................57Introdução1. “Vivant”: um novo objeto contratual2. Do contrato ao “don”: notas de ressignificação do contrato3. O “ensaio sobre a dádiva”: um novo “mito fundante”4. A dádiva e a etnografia do “vivant”: outra liberdade possível?ConclusãoReferênciasA LEI DE SEMENTES E OS SEUS IMPACTOS SOBRE AAGROBIODIVERSIDADEJuliana Santilli.................................................................................................79Introdução1. A agrobiodiversidade: um conceito em construção2. Agrobiodiversidade e segurança alimentar, nutrição, saúde e sustentabilidade ambiental3. As leis de sementes e a influência do modelo agrícola industrial4. As sementes e os sistemas agrícolas locais5. A lei de sementes brasileira6. As sementes locais, tradicionais ou crioulas7.As sementes “para uso próprio”ConclusãoReferências BibliográficasMEIO AMBIENTE, PROPRIEDADE E COBERTURA FLORESTALEdilson Pereira Nobre Júnior.......................................................................1151. Função social da propriedade e a tutela do meio ambiente2. Intervenção estatal na propriedade e meio ambiente3. Das florestas de preservação permanentelivro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>14</strong> 12/4/2011 17:33:05


4. A reserva legal5. Agrupamento das situações que ensejam indenização e modo de sua quantificaçãoReferênciasEFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS: UMABATALHA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA REGIÃOSULGladstone Leonel da Silva JúniorRoberto Martins de Souza............................................................................<strong>13</strong>3Introdução;1. Os reconhecimentos jurídicos históricos, a partir da organização e da luta;2. Aparatos normativos garantidores e a utilização do positivismo de combate;2.1. Normas gerais utilizadas pelas comunidades tradicionais; 2.2. Normas específicas;2.2.1. Quilombolas;2.2.2. Faxinalenses;2.2.3. Indígenas;2.2.4. Pescadores Artesanais;2.2.5. Cipozeiras;2.2.6. Ilhéus;3. O choque entre as concepções liberais do direito e os reconhecimento de direitosétnicos e coletivos;Conclusão;Referência Bibliográficalivro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 15 12/4/2011 17:33:05


ANTROPOLOGIA OU DIREITO?Crítica a autosuficiência do direitoCarlos MarésSumário: Introdução; 1 Os estados nacionais e os povos indígenas; 2 A autosuficiênciado direito; 3 A autosuficiência do direito e as outras ciências; 4 O direito e os direitoscoletivos; 5 Os direitos coletivos e a antropologia; Conclusão.Resumo: Analisa a relação difícil dos povosindígenas e o direito na América Latinae a necessidade de haver uma profunda interlocuçãodo direito com a antropologia,especialmente agora, a partir do final doséc. XX, quando os Estados latinoamericanospassaram a aceitar os povos indígenascomo sujeitos de direitos coletivos.Resumen: Hace un análisis de la difícilrelación entre los pueblos indígenas y elderecho em América Latina y la necesidadde un profundo diálogo entre el derecho yla antropología. Muy especialmente desdelos finales del siglo XX, cuando los estadosnacionales latinoamericanos empezaran aaceptar los pueblos indígenas como sujetosde derechos colectivos.INTRODUÇÃO“A lei é uma invenção, se a lei não reconhece o direitos dos índios,os brancos que inventem outra lei” disse Paiaré, incontestável liderança daresistência do povo Gavião da Montanha contra a construção da hidroelétricade Tucuruí. 1Que jurista, por mais ortodoxo e dogmático que seja, pode contestar estaafirmação vinda de uma pessoa que vê o sistema jurídico brasileiro como a leido outro? Que antropólogo pode negá-la sabendo que, realmente, a lei moderna*Carlos Frederico Marés de Souza Filho é Professor Titular de Direito da PontifíciaUniversidade Católica do Paraná, no Programa de Mestrado e Doutorado, e <strong>graduação</strong>de Direito Socioambiental. É Procurador do Estado do Paraná, membro do ILSA, ISA,IBAP. Foi Secretário de Cultura de Curitiba, Presidente da Fundação Cultural de Curitiba,Procurador Geral do Estado do Paraná, Presidente da FUNAI, Procurador Geral doINCRA e Presidente do BRDE. É autor de vários livros e artigos sobre direito, terras,índios, patrimônio cultural e direitos coletivos e socioambientais..1Ver “O renascer dos povos indígenas para o Direito”.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 17livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 17 12/4/2011 17:33:05


é um acordo criado num pequeno centro de poder, portanto uma invenção?É claro que a afirmação pode ser interpretada, reinterpretada, desconstruídae desqualificada, mas sempre fica a irrespondível e dura verdade da criaçãodos Estados Nacionais latinoamericanos, e suas leis, sem qualquer consulta,pergunta ou acordo com as centenas de povos do continente. Os povos quenão pediram para ser súditos da lei inventada. Se fossem consultados talveznão quisessem ou nem mesmo compreendessem a razão de ser de um EstadoNacional concebido e arranjado para outra forma de vida e produção. A durarealidade é, também, que os Estados Nacionais sempre imaginaram que sua Leié muito mais do que uma invenção, chegando às raias de uma ciência ou arte queinterpreta o justo universal e engloba a ética humana, não sendo necessário, porisso, perguntar aos outros se querem ou gostam de sua aplicação. D. João VI, reide Portugal, acreditava que um dia os índios haveriam de entender o quão erabom viver como súditos das justas, humanas e doces lei do seu reino 2 . Paiaré nãopertence ao reino e consegue compreender a natureza da Lei e sabe que, com aclareza de quem olha as coisas como elas são, que ela é fruto de criação, cujalegitimidade só pode existir na lógica de quem a aceitou por nascença ou opção.Paiaré e os Gavião da Montanha não são exceções na América latina.Ao contrário, embora densa e diversa a população da Amazônia brasileira,seguramente não é a região de maior conflito, nem de maiores dificuldades derelacionamento entre os povos indígenas e os respectivos Estados Nacionais. Acondição de sucesso na implantação dos Estados Nacionais latinoamericanos têmsido exatamente a devastação de sua natureza e integração como trabalhadoresassalariados de seus povos. Tudo, evidentemente, passando pela cristianizaçãode seus costumes e a submissão de suas condutas às chamadas normas legaise estados de direito. Assim, quanto maior o sucesso da implantação do Estadomoderno, do capitalismo, tanto maior o conflito, até chegar a aniquilação, que,afinal, como dizia o rei português, é o estado de paz.Nessa medida, fica quase impossível estudar ou conviver com os povosindígenas na América Latina sem relaciona-los com os Estados Nacionais queexercem soberania sobre os territórios que lhes coube viver. Também é quaseimpossível conhecer e estudar os direitos nacionais latinoamericanos semtratar da questão indígena, porque seria sempre um estudo parcial. Esta é umacaracterística marcante dos sistemas jurídicos da América Latina que há muitotempo mantém um velado conflito com os povos originários do continente e2Carta Régia de 5 de novembro de 1808, assinada pelo Príncipe D. João VI que determinaque faça a guerra aos índios botocudos do Paraná, já que foi impossível trazê-losà civilização para “gozarem dos bens permanentes de uma sociedade pacífica e doce,debaixo das justas e humanas leis que regem os meus povos”.18 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 18 12/4/2011 17:33:05


que no final do século XX têm buscado incluir seus direitos coletivos comoexcepcionais e de difícil aplicação, mas obviamente existentes.Assim, a Antropologia e o Direito, na América Latina, tiveram que andarde mãos dadas, entendendo-se mutuamente para colmatar as lacunas que arealidade historicamente insiste em abrir nas duas ciências, artes ou estudos. Nãoapenas na academia e nos estudos de natureza teórica, mas na prática do dia a dia,seja dos tribunais, seja do cotidiano das populações indígenas, o antropólogo e oadvogado se veem obrigados a trabalhar juntos, aquele entendendo ou buscandoentender a lógica individualista e contratualista do direito, este se vendo nacontingência de se despir desta lógica para entender que nem sempre direitoe obrigação se equivalem como exige teoricamente o contrato. Talvez sejamais difícil para o advogado ou juiz ter essa compreensão, exatamente porq<strong>uea</strong>prendeu em sua “ciência” que a realidade deve se adequar às leis legitimamenteelaboradas dentro do Estado de Direito. Ao antropólogo talvez seja mais fácil,acostumado com a diversidade cultural, é capaz de entender o caráter da lei ecompreender que suas mutações não são fruto de um decantado aprimoramentodo sistema, mas de uma nem sempre surda luta de interesses, de uma correlaçãode forças dentro da sociedade chamada envolvente, moderna e capitalista.Dentro desta idéia, o presente trabalho não pretende encerrar umaanálise teórica da Antropologia Jurídica, mas uma análise concreta da realidadelatinoamericana, sua multiculturalidade em confronto com os sistemas jurídicosnacionais que, embora sejam próprios de cada país, tem uma única fonte elógica: a racionalidade moderna.1 OS ESTADOS NACIONAIS E OS POVOSOs Estados Nacionais latinoamericanos foram criados, constituídos é maiscorreto dizer, à imagem e semelhança dos europeus. Os libertadores do continentetinham como ideário o pensamento de Napoleão Bonaparte: conquistar, libertare impor leis civis. Liberdade, igualdade e fraternidade traduzidas para asconstituições nacionais como liberdade, igualdade, propriedade e segurança,foram as palavras chaves das nações nascentes. Uma depois de outra foramsendo escritas as constituições, muito parecidas entre si, precedidas de acerto decontas das elites, de divisões territoriais inimagináveis e arbitrárias, obedecendosomente os interesses e os poderes de grupos e de capitais. Todas esqueceramseus povos, seus índios! A maior parte não conseguiu sequer libertar osescravos, criando uma lacuna ou omissão jurídica tão grande que nela cabia abase principal da produção nacional.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 19livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 19 12/4/2011 17:33:05


A interpretação das duas palavras fortes do ideário, liberdade e igualdade,se enfrentou com uma realidade muito diferente na América indígena. Aprodução que correspondia aos estados nascentes tinha como base o trabalhoescravo e, como consequência, a liberdade foi traduzida como liberdade doEstado, isto é, a liberdade dos nascentes estados latinoamericanos frenteao colonialismo europeu. Os mais autenticamente liberais lutaram contra aescravidão, mas compreendiam a liberdade simplesmente como o expurgo dotrabalho não contratado, do trabalho escravo. Quer dizer, em grande medida,os novos estados latinoamericanos compreenderam com mais precisão o duplosignificado capitalista desta liberdade: a liberdade contratual e a soberaniado Estado. O duplo significado da liberdade implica na exclusão de grupos epovos. O Estado soberano deve ter apenas um povo, que são todos os indivíduoslivres para contratar. Complementando esta idéia, o conceito de igualdade retiraqualquer vínculo grupal dos indivíduos, para tornar cada um igual enquantopessoa. Estes dois conceitos juntos formam um todo coerente e dramáticopara a realidade americana: os escravos, africanos ou indígenas, deveriam sertransformados em trabalhadores livres, despossuídos, prontos para, enquantoindivíduos, contratar com seus patrões. Para isso deveriam ser iguais entre si,desconsideradas todas as idiossincrasias coletivas, culturais, hierárquicas dopovo a que originalmente pertencessem. A organização, língua, religião, direitode cada povo estaria destinado ao ralo da história. É claro que tudo isto deveriaser facilmente substituído pela organização social, língua, religião e direito doestado moderno recém constituído.Diferente da Europa, a constituição do estado moderno capitalista naAmérica Latina encontrou uma sociedade extremamente diversificada não porclasses sociais, mas povos diferenciados com graus de contato e de relaçãomuito variados. Isto fez com que o direito que nasceu a partir daí atendessesomente parcela relativamente pequena da sociedade, aqueles integrados nosnegócios dos novos países e herdeiros do poder colonial. Os juristas, por suavez, ao interpretarem e teorizarem o direito criado, com interpretações e teoriastambém importadas da Europa, não perceberam a profunda e radical diferençados povos locais e imaginaram um direito cuja meta mais generosa haveria deser integrar as pessoas indígenas como trabalhadores contratados, livres e, depreferência, cristãos. E aos escravos o só direito de receber um salário ao finaldo mês se conseguissem continuar trabalhando e se “valessem” a remuneraçãopor receber.Há exceções, é bem verdade. Em alguns lugares e países houve quase oextermínio da população indígena, como Cuba e Uruguai. Em outros, juristasmais sensíveis perceberam as diferenças e propuseram direitos diferenciados.20 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 20 12/4/2011 17:33:05


Mesmos os excepcionais juristas que entenderam as diferenças sociais e, emconsequência, reclamaram por normas legais que as atendessem, tiveram emmente que a situação indígena seria provisória e tão logo pudessem compreendera harmonia do sistema jurídico e estatal, o chamado Estado Social de Direito,deixariam de ser índios, isto é, deixariam de ter uma nacionalidade, etnia, grupoou tribo, para viver como indivíduo, pessoa, cidadão, súdito livre do EstadoNacional. De tão raras, as exceções apenas confirmam a regra geral 3 .A política oficial historicamente foi no sentido de tratar os índios comotrabalhadores. Triste ironia, equiparados aos trabalhadores estrangeiros. Nãopor outra razão a Organização Internacional do Trabalho, OIT, aprovou umaresolução em 1957, a Convenção de número 107, “concernente à proteção eintegração das populações indígenas e outras populações tribais e semi-tribais depaíses independentes”. A lógica desta Convenção é a integração pelo trabalho,quer dizer, regulamentava uma política e legislação de exceção enquantopermanecessem as diferenças culturais, o que a convenção chamava de estadode segregação. As normas legais e as políticas, porém, deveriam ser de tal ordemque não prolongassem o chamado “estado de segregação”. Era uma políticade bondosa eliminação de povos. É claro que se tivesse sido totalmente bemsucedida esta política de assimilação a antropologia estaria condenada a estudarsomente culturas mortas.A convenção 107 foi substituída pela 169, em 1989. Fruto de um novopensamento sobre os povos indígenas, especialmente nas Américas, e donascimento de muitos estados nacionais africanos saídos do colonialismo, anova convenção adota “novas normas internacionais nesse assunto a fim de seeliminar a orientação para a assimilação das normas anteriores”.Não foram somente as normas internacionais que sofreram mudanças,também as leis nacionais e suas constituições passaram a reconhecer o direitodos povos a continuar a ser povos, independentemente do grau, vontade ouperspectiva de integração na chamada ”comunhão nacional”. De fato, na AméricaLatina o final dos anos 80 e durante todo os 90 muitos países reescreveram suasconstituições reconhecendo-se como estados pluri-étnicos e multiculturais. Aomesmo tempo que isto acontecia, havia um reclamo por leis que protegessema natureza e a incluísse no sistema jurídico como objeto ou sujeito de direitos.Este duplo movimento seria uma quebra de paradigma, já que o direito criado econstituído a partir do século XIX era individualista, fundado no contrato e nos3No Brasil se pode citar um dos maiores nomes do direito nacional, ClóvisBevilacqua.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 21livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 21 12/4/2011 17:33:05


não do direito de propriedade privada, passa a ser protegida por outros valoresque não o desejo, vontade ou liberdade do proprietário.Esta proteção genérica e ao mesmo tempo realizável pontualmente geraum novo conflito que ultrapassa a lide interpessoal. Para esta nova situaçãojurídica, que introduz no direito moderno e capitalista, velhos direitos que forampor ele excluídos, como os direitos dos povos e os da natureza, são necessáriosnovos critérios de intervenção e julgamento. O velho e novecentista poderjudiciário, formado por técnicos em direito, que estudam leis e não as diversasformas de vida da natureza ou da humanidade não é suficiente porque nãoconsegue com sua técnica limitada, normativa e, como dizia Paiaré, inventada,dar conta da solução de conflitos que não cabem nos códigos, como a vida ecultura de uma comunidade em disputa com um parque ecológico.A autosuficiência do direito foi, assim, posta a prova. Não são mais doisdireitos absolutos e individuais que se contrapõem em relação a um objeto ouobrigação. Resolver esta equação sempre foi fácil, já que são direitos excludentes,ao ser reconhecido o direito de um, necessária e peremptoriamente, está excluídoo direito de outrem. Trata-se de adequar a realidade ao estabelecido na normaou no contrato, que é norma entre partes. A possibilidade de equívoco é formale uma gama enorme de formalidades foi criada pelo direito para mitigá-lo ouanulá-lo, como a prescrição, a preclusão, a boa-fé, as presunções de legitimidade,as formas processuais, a coisa julgada, etc. Enfim, dito o direito de um excluídoestá o direito de outro. Eis a autosuficiência! Nem outra ciência, religião oucrença poderá desfazer a intervenção do Estado no cumprimento desta decisão.Esta arrogante autosuficiência foi questionada com o ingresso de povos ebens fora do mercado e sem titular. A aplicação de formalidades processuais eprocedimentais não resulta suficiente porque a opção pela manutenção de umdireito individual concreto não exclui a existência de um direito coletivo ou deproteção da natureza. Pior. Ainda, quando ambos devem subsistir.3 A AUTOSUFICIENCIA DO DIREITO E AS OUTRAS CIENCIAS.A discussão acerca da natureza do Direito, se é uma ciência, arte ouprofissão é tão antiga como inócua. A discussão interna do Direito sobre comose constrói ou verifica a legitimidade, também é antiga e inócua. Não importasaber se a legitimidade das normas está limitada a seu espaço puramente jurídicoou flui de uma razão aparentemente meta-jurídica, como a justiça, a dignidadehumana, a integridade pessoal ou patrimonial dos indivíduos ou qualquer outracoisa ditada pelo sentimento, filosofia, moral ou religião. Durante praticamente24 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 24 12/4/2011 17:33:05


toda a sua vida o Direito foi entendido como autosuficiente, independentementeda origem de sua legitimidade. Quer dizer, a legitimidade seria garantida poruma norma, regra ou princípio, anterior ou maior que fosse seu fundamento.Mas atenção, escrita a norma, com uma presunção de legitimidade intrínseca,resta a todos os indivíduos cumprirem. Do princípio fundante à regra executória,tudo é direito. As outras ciências são complementares e apenas enriquecem anorma jurídica. O direito da modernidade cabe em si mesmo: estabelece asregras, as aplica e julga a justeza de sua aplicação.Assim, nos cursos de Direito, ainda hoje, as ciências que são ensinadasapenas explicam as normas jurídicas. A chamada medicina legal, ciênciaauxiliar, serve para esclarecer se houve morte causada ou suicídio, mas quemdecide o homicídio, sua gravidade e pena é o juiz, cuja formação é tão somentejurídica. A história jurídica se transforma rapidamente em história das leis,a história da evolução dos institutos no tempo e o aprimorante das teses noespaço, neste raciocínio, pensar em Antropologia Jurídica é pensar apenas naanálise antropológica do Direito ou, ainda melhor, na análise antropológicada lei. No Direito imbuído de uma dogmática estrita e de uma sacralização àliteralidade da Lei, qualquer ciência, da gramática à antropologia, devem serservis à interpretação do profissional do direito. Tudo isto porque interessa aoDireito o deslinde do contrato e a certeza da culpa na violação da norma.Nesta perspectiva, como o princípio fundante é individual e protetorde coisas como bens de propriedade, qualquer estudo que não contemple arelação de pessoas e sua extensão aos bens, não interessam à velha dogmáticajurídica capaz de reduzir tudo, sentimentos, conhecimentos, saberes e fazeres,crenças e temores, ao interesse patrimonial do indivíduo. Exatamente por isso aautosuficiência do direito relega todo conhecimento a um papel secundário. Naprática, o sistema jurídico apresenta esta autosuficiência de modo a considerarque ninguém é capaz de defender seu direito senão por meio de um advogadoformado em “ciências jurídicas” que apresentará sua defesa também diante deum “cientista do direito”, chamado juiz. Os papéis de advogado, juiz, acusadorsão privativos, mesmo nos tribunais colegiados, as exceções são tão rarasque apenas confirmam a regra. Assim, o que acusa, defende ou julga, precisaeventualmente de auxiliares que são chamados “peritos”. Tecnicamente o peritonão deve saber e muito menos dizer o direito, dirá apenas de sua técnica; aspartes e o juiz devem analisar o chamado laudo pericial como se fossem fatose aplicar o direito. Volta aqui com toda plenitude a máxima dos juízes do séculoXIX: “dá-me os fatos que lhe darei o direito”. O perito será um engenheiro,psicólogo, biólogo, agrimensor ou antropólogo, mas será sempre um técnicoalheio ao direito, será um analista de fatos, enquanto o jurista se dirá o analistaHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 25livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 25 12/4/2011 17:33:05


da justiça e harmonia da sociedade, mas apenas decidirá sobre a forma, isto é, aadequação do fato à lei.Tudo isto foi assim, e assim tem sido, porque o direito estava concebidocomo um apêndice do Estado que, por seu turno, tem por função garantir osdireitos individuais, ser o guardião da propriedade privada e do contrato. Todaesta organização e estrutura se assentam na concepção constitucional do séculoXIX, em que deveria haver um território apenas e um só povo que entrega, ouempresta, nos termos de Rousseau, a soberania à organização chamada Estado.Além desta soberania haveria apenas de existir a vontade individual soberana(livre e igual): nenhum poder que medeie o Estado e o cidadão, na clássicaformulação da Revolução Francesa 4 . Aqui, a ordem jurídica nada tem a ver comas ciências senão para conhecer os fatos e aplicar a Justiça.O Direito, autosuficiente, pode viver ao largo das ciências e das artespreocupado apenas com as relações interpessoais e a necessidade do Estadosalvaguarda-las.4 O DIREITO E OS DIREITOS COLETIVOSPois bem, esta arrumada ordenação estava funcionando para dirimir osconflitos interpessoais e reafirmava cada vez mais a independência do Direito aponto de tornar os profissionais do ramo como fiscais privilegiados da própriasociedade. Estes juristas fiscais passaram a ser ainda mais importantes nospaíses que criaram os Tribunais Constitucionais, formados por juízes togadosbacharéis em Direito e o Ministério Público com legitimidade para proporações civis. Com o ingresso dos direitos coletivos e os objetos difusos o sistemacomeçou a mostrar suas lacunas, não admitidas na autosuficiência, mas clarasna incapacidade de solucionar os conflitosPor direitos coletivos, aqui, se entende o conjunto de direitos que umgrupo humano tem sobre determinado objeto coletivo (coisas, relação, sistemaou conhecimento) sem poder ser chamado de direito de propriedade. O direitocoletivo não pode ser confundido com a propriedade coletiva que existe esempre existiu no direito moderno. Propriedade coletiva significa que maisde uma pessoa têm direito sobre um mesmo bem. A diferença é que o direito4Ver a pro<strong>pós</strong>ito o livro “O contrato social”, de Jean Jacques Rousseau. Ver também achamada Lei de Le Chapellier, originada na revolução francesa, em 1791, que proibiaqualquer organização social, incluindo sindicatos, em nome da livre iniciativa empresarial,que dizer de povos indígenas. Esta lei vigorou em França até 1864.26 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 26 12/4/2011 17:33:05


de propriedade é sempre individual, ainda que uma pluralidade de agentes odetenha, neste caso se pode dizer que cada titular é proprietário de sua porção,ainda que indivisível, sobre ela recaindo as regras estabelecidas para o direitode propriedade individual, sucessão, disponibilidade, etc. Portanto, há um grupotitular da propriedade coletiva formado por indivíduos, e o direito do grupo éo resultado da soma dos direitos de propriedade individual de seus integrantes.Somente é possível integrar este grupo com a aquisição de parte da propriedadedos outros integrantes, portanto somente é possível ingressar ao grupo pormeio da aquisição da propriedade. Ao contrário disto, o direito coletivo nãoé propriedade. O grupo é titular enquanto grupo e nenhum dos seus membrostem direito a parcela do todo: todos tem direito a tudo, mas ninguém tem direitoa parte. Isto tem como consequência que ninguém tem direito a transferir suaparte a outrem e tampouco alguém pode ingressar no grupo por aquisição departe do direito. Em resumo, o primeiro é fruto de um contrato que forma ogrupo e, neste segundo caso, não há contrato, o grupo é “naturalmente” formado.Por isso o direito coletivo é próprio daquelas situações em que um grupo depessoas se reúne por difusos interesses comuns, como família, clãs, povo, ouorganização social e cultural comum, cujos exemplos mais significativos são ospovos indígenas na América latina.A propriedade coletiva se difere dos direitos coletivos, portanto, porq<strong>uea</strong>quela está unida por um contrato, isto é, por obrigações mútuas de pessoas quepara tal manifestaram e expressaram sua vontade de adquirir o bem e assumiras obrigações inerentes ao contrato; já a origem dos direito coletivos nemlonginquamente é contratual, ao contrário, nasce de uma situação natural deestado, isto é, o fato é mais relevante que o direito. Se na primeira, propriedadecoletiva, permanece intacta a idéia de propriedade privada individual, portantoum sujeito individual de direito, na segunda há um sujeito coletivo que afasta einibe a existência de um sujeito individual.A maioria dos sistemas jurídicos latinoamericanos, hoje, aceita aexistência de um direito coletivo, mas poucos admitem em sua prática judiciáriaa existência do sujeito coletivo de direito. Esta aparente incongruência se dá pelofato de que o reconhecimento em juízo dos direitos coletivos tem se dado, namaioria das vezes, como direitos de sujeitos difusos, isto é, não caracterizados,não delimitados, não claramente conhecidos.Expliquemos melhor isto. Ao lado do sujeito coletivo de direito está umobjeto, elevado a categoria de bem jurídico que não integra nenhum patrimônioindividual. Os sistemas jurídicos da América Latina, a partir de 1988, pelo menos,aceitam a existência destes objetos (bens jurídicos não patrimonializados) comobens ambientais ou culturais, material e imaterialmente considerados, e também,Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 27livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 27 12/4/2011 17:33:05


se assemelhando a estes bens, as políticas públicas de saúde, moradia, educação,de trabalho ou renda. Todos estes direitos podem se realizar individualmente,real ou ficticiamente, além de ser um direito da coletividade. Até mesmo o meioambiente e patrimônio cultural podem ser reduzidos ao interesse individual deproteção, na idéia de que todos, isto é cada um, tem direito a eles. Apesar deimprópria, porque todos aqui significa “ninguém tem direito individual sobrea coisa”. esta redução tem sido feita. De qualquer forma, quando é difícil estaredução ao individuo, como o meio ambiente e a cultura, os sistemas tementendido como “bens protegidos” e ao não ter um sujeito definido, individual,o chamam de direito “difuso”. Note-se que o direito assim entendido se realizapelo objeto, independentemente do sujeito, por isso alguns menos avisadossustentem que o sujeito do direito pode ser o próprio bem.Muito diferente disto são os direitos que se definem coletivos porque osujeito é naturalmente coletivo, como os povos indígenas, quilombolas, ciganose outras comunidades que se diferenciam por não estarem unidas por relaçõescontratuais. Neste caso o objeto, bem jurídico, se define pela existência do grupocomo seu titular, como a terra, a organização social, língua, crenças religião,cultura, etc. Reconhecer este direito em sua plenitude tem sido muito difícilmesmo para os mais avançados sistemas da América Latina.O não reconhecimento demonstra uma resistência do sistema aos própriosdireitos coletivos, preferindo chama-los de interesses ou mesmo caracterizálospelo objeto. O Direito do final do século XX resolveu proteger situações,relações e bens não integrantes dos patrimônios privados, sob a ameaça dedestruição ambiental e cultural. Assim, o Direito passou a proteger florestas,animais, ecossistemas, biodiversidade, mas também bens arquitetônicos,históricos, artísticos, materiais e imateriais 5 . Ao proteger estes bens o faz deforma genérica, sob uma teoria de que são bens sem titulares de direitos, quandomuito tratam como se o titular do direito de proteção fosse todo o povo, no maisamplo sentido que a modernidade deu a povo, titular da soberania do Estado.Daí que este titular é difuso, e, portanto, a própria idéia de que este direito deproteção ao meio ambiente e cultura seja difuso.5A proteção dos chamados bens culturais ou históricos, artísticos e paisagísticos são anteriorese remontam o início do século XX, mas somente vieram a ter alguma relevânciae estudo jurídico a partir do final, quando foram equiparados aos ambientais.28 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 28 12/4/2011 17:33:05


5 OS DIREITO COLETIVOS E A ANTROPOLOGIAA teoria jurídica ainda busca explicações para o fenômeno dos direitoscoletivos e bens jurídicos não personalizados, mas se debate na justificativadogmática da aceitação de normas protetoras tão heterodoxas. Alguns dogmasfortemente estabelecidos foram rompidos, como o da irresponsabilidade penalda pessoa jurídica, o da patrimonialização dos bens jurídicos, da legitimidade einteresse de agir para estar em juízo, do caráter absoluto da propriedade privadada terra, da relação jurídica sem contrato e outros. Tem sido difícil para osjuristas, juízes e outros profissionais do direito, aceitar estas “novidades”. Éclaro que a discussão quando não inclui povos indígenas e outras sociedadeshumanas diferenciadas, se limita a entender o fenômeno do objeto de direitosem sujeito ou com um sujeito difuso. Mas mesmo nesta limitada discussão quese encerra com a aceitação de que a norma jurídica pode estabelecer proteçõesespeciais para o meio ambiente, para a cultura, para o bem estar de cada um,como se fossem aprofundamentos das políticas públicas ou a transformação daspolíticas publicas em direitos coletivos, há uma visível abertura do Direito.De fato, para entender este fenômeno jurídico, o profissional precisaconhecer, ter informações seguras de outras ciências, impensáveis para a velhadogmática, como biologia, zoologia, geologia, arquitetura, paleontologia, entremuitíssimas outras. Ainda que o Direito continue tratando estas novidadesconceituais como peritagem, já é claro que há uma profunda diferença entre operito informante de fatos e este cientista, que não é um profissional, mas umacadêmico que discutirá conceitos, remetidos pela lei. Portanto, entrará no campoda interpretação jurídica ao lado do juiz ou do advogado. Nesta configuração,é o cientista não jurista que indica as razões do direito e não ao contrário. Nainterpretação das leis de proteção ambiental o jurista tem pouco a dizer a maisdo que repetir a própria lei, quem diz o que é equilíbrio, fauna em extinção,patrimônio cultural, dano ambiental, são outros cientistas. Mais uma vez devesenotar aqui que a lei moderna tratava apenas de relações interpessoais, emgrande medida se reduzindo à propriedade privada e ao patrimônio individual.Desta forma, ao discorrer sobre uma árvore ou fruto pendente, o direito discutiaapenas a propriedade ou os danos causados ao patrimônio alheiro em relação àarvore ou fruto pendente. O papel do jurista ou juiz, portanto, era entender osfatos para aplicar o direito, daí a necessidade, no máximo, de um perito paradizer onde se localizava a árvore ou onde cairia naturalmente o fruto. Como ingresso dos direitos coletivos e objetos despatrimonializados, surgiu umacomplexidade que exige interpretação científica da lei e não apenas dos fatos. Ocientista não jurista passa a ser intérprete deste direito e não apenas colaboradorHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 29livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 29 12/4/2011 17:33:05


para matéria de fato.É claro que ainda há uma relutância muito grande de parte da dogmáticatradicional, assim como ainda há uma relutância das outras ciências, quetampouco restaram puras com a necessidade de cotejar direitos. O que há, de fato,é uma aproximação para que juristas e cientistas possam se entender, quebrandoa autosuficiência da interpretação jurídica e introduzindo normatividade egarantias típicas do direito no conceitual das outras ciências.A relação do direito com as outras ciências teriam mudado profundamentese apenas tivesse sido mexido nas coisas, bens jurídicos, objeto de direito. Masestas mudanças se tornam ainda mais imperiosa e muito mais profunda, quandose torna visível que as alterações extrapolam o objeto do direito de propriedade,e alcançam o sujeito de direito. Então, as ciências que quebram a autosuficiêncianão são apenas as refentes ao ambiente e a natureza, mas também ao serhumano. Passa a haver uma necessidade de interpretação da lei sobre conceitosde comunidade, povos, etnias, organizações sociais diferenciadas, etc. objetodas ciências sociais, especialmente da antropologia. Portanto com a introduçãodos sujeitos coletivos de direito, a velha dogmática jurídica se vê na obrigaçãode compartilhar os conceitos com as ciências sociais, além das outras ciênciasdescritoras de realidades fáticas.Além disto, os sujeitos coletivos de direito alteram em muito maiorprofundidade a velha dogmática individualista e é claro que assim o seja.Enquanto tratávamos de objeto, a lei apenas cobria o bem jurídico com ummanto de proteção, criando sanções administrativas ou penais para aqueleque a violasse, mas quando falamos de sujeitos coletivos de direitos, tocamosdogmas rígidos, como o da igualdade e da liberdade individuais. Aqui o sistemaestremece. A igualdade coletiva, todos os coletivos iguais em direito, significaque todos tem que respeitar o sistema de todos, nem sempre internamente iguais.Quer dizer, as relações internas de um coletivo pode não estabelecer comoprincípio a igualdade, exatamente porque as co-obrigações não são fundadasem contratos, mas em relações de solidariedade, religiosidade, respeito oudádiva. Estes coletivos, assim organizados, têm direitos próprios e comuns, sesubmetendo como um todo, e não individualmente, na comunhão nacional. NaAmérica Latina, o melhor exemplo destes coletivos são os povos indígenas quesobrevivem praticamente em todos os Estados nacionais.Neste cenário, a Antropologia entra direta e profundamente porque é aciência que deve compartilhar com o Direito o entendimento da relação dospovos, ou que nome se dê a estes grupos humanos, com os Estados Nacionais.Há neste compartilhamento uma dupla afetação: por um lado o direito nãoconsegue resolver sozinho esta relação porque é incapaz de decidir sobre direitos30 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 30 12/4/2011 17:33:05


que são estranhos a seus códigos e a antropologia, por seu turno, tem que agregara seus fundamentos teóricos a normatividade do direito. Esta junção, ora vistacom lentes mais antropológicas, ora mais jurídicas, rompe com a autosuficiênciado direito, mas rompe, também, com o isolamento da antropologia. Querdizer, a partir destes olhares múltiplos, talvez mais fácil para os antropólogosacostumados com realidades múltiplas, nasce a necessidade desta unidade que sepode nominar antropologia jurídica. Fique claro, porém, que não se trata de umaantropologia que estuda o direito vigente em determinada época e sociedade,nem um direito que analisa institutos de sociedades diferenciadas se apropriandodas ferramentas da antropologia, mas o estudo de como os sujeitos coletivos dedireito se relacionam com a contraparte estatal ou privada individual.CONCLUSÃOColocando em termos mais claros, as sociedades latinoamericanas sãomúltiplas e complexas, formada por muitos povos e comunidades diferenciadascom maior ou menor grau de integração e relação com os Estados nacionais.Os Estados nacionais construíram uma ficção de que todas as pessoas estariamintegradas individualmente como cidadãos ou sujeitos individuais de direitos,negando assim o reconhecimento dos grupos, povos e comunidades, que, apesardeste não reconhecimento continuam a existir. O Direito se ocupou sempredesta ficão e, portanto, desconsiderou a existência dos povos. A Antropologia seocupou sempre dos povos, despreocupando-se dos direitos nacionais que poucotinham a ver com os povos originários salvo na qualidade de genocida.Ocorre que no final do século XX o Direito na América Latina abriu-separa o reconhecimento dos povos originários e seus direitos coletivos, passandoa reconhecer, ainda que com pouca eficácia, a natureza de sujeitos coletivos dedireito a estes povos. Surge então, para o Direito, uma necessidade imperiosa,a de se valer dos métodos e instrumentais antropológicos para entender estenovo sujeito reconhecido, já que não pode ser integrado nos códigos de formauniforme porque afinal, cada povo é único, não se admitindo generalizações queproporcionem uma “igualdade” entre eles.Por outro lado, ao serem reconhecidos como sujeitos de direitos, estespovos passaram a ter, querendo ou não, sabendo ou não, uma relação com osEstados nacionais e seu direito. Então surge para a Antropologia uma necessidadeimperiosa de conhecer, interpretar relacionar-se com o mundo das normasHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 31livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 31 12/4/2011 17:33:05


“inventadas” pelos Estados nacionais, precisando do método e instrumentaisgeralmente retóricos da Direito.Estes dois caminhos, um trilhado pelo jurista e outro pelo antropólogo,se encontram numa clareira de horizontes arq<strong>uea</strong>dos e distantes em que os doismétodos se utilizam mas não se confundem, que um conhecimento continuanecessitando imperiosamente do outro, cuja divisão de trabalho, tão ao gosto daciência moderna, fica comprometida, seja porque não se juntam por obrigaçõesrecíprocas (contrato), nem se estabelecem na mutação do que sempre foi(cultura). Esta clareira, dificilmente habitada por uma só pessoa, se chamaantropologia jurídica.Artigo recebido em: junho /2010Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010.32 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 32 12/4/2011 17:33:06


AS MÚLTIPLAS TEORIAS SOBRE CRIMEORGANIZADO E AS SUAS PRINCIPAISCARACTERÍSTICASErivaldo Cavalcanti * Sumário: Introdução; 1 Explicado o crime organizando; 1.1 Teorias centradas em patologiasindividuais; 1.2 Teoria da desorganização social; 1.3 teoria da associação diferencial;1.4 Teoria do controle social; 1.5 Teoria do autocontrole; 1.6 Teoria da anomia;1.7 Teoria interacional; 1.8 Teoria da escolha racional; 2 Escolha racional: um enfoqueteórico-metodológico para a explicação de crime organizado; 2.1 Trajetória de JonhElster; 2.2 A explicação por meio do individualismo metodológico, do reducionismo e aintecionalidade-causalidade; 2.3 A explicação por meio de mecanismos; 3 as principaisorganizações criminosas no mundo; 3.1 A Cosa Nostra Italiana; 3.2 Ndrangheta; 3.3.A Camorra; 3.4 AS tríades chinesas; 3.5 A yakusa; 3.6 A Máfia Russa; 3.7 OS CartéisColombianos; 3.8 O Primeiro Comando da Capital; Conclusão e Referências.Resumo: Neste trabalho descritivoexplicativonossa preocupação foiapresentar as principais teorias acercade crime organizado. Trata-se de umacomplexa cadeia que se inicia comconceitos de organização criminosa, tantodo ponto de vista jurídico, como políticoe sociológico, açambarcamos desde asteorias do controle social, do autocontrole,da anomia, a interacional e a escolharacional, a qual nos atemos com maiorrigor dado aos seus meios explicativos.Para a partir daí adentrarmos nas principaisorganizações criminosas vigentes nomundo.Palavras-chave: Teorias do crime; crimeorganizado; organizações criminosas.Abstract: In this descriptive-explanatorywork our concern was to present themain theories about organized crime.This is a complex chain that starts withconcepts of criminal organization, bothfrom a legal standpoint, such political andsociological, embezzled from the theoriesof social control, self-control, of anomie,the interactive, rational choice, the whichwe abide more strictly to its facilities asexplanatory. From there we turn to themajor criminal organizations existing inthe world.Keywords: Theories of crime, organizedcrime, criminal organizations.*Prof. Dr. do Curso de Direito do Centro Universitário Nilton Lins (UniNilton Lins) edo Centro Universitário do Norte (Uninorte).Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 33livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 33 12/4/2011 17:33:06


INTRODUÇÃOO perigo apresentado pelo adensamento das atividades das organizaçõescriminosas é, na contemporaneidade, um fenômeno de escala planetária. Ocrime organizado tem-se convertido em um dos maiores obstáculos enfrentadospelos governos e pela sociedade, dentro dos mais díspares contextos do cenáriopolítico internacional.A ação dos grupos criminosos no seio dos Estados traz conseqüênciasprofundamente deletérias, sejam em países democráticos como os Estados Unidos,em processo de amadurecimento democrático como na Rússia, desenvolvidoseconomicamente como na Espanha e Itália ou em desenvolvimento como noBrasil.O crime organizado tem expandido significativamente seu raio de alcance,atuando em diversas áreas e trazendo prejuízo às instituições e a sociedadecivil como um todo. O crescente poder dessas associações criminosas abalaas estruturas do Estado democrático de direito, promovendo insegurança, odescrédito e ameaçando as garantias e liberdades fundamentais.Apesar de a expressão “crime organizado” já fazer parte do vocabuláriocorrente, sendo empregada para designar as complexas cadeias articuladaspelas facções criminosas, o grau de teorização acadêmica no que concerne aessa temática, permanece limitado. Os empreendimentos analíticos que sedesenvolvem a compreensão deste fenômeno e as pesquisas empíricas quefornecem subsídios explicativos a respeito deste objeto de estudo, são, muitasvezes, pouco claras e estritamente caracterizadoras que garantem no máximoum conceito e deixam uma lacuna na comprovação e explicação de seusmecanismos e de sua dinâmica.Percebe-se, então, que a maioria dos trabalhos que buscam caracterizaro crime organizado não se preocupam com indagações fundamentais para suaadequada compreensão. Situação essa sintetizada por Oliveira (2004, p. 16).:Para apreender de modo abrangente o sofisticado fenômenodo crime organizado é necessário à busca de respostas paraas seguintes indagações: 1) o que é crime organizado? 2)por que surgem as organizações criminosas? 3) por q<strong>uea</strong>tores estatais cooperam com a criminalidade organizada?as buscas dessas respostas requerem dados empíricos ecaminhos teóricos preestabelecidos34 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 34 12/4/2011 17:33:06


Nesse sentido, cabe destacar, que, em decorrência das análises imprecisase da multiplicidade das interpretações a respeito da temática em apreço, nãoexistem elementos suficientes capazes de viabilizar um ponto teórico preciso afim de seguir em tal abordagem.Entretanto, em conseqüência da necessidade de se estabelecer basespara essa análise, faz-se necessário utilizar um quadro teórico que possibiliteo entendimento da questão aqui abordada. Para tanto, procuramos lançar mãode pressupostos teórico-metodológicos que se têm revelado mais adequadosao entendimento deste fenômeno social: o neo-instutucionalismo, que é acombinação do instrumentalismo sociológico, histórico e da escolha racional(HALL e TAYLOR, 2003), bem como das elaborações teórica de Elster (1994)em sua explicação por mecanismos.Desse modo, esta investigação tem como objetivo proceder à construçãode um significado mínimo do que seja crime organizado e explicar seusmecanismos de atuação. As características desse crime são apontadas por meiode uma revisão bibliográfica das principais vertentes explicativas que dão contado aludido fenômeno. A partir daí procuramos construir uma definição que tomapor base analítica perspectivas das Ciências Sociais, explicando os mecanismosde atuação das organizações criminosas por meio das relações causais,possibilitando, assim, a construção de uma teoria explicativa (OLIVEIRA,2004, passim).Dividimos nossa abordagem em quatro tópicos, inicialmente procuramosexplicar o crime organizado tendo como fonte norteadora a explicação dasprincipais teorias sociológicas que versam sobre o tema posto, para isso fomosdas teorias centradas nas patologias individuais a teoria interacional; em seguida,tratamos de expor a escolha racional em busca de estabelecer critérios objetivos;e por fim, apresentamos as principais organizações criminosas presentes naatualidade.1 EXPLICADO O CRIME ORGANIZANDODeterminadas abordagens na Sociologia utilizam-se do conceito de“conduta desviada” para explicar o crime como desvio social, ou seja, umcomportamento que se afasta das expectativas sociais e contraria os padrões emodelos da maioria social. A esse respeito, define Boudon (1995, p.4<strong>14</strong>).:Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 35O desvio é o conjunto de comportamentos e situações queos membros de um grupo consideram não conformes àssuas expectativas, normas ou valores e que, por isso, ocorlivrohileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 35 12/4/2011 17:33:06


em o risco de suscitar condenação e sanções de sua parte.Isso significa que o sociólogo considera desviante as açõese as maneiras de ser que são mal vista e sancionadas pelamaioria dos membros de um grupoAssim, um desvio corresponde a uma atitude reprovável, e para quesemelhante fato possa ocorrer é necessário que se tenha a noção daquilo quevenha a ser reprovável. Não é possível efetivamente falar em injustiça sem antesconhecer o significado daquilo entendido por justiça, isto é, não se classifica algocomo falso sem antes conhecer o que é verdadeiro. Logo, o desvio pressupõea existências de um universo normativo, o qual raramente constitui-se umconjunto homogêneo. Dessa forma, a distinção entre o que seja desvio ou nãodesvio é variável, dependendo do universo normativo de cada grupo.Como conseqüência, tem-se que o conceito de um ato como criminososvaria em relação ao juízo que é feito pela sociedade sobre esse ato, ou seja, oprincipal critério para se classificar uma conduta como desviante é a reação queela provoca. Alenta Durkheim (2000): “não o reprovamos por ser crime, mas éum crime por que reprovamos”.A sociologia Criminal é uma ciência que não se ocupa unicamente emexplicar a origem da criminalidade, mas também, e de forma incisiva, em analisála.Dessa forma, o estudo do fenômeno criminoso não é realizado apenas medianteuma abordagem historicista, mas também por intermédio de metodologias que sepreocupam em compreendê-lo empiricamente. As teorias que buscam explicaras causas de um crime lançam mão de um conjunto de variáveis e fatoresconsiderados relevantes para seu entendimento. Consequentemente utiliza umexpressivo número de modelos teóricos e empíricos, não raro, divergentes entresi.Segundo Cano (2002, passim) é possível identificar as diversas abordagenssobre as causas do crime em cinco grupos: teorias que tentam explicar o crimeem termos de patologia individual; teorias centradas no homo econômicos, istoé, no crime como uma atividade racional de maximização dos lucros; teoriasque consideram o crime como subproduto de um sistema social perverso oudeficiente; teorias que entendem o crime como uma perda de controle e dadesorganização social na sociedade moderna; e, correntes que defendemexplicações do crime em função de fatores situacionais ou de oportunidades.A Sociologia Criminal contemporânea tem duas grandes vertentes: anorte-americana e a européia. O modelo europeu estrutura-se sobre o legadointelectual do Sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), tendo comomaior instrumento analítico a chamada teoria da anomia social. Esta percebeo crime como se tratasse de um fator constituinte da ordem social dotado de36 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 36 12/4/2011 17:33:06


funcionalidade, mas que toma aspecto patológico depois de ultrapassar certoslimites aceitos coletivamente, gerando, assim, um estado de anomia. Esta teserepresentou uma nova forma de perceber o crime, deixando de entender essefenômeno com base estrita nas características individuais negativas (físicas epsicológicas) dos infratores considerados individualmente, e passando a explicaro comportamento criminal por meio de processos macros sociológicos própriosdo ordenamento sociopolítico.O modelo norte-americano, por sua vez, relaciona-se com a Escolade Chicago, da qual nasceram os demais esquemas teóricos. Os modelossociológicos, que progressivamente passaram a explicar as origens e o modusoperandi da criminalidade, partem da premissa do crime como fenômeno socialseletivo, estreitamente ligado a processos, estruturas e conflitos sociais. Taiselaborações contribuíram para um conhecimento realista do problema criminal,apresentando a natureza “social” do problema, como também a multiplicidadede fatores que nele atuam.1.1 TEORIAS CENTRADAS EM PATOLOGIAS INDIVIDUAISAs teorias baseadas nas patologias podem ser divididas essencialmenteem três grandes grupos ou categorias: as de natureza biológica, psicológica epsiquiátrica. As teorias de natureza biológica têm Cesare Lombroso (1835-1909)seu principal representante. O referido autor pretendeu encontrar uma causageral para o comportamento criminoso. Baseado em critérios antropométricose raciológicos, o teórico afirmava que determinadas características físicascondicionavam aspectos socioculturais dos indivíduos, explicando suasdisposições morais e consequentemente a natureza de comportamento. Dentroda perspectiva delineada por Lombroso, certos fatores como as formaçõesósseas do crânio, o formato das orelhas, entre outras características, tornavampossível encontrar os indicadores da patologia criminosa.A mencionada ênfase biológica das causas do crime colocada pelas tesesdo médico criminologista italiano teve inicialmente grande projeção nos meiosacadêmicos devido ao método empírico do qual se valeu em suas investigações(com autópsias e medições cranianas, por exemplo). As idéias lombrosianasforam posteriormente criticadas por conta do seu conteúdo evolucionistaextremado, pelo suposto caráter atávico do chamado delinqüente nato e emfunção do papel atribuído aos estigmas, classificados em sua teoria como fatoresdegenerativos.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 37livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 37 12/4/2011 17:33:06


Por não levar em consideração os condicionantes exógenos e sociais,essa tradição analítica perdeu credibilidade e foi aos poucos sendo abandonada,principalmente a<strong>pós</strong> a Segunda Grande Guerra, com a derrota da AlemanhaNazista e a denúncia dos crimes de guerra do III Reich colocou-se fim àpossibilidade de se sustentar teorias biológico-raciais.Inspirada na perspectiva lombrosiana, a psiquiatria acrescentou que oscriminosos seriam uma espécie de indivíduo inferior, que teria característicascomo transtorno mental, alcoolismo, neuroses, estresses ou outras particularidadesdanosas. Pelo prisma da Psicologia, os trabalhos criminológicos realizadosbuscavam medir objetivamente o grau em que criminosos eram psicologicamentediferentes de não criminosos. Contudo, essas teorias foram descartadas, vistoque os experimentos realizados demonstraram que não havia distinção algumaentre criminosos e não criminosos na ótica de traços psicológicos intrínsecos.Recentemente, em razão dos avanços no campo da genética, da BiologiaSocial e da Neurobiologia, alguns criminologistas e outros estudiosos docrime têm procurado explicar as características biopsicológicas e o históricode vida pessoal do indivíduo em conjunto. Para a Biologia social, o crime, emparticular o homicídio, decorreria da necessidade consciente ou inconscientedos indivíduos de preservar sua linha genética, e para a neurobiologia do crime,haveria uma relação positiva entre portadores de neuropatologias e homicidas.Em suma: as teorias focadas nas patologias individuais seriam umasespécies de junção de problemas biológicos ou mentais com problemasrelacionais.1.2 TEORIA DA DESORGANIZAÇÃO SOCIALA teoria da desorganização social corresponde a uma abordagem sistêmicacujo foco de análise é centrado em torno das comunidades locais, as quaissão entendidas como um complexo sistema de rede de associações formais einformais. Essas associações seriam condicionadas por diversas variáveis comoo status socioeconômico (posição social e econômica ocupada pelo indivíduona estrutura social); heterogeneidade étnica (dessemelhança biológica e culturalde grupos de indivíduos); mobilidade residencial (volubilidade, inconstânciana fixação de moradia); desagregação familiar (decomposição estrutural dafamília); urbanização; redes de amizades locais; participação institucional edesemprego.A teoria proveniente da chamada Escola Sociológica de Chicago nasceuem razão do aumento da densidade populacional, ocasionada pela imigração e38 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 38 12/4/2011 17:33:06


migração de pessoas para a cidade de Chicago em virtude de sua localizaçãogeográfica e do momento político por que passavam os Estados Unidos daAmérica. A conseqüente falta de estrutura e a ineficiência ou impossibilidade desustentar eficazmente o crescimento da cidade provocam uma onda de crimesavassaladora. Estudiosos, ao buscarem respostas para a problemática criminalenfrentada pela sociedade e pelas autoridades locais, constataram que as cidadeseram organismos vivos divididos em áreas naturais habitadas por tipos humanosdiferentes com distintos modos de vida. Verificaram, também, que significativaparcela do comportamento criminoso abundante nos grandes centros urbanosera fruto de males sociais, tais como a desorganização resultante da perdade valores, o desfazimento familiar, a ausência de vínculos de vizinhança emobilidade constante.1.3 TEORIA DA ASSOCIAÇÃO DIFERENCIALDentro do escopo analítico proposto por essa escola, é por meio daexperiência pregressa e de interações pessoais estabelecidas mediante o processode comunicação que os indivíduos determinam seus comportamentos diante desituações de conflito.Sutherland (1945) afirmou que na década de 30 do século passado àcriminalidade não era originada da desorganização social, marginalização ou daexistência de código de valores diferenciados, mas do aprendizado. Como emuma sociedade existem diferentes interesses, os homens se associam conformeesses interesses, aprendido o comportamento delitivo com esse convívio dosinterpessoais, ou seja, do processo de comunicação.Segundo essa teoria, a conduta criminal é aprendida assim comoa conduta virtuosa. Da mesma forma, é na família que ocorre o processodecisivo de aprendizagem. Portanto, a associação diferencial caracteriza-secomo conseqüência do princípio de aprendizagem e por meio de associaçõesou contatos em uma sociedade pluralista e conflitiva, ou seja, o crime nãopode, nessa perspectiva, ser tratado como algo anormal ou como fruto de umapersonalidade imatura, mas sim visto como se tratasse de um hábito adquirido;uma resposta a situações reais que o sujeito aprende.Têm-se como variáveis consideradas importantes para a abordagemda teoria do aprendizado social, como também é conhecido esse paradigmaexplicativo, o grau de supervisão familiar, a intensidade de coesão nos gruposde amizade, a existência de amigos com problema com a polícia, assim como apercepção dos jovens sobre outros envolvidos com problemas de delinqüência,jovens morando com os pais e em contato com técnicas criminosas.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 39livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 39 12/4/2011 17:33:06


1.4 TEORIA DO CONTROLE SOCIALEssa interpretação preconiza que a crença e a percepção do indivíduo emconcordância com o contrato social (acordos e valores vigentes mantidos porconvenção social) ou a ligação com a sociedade é o que leva o indivíduo a nãoseguir o caminho da criminalidade, Ou seja, ao contrário das demais teorias quebuscam entender o que leva um indivíduo a cometer um crime, a incorrer empráticas delituosas, a teoria do controle social procura razões que expliquem oque leva a imensa maioria dos indivíduos a obedecer ao ordenamento jurídicoe as normas sociais em vigor, apesar do fato de contarem esses sujeitos comum potencial necessário para violá-las e, destarte, a sociedade lhes oferecernumerosas oportunidade para fazê-lo.Para os teóricos do controle social, não é o modelo do castigo o fatorfundamental capaz de explicar o comportamento do infrator, tal como assimdeclaravam os teóricos da criminologia clássica. Para essa abordagem, devemser levados em consideração os vínculos entre os indivíduos e a ordem social. Aochamar a atenção para os mecanismos de controle impostos pelo ordenamentosociopolítico como fatores que servem de parâmetros para a tomada de decisãodos sujeitos, os autores dessa linha afirmam que o indivíduo evitaria o delito pordesejar manter seu comportamento de acordo com as expectativas da sociedade.Situação que se deve à lógica societária, na qual obedecer às leis traria maisvantagens que desvantagens.A análise da conduta desviada pela teoria do controle social não circundaapenas as baixas classes sociais, segundo seus defensores, um diagnóstico docomportamento delitivo e válido para todos os estratos sociais.Como variáveis da teoria, têm-se o envolvimento do cidadão no sistemasocial, a concordâncias com os valores e as normas vigentes, a ligação filial,amigos delinqüentes e crenças desviantes. Dessa forma, quanto maior for oenvolvimento do indivíduo na sociedade e com os valores sociais e normasvigentes, menor será sua chance de tornar-se um criminoso.1.5 TEORIA DO AUTOCONTROLEConforme o entendimento de Molina & Gomes (2002, passim) a teoriado autocontrole tem inequívocas conexões com a Psicanálise a delinqüênciaé resultado de uma relativa falta de normas e regras individualizadas, deum desmoronamento de controles sociais. A desviação social é vista comoconseqüência funcional de controles pessoais e sociais débeis.40 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 40 12/4/2011 17:33:06


Assim, esta tem como referência o não desenvolvimento de mecanismospsicológicos de autocontrole na fase dos dois anos a pré-adolescência, que, pelafalta de imposição de limites, geram distorções no processo de socialização.Um exemplo disso pode ser evidenciado quando a “anormalidade”decorrente de deformações no processo de socialização da criança advémda negligência na educação ministrada pelos pais caracterizada pela falta deimposição de limites. Na adolescência, o indivíduo passaria a exibir condutastendenciosas baseadas exclusivamente em seus interesses individuais semconsiderar possíveis conseqüências em longo prazo.1.6 TEORIA DA ANOMIAA teoria da anomia remonta aos estudos desenvolvidos por Durkheim,autor de três obras essenciais na moderna Sociologia: as regras do métodosociológico (1895), a divisão social do trabalho (1893) e o suicídio (1897). Oreferido autor entendia o crime como um fenômeno social normal, por ser umatração generalizada a todas as sociedades e por estar ligado às condições de vidacoletiva.A<strong>pós</strong> constatar que a criminalidade existe em qualquer sociedade e emqualquer momento histórico, extraiu disso duas conseqüências: que a condutairregular é inextirpável e as formas de conduta anômica são determinadas casopor caso pelo tipo social dominante e seu estado de desenvolvimento.Para Durkheim, além de o crime ser normal (não patológico), ele pode sercometido por qualquer pessoa de diferentes extratos sociais, e ele não é derivadode anomalias de uma ordem social intacta. O crime, então, passaria a cumpriruma função “integradora e inovadora” própria do funcionamento normal dassociedades.Em a Divisão Social do Trabalho (1999 b) o teórico relaciona oindivíduo e a coletividade utilizando dois conceitos: a solidariedade mecânicae a solidariedade orgânica. Na primeira típica das sociedades ditas primitivas,a consciência coletiva sobrepõe a maior parte das consciências individuais. Énela que o indivíduo se encontra estreitamente integrado ao tecido social; já nasegunda, em conseqüência da maior autonomia exercida por ele, a sociedadeapresenta a consciência coletiva em menor dimensão.A teoria anômica ganha expressão no estudo desenvolvido por Durkheimem O Suicídio (2000), que lhe permitiu demonstrar as estreitas relações existentesentre o indivíduo e a sociedade. Nessa obra, o autor estabelece sua conhecidatipologia do suicídio como fenômeno sociologicamente interpretável: o suicídioHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 41livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 41 12/4/2011 17:33:06


egoísta, o altruísta e o anômico.Com bases estatísticas oficiais, ele realizou inferências sobre a freqüenteocorrência de suicídios em comunidades protestantes em detrimento dascatólicas, explicação resultante da idéia de integração religiosa. Durkheimexplicou, baseando-se na noção de integração familiar, que o fenômeno pelosuicídio era menos freqüente entre os indivíduos casados que entre viúvos,divorciados ou celibatários. No mesmo trabalho, percebeu ainda que, em razãoda coesão sociopolítica em torno da idéia de nacionalidade, a taxa de suicídiosdiminuía em momentos de grandes acontecimentos políticos. Como conclusão,verificou que o suicídio variava na razão contrária ao grau de integração dasociedade religiosa, familiar e política respectivamente.Assim, a visão da sociedade como depositária de valores, projetada nomodelo sociocriminal que o sociólogo francês defendia, fomentou uma visão decrime, em que ele passou a ser encarado não como resultado apenas de condutasanti-sociais, mas como resultantes de condutas socialmente contextualizadas.1.7 TEORIA INTERACIONALEssa teoria percebe a perspectiva evolucionária e os efeitos recíprocoscomo dois elementos de extrema importância para a sustentação da abordagemda delinqüência, não somente como um conjunto de fatores e processos sociais,mas a relação de causa e conseqüência entre uma variedade de relações recíprocasque são desenvolvidas ao longo do tempo. Na perspectiva evolucionária,presume não ser o crime uma constante na vida do indivíduo, mas um processoque se inicia com as atividades criminosas, iniciada por volta da faixa etáriacorrespondente aos 12-<strong>13</strong> anos, tende seu desenvolvimento entre 16-17 anos,finalizando-se aos 30 anos. Na perspectiva interacionista, o delito e a reaçãosocial são independentes e inseparáveis uma vez que a conduta desviante é umaqualidade que é atribuída mediante processos complexos de interação social.1.8 TEORIA DA ESCOLHA RACIONALO paradigma explicativo conhecido como teoria da escolha racionalcaracteriza-se pelo emprego do individualismo metodológico e pela ênfase naintencionalidade das ações realizadas pelo sujeito. Visto como um ator dotadode racionalidade e preferências, o indivíduo é mostrado por essa abordagemcomo se tratando de um agente que se comporta de modo estratégico com o42 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 42 12/4/2011 17:33:06


pro<strong>pós</strong>ito de maximizar seus ganhos e reduzir seus custos. No que concerne àsexplicações criminológicas, a teoria da escolha racional entende que o indivíduodecide a respeito de sua participação em atividades criminosas por meio daavaliação racional entre ganhos e perdas esperadas, advindos das atividadesilícitas vis-à-vis o ganho alternativo no mercado legal. Na escolha racional, aação individual é determinada pelas conseqüências confrontadas com o custobenefício.Nesse contexto, considera-se toda uma gama de condições que levamo indivíduo a cometer o delito: podendo ser as motivações por lucro material,satisfação sexual e emocional, aprovação dos pares, resolução e diferenças comamigos, etc.O conceito de decisão tomado racionalmente é a linha de força destateoria. A dimensão da escolha consciente, tomada com base nos desejos do autore da margem de manobra que este de fato possui para caracterizá-lo (e minimizálo)é, por assim dizer, o fator-chave na compreensão não apenas do crime, masde uma vasta gama de fenômenos sóciais cujo componente agencial se revelapreponderante. No que diz respeito à criminologia de modo mais específico,essa tradição analítica afirma que a opção a ser tomada pelos sujeitos reflexivos,diante da participação em atos delituosos ou em respeito à ordem legal em vigor,depende da racionalidade do ator na busca de seus objetivos.A referida teoria entende que o indivíduo considera o risco de ser preso,de ser punido pelo sistema de justiça criminal ou por sanções sociais e informaisdo grupo a que pertencem, a dificuldade de conseguir emprego, ou seja, váriosfatores são colocados na balança, a depender do lado para o qual ela pender,determinará o cometimento ou não do crime. Assim, trata-se de uma relaçãocusto-benefício que serve de parâmetro para o ator definir um curso de açãomais adequado (racional) a aquisição de seus interesses.2 ESCOLHA RACIONAL: UM ENFOQUE TEÓRICO-METODOLÓGICOPARA A EXPLICAÇÃO DE CRIME ORGANIZADOContemporaneamente, os estudos sobre o significado das organizaçõescriminosas e da sua ação diante das instituições do sistema de justiça permanecemlimitados. Essas deficiências são verificadas também no que diz respeito aosmecanismos que lhe dinamizam.Com o objetivo de contrastar essa realidade, buscar-se-á neste tópico,explicar o crime organizado por meio de seus mecanismos de atuação. Paratanto, o presente esforço analítico emprega os pressupostos teóricos da escolharacional de Jonh Elster. Posição teórica essa que lista os princípios norteadoresHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 43livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 43 12/4/2011 17:33:06


para a explicação nas Ciências Sociais, quais sejam: a intencional-causal; oindividualismo metodológico atrelado ao reducionismo; e um enfoque baseadoem mecanismos estabelecendo tais “unidades explicativas” como premissa paraa elucidação do funcionamento da vida em sociedade.2.1 TRAJETÓRIA DE JONH ELSTERO Cientista Social norueguês Jonh Elster tem-se destacado nos ciclosacadêmicos desde o lançamento de Ulysses and the Sirens em 1979 (Ulissese as Sereias), como um nome importante contra o reducionismo da Sociologiaas Ciências Naturais. Para isso, o referido autor vem empregando conceitosextraídos da teoria da escolha racional, derivada da teoria dos jogos, inauguradapelos matemáticos Jonh Von Neumann e Oskar Morgenstern e que tambéminclui as contribuições fundamentais de autores do porte de Jonh Harsanyi, JohnNash, Howard Raiffa, Thomas C. Schelling e Herbert Simon, entre outros.Em Elster, a Sociologia serve-se de elaborações teóricas da ciênciaeconômica para melhor explicar o comportamento humano, cujas característicasbiológicas teriam, per si, muito pouco a revelar. Notabilizam-se a esse respeito osconceitos de maximizador local e global por ele utilizado na obra acima citada.A diferença entre ações que visem no máximo locais ou no máximo globais sópoderia ser adequadamente explicada a<strong>pós</strong> a adoção de uma teoria da escolharacional. Tal estratégia persiste ainda no livro Peças e Engrenagens das CiênciasSociais publicado em 1989.A Filosofia das Ciências Sociais, proposta por Jonh Elster, é marcadaprincipalmente pela defesa do individualismo metodológico, como uma doutrinaem que todos os fenômenos sociais são explicáveis pelos indivíduos em suasações, objetivos e crenças.A variante do individualismo seria a teoria da escolha racional para aexplicação social. Esta serviria como um programa de pesquisa para as CiênciasSociais, em que o cientista social se inclinaria para os processos individuaisdas ações dos indivíduos agirem baseados em seus objetivos e crenças, nãosignificando dizer, no entanto, que os indivíduos sejam sempre racionais,mesmo porque em boa parte de sua obra ele analisa a irracionalidade e as falhasda racionalidade.Depois de colocada a teoria da escolha racional como ponto de partidapara o estudo dos fenômenos sociais, o autor passa a destacar o papel das normase valores na motivação e restrição da escolha racional. Mais adiante, utilizamsedos conceitos de cultura e emoções para explicar as normas sociais comoelementos antes vistos apenas nos moldes da irracionalidade respectivamente.44 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 44 12/4/2011 17:33:06


2.2 A EXPLICAÇÃO POR MEIO DO INDIVIDUALISMO METODOLÓGICO,DO REDUCIONISMO E A INTECIONALIDADE-CAUSALIDADEA explicação intencional-causal é, para Elster, espaço reservado àsCiências Sociais, admitindo-se, no entanto, as explicações subintencional esupraintencional. A primeira seria observada quando as operações mentais nãodirecionadas pela intenção ocorressem, tendo, contudo, localização por trás dasintenções individuais; a segunda, quando ocorressem resultados não esperadospelas ações intencionais. Compatibilizando, portanto, essa explicação, oelemento causal estruturador de qualquer ciência como o elemento intencional:a liberdade e autonomia que se caracterizam como traços humanos.Ao explicar a ação intencional como a parte fundamental da vida socialdo indivíduo, os fenômenos sociais seria resultado dessa ação em interação comos desejos e crenças individuais que seriam os elementos motivadores dessaação. Devendo, portanto, a explicação em Ciências Sociais ser o reducionismode fenômenos complexos aos seus elementos constitutivos: as ações individuais.Ficando claro, dessa forma, como Elster utiliza-se da explicação intencionalcausalpara articulá-la com o individualismo metodológico e o reducionismo.Nesse sentido, ponderam Ratton Júnior & Morais (2003, passim), quetal posicionamento epistemológico, o individualismo metodológico, deve serentendido como uma forma de reducionismo explicativo. Elster nos diz que parair de instituições sociais e padrões agregados de comportamento para indivíduos,utiliza-se o mesmo tipo de operação quando se vai de células para moléculas. Eexplicar é fornecer um mecanismo, abrir uma caixa-preta e mostrar as peças eengrenagens, os desejos e crenças dos indivíduos que geram o resultado “social”agregado.2.3 A EXPLICAÇÃO POR MEIO DE MECANISMOSOs mecanismos sociais são uns enfoques teórico-metodológico assumidospor diversos autores que propõem diferentes, mas, de certa forma, aproximadasconcepções do que venha a ser um mecanismo social. Segundo Merton (1973),mecanismos seriam processos sociais com conseqüências para as partes naestrutura social. Assim, prioritariamente a Sociologia teria o dever de localizaros mecanismos, estabelecendo as condições sob as quais eles ocorrem, falhametc.A explicação por mecanismos é uma alternativa metodológica a quatrooutras posições, a saber: o modelo dedutivista de inspiração popperiana; o relatoHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 45livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 45 12/4/2011 17:33:06


compreensivo ou interpretativo próximo da etnografia; grandes sínteses da teoriasocial contemporânea ao molde de Jeffrey Alexander, Anthony Giddens, JurgenHabermas e Pierre Bourdieu e o enfoque centrado nas relações entre variáveis.De acordo com Elster é preciso fazer cinco distinções fundamentais arespeito do que não sejam as explicações causais, ou seja, cinco questões queexemplificam o que não é uma explicação por mecanismos, quais sejam:a) Explicações causais diferem de proposições causaisverdadeiras. O mecanismo causal deve ser indicado e identificado,não se pode apenas citar a causa. Assim, não é suficientedizer que a pobreza gera crime, é preciso demonstrarcomo e por que mecanismos a pobreza produzirá criminalidade;b) Explicações causais diferem de afirmações sobrecorrelação. Se, por exemplo, um evento for seguido invariavelmentepor outro evento de tipo diferente, isso não querdizer necessariamente que eventos do primeiro tipo acarretemeventos do segundo tipo, pois existirá outra possibilidade,a de os dois serem comuns de um terceiro evento;c) Explicações causais diferem de afirmações sobrenecessitação. Relata que um evento poderia ter ocorrido dediferentes maneiras da que ocorreu não explica o eventoproblemaque se pretende explicar. Para se explicar umevento é necessário relatar como e por que ele ocorreu;d) Explicações causais diferem/devem ser isoladas doato de contar histórias. Nessa quarta distinção, Elster vaidiferenciar um relato etnográfico da ausência de ambiçãoexplanatória nas Ciências Sociais, afirmando que contaruma história é dizer o que ocorreu e como poderia ter ocorrido;já a explicação diria o que ocorreu e como ocorreu;e) Explicações causais diferem de predições. É possívelexplicar sem predizer e predizer sem explicar; nãoexiste uma relação obrigatória entre as duas (RATTONJÚNIOR E MORAIS, 2003, p 397-398).Dessa forma, explicar para Elster é o mesmo que fornecer um mecanismo:O termo mecanismo relaciona-se a cadeias intencionais deum objetivo para uma ação, como também cadeias causaisde um evento para o seu feito. O papel dos mecanismosé duplo: eles nos tornam capazes de ir do maior para omenor, das sociedades para os indivíduos; eles reduzem o46 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 46 12/4/2011 17:33:06


intervalo de tempo entre os explanans e explanandum (...)mecanismos são padrões causais facilmente reconhecíveisque ocorrem frequentemente e são desencadeados sobcondições geralmente desconhecidas e com conseqüênciasindeterminadas (RATTON JÚNIOR E MORAIS, 2003, p.398).Um mecanismo não comporta uma aplicação universal que permite apredição e o controle de eventos sociais, mas promovem um encadeamentocausal, suficientemente geral e preciso, passível de ser encontrado em contextosvariados. Os mecanismos correspondem, dentro da teoria elsteriana, a cadeiasintencionais: a um continuum de ligações que conectam um objetivo a uma açãoou um evento a um efeito. Tais cadeias causais lançam, segundo o teórico, pontesentre os diferentes níveis de análise propiciando a explicação dos fenômenossociais. Esse instrumento heurístico diferencia-se das chamadas leis científicasgerais por conta de sua ênfase no sentido da ação dos indivíduos circunscritaa determinadas circunstâncias. Assim, procura não estabelecer enunciadosuniversalmente aplicáveis, mas sim explicações coerentes a respeito de certoseventos sociologicamente relevantes em contextos específicos.Reconhecer as ações dos indivíduos como racionais facilita a explicaçãopor mecanismos, uma vez que em cada peça do mecanismo existe um indivíduoracional que toma decisões intencionalmente com o objetivo de maximizar seusbenefícios e conquistar algum fim. Disso decorre que, tendo seus objetivosinteligíveis, compreender-se-ão as possíveis interações das peças presentes nosmecanismos da criminalidade organizada.3 AS PRINCIPAIS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS NO MUNDOAlgumas organizações criminosas são adventos do século passado.As diversas práticas de crimes levaram muitos países a enfrentar problemascausados por bandidos associados com organizações criminosas. A Itália foi oberço das máfias do mundo, ainda no século XIX, na Sicília.Em 1860, instigado pela unificação da Itália, o Vaticano se declarouindependente e o Papa Pio IX convocou todos os católicos a reagir contra aautoridade do Estado italiano. Aceita a convocação, os bandos sicilianosiniciaram a reação contra a polícia e quando a situação parecia sob controle,os integrantes desse grupo formaram a organização mundialmente conhecida:Cosa Nostra (coisa nossa). Posteriormente, surgiu a Camorra em duas regiõesdo Sul (Calábria e Nápoles), e quando centenas de famílias italianas emigrarampara os Estados Unidos da América, ampliaram o raio de ação desses grupos.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 47livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 47 12/4/2011 17:33:06


3.1 A COSA NOSTRA ITALIANAConsiderada a máfia mais influente da Itália, é sem dúvida, o grupocriminoso de maior destaque e de ramificação de atividades por ações diretascomo homicídio de indivíduos de outras organizações, da sociedade e até mesmode membros do seu próprio grupo, muita vezes em coligações com outrasorganizações presentes no país. Possuem um clã especializado em paraísosfiscais, aplicação em empreendimentos turísticos e prestações de serviços(LUPO, 2002).A história da organização criminosa Cosa Nostra surgiu em meio àinserção do narcotráfico, propiciando a internacionalização das relações,tornando possível a elaboração de novas táticas criminosas com o intuito defornecer matéria-prima para outros países. A Camorra napolitana associou-se aCosa Nostra garantindo seus negócios como o contrabando de cigarros e outros,segundo afirmam Pellegrini & Costa Júnior(1999, p, 64):Movidos pela necessidade de empregar do melhor modo asnotáveis disponibilidades financeiras obtidas, os membrosdas associações começaram a estreitar as relações estáveiscom expoentes do circuito financeiro e bancário e a penetrarde modo maciço em atividades econômicas legais dentroe fora da Sicília. Começa assim, a delinear-se a chamada“máfia empreendedora”Outro elemento importante nas fases mutativas da Cosa Nostra foi àascensão da coalizão mafiosa dos Corleones, que durante os anos 1980 liderarama organização com uma gestão tirânica, impondo enterros às famílias rivais,dando início a exteriorização das atividades em busca de maior influência ecriando uma insatisfação nas outras famílias que passaram a fazer negócios comoutras máfias. Isso gerou um desequilíbrio entre os mafiosos “históricos”.Apesar das operações desencadeadas pelo governo italiano contra o crimeorganizado no final dos anos 90 (operações mãos limpas - mani pulite), essegrupo mafioso dispõe, ainda, de significativa capacidade de atuação. A CosaNostra expande seus negócios por diversos países e emprega, em suas atividadesilícitas, recursos tecnológicos de ponta. Tal como assegura Maireovitch (2007),um dos maiores experts em criminalidade organizada, a máfia agora prefere omouse à metralhadora, isto é, tecnologia à brutalidade.48 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 48 12/4/2011 17:33:06


3.2 NDRANGHETAA organização criminosa denominada Ndrangheta surgiu na Calábria,uma das regiões mais pobres da Itália, onde continua a operar de formaincisiva, tendo também bases criminais em outras regiões, fruto da estreitacooperação e contratos de ajuda mútua com a Cosa Nostra. Tem uma estruturade criminalidade definida como “nuclear”, cada território tem seu grupo familiarque não se submete ao controle de autoridades regionais ou provinciais superior,excetuando a região de Reggio.Ao contrário das outras tem um sistema piramidal de chefia, os gruposde Ndrangheta são baseados em famílias com fortes laços de sangue. Alémdessa estrutura, verifica-se a agregação de outras famílias mafiosas por meiodo matrimônio (elemento essencial para o aumento do poderio e influência nogrupo):Trata-se de uma “política matrimonial”, ou melhor, de uma “estratégiamatrimonial” que se pratica habitualmente. A expansão da ndrina, portanto sãomuitas vezes marcados por matrimônios entrecruzados e, por vezes, liamesigualmente sólidos como os conparagg (PELLEGRINE E COSTA JÚNIOR,1999, p. 30).Mesmo sendo os membros do crime organizado italiano conhecidos comomafiosos, no clã da Ndrangheta, um membro é conhecido por “ndrinu” e o clãem si como “ndrina”. Estes além de manterem firmes suas vantagens parentais,confundem-se facilmente no ambiente onde se alocam, por aparentaremhumildade, não ostentando a riqueza e fortuna que possuem. Por ser umaorganização muito competitiva e orientada para atividades criminosa, teminvestimentos de caráter local, nacional e internacional. Com uma nova ordemadministrativa semelhante a uma estrutura federativa, a mesma aumentou suacapacidade de infiltrações, ganhando maior peso econômico e difusão territorial.Graças a essas medidas, conta com uma média de 5.6000 filiados. Suas célulasoperam com um razoável grau de autonomia, mantendo, entretanto, contatocom a máfia siciliana em razão da proximidade geográfica entre a Calábria e aSicília. Fora da Itália, a Ndrangheta opera em diferentes países como Espanha,França, Bélgica, Argentina e Austrália (PELLEGRINE E COSTA JÚNIOR,1999, passim).Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 49livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 49 12/4/2011 17:33:06


3.3. A CAMORRADentre as demais organizações criminosas a Camorra é a menos propensaa alianças estratégicas. Embora exerça atividades além das fronteiras regionais,seus adeptos estão distribuídos em mais de cem clãs. Devido à ausência de umaestrutura hierárquica rígida e aos ataques de grupos rivais, têm seu equilíbriosujeito a constante ajustes.A Camorra nasceu no meio urbano em Nápoles e mantém o controledos territórios pelo uso da violência. Os chefes dos clãs, os agiotas e mafiosos,atuam de modo a conseguir influência entre as instituições oficiais do Estado eangariar o apoio político dos líderes locais. A crise social na cidade se convalidana combinação da Camorra, desemprego e drogas. Os lucros com o mercado dedrogas em Nápoles são consideravelmente elevados.Entre suas atividades, a principal são os entorpecentes, na qual se estimaque tenha um canal de tráfico de cocaína por meio dos cartéis colombianos,sendo, com isso, uma das maiores fornecedoras finais de cocaína no mundo.Não restringindo seu campo de atuação ao narcotráfico, o grupo tambémpratica estelionato, contrabando de cigarros e jogos de azar. Entretanto, mesmomediante o progresso do grupo, em 1996, graças a Lei antimáfia, a Campânia foià região que apresentou o maior número de Conselhos Municipais dissolvidos,por conta de seu envolvimento com o crime organizado (PUTNAM, 2000).3.4 AS TRÍADES CHINESASAs máfias chinesas são denominadas de tríades, palavra que exprime ostrês lados de um símbolo que indica as três forças primárias do universo: o céu, aterra e o homem. A tríade chinesa foi fundada como sociedade secreta no séculoXVI para sustentar a Dinastia Ming e afastar os invasores da Dinastia Quing.Tais organizações têm uma estrutura rigorosamente vertical, comuma ordem de poder hierárquica diferenciada, em que os membros da elitedirigente não participam diretamente das atividades criminosas, mas atuamcomo mediadores e financiadores das atividades do grupo, administrando-ointernamente e participando da divisão dos proventos ilícitos. Os membros domédio escalão comandam suas atividades criminosas com plena autonomia, comotambém organizam a estratégia operacional sem necessariamente precisaremde autorização prévia da elite dominante. Essa estrutura de organização, deautonomia das articulações periféricas, torna a organização mais ágil e eficaz nodesempenho de suas atividades.50 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 50 12/4/2011 17:33:07


3.5 A YAKUSAA máfia japonesa tem a sua origem na Idade Média; vendedoresambulantes que freqüentavam casas de jogos, como também os gerentes dasreferidas casas. Surge daí a explicação para o nome que deriva da seqüência detrês números: 8, 9 e 3, que se pronunciam ya-ku-as. Esses números são os maisbaixos dos perdedores de um jogo de cartas chamado hanafuda.A organização do grupo tem a forma de uma unidade independentecom um boss no comando composto por inúmeros membros. A fidelidade eobediência absoluta é o que liga o chefe e seus afiliados, assemelhando-se arelação entre pai e filho. Um afiliado que cometer um erro pode remediá-locom a autopunição, fazendo um talho na falange do dedo mínimo demonstrandoassim o arrependimento e submissão, entregando ao chefe a extremidade cortadaenvolvida em um lenço.A atuação do grupo opera principalmente no campo do tráfico deanfetaminas e outros tipos de drogas, na exploração da prostituição, comércio dematerial pornográfico, jogos de azar, usura, extorsão e no tráfico de imigrantes.A Yakusa tem o caráter estritamente étnico, sendo reservado apenas paraos japoneses, compartilhando o modelo vértice familiar (semelhante à máfia) eo modelo federativo (aliança entre grupos ou famílias).3.6 A MÁFIA RUSSANo final dos anos 1980 e no início dos 1990, a então União Soviéticafoi extinta, separando-se em diversos países entre eles a Rússia. Por conta deacontecimentos políticos e sociais, a transição soviética para a economia demercado facilitou a penetração do crime organizado. Nessa transição, houveum processo de abertura comercial e um programa de privatizações em que nãohavia suficientes mecanismos restritivos à aquisição de bens, outrora estatais,não tendo os interessados em adquirir esses bens do comprovar a origem de suarenda e a legalidade de seus empreendimentos. Tal estado levou as organizaçõescriminosas a desenvolverem suas atividades ilegais na economia de mercado,provocando, assim, uma associação entre a máfia russa e as organizaçõescriminosas internacionais, como os cartéis colombianos e a máfia siciliana quejuntavam esforços na lavagem de dinheiro provenientes de transações elícitas.Segundo Castells (1999, p. 218)., os governos russos, de transição e <strong>pós</strong>socialistastêm culpa, pois:Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 51livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 51 12/4/2011 17:33:07


Em algumas cidades (por exemplo, Vladivostok), as decisõesda administração local são altamente condicionadaspor suas conexões de origem duvidosa. Além disso, mesmonos casos em que uma determinada empresa não esteja relacionadaao crime organizado, ela atua em um ambiente emque a presença de grupos criminosos é uma constante, emespecial nos setores bancários, de importação e exportação,compra e venda de petróleo e de metais raros e preciosos3.7 OS CARTÉIS COLOMBIANOSOs países da América do Sul são os maiores produtores de coca, sendoa Colômbia a representante de maior influência entre as organizações mafiosasdedicadas ao narcotráfico. Um dos principais grupos criminosos é o Cartel deMedellín que, com o Cartel de Cáli, abastece a maioria do mercado de drogasamericano. O governo dos Estados Unidos e as autoridades colombianas, emconjunto, têm sistematicamente promovido ações para desarticular os cartéisde drogas e os narcoguerrilheiros (Plano Colômbia). Os americanos fornecemauxílio militar, treinamento para as unidades policiais, além, de apoio financeiro.Esses cartéis sofreram fortes derrotas ultimamente, mesmo assim o tráficonão cessou na Colômbia, saindo das mãos de tais organizações para as mãos degrupos paramilitares de esquerda como as Forças Armadas Revolucionárias daColômbia (FARCs) e de direita como os grupos paramilitares, que lutam entre sie contra o Estado, mantendo ligações com diversas organizações criminosas emtodo o mundo e sendo bem-sucedidos por representarem o tráfico de drogas queé o maior negócio criminal do último século (LEAL, 2004, passim).3.8 O PRIMEIRO COMANDO DA CAPITALO PCC é uma organização de criminosos existente no Brasil, criada parasupostamente defender os direitos dos cidadãos que estejam encarcerados nopaís.Surgiu na década de 1990 no Centro de Reabilitação Penitenciária dacidade de Taubaté, local que acolhe prisioneiros transferidos de outros presídiose considerados de alta periculosidade pelas autoridades estatais.A organização é comandada por presos e foragidos principalmente doEstado de São Paulo. Vários ex-líderes estão presos, inclusive um dos seusprincipais líderes, que é o Marcos Williams Herbas Camacho, vulgo Marcola,52 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 52 12/4/2011 17:33:07


atualmente cumprindo sentença judicial.O PCC que foi também chamado no início como “partido do crime”,afirma que pretende “combater a opressão dentro do sistema prisional” e vingara morte dos “cento e onze presos” no episódio que ficou conhecido como“massacre do Carandiru”, quando a Polícia Militar do Estado de São Paulo foiintervir numa rebelião de presidiários no Pavilhão 9 da extinta Casa de Detençãode São Paulo e resultou na morte de cento e onze presos.O grupo usa o símbolo chinês do equilíbrio yin-yang em preto e branco,considerando que era “uma maneira de equilibrar o bem e o mal com sabedoria”.Com o objetivo de conseguir dinheiro para financiar o grupo, os membrosdo PCC exigem que os “irmãos” (os sócios) paguem-lhes uma taxa mensal.O dinheiro é usado para comprar armas e drogas, além de financiar ações deresgate de presos ligados ao grupo.Para se tornar membro do PCC, o criminoso precisa ser apresentado poroutro que já faça parte da organização e ser “batizado”, tendo como padrinho3 “irmãos”. Um membro só pode batizar outro 120 dias depois de ter sidobatizado, e o novo “irmão” tem de cumprir um estatuto de 16 itens redigidospelos fundadores e atualizados por Marcos Camacho.Diante do enfraquecimento do Comando Vermelho do Rio de Janeiro,que tem perdido vários pontos de drogas no Rio, o PCC aproveitou para ganharcampo comercial e chegar a atual posição de maior facção criminosa do Brasil,com ramificações em presídios de vários estados como Mato Grosso do Sul,Paraná, Bahia, Minas Gerais, entre outros. (PRIMEIRO, 2001, passim).CONCLUSÃOA eficiência limitada do Estado no combate ao crime organizado estárelacionada com a falta de políticas de segurança pública. Para se chegar aessas decisões, no entanto, é preciso também conhecer quais são as peças e osmecanismos de fenômeno crime organizado. Da mesma forma, identificar suasorigens, causas e efeitos na sociedade. Este artigo procurou investigar algumasdessas prerrogativas, para, a partir delas, trazer o conceito de crime organizadoevitando qualquer tentativa de definição adjetiva.Pelo exposto evidencia-se que a teoria da escolha racional tem grandepoder explicativo a respeito das razões que levam o indivíduo criminoso acometer delitos de forma organizada. Entendendo-se por escolha racionala opção pelo indivíduo da ação que ele prefere entre todas aquelas que têmHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 53livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 53 12/4/2011 17:33:07


possibilidade de executar, em outras palavras, uma escolha preferencial baseadana relação custo-benefício.A<strong>pós</strong> descrever as principais organizações criminosas no mundo tomandopor base o método indutivo ou redução ôntica causal, constata-se, também, queo crime organizado tem mecanismos próprios de atuação, sendo seus principais:a simbiose com o Estado, em que os criminosos vão buscar na administraçãopública, por meio de corrupção e troca de favores, a proteção para continuarimpune e expandir seus negócios; o poder econômico conseguido medianteatividades ilegais; e a lavagem de dinheiro usada pelos criminosos para legalizargrandes quantias advindas dos negócios ilícitos.Por fim, é em ELSTER que se encontra o caminho teórico-metodológicomais viável para a explicação do crime organizado. É mediante suas explicaçõespor meio do individualismo metodológico, reducionismo e intencionalcausalidade,como também, de sua explicação por mecanismos, integrando ateoria a práxis que se chega ao conceito mínimo do que venha a ser o crimeorganizado.REFERÊNCIASBOUDON, R. Tratado de Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1995.CANO, I. As teorias sobre as causas da criminalidade. Rio de Janeiro: IPEA,2002.CASTELLS, M. A era da informação: economia, sociedade e cultura (fim demilênio). São Paulo: Paz e terra, 1999. vol. 3.DURKHEIM, É. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes,1999 (a)._____. Da divisão social do trabalho. São Paulo: Martins Fontes, 1999 (b)._____. O Suicídio: estudo de Sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.54 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 54 12/4/2011 17:33:07


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SAMPSON, G. W. B. “Community structure and crime: testing socialdisorganization theory.”In: American Journal of Sociology. v. 94, 1987, p. 774-802.SUTHERLAND, E. H. “Is white-collar crime?” In: American Journal ofSociology. v. 10, 1945, p. 19.Artigo recebido em: julho/2010Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010.56 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 56 12/4/2011 17:33:07


NOTAS SOBRE O OBJETO CONTRATUAL EMFACE DA BIOTECNOLOGIAA PARTIR DO “ENSAIO SOBRE A DÁDIVA”Laura Garbini Both*Rosalice Fidalgo Pinheiro **Sumário: Introdução; 1. “Vivant”: um novo objeto contratual; 2. do contrato ao “don”:notas de ressignificação do contrato; 3. O “ensaio sobre a dádiva”: um novo “mito fundante”;4. A dádiva e a etnografia do “vivant”: outra liberdade possível?; Conclusão;Referências.Resumo: Na contemporaneidade, o juristadepara-se com situações para as quais oDireito não apresenta respostas. Doação deórgãos, “barriga de aluguel” e circulaçãodos dados genéticos, ensaiados pelo avançodas biotecnologias, compõem o “vivant”e tornam-se objeto de circulação no mercado,suscitando um paradoxo: a pessoaconverte-se em objeto contratual (BEL-LIVIER e NOIVILLE). A propriedade e ocontrato, forjados pelo Direito Moderno,mostram-se incapazes de dissipar esse paradoxo,restando sua completa inadequaçãopara tutelar a pessoa no tráfego negocial.Valendo-se dos ensinamentos de ROPPO,deposita-se no contrato a causa dessa inadequação:nos ordenamentos capitalistas asAbstract: In contemporary times, thelawyer is faced with situations for whichthe law does not provide answers. Organdonation, "surrogate" and movementof genetic data, tested by the advance ofbiotechnology, make up the "vivant" andbecome subject to the market, posing aparadox: a person becomes a contractualobject (BELLIVIER and NOIVILLE).Property and contract forged by the ModernLaw, appear unable to resolve thisparadox, leaving his complete unsuitabilityfor protecting the person in the tradenegotiations. Drawing on the teachings ofROPPO, is deposited in the contract becauseof this inadequacy: in jurisdictionscapitalist relations between men take on* Doutoranda em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da PontifíciaUniversidade Católica do Paraná e Mestre em Antropologia Social junto ao Programade Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná.Professora de Sociologia e Antropologia do curso de <strong>graduação</strong> em Direito das FaculdadesIntegradas do Brasil – UniBrasil.** Doutora e Mestra em Direito das Relações Sociais junto ao Programa de Pós-<strong>graduação</strong>em Direito da Universidade Federal do Paraná. Professora Adjunta de Direito Civilnas Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil. Professora do Programa de Mestradoem Direito da UniBrasil. Professora titular de Direito Civil do Centro UniversitárioCuritiba.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 57livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 57 12/4/2011 17:33:07


elações entre os homens assumem o aspectodas relações de mercado, prevalecendo,por necessidade do sistema econômico,a lógica da correspectividade. Nas sociedadesmodernas a liberdade se perfaz na“troca de equivalentes”, o que se traduzem ausência de liberdade fora do mercado.Por isso, nos sistemas jurídicos, informadospela ordem capitalista, excluem-se doobjeto contratual situações destituídas depatrimonialidade. Eis que em situações,como a doação de órgãos, “barriga de aluguel”e circulação de dados genéticos, faltaa liberdade de mercado. Voltando os olhospara o “Ensaio sobre a Dádiva”, obra deMAUSS, objetiva-se realizar um diálogoentre Direito e Antropologia, capaz deapontar respostas para o quadro descrito.A dádiva, no sentido discutido por esteautor, pode ser entendida e expandida paraalém do Estado e do mercado, pois circulaem favor do laço social, das relaçõesde reciprocidade, expressando portanto,como notado por GODELIER, CAILLÉ,GODBOUT e LANNA, uma liberdadediversa, uma outra liberdade possível. Assim,utilizando-se da perspectiva etnográfica,a partir de alguns formulários, pelosquais se instrumentaliza o “don”, o trabalhorecolhe como conclusões parciais, aconstatação de que o Direito Privado Modernoexcluiu a dádiva do objeto contratual.E, aproximá-la do sistema jurídico podeesboçar respostas para os paradoxos vividospelo jurista contemporâneo.Palavras-chave : Biotecnologia; Contrato;Dádiva; Liberdade; Mercado.the aspect of market relations, prevailing,by necessity of the economic system, thelogic of corespective. In modern societiesthe freedom that makes the "exchange ofequivalents," which translates into lackof freedom outside the market. Therefore,in legal systems informed by the capitalistorder, exclude from the subject of contractualsituations devoid patrimoniality.Behold, in situations such as organ donation,"surrogate" and movement of geneticdata, lack of market freedom. Turning hiseyes to the "Essay on the Gift", the workof MAUSS, the objective is to achievea dialogue between law and anthropology,capable of pointing responses forthe framework described. The donation,in the sense discussed by this author, canbe understood and expanded beyond thestate and market, as circulated in favor ofsocial ties, reciprocity relations, expressingtherefore, as noted by GODELIER,CAILLÉ, GODBOUT and LANNA, a diversefreedom, another freedom possible.Thus, using the ethnographic perspective,from a few forms, by which it exploits the"gift", the paper collects as partial conclusion,the finding that the Modern PrivateLaw deleted the gift of contractual object.And, closer to the legal system can sketchanswers to the paradoxes experienced bycontemporary jurist.Keywords: Biotechnology; Contract;Gift; Freedom; Market.58 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 58 12/4/2011 17:33:07


INTRODUÇÃONa contemporaneidade, a biotecnologia oferece múltiplaspossibilidades de exploração dos organismos vivos: da bacteria ao corpohumano, conjugam-se bens materiais e imateriais, sob a forma de células,tecidos e informações genéticas. BELLIVIER e NOIVILLE chamam aatenção para este fato, e trazem à cena uma nova categoria: “le vivant”.Ignorado pelo Direito Moderno, o “vivant” rompe as barreiras entre onatural e o artificial, restando como “recurso biológico explorável” (2006,43). Sob esta locução, ensaia-se uma ruptura no plano antropológico,capaz de lançar suas consequências no direito dos contratos.Sob o signo do “don”, um mesmo indivíduo pode dispor de seucorpo para fins de transplante ou para fins de ceder a um biobanco asinformações contidas em seus genes. Cogita-se do despertar de umainquietude, que toma conta do direito dos contratos: a pessoa ocupa olugar do objeto contratual. A contratação do “vivant” coloca em causa apatrimonialidade do objeto do contrato, a ponto de subveter sua civilísticaclássica. Para compreender o significado desta asserção, é necessáriorecorrer à relatividade e historicidade do contrato, afirmando-se que ele“muda a sua disciplina e as suas funções, a sua própria estrutura segundoo contexto econômico-social no qual está inserido” (ROPPO, 1988, 24).Para tanto, recolhe-se do contratualismo moderno a chave de leitura q<strong>uea</strong>ponta para uma diversidade de significados do contato.Nas sociedades modernas, a liberdade se perfaz na “troca deequivalentes”, o que se traduz em ausência de liberdade fora do mercado.Por isso, nos sistemas jurídicos, informados pela ordem capitalista,excluem-se do objeto contratual situações destituídas de patrimonialidade.Na contemporaneidade, situações como doação de órgãos, “barriga dealuguel” e a circulação do dados genéticos evidenciam uma liberdadediversa, e apontam para uma ressignificação do contrato.Voltando os olhos para a obra de Marcel Mauss - “Ensaio sobre aDádiva” -, objetiva-se realizar um diálogo entre Direito e Antropologia,capaz de apontar respostas para uma indagação: há liberdade fora domercado? A dádiva é tudo o que não está ligado ao Estado ou ao mercado,mas circula em favor do laço social. Expressa, portanto, uma liberdadediversa: aquela que se deposita no laço social, importando dizer, que háHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 59livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 59 12/4/2011 17:33:07


liberdade fora do mercado.Para tanto, submete-se a categoria do “don”, formulada pararecepcionar os atos de disposição do próprio corpo, ao método etnográfico.Em alguns dos formulários recolhidos dos setores biotecnológicosfrancês e norte-americano, identificam-se contornos de reciprocidade,que apontam a presença da dádiva, lançada por Marcel Mauss.1. “VIVANT”: UM NOVO OBJETO CONTRATUALNo século XX, a biotecnologia e a informática unem-separa desvendar o corpo, delineando uma reviravolta no paradigmatecnocientífico. 1 O corpo passa a ser desvendado pela racionalidade“informático-molecular” e a vida passa a ser tecida pela linguagem dainformação. As células contêm um código universal, idêntico para todosos seres vivos. Porém, o conjunto de informações genéticas inscritas nestecódigo, varia segundo a espécie, delineando o genoma. À semelhançado software, o corpo humano passa a ser visto como um programa decomputador, pronto a ser decifrado.Os biobancos desempanham um papel indispensável nesse manejobiotecnológico. Reagrupam informações para o estudo de doenças edesenvolvimento de produtos. Eis, que pelas informações que veiculam,os genes são instrumentos de trasnformação dos organismos vivos. Sobo termo “recurso biológico” englobam todos os organismos vivos que aciência possa criar. Em ruptura às barreiras entre o natural e o artificial,opera-se a passagem da vida como dado material para o vivo comofonte de “recursos biológicos exploráveis”, desvendando o “vivant”(BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, 43-50).Em suas entrelinhas, o “vivant” ensaia uma ruptura antropológica.Sob a metáfora do “homem-informação”, o indivíduo despe-se de suamaterialidade, e passa a ser valorado pela informação que contém. Coloca-1A vida passa a ser investigada em escala atômica, com a descoberta da molécula deDNA. Nela, estão contidas as informações genéticas dos indivíduos, em suporte bioquímico,transmtido por gerações. A técnica do DNA recombinante tornou possível aalteração e manipulação do programa genético dos seres vivos (SIBILIA, 2003, 75-76).60 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 60 12/4/2011 17:33:07


se em questão o reconhecimento jurídico da pessoa (LABRUSSE-RIOapud SANTOS, 2000, 301), na medida em que se indaga se a informaçãonela contida pode ser objeto de apropriação e circulação no mercado.Cogita-se uma <strong>pós</strong>-humanidade, na qual se desfazerm os limites entrepessoa se coisas, sinalizando a superação da condição humana.Invoca-se a atuação dos biobancos, nos quais, segundo BELLIVIERe NOIVILLE, para além de um objeto técnico-científico, o “vivant” éum objeto econômico. Para tanto, contribui uma profissionalizaçãodo setor: são distribuidores de serviços que se comprometem com suaqualidade, rapidez e eficiência. Esse movimento propaga-se para paísesem desenvolvimento que apresentam alto grau de biodiversidade (2006,53-54).A pedra de toque do avanço das empresas biotecnológicas é ainformação (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, 55). Há uma integraçãoentre o “vivant” e o mercado em face da qual se desenvolve uma “economiado conhecimento”, diretamente retirada da lógica da mercadoria daprodução capitalista. Para tanto, o Estado enuncia uma política públicade proteção jurídica das invenções biotecnológicas (BELLIVIER eNOIVILLE, 2006, 63). O “vivant” não passaria de uma descoberta,contudo, é convertido em objeto de propriedade intelectual. 2No corpo humano, os dados genéticos são tão somente benscorpóreos; uma vez convertidos em informação, tornam-se bens imateriaise objeto de propriedade intelectual. Esboça-se uma manobra jurídica queconsiste em alargar os limites dos termos dessa titularidade: simplesdescobertas de material genético, uma vez manipulados em laboratório,são considerados invenções:Mas, a informação decorrente da identificação de dadosespecíficos, pela pesquisa, vem buscando um tratamentojurídico similar ao da invenção, de modo a permitir queessa informação possa ser apropriada e explorada economicamentepelo pesquisador (inventor) ou seu empregador. A2Em seu estado natural, os genes de um indivíduo não se configuram como coisas.Apartados da configuração de objeto de relações jurídicas são tutelados pelos direitosda personalidade. Porém, o emprego de trabalho humano promove sua passagem para oestado artificial (GEDIEL, 2000, 163), considerando-se a alteração de um ser vivo emlaboratório como suficiente para expressar uma invenção.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 61livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 61 12/4/2011 17:33:07


igor, a categoria invenção não se aplicaria a estas situações,até mesmo porque não há qualquer modificação nodado genético, que é apenas identificado no sujeito, comapoio de conhecimentos que já são de domínio comum.(GEDIEL, 2000, 106)Adaptam-se conceitos às novas exigências econômicas (BURGEL,2000, 191), apontando-se para uma racionalidade jurídica que seentrelaça à racionalidade econômica. 3 Uma vez patenteado, o “vivant”é tecido como bem jurídico, dotado de valor econômico e submetido àlógica de um “individualismo proprietário”. 4 Isto confere ao seu titulardupla prerrogativa: proibir terceiros de intervir em seu objeto e explorarcom exclusividade seus benefícios (CORIAT, 2007, 5). Contudo, umaindagação subsiste: como o “vivant” adentra na lógica do “individualismoproprietário”?Segundo CORRÊA, uma vez descolados da “pessoa-fonte”, pormeio do consentimento informado, os dados genéticos tornam-se objetode circulação e passam a ser apropriados pela regulação do acesso deterceiros aos bancos de dados ou pela propriedade intelectual dosresultados obtidos a partir desses dados (2009, <strong>13</strong>3). Entra em cena ocontrato para o qual se atribui nova função: a circulação do “vivant”(BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, 69).A aliança entre contrato e biotecnologia não é nova (BELLIVIERe NOIVILLE, 2006, 60). Já ensaiva seus primeiros passos na doação de3No caso Chakrabarty, em 1980, a Corte Suprema dos Estados Unidos autorizou aGeneral Eletric a patentear um microorganismo geneticamente modificado para absorvero petróleo da água do mar. Inaugurou-se a patenteabilidade da matéria biológica,incluindo-se elementos destacados do corpo humano (CORIAT, 2007, 10). Nos passosdesse princípio, a Diretiva 98/44 da Comunidade Européia designa em seu artigo 5.2,que elementos isolados do corpo humano ou aqueles que a partir dele se produzem,constituem-se em invenção patenteável (CORIAT, 2007, 11).4“...entre el individualismo originario del derecho de propiedad privada y de la libreiniciativa y el individualismo (actual del consumidor) de masas del hombre narcisistamenteorientado hacia una infinita gratificación de sus propios deseos, existiría unarelación de continuidad sustancial y se trataría más bien de analizar mejor los pasos quehan determinado la progresiva transformación del individuo unitario, sujeto de derecho,en individuo-masa multiforme y fragmentado en la pluralidad de las necesidades y losdeseos”. (BARCELLONA, 1996, <strong>13</strong>2)62 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 62 12/4/2011 17:33:07


órgãos para fins de transplante e na “barriga de aluguel”. Tais atos sãoexemplares na exploração de aspectos materiais do “vivant”. Contudo,sob o símbolo da gratuidade, procura-se afastar essas situações do cenáriocontratual.Poder-se-ia cogitar de uma contraposição entre a materialidade e aimaterialidade do “vivant”. Porém, toda contraposição se desfaz diantede um elemento comum: sob o signo do “don”, um mesmo indivíduopode dispor de seu corpo para fins de transplante ou para fins de cedera um biobanco as informações contidas em seus genes. Importa dizer: o“don” entrelaça a materialidade e a imaterialidade do “vivant”. Cogitasedo despertar de uma inquietude, que toma conta do direito doscontratos: a pessoa ocupa o lugar do objeto contratual. Há nisto umaruptura antropológica, ensaiada pela concepção de pessoa em termosquantitativos. Sendo valorada pela informação que contém, a pessoaagrega consigo valor econômico, tornando-se objeto do contrato.2. DO CONTRATO AO “DON”: NOTAS DE RESSIGNIFICAÇÃO DO CON-TRATODa “mitologia política da modernidade” (CAPELLA, 1997, 109)recolhe-se uma teia de significações para o contrato: o político, o social eo econômico se entrelaçam, delineando o contrato social. Ao ensaiar quehomens, em estado de guerra contra todos, renunciam aos seus direitosnaturais em favor de um soberano, o contratualismo rende ao consensoa origem do Estado e da sociedade, como forma de legitimar o podersoberano. É o significado político que se entrelaça ao social: o contratorepresenta “a passagem para uma forma superior de sociedade”. (ROPPO,1988, 37).Nessa fábula, seus personagens são desenhados sob o signo de umaruptura antropológica: o homem deixa de ser social por natureza para sersocial por convenção. Resta o sujeito de direito, delineado pelos sistemasjurídicos modernos, sob feição ideológica: abstraído de sua posição social,o homem é mero titular de direitos subjetivos; as vozes que figuram portrás das mercadorias (CAPELLA, 1997, <strong>13</strong>5).Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 63livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 63 12/4/2011 17:33:07


Chega-se ao significado econômico do contrato. O estado denatureza é um “mito fundante” (MARQUES NETO, 1994,3) que se definepor uma ausência: a do Estado. Imagina-se a vida do indivíduo, abstraídade qualquer poder superior, resultado do pacto social de declarações devontade que prescidem da igualdade:En la mitología política de la modernidad el estado de naturalezasirve para apresentar como naturales, por tanto,la propiedad privada, el trabajo asalariado (con la acumulaciónprivada) y los pactos entre desiguales. Como consecuenciade ello también aparecerá naturalizado el mercadocapitalista. Siendo naturales, el artificial poder político noestará legitimado para interferirse en ellos. (CAPELLA,1997, 109).Projetando-se do contrato social para a sociedade capitalista, osdireitos individuais aparecem como naturais e inatacáveis pelo Estado(CAPELLA, 1997, 109). A propriedade e a liberdade de contratarconfiguram-se como imunes a tudo o que lhes seja artificial, isto é, o Estado.O primado da liberdade resta suficientemente garantido, ao identificar-secom a liberdade econômica. E o contrato, elevado a “eixo fundamentalda sociedade liberal” (ROPPO, 1988, 28), passa a desempenhar papelinstrumental em relação à propriedade. Eis que não haveria liberdade depropriedade sem liberdade de transmiti-la (ROPPO, 1988, 42-43).Da aliança entre contrato e biotecnologia, recolhe-se nova teiade ressignificações do contrato. Na medida em que o “vivant” torna-seobjeto contratual, subverte-se seu cenário clássico. Segundo ROPPO, ocontrato é a “veste jurídico-formal” da operação econômica, de tal modo,que “onde não há operação econômica não pode haver também contrato”(1988, 11). Passou a se exigir que o objeto da obrigação seja dotado depatrimonialidade. Por outras palavras, o objeto do contrato deve consistirem uma obrigação de dar, fazer ou não fazer, suscetível de avaliaçãopecuniária, ainda, que o interesse do credor não seja patrimonial.Contudo, nas entrelinhas desta exigência técnica, repousa um sentidoideológico. A correspondência entre contrato e operação econômicaencontra lugar nos sistemas jurídicos informados pelo capitalismo. Eisque nestes sistemas, as relações entre os homens, assumem em larga64 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 64 12/4/2011 17:33:07


medida o aspecto das relações de mercado, prevalecendo a lógica da“troca de equivalentes” (ROPPO, 1988, 15).Procura-se excluir do objeto contratual, situações que escapam àpatrimonialidade. Gestação por outrem, doação de órgãos, informaçãogenética compõem o “vivant”, que ingressa no mercado pela via do “don”.Trata-se de uma relação entre doador e receptor que não dá lugar, a rigor,à conclusão de um “contrato específico”, inscrevendo-se nos quadros deum clássico contrato médico (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, <strong>14</strong>2-<strong>14</strong>3). Tais convenções não são formalizadas por um contrato, consistemem formulários de autorização: é o consentimento informado.Na esteira do “don”, os atos de disposição do próprio corpo, entrenós, submetem-se ao princípio constitucional da gratuidade. 5 O artigo199, §4º, da C.F., veda qualquer tipo de comercialização de materialorgânico humano. Segundo GEDIEL, o direito brasileiro alinha-se natradição jurídica ocidental que “admite a autonomia corporal do sujeito,mas veda as contrapartidas econômicas” (2000, 151). E “os atos dedisposição corporal que não se revistam da gratuidade são nulos de plenodireito, por envolver objeto ilícito” (GEDIEL, 2000, 154).A “contratação” de útero alheio, concebida mediante remuneraçãopelo direito norte-americano, contrapõe-se ao princípio da gratuidade,emoldurado pelo direito brasileiro. De tal modo, que a doutrina nãohesita em afirmar a ilicitude de seu objeto, o que lhe rende nulidade,e a impropriedade dos tipos contratuais disponíveis na ordem jurídicanacional para regular tal convenção:Ao se qualificar o acordo de gestação em útero alheio comouma locação de serviços, estar-se-ia reconhecendo à gestanteo dever de executar uma atividade, que seria a prestaçãode seu ventre (ou, em sentido amplo, de todo o seuorganismo, pois in toto se envolveria na gestação). Indubitavelmente,o negócio jurídico estaria eivado de nulidade,posto que teria por objeto a pessoa da gestante e, logica-5Cogita-se de uma “doação” de órgãos para reforçar a gratuidade, sem, contudo, ater-seao caráter contratual que o termo encerra. Prefere-se a categoria de negócio jurídico,desconhecida do direito francês, e formulada pela pandectística alemã, para acomodaras relações existenciais, travadas sob a égide do “don”.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 65livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 65 12/4/2011 17:33:07


mente, o serviço seria ilícito. No entanto, deixando à margema questão da ilicitude do ajuste, a caracterização aindanão estaria perfeita, porque a ‘mãe substituta’ não somentedeve manter a gestação como, ao final, entregar o filhoaos interessados. Portanto, o objeto não é a atividade emsi (gestação), mas o resultado, o que torna o acordo maispróximo de uma empreitada (...) Do mesmo modo, à partea notória ilicitude do negócio (posto que teria por objetoainda a pessoa humana – agora, o filho), outra dificuldadese apresenta à sua perfeita caracterização, evidenciando oquão forçada é a analogia, tanto com locação de serviçosquanto com empreitada: o desenvolvimento do feto noventre materno é função natural, processando-se pela forçainterna dos órgãos específicos, e não pela vontade ou poraptidões artísticas ou técnicas da pessoa. Logo, a gestantenão exerce um trabalho, uma empreitada, e tampoucoé ‘contratada’ em função de uma reconhecida competênciae capacidade profissional, ou uma habilidade técnica.”(MEIRELLES, 1998, 80)A gratuidade, por si só, não é capaz de conter a lógica demercantilização do corpo humano. BELLIVIER e NOIVILLEdemonstram que o “don” é tão somente um primeiro passo na cadeia deorganização dos recursos biológicos. A circulação do “vivant” inicia-secom a coleta, segue-se com a estocagem, a transferência e o uso (2006,<strong>13</strong>3), tecendo um contexto complexo e multifacetado de contratos.O contrato está presente em toda a “cadeia de circulação do vivant”(BELLEVIER e NOIVILLE, 2006, 71), atuando como instrumento dasoft law, pois em face de sua maior flexibilidade, é apto para acolher aautorregulação do setor biotecnológico (CORRÊA, 2009, 232). Diante dalacuna deixada pelo legislador, impõe-se a lei que interessa às partes, einverte-se a regra “o contrato tem força de lei entre as partes” para “a leitem força de contrato entre as partes” (LORENZETTI, 1998, 58).Nesse cenário, o contrato potencializa seu papel: de meroinstrumento de transmissão da propriedade converte-se em criador deuma nova riqueza, a informação genética. Assiste-se à ressignificação docontrato, apontando para o reforço de seu papel como instrumento deautonomia privada. A liberdade econômica é, então, confrontada por umaliberdade existencial, ensejando uma autonomia negocial. Daí preferir-se66 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 66 12/4/2011 17:33:07


o termo negócio jurídico para designar o “don”. Contudo, esta categorianão se distancia do contrato, no desempenho de uma função ideológica: aabstração das desigualdades materiais entre os contratantes. 6Em atenção a essa ordem de idéias, uma indagação subsiste: háliberdade fora do mercado? Trata-se, a partir da antropologia de MarcelMauss, de colocar em causa a “tendência de contratualização dos laçossociais” (SUPIOT apud CORRÊA, 2009, 231).3. O “ENSAIO SOBRE A DÁDIVA”: UM NOVO “MITO FUNDANTE”Em obra publicada em 1929 7 sobre a forma e a razão da troca nassociedades arcaicas, Marcel Mauss pretendeu demonstrar a expressãoda universalidade e da importância da troca como fundante das relaçõessociais. As trocas e os contratos, nesta perspectiva, fazem-se sob a formade presentes, em princípio voluntários, mas obrigatoriamente dados eretribuídos. São relações muito complexas – fenômenos sociais totais -que exprimem, de forma simultânea, diversas dimensões e instituiçõesda organização social: moral, religião, direito, família, política, estéticae economia. Diante desta multiplicidade, o foco da análise de Mauss sedeu na busca da compreensão do caráter voluntário, aparentemente livree gratuito, mas imposto e interessado do sistema de prestações e contraprestações.Mais especificamente, o interesse do autor se deu em revelara regra de direito e de motivação que faz com que um presente recebidoseja obrigatoriamente retribuído, ou ainda, qual a força encarnada nacoisa dada/doada que faz com que o recebedor (donatário) a retribua.6[...]abstraindo ao máximo – até mais do que o contrato – dos sujeitos reais e das operaçõeseconômicas reais [...] conseguia justamente operar o máximo de unificação ede igualização formal dos sujeitos jurídicos. Por intermédio dele, tornavam-se de factoirrelevantes, ou apagavam-se até, a concreta posição económico-social das partes e ostermos reais da troca económica levada a cabo, que desapareceriam por detrás de umdado, por assim dizer, biológico [...] ao qual se atribuía relevância exclusiva: a vontade.(ROPPO, 1988, 51)7MAUSS, M. 1974 [1923-24]. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedadesarcaicas. In : Sociologia e Antropologia.v. II. São Paulo : Edusp.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 67livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 67 12/4/2011 17:33:07


Como horizonte mais amplo e ambicioso, Mauss pretende chegara conclusões acerca da natureza das transações humanas nas sociedadesarcaicas e, por extensão, da natureza das mesmas nas sociedadescontemporâneas. Para tanto, descreve o fenômeno da troca e do contratonas sociedades de mercado econômico – para ele condição de todas associedades humanas - mas cujo regime de troca é diverso umas das outras.Nas sociedades arcaicas, no seu entender, existe o mercado concretizadoem outra organização que não a dos mercadores e da moeda, mas regidopor uma outra espécie de economia e de moral.O ponto de partida são as formas arcaicas de contrato. Para Mauss,nunca existiu na história da humanidade algo que se assemelhe a umaeconomia natural. Nem os polinésios, locus da sua etnografia, assimcomo nenhuma outra cultura ou sociedade constituem ou constituíram emmatéria de direito ou economia algo próximo de um estado de natureza,de simples trocas de bens ou de produtos entre indivíduos. Nota o autorque:Em primeiro lugar, não são indivíduos e sim coletividadesque se obrigam mutuamente, trocam e contratam; as pessoaspresentes aos contratos são pessoas morais – clãs,tribos, famílias – que se enfrentam e se opõem, seja emgrupos, face a face, seja por intermédio dos seus chefes, ouainda das duas formas ao mesmo tempo. Ademais, o quetrocam não são exclusivamente bens e riquezas, móveise imóveis, coisas economicamente úteis. Trata-se antesde tudo de gentilezas, banquetes, ritos, serviços militares,mulheres, crianças, danças, festas, feiras em que o mercadoé apenas um dos momentos e onde a circulação de riquezasconstitui apenas um termo de um contrato muito mais gerale muito mais permanente. Enfim, essas prestações e contraprestaçõessão feitas de uma forma sobretudo voluntáriapor presentes, regalos, embora sejam, no fundo rigorosamenteobrigatórios, sob pena de guerra privada ou pública.Propusemo-nos chamar tudo isso de sistema de prestaçõestotais. (MAUSS, 1974, 54)Nesse tipo de direito e economia peculiar das sociedades arcaicas,mas que sobrevive de alguma forma nos interstícios das relações sociaisestabelecidas nas sociedades contemporâneas parece ser de relevância68 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 68 12/4/2011 17:33:08


destacar as motivações da retribuição para entender as motivações documprimento ou não dos contratos reais estabelecidos nas relaçõesconcretas. Alerta MAUSS que a prestação total não envolve apenas aobrigação de retribuir os presentes recebidos, mas supõe duas outrasobrigações também importantes: a obrigação de dá-los, por um lado, ea obrigação de recebê-los por outro. Estaria neste ponto o fundamentoda troca: recusar-se a dar/doar ou recusar-se a receber equivale adeclarar guerra, pois é o mesmo que recusar a aliança e a comunhão. Emconseqüência, os indivíduos são impelidos à troca, porque o donatáriopassa a ter uma espécie de direito de “propriedade” sobre tudo aquilo quepertence ao doador. A propriedade nestes termos é concebida como umvínculo espiritual, porque, explica o autor, há uma mistura de vínculosespirituais entre as coisas que são em certa medida alma, e os indivíduose os grupos que se tratam em certa medida como coisas. Ressalta MAUSSque:Todas essas instituições exprimem unicamente um fato,um regime social, uma mentalidade definida: é que tudo,alimento, mulheres, crianças bens, talismãs, terra, trabalho,serviços, ofícios sacerdotais e postos é matéria de transmissãoe retribuição. Tudo vai-e-vem como se houvesseuma troca constante de uma matéria espiritual compreendendocoisas e homens, entre os clãs e os indivíduos, repartidosentre categorias, sexos e gerações.( MAUSS, 1974,59).Dar, receber e retribuir, por em circulação coisas e modos defazer as coisas, para além do caráter utilitário: este é o fundamentoda dádiva, constituída inclusive de cálculos racionais, mas também eprincipalmente de espontaneidade, amizade e solidariedade. Ao refletirsobre o “espírito” do dom, GODBOUT (1998) ressalta que nas relaçõessociais contemporâneas, paralelamente à circulação de bens e serviçosno mercado, garantidos pela regulação e redistribuição do Estado, existeuma dimensão na qual esses bens e serviços são agenciados através demecanismos de dons e contradons que expressam outras formas - maispessoalizadas - de socialidade do que aquelas regidas pelo mercado,pelo próprio Estado e pela ciência. A obrigação de dar/doar conservaa autoridade e mantém o prestígio e o reconhecimento; a obrigação deHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 69livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 69 12/4/2011 17:33:08


eceber imputa o compromisso da retribuição e de manutenção do estatutode igualdade. Nas coisas trocadas, coisas que têm uma personalidade, háuma virtude que força a dádiva a circular, a ser dada e a ser retribuída. Nolimite, a circulação das coisas é identificada com a circulação de pessoase de direitos.Para CAILLÉ ( 2002, 8-9) o dom é simultaneamente livre eobrigatório, é sempre mais ou menos forçado, instituído como umaobrigação que se tem como herança ou compromisso. Contudo, étambém uma obrigação de criação e inovação, é um conjunto de interrelaçõese de interdependências. Desta forma, é uma relação que superatanto a regra formal da obrigação, ou o despotismo da Lei, quanto amecânica simétrica dos meros interesses individuais. O dom constituise,em síntese, na aliança e associação que fundamenta a construção daconfiança, fundamento da reciprocidade.A duplicidade implícita no dom, como entendida por Mauss - o queobriga a dar é o fato de que dar obriga - é discutida por GODELIERnos seguintes termos: “ Dar é transferir voluntariamente algo que nospertence a alguém de quem pensamos que não se pode deixar de aceitar.O doador pode ser um grupo ou indivíduo que age sozinho ou em nomedo grupo. Assim como o donatário pode ser um indivíduo ou um grupo,uma pessoa recebe o dom em nome do grupo que representa. Logo, odom é um ato voluntário, individual ou coletivo, que pode ou não ter sidosolicitado por aquele, aquelas ou aqueles que o recebem.” (2001, 22- 23).Neste sentido, parece confirmar-se a hipótese já discutida de que oato de dar/doar institui ao mesmo tempo uma relação dupla entre aqueleque doa e aquele que recebe. Uma relação ambivalente, no entender deGODELIER (2001), de inequívoca solidariedade, pois quem doa partilhao que tem com aquele que recebe, e mais do que isso, partilha o que éo espírito das pessoas nas coisas, uma vez que o dom é impregnado dehau ou mana. Entretanto constitui-se também uma relação de inequívocasuperioridade, pois quem recebe o dom e o aceita fica em dívida (obrigado)com aquele que doou. Essa desigualdade resultante pode sempre sersuperada pela restituição do que foi doado. A reciprocidade, desta forma,está sempre colocada como possibilidade.A extensão dessa compreensão ao direito contemporâneo é passívelde acordo com Mauss. Para o autor, instituições como o sistema deprestações totais concretizado na permuta da dádiva fornece a transiçãopara as formas de direito contemporâneas que, por sua vez, tambémdistinguem entre a obrigação e a prestação não gratuita e a dádiva. Para o70 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 70 12/4/2011 17:33:08


autor, o nexum, o vínculo de direito nas sociedades contemporâneas, assimcomo nas sociedades arcaicas, vem tanto das coisas como dos homens,num confundido vaivém de almas e de coisas para além das palavras egestos do formalismo jurídico. Ao exemplificar com o penhor, asseveraMAUSS que essa relação “não somente obriga e vincula, mas empenha,ainda, a honra, a autoridade, o mana daquele que o entrega.” ( MAUSS,1974, 159). Esclarece GODELIER ( 2001, 166) que se deve voltar paraos objetos (coisas) para que, ao tentar distinguir as suas características,se tivesse acesso às representações imaginárias da vida, da riqueza e dopoder projetado e investido neles.4. A DÁDIVA E A ETNOGRAFIA DO “VIVANT”: OUTRA LIBERDADEPOSSÍVEL?Para os franceses, “don” refere-se à ação de abandonar gratuitamenteuma coisa, sinalizando uma abstenção ou sacrifício; dar algo sem recebernada em troca, apontando uma doação ou presente (LE ROBERT, 1998,407). Indaga-se, então, se nesta categoria, formulada para recepcionaros atos de disposição do próprio corpo, que se quer distinta do contrato,está presente a dádiva, lançada por Marcel Mauss. Para tanto, submeteseao método etnográfico, alguns dos formulários encontrados no setorbiotecnológico francês, por BELLIVIER e NOIVILLE, como segue:Eu, abaixo assinado(a) (...) declaro ter sido informado (...)da possibilidade de utilização para fins terapêuticos do tecidonecessariamente retirado para realizar a intervenção queme foi proposta (...),’ ou ainda ‘Eu, abaixo assinado(a) (...),consinto expressamente que as retiradas efetuadas quandoda intervenção médica do (...) pelo Dr. (...) sejam conservadospor criopreservação e utilizados para fins de pesquisacientífica, notadamente genética. 8 (2006, <strong>14</strong>3).8Tradução livre de: «’Je, soussigné(e) [...], déclare avoir été informé(e) [...] de la possibilitéd’utilisation à des fins thérapeutiques de tissu nécessairement enlevé pour réaliserl’intervention qui m’est proposée [...] ‘ ; ou encore ‘ Je, sossigné(e) [...], consens expressémentque les prélèvements effectués lors de l’intervention médicale du [...] par le Dr[...] soient conservés par cryopréservation et utilisés à des fins de recherche scientifique,notamment génétique.’ » (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, <strong>14</strong>3)Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 71livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 71 12/4/2011 17:33:08


Segundo essas autoras, tais formulários apresentam uma “arquiteturacomum”: (i) a gratuidade, a revogabilidade do consentimento, o anonimatoe o segredo médico; (ii) a previsão que o material conservado sirva paramúltiplas pesquisas, prevendo-se seus tipos e duração, e (iii) embora odoador não tenha qualquer direito aos resultados da pesquisa, o direitode ser informado a seu respeito (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, <strong>14</strong>3-<strong>14</strong>4).Nos atos de disposição do próprio corpo, marcados pelaremuneração, é estabelecido um jogo recíproco de obrigações entre aspartes. No “contrato de locação de útero”, realizado no “caso bebê M.”,nos Estados Unidos, a mãe portadora obrigou-se, entre outras disposições,a não formar ou tentar formar qualquer vínculo de mãe com a criança queviesse a gerar, e dar sua custódia imediata ao pai biológico:1. Mary Beth Whitehead, mãe de aluguel, declara que écapaz de conceber um filho. Mary Beth entende e concordaque, pelo melhor interesse da criança, ela não formará nemtentará formar vínculo de mãe e filho com a criança ou criançasque possa vir a conceber, gerar ou dar nascimento,conforme as cláusulas deste acordo, e deverá, por livre eespontânea vontade, dar a custódia a William Stern, pai natural,imediatamente a<strong>pós</strong> o nascimento da criança, e darápor encerrado todos os direitos maternos sobre a referidacriança. (...) Mary Beth Whitehead, mãe de aluguel, e seumarido Richard Whitehead, concordam em dar a custódiada criança a William Stern, pai biológico, imediatamentea<strong>pós</strong> o nascimento, declarando que a intenção deste contratovisa a assegurar os melhores interesses da criança e a istose propõem, cooperando nos procedimentos para extinguiros seus direitos de paternidade com a referida criança, e assinartodo e qualquer termo de compromisso, documentosou outro do gênero para levar adiante o pro<strong>pós</strong>ito e as intençõesdeste acordo. (MEIRELLES, 1998, <strong>14</strong>3-<strong>14</strong>4)Curiosamente, atos de disposição corporal, realizados sob a égidedo “don” também estabelecem obrigações recíprocas entre doadores ereceptores. Veja-se o formulário de doação de esperma da FederaçãoFrancesa de CECOS:72 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 72 12/4/2011 17:33:08


Eu me comprometo a fornecer todos os esclarecimentosque me serão requeridos sobre meu estado de saúdee dos membros de minha família. Eu autorizo a CECOSa conservar este conjunto de informações no anonimato.Eu me comprometo a não investigar a identidade das pessoasinseminadas com meu esperma, ou a identidade dosfilhos assim concebidos, em saber que, reciprocamente, oanonimato mais absoluto me é assegurado. (BELLIVIER eNOIVILLE, 2006, <strong>14</strong>3)Na sociedade moderna, a liberdade define-se pela ausência dedívida, pois a liberdade se perfaz na troca de equivalentes. A dádiva, porsua vez, expressa uma liberdade diversa: a da dívida. É uma liberdadeque se situa no laço social e não no mercado. Por meio da dádiva oindivíduo se realiza com ser social. Deste modo, tudo o que não estáligado ao mercado o ao Estado, mas que circula em favor do laço socialé dádiva, como as doações de sangue, órgãos e doações humanitárias(GODBOUT, 1998, 7). No jogo de obrigações recíprocas, estabelecidaspelo “don”, está presente o sentido último da dádiva: é tão somente e,aparentemente, desinteressada, pois pressupõe retribuição. 9 Não hádádiva sem expectativa de retribuição (LANNA, 2000, 176). É a “moralda dádiva-troca”, já presente nas sociedades primitivas como uma formade relação que se diferencia da troca mercantil, por associar um valormoral ou ético à transação econômica (SABOURIN, 2008, <strong>13</strong>2).Em seu estudo etnográfico, Marcel Mauss identifica a dádivaem lugares e tempos diversos, concluindo que a dádiva expressareciprocidade. 10 Não obstante, ela possa ser isolada em seu aspectoeconômico, ela não deixará de expressar aspectos diversos como opolítico e o religioso. Eis que a troca expressa o laço de socialidade entreos indivíduos, como aquela que leva à superação da guerra (LANNA,2000, 81).Nessa perspectiva, Mauss aproxima-se de Hobbes, ao enunciar: adádiva substitui a guerra. Tal como o contrato social é o mito de superaçãodo estado de natureza, a dádiva é a estrutura social, presente nas mais9“Nessas prestações existem ‘misturas entre almas e coisas’, entre riquezas materiaise espirituais, ao passo que nas sociedades modernas, direitos reais e direitos pessoais,material e espiritual, são muito bem separados.” (SABOURIN, 2008, <strong>13</strong>2)Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 73livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 73 12/4/2011 17:33:08


diversas sociedades, capaz de superar a guerra e estabelecer o laço social.Guardadas as devidas proporções, o “don” é a estrutura social utilizadapara afastar o contrato e, em última instância, o mercado, um tipo deestado de natureza, no qual se trava a guerra pelo “vivant”.Embora se julgue capaz de afastar-se do evolucionismo, MarcelMauss cede à sua tentação, e alega que na sociedade capitalista, a dádivase enfraquece. Sua moral é “envelhecida e acidental”, “demasiadodispendiosa e suntuária, assoberbada por considerações pessoais,incompatível com o desenvolvimento do mercado e da produção”(LANNA, 2000, 183).Porém, indaga-se: a dádiva realmente teria desaparecido dasociedade capitalista? Mauss não identifica a presença da dádiva em si,mas de sua lógica. Se, por vezes, a relação entre dádiva e mercado éde contradição, por outras, é de complementariedade. Com efeito, paraalém da liberdade econômica, há outra liberdade possível nas sociedadesinformadas pelo capitalismo. Essa liberdade é revelada pelo “don”:aquela que ocorre em favor do laço social, que não se encerra na liberdadeeconômica. Contudo, semelhante conclusão poderia produzir respostas afavor do mercado: a contratação do “vivant” não pode ser negada, namedida em que pertence a uma liberdade fora do mercado. Aproveitandosedeste fato, a lógica capitalista trata de absorver o “vivant” por meio decategorias já disponíveis no sistema jurídico, com a finalidade de torná-lopassível de circulação econômica.CONCLUSÃOO texto aponta para uma ruptura antropológica, que colocaem causa a patrimonialidade do contrato. Pensado pelos sistemasjurídicos, informados pelo capitalismo, como a “veste jurídico-formal”de uma “operação econômica”, seu objeto foi encerrado na “troca deequivalentes”. Em face dos avanços da biotecnologia contemporânea,a pessoa passa a ocupar seu lugar, promovendo uma ressignificação docontrato: a circulação do “vivant”.Do contrato social, projetou-se para a sociedade moderna, aliberdade pensada como liberdade econômica: os sujeitos são tão somente74 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 74 12/4/2011 17:33:08


“vozes” que figuram por trás das mercadorias. Tomando conta do cenáriocontratual, passou a se indagar se há outras liberdades possíveis. Aresposta para esta indagação foi encontrada por um novo fundamentopara a sociedade, lançado por Marcel Mauss, em lugar do contratualismo:da dádiva.A liberdade moderna foi concebida como ausência de dívida,excluindo outras formas de liberdade. Contudo, nas comunidades antigase presentes, observadas por Mauss, a dádiva expressa reciprocidade, quenão se restringe à troca, delineando uma liberdade diversa: a da dívida.A etnografia do “don”, delineada por alguns formulários encontrados nosetor biotecnológico francês, revela essa reciprocidade de obrigações,mesmo quando escapam à remuneração do ato de disposição corporal.Com efeito, a Antropologia é capaz, não apenas, de apresentaralgumas respostas para o Direito, mas, ainda, de contribuir para desvendaras entrelinhas da liberdade expressa pelos atos de disposição do própriocorpo. Não se referem a uma liberdade econômica, porém, justificam acirculação do “vivant”. O sentido econômico que essa circulação, porvezes, representa, deve-se à lógica do sistema capitalista que a tudoabsorve, inclusive, a dádiva.REFERÊNCIASBARCELLONA, P. El individualismo proprietario. Tradução de JesúsErnesto García Rodríguez. Madrid: Editorial Trotta, 1996.BELLIVIER, F.; NOIVILLE, C. Contrats et vivant. Paris: L.G.D.J., 2006.BERGEL, S D. A situação limite do sistema de patentes: em defesada dignidade das invenções humanas no campo da biotecnologia. In:CARNEIRO, F.; EMERICK, M. C. (Org.). Limites: a ética e o debatejurídico sobre acesso e uso do genoma humano. Rio de Janeiro: FundaçãoOswaldo Cruz, 2000, p. 185-208.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 75livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 75 12/4/2011 17:33:08


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78 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 78 12/4/2011 17:33:08


A LEI DE SEMENTES E OS SEUS IMPACTOSSOBRE A AGROBIODIVERSIDADEJuliana Santilli*Sumário: Introdução; 1. A agrobiodiversidade: um conceito em construção; 2.Agrobiodiversidade e segurança alimentar, nutrição, saúde e sustentabilidadeambiental; 3. As leis de sementes e a influência do modelo agrícola industrial;4. As sementes e os sistemas agrícolas locais; 5. A lei de sementes brasileira; 6.As sementes locais, tradicionais ou crioulas; 7.As sementes “para uso próprio”;Conclusão; Referências Bibliográficas.Resumo: O artigo faz uma análise críticados impactos da Lei de Sementes brasileira(10.711/2003) sobre a biodiversidade agrícolae sobre a agricultura tradicional, familiare agroecológica. Inicialmente, o artigodiscute o conceito de agrobiodiversidade esuas interfaces com a segurança alimentar,nutrição, saúde e sustentabilidade socioambiental.Depois, o artigo analisa comouma lei de sementes editada para atenderaos interesses de um modelo agrícola industrialtem impactado os sistemas agrícolaslocais, tradicionais e agroecológicos,que são justamente aqueles que conservame utilizam de forma sustentável os recursosda agrobiodiversidade.Palavras-chave: Agrobiodiversidade,Biodiversidade agrícola, Lei de Sementes,Agricultura familiar, tradicional e agroecológica.Abstract: This article analyses the impactsof the Brazilian Seed Law (Law10.711/2003) on agricultural biodiversityand on traditional, family and agroecologicalagriculture. Initially, the article examinesthe concept of agrobiodiversity andits interfaces with food security, nutrition,health and environmental sustainability.The article shows that Brazilian Seed Law,aimed at protecting the interests of industrial,large-scale agricultural models, isproducing severe impacts on local, traditionaland agroecological systems, whichare the ones that conserve and use sustainablythe resources of agrobiodiversity.Key-words: Agrobiodiversity, Agriculturalbiodiversity, Seed Law, Family, Traditionaland Agroecological Farming.* Promotora de Justiça, do Ministério Público do Distrito Federal, doutora em DireitoSocioambiental pela PUC-PR e autora dos livros Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores(São Paulo: Peirópolis; IEB, 2009) e Socioambientalismo e novos direitos:proteção jurídica à diversidade biológica e cultural (São Paulo: Peirópolis; IEB; ISA,2009). Contato: juliana.santilli@superig.com.br.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 79livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 79 12/4/2011 17:33:08


INTRODUÇÃOA perda da diversidade agrícola (ou agrobiodiversidade), nos mais diferentesníveis, está associada a mudanças ocorridas na agricultura, especialmente apartir da revolução verde, e, evidentemente, não pode ser atribuída ao sistemajurídico. Entretanto, diversas leis (como a de sementes, de proteção de cultivarese de acesso aos recursos genéticos) impactam diretamente a agrobiodiversidade,e seus efeitos têm sido subestimados. Mais do que isso, desconsideram que abiodiversidade e a sociodiversidade associada são protegidas pela Constituiçãoe que as leis e políticas públicas devem promover a sua conservação e utilizaçãosustentável. A preservação da diversidade e da integridade do patrimôniogenético é expressamente determinada pela Constituição (artigo 225, parágrafo1º, II), assim como a salvaguarda do rico patrimônio sociocultural brasileiro(artigo 216), que inclui as variedades agrícolas, os saberes e as inovaçõesdesenvolvidas pelos agricultores.Neste artigo, analisaremos os impactos da Lei de Sementes sobre aagrobiodiversidade (Lei 10.711/2003), procurando adotar uma abordageminterdisciplinar. O artigo discutirá inicialmente o conceito de agrobiodiversidade,mostrando que ele está diretamente relacionado a direitos fundamentais, como àsegurança alimentar, à nutrição, à saúde e à sustentabilidade ambiental. Depois,analisará como a Lei de Sementes tem impactado a biodiversidade agrícolaem seus diferentes níveis, mostrando que os instrumentos jurídicos devemcontemplar tanto o suporte biológico da biodiversidade agrícola (as espécies,variedades agrícolas e agroecossistemas) como os conhecimentos e práticassocioculturais associadas a essa, detidos por agricultores e comunidades locaise tradicionais.1. A AGROBIODIVERSIDADE: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃOO conceito de agrobiodiversidade reflete as dinâmicas e complexasrelações entre as sociedades humanas, as plantas cultivadas e os ambientes emque convivem, repercutindo sobre as políticas de conservação dos ecossistemascultivados, de promoção da segurança alimentar e nutricional das populaçõeshumanas, de inclusão social e de desenvolvimento local sustentável.A biodiversidade ou diversidade biológica – a diversidade de formasde vida – encobre três níveis de variabilidade: a diversidade de espécies, adiversidade genética (a variabilidade dentro do conjunto de indivíduos da mesmaespécie) e a diversidade ecológica, que se refere aos diferentes ecossistemas e80 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 80 12/4/2011 17:33:08


paisagens. Isso ocorre também em relação à agrobiodiversidade, que inclui adiversidade de espécies (por exemplo, espécies diferentes de plantas cultivadas,como o milho, o arroz, a abóbora, o tomate etc.), a diversidade genética(por exemplo, variedades diferentes de milho, feijão etc.) e a diversidade deecosssistemas agrícolas ou cultivados (por exemplo, os sistemas agrícolastradicionais de queima e pousio, também chamados de coivara ou itinerantes, ossistemas agroflorestais, os cultivos em terraços e em terrenos inundados etc.).Os agroecossistemas são áreas de paisagem natural transformadas pelo homemcom o fim de produzir alimento, fibras e outras matérias-primas (CONWAY,1987).A agrobiodiversidade, ou diversidade agrícola, constitui uma parteimportante da biodiversidade e engloba todos os elementos que interagemna produção agrícola: os espaços cultivados ou utilizados para criação deanimais domésticos, as espécies direta ou indiretamente manejadas, como ascultivadas e seus parentes silvestres, as ervas daninhas, os parasitas, as pestes,os polinizadores, os predadores, os simbiontes (organismos que fazem parte deuma simbiose, ou seja, que vivem com outros) etc., e a diversidade genética aeles associada (também chamada de diversidade intraespecífica, ou seja, dentrode uma mesma espécie). A diversidade de espécies é chamada de diversidadeinterespecífica (QUALSET, 1995).A Convenção sobre Diversidade Biológica não contém uma definiçãode agrobiodiversidade, mas, segundo a Decisão V/5, a agrobiodiversidadeé um termo amplo que inclui todos os componentes da biodiversidade quetêm relevância para a agricultura e a alimentação, e todos os componentesda biodiversidade que constituem os agroecossistemas: a variedade e avariabilidade de animais, plantas e micro-organismos, nos níveis genético,de espécies e de ecossistemas, necessários para sustentar as funções-chavesdos agroecossistemas, suas estruturas e processos. Portanto, os componentesda biodiversidade agrícola incluem: a diversidade vegetal, domesticada esilvestre; a diversidade de animais domésticos (das cerca de 50.000 espécies demamíferos e aves conhecidos, aproximadamente quarenta foram domesticadas,e dessas espécies os agricultores desenvolveram cerca de 5.000 raças adaptadasa condições ambientais locais e a necessidades específicas); - a diversidade dafauna aquática (os peixes e outras espécies aquáticas são parte integrante demuitos sistemas agrícolas importantes); - a diversidade subterrânea (as raízeslevam os nutrientes e a água até as plantas e estabilizam o solo); - a diversidademicrobiana (os micro-organismos reciclam e disponibilizam muitos nutrientesnecessários às plantas, entre outras funções); a diversidade de insetos (comoabelhas e outros polinizadores), aranhas e outros artrópodes (gafanhotos,Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 81livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 81 12/4/2011 17:33:08


centopeias etc.), que agem muitas vezes como inimigos naturais de seresnocivos às plantas; a diversidade de ecossistemas (CROMWELL, 2003). Nestetrabalho, nos concentraremos sobretudo na diversidade de plantas cultivadas ede agroecossistemas.A agrobiodiversidade é essencialmente um produto da intervenção dohomem sobre os ecossistemas: de sua inventividade e criatividade na interaçãocom o ambiente natural. Os processos culturais, os conhecimentos, práticas einovações agrícolas, desenvolvidos e compartilhados pelos agricultores, sãoum componente-chave da agrobiodiversidade. As práticas de manejo, cultivoe seleção de espécies, desenvolvidas pelos agricultores ao longo dos últimos10.000 a 12.000 anos, foram responsáveis, em grande parte, pela enormediversidade de plantas cultivadas e de agroecossistemas e, portanto, não sepode tratar a agrobiodiversidade dissociada dos contextos, processos e práticasculturais e socioeconômicas que a determinam e condicionam. Por isso, além dadiversidade biológica, genética e ecológica, há autores que agregam um quartonível de variabilidade: o dos sistemas socioeconômicos e culturais que geram econstroem a diversidade agrícola.A diversidade resulta tanto de fatores naturais quanto culturais. Assim,há sociedades que adaptam variedades de arroz ao cultivo aquático, submersoem água, em regiões úmidas, e há outras que adaptam variedades de arroz aocultivo em regiões secas. As diferentes variedades de milho podem ser usadaspara se comer diretamente da espiga, para alimentar os animais, para fazerpipoca e farinha ou para a fermentação da cerveja. São usadas também parafins ornamentais (principalmente aquelas com pigmentos coloridos), medicinaisou religiosos. Uma mesma espécie pode ser usada para fins alimentícios oucomo medicamento, e as diferentes partes de uma mesma planta podem tambémter serventias diferentes. As plantas têm ainda usos em rituais e em cerimôniasreligiosas, e muitos nomes podem ser dados às variedades de uma mesma espécie.A diversidade agrícola pode também se expressar tanto em característicasperceptíveis pelo olhar humano, como variações de cor, forma, altura, tamanhoe formato das folhas, quanto em variações genéticas, como resistência a secas,pestes e doenças, alto teor nutritivo etc., e a sua perda é difícil de ser avaliadae mensurada com exatidão. A extinção dos saberes, práticas e conhecimentosagrícolas é ainda mais difícil de ser avaliada e mensurada.Mesmo que não se possa estimar exatamente a dimensão da perda, adiversidade agrícola está ameaçada, e ela constitui a base da sobrevivênciadas populações rurais, notadamente as de baixa renda. O Relatório sobre oEstado dos Recursos Genéticos de Plantas do Mundo, apresentado durante a 4ªConferência Técnica Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos, realizada82 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 82 12/4/2011 17:33:08


em Leipzig, na Alemanha, de 17 a 23 de junho de 1996, foi um alerta importantepara a grave erosão genética e cultural provocada pelos sistemas agrícolasmodernos. O relatório 1 foi a primeira avaliação global e sistemática do estadode conservação e uso dos recursos fitogenéticos existentes no planeta. Segundoo relatório, nos últimos cem anos, os agricultores perderam entre 90% e 95% desuas variedades agrícolas. Consta ainda do relatório que:1) Na Coreia do Sul, apenas um quarto das catorze variedades vegetaisnativas cultivadas em jardins e hortas em 1985 continuavam a existir em 1993.Apenas 20% das variedades de milho que existiam no México nos anos 1930ainda existem hoje.2) Nos Estados Unidos, 95% das variedades de repolho e 94% dasvariedades de ervilha, 81% das variedades de tomate deixaram de existir noúltimo século. Das 7.098 variedades de maçã existentes entre 1804 e 1904 86%já não existem.3) Na China, das 10.000 variedades de trigo utilizadas em 1949 apenas milainda eram usadas nos anos 1970. Até os anos 1970, cerca de 5.000 variedadesde arroz eram cultivadas na Índia, das quais apenas quinhentas continuam aexistir, e entre dez e vinte variedades ocupam a maior parte do território indiano.A perda da biodiversidade agrícola é causada sobretudo pela substituiçãodas variedades locais e tradicionais, que se caracterizam por sua amplavariabilidade genética, pelas variedades “modernas”, de alto rendimento eestreita base genética. Segundo o referido relatório, essa é a principal causa deerosão genética (citado em 81% dos relatórios nacionais, apresentados pelospaíses). Desapareceram tanto espécies como as variedades cultivadas dessasespécies, e não só as espécies domesticadas pelo homem como também os seusparentes silvestres continuam a desaparecer, em virtude da rápida devastação dosecossistemas naturais. Em alguns casos, o desaparecimento de uma variedadepode não levar necessariamente à perda da diversidade genética, já que osseus genes podem existir também em outras variedades, mas as variedadesrepresentam, em si, uma combinação única de genes, com valor e utilidadetambém únicas. Estima-se ainda que a perda de uma planta pode causar odesaparecimento de quarenta tipos de animal e inseto, que dela dependem parasobreviver, além de combinações genéticas e moléculas únicas na natureza(KLOPPENBURG & KLEINMAN, 1987).1A elaboração do relatório envolveu 151 países, cerca de 50 organizações não governamentais,representantes do setor privado e especialistas. O relatório subsidiou a adoçãoda Declaração de Leipzig e do Plano Global de Ação para a Conservação e UtilizaçãoSustentável dos Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 83livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 83 12/4/2011 17:33:08


2. AGROBIODIVERSIDADE E SEGURANÇA ALIMENTAR, NUTRIÇÃO,SAÚDE E SUSTENTABILIDADE AMBIENTALÉ a diversidade de plantas cultivadas e animais domésticos, e a suacapacidade de se adaptar a condições ambientais adversas (clima, solo, vegetaçãoetc.) e a necessidades humanas específicas, que assegura aos agricultores apossibilidade de sobrevivência em muitas áreas sujeitas a estresses ambientais.É o cultivo de espécies diversas que protege os agricultores, em muitascircunstâncias, de uma perda total da lavoura, em casos de peste, doença, secaprolongada etc. Com as monoculturas, de estreitíssima base genética, ocorre ocontrário: as pestes, doenças etc. atingem a única espécie cultivada e destroemcompletamente a lavoura.A uniformidade genética cria enormes riscos e incertezas para oscultivos agrícolas, que se tornam especialmente vulneráveis. A situação devulnerabilidade genética se caracteriza quando uma planta cultivada em largaescala é uniformemente suscetível a pestes, doenças ou estresses ambientais,devido à sua constituição genética, criando, dessa forma, riscos de perdastotais nas lavouras. Ainda que uma variedade moderna tenha sido desenvolvidapara ter resistência contra um determinado patógeno, qualquer mutação nessepatógeno, por menor que seja, poderá ser suficiente para quebrar tal resistência,tornando vulnerável toda a lavoura.Um dos mais famosos exemplos dos perigos representados pelauniformidade genética foi a “Grande Fome” ocorrida na Irlanda, entre 1845e 1851, provocada pela devastação generalizada das plantações de batatas porum fungo (Phytophthora infestans). Noventa por cento da população da Irlandadependia da batata como alimento principal. O fungo acabou com as plantaçõesde batata e a fome matou 2 milhões de irlandeses (25% da população). Nesseperíodo, 1,5 milhão de irlandeses migraram para os Estados Unidos, Austráliae Nova Zelândia. Muitos morreram durante a viagem ou logo na chegada,fragilizados pela subnutrição.Há, entretanto, exemplos mais recentes. Nos anos 1970, uma doençade planta causada por um fungo (Bipolaris maydis), conhecida como “pragada folha do milho sulino”, atacou as plantações de milho de Estados norteamericanos(inicialmente os do sul e depois chegou até o norte, atingindoMinnesota, Michigan e Maine). Alguns Estados chegaram a perder metade desuas lavouras. Isso ocorreu também em 1971, numa plantação soviética de umamesma variedade de trigo, conhecida como Besostaja, em uma área de 40 milhõesde hectares, que se estendia de Kuban à Ucrânia. Tal variedade apresentavaaltos rendimentos quando cultivada em Kuban, onde as temperaturas eram mais84 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 84 12/4/2011 17:33:08


amenas. Naquele ano, a Ucrânia sofreu um inverno extremamente rigoroso, quedevastou suas plantações e levou à perda de 20 milhões de toneladas de trigo, quecorrespondiam a 30% a 40% da lavoura. Conforme destacam Cary Fowler e PatMooney, em ambos os casos a culpa pelas perdas das lavouras de milho e trigo,nos Estados Unidos e na Ucrânia, não deve ser atribuída à praga que infestou asplantações de milho ou ao inverno rigoroso da Ucrânia, e sim à uniformidadegenética dos cultivos. As lavouras não teriam sido tão drasticamente devastadasse tivessem sido plantadas variedades diversas (FOWLER & MOONEY, 1990).A agrobiodiversidade é essencial à segurança alimentar e nutricional,que consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente aalimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso aoutras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotorasde saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural,econômica e socialmente sustentáveis. Esse é o conceito estabelecido pelo artigo3º da Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, que cria o Sistema Nacionalde Segurança Alimentar e Nutricional, a fim de assegurar o direito humano àalimentação.A agrobiodiversidade está não só associada à produção sustentável dealimentos, como tem também papel fundamental na promoção da qualidade dosalimentos. Uma alimentação diversificada – equilibrada em proteínas, vitaminas,minerais e outros nutrientes – é recomendada por nutricionistas e condiçãofundamental para uma boa saúde. Só os sistemas agrícolas agrobiodiversosfavorecem dietas mais nutritivas e equilibradas. Estão diretamente relacionadosa redução da diversidade agrícola e o empobrecimento das dietas alimentares.A erosão genética no campo afeta não só os agricultores como também osconsumidores.Os modelos de produção agrícola têm implicações diretas para aalimentação, a nutrição e a saúde humana. A agricultura “moderna” e o cultivo depoucas espécies agrícolas favoreceram a padronização dos hábitos alimentarese a desvalorização cultural das espécies nativas. A alimentação centrada noconsumo de plantas (frutas, legumes e verduras) foi substituída por dietasexcessivamente calóricas e ricas em gorduras, mas pobres em vitaminas, ferroe zinco. Os alimentos são feitos com um número cada vez menor de espéciese variedades de plantas, e os derivados de milho e soja, por exemplo, estãopresentes na maioria dos produtos alimentícios industrializados. Para que setenha uma ideia, estima-se que existam entre 250.000 e 420.000 espécies deplantas superiores, das quais apenas trinta corresponderiam a 95% da nutriçãohumana, e apenas sete delas (trigo, arroz, milho, batata, mandioca, batata-doce ecevada) responderiam por 75% desse total. Estimativas mais otimistas apontam,Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 85livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 85 12/4/2011 17:33:09


entretanto, que 103 espécies seriam responsáveis por 90% dos alimentosconsumidos no planeta, e não somente as vinte ou trinta espécies mais comumentemencionadas (WALTER, 2005). De qualquer forma, a alimentação humana sebaseia em um número reduzido de espécies vegetais, o que compromete a saúde.A alimentação pouco nutritiva e balanceada responde, em parte, pelaepidemia mundial de doenças crônicas como obesidade, diabetes, doençascardiovasculares e algumas formas de câncer. Segundo a Organização Mundialde Saúde (OMS), cerca de 177 milhões de crianças de todo o mundo estãoameaçadas por doenças relacionadas com a obesidade, e a previsão é que 2,3bilhões de pessoas de mais de 15 anos serão obesas até 2015. Atualmente, há1,5 bilhão de pessoas obesas no mundo, enquanto 854 milhões são subnutridas.Nos países em desenvolvimento, o enfrentamento da fome e da miséria passanecessariamente pela adoção de práticas agrícolas mais sustentáveis.A agricultura interage com o ambiente de diversas formas que afetam asaúde humana. Os efeitos nocivos do uso indiscriminado de agrotóxicos sãobem conhecidos. Em casos extremos, chegam a provocar anomalias genéticas,tumores e câncer. A Organização Mundial da Saúde estima que ocorrem no mundocerca de 3 milhões de intoxicações agudas por agrotóxicos, com 220.000 mortespor ano, das quais cerca de 70% ocorrem em países em desenvolvimento. 2 Alémda intoxicação de trabalhadores rurais que têm contato direto ou indireto comesses produtos, a contaminação de alimentos atinge também os consumidores.Por causa da sua periculosidade para a saúde humana e para o meio ambiente,os agrotóxicos estão sujeitos a controles legais em muitos países do mundo,inclusive no Brasil. As alterações ambientais produzidas pela irrigação e pelodesmatamento favorecem também o desenvolvimento de doenças como malária,esquistossomose etc.A agrobiodiversidade é um componente essencial dos sistemas agrícolassustentáveis. Um de seus princípios é justamente a diversificação dos cultivos.Um maior número de espécies em determinado ecossistema, associado aoutros fatores ecológicos, assegura maior estabilidade e menor necessidadede insumos externos, como os agrotóxicos e os fertilizantes nitrogenados. Ossistemas agrícolas diversificados também propiciam colheitas de diferentescultivos em épocas do ano alternadas. A quebra de uma safra, ou a redução do2Em 2008, o Brasil assumiu a liderança no consumo mundial de agrotóxicos. As vendasde agrotóxicos totalizaram 733,9 milhões de toneladas e movimentaram cerca de 7,1bilhões de dólares, segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a DefesaAgrícola (Sindag). Fonte: “No reino dos agrotóxicos: a Anvisa pode banir <strong>13</strong> pesticidasdo Brasil, novo líder mundial de consumo”. CartaCapital, 20/05/2009, nº 546.86 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 86 12/4/2011 17:33:09


preço de determinada cultura, não causa tantos prejuízos como nos sistemasmonoculturais (EHLERS, 2008).A diversificação de um agroecossistema pode ser realizada de váriasformas, que vão desde o consórcio de culturas, passando pela rotação (os“cultivos alternados”), até os sistemas agroflorestais, que são um sistema demanejo florestal que visa conciliar a produção agrícola e a manutenção dasespécies arbóreas. Esses sistemas promovem o aumento da matéria orgânicanos solos, diminuem a erosão e conservam a diversidade de espécies. Quandoas matas ciliares são recuperadas, verifica-se também a diminuição da turbidezda água e uma ampliação da disponibilidade de recursos hídricos (BEZERRA& VEIGA, 2000).Cada agroecossistema, entretanto, apresenta características distintas, eexige soluções específicas. A agricultura sustentável requer uma compreensãodas complexas interações entre os diferentes componentes dos sistemasagrícolas. Cada agroecossistema deverá encontrar as soluções adequadas àssuas condições ambientais, econômicas e sociais. A especialização dos sistemasprodutivos e a homogeneidade genética que os caracteriza não só provocama diminuição da diversidade de espécies e variedades como também reduzemespécies importantes ao equilíbrio dos agroecossistemas, como as bactériasfixadoras de nitrogênio, os fungos que facilitam a absorção de nutrientes, ospolinizadores, dispersores de sementes etc. Comprometem ainda a resistência ea resiliência dos agroecossistemas, tornando-os mais vulneráveis ao ataque depragas, secas, mudanças climáticas e outros fatores de risco.3. AS LEIS DE SEMENTES E A INFLUÊNCIA DO MODELO AGRÍCOLAINDUSTRIALAs sementes – usaremos aqui esse termo em sentido amplo, para incluirtodo material de propagação vegetal - encerram em si toda a vida de uma plantae são a base da agrobiodiversidade. Não se pode compreender o impacto dosistema jurídico sobre a diversidade agrícola sem uma análise das normas queregulam a produção, a comercialização e a utilização das sementes. As leis desementes não apenas produzem seus efeitos sobre os sistemas agrícolas comotambém têm interfaces com as políticas de desenvolvimento rural sustentável,segurança alimentar e nutricional, inclusão social, agrobiodiversidade esobrevivência cultural dos povos tradicionais. A elaboração e a implementaçãodas leis de sementes devem, portanto, contemplar a diversidade de sistemasagrícolas e de atores sociais envolvidos na produção de alimentos.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 87livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 87 12/4/2011 17:33:09


Atualmente, está em vigor no Brasil a Lei nº 10.711, de 05/08/2003 (maisconhecida como Lei de Sementes), que dispõe sobre o Sistema Nacional deSementes e Mudas e “objetiva garantir a identidade e a qualidade do material demultiplicação e de reprodução vegetal produzido, comercializado e utilizado emtodo o território nacional”. Essa norma substituiu a lei de sementes anterior (nº6.507 de 1977), que, por sua vez, revogou a primeira lei de sementes brasileira, a4.727, editada em <strong>13</strong> de julho de 1965 para regular a fiscalização do comércio desementes e mudas. São leis de sementes essencialmente destinadas a regular osistema “formal” de sementes do país, cujos impactos sobre a agrobiodiversidadeserão analisados a seguir.A primeira lei de sementes brasileira foi editada em um período históricoem que muitos países adotaram legislações semelhantes, influenciados peloparadigma do produtivismo e da “modernização” da agricultura, da padronizaçãodos produtos agrícolas e da fragmentação das várias etapas da produção agrícola.Nesse novo paradigma industrial, as variedades de alto rendimento, homogêneas,estáveis e dependentes de insumos externos, introduzidas pela revolução verdenos anos 1960 e 1970, adquiriram papel central. As sementes de tais variedadespassaram a ser vistas como um instrumento para a transferência de tecnologia,e a ampla disseminação das variedades melhoradas e de alto rendimento setornou um dos principais objetivos de programas de desenvolvimento agrícolafinanciados por organismos internacionais. Entre 1958 e 1987, a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, United States Agencyfor International Development) apoiou o desenvolvimento de um setor “formal”de produção de sementes melhoradas em 57 países em desenvolvimento. OPrograma de Melhoramento e Desenvolvimento de Sementes da FAO atuouem sessenta países entre 1972 e 1984, enquanto o Banco Mundial financioutreze programas nacionais de sementes e pelo menos uma centena de projetosrelacionados com a introdução de sementes melhoradas entre 1975 e 1985.O principal objetivo de tais programas era capacitar as instituições agrícolaslocais para produzir sementes melhoradas e distribuí-las aos agricultores, bemcomo criar condições para que o setor privado assumisse a sua produção ecomercialização. Foi nesse contexto que surgiram as leis de sementes, destinadasa orientar o desenvolvimento de um setor “moderno” e comercial de produçãode sementes (LOUWAARS, 2008).O biólogo e historiador da ciência Christophe Bonneuil chama a atençãopara o papel desempenhado, nesse modelo agrícola industrial, do que chama de“paradigma fixista (ou estático) da variedade”, por meio do qual a variedadeagrícola (geneticamente) homogênea e estável é concebida como a “formamais perfeita de variedade”. Bonneuil cita como exemplo de tal concepção88 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 88 12/4/2011 17:33:09


“fixista” um artigo publicado em 1944 pelo influente biólogo francês JeanBustarret, em que esse considera que a homogeneidade genética é a garantiada previsibilidade e da estabilidade do valor agronômico e tecnológico deuma variedade agrícola (BONNEUIL ET AL, 2006). As variedades locaisteriam dois inconvenientes, segundo Jean Bustarret: por serem geneticamenteheterogêneas, seriam “muito mais difíceis de descrever e caracterizar” do que aslinhagens puras e homogêneas, e seriam ainda “suscetíveis de variar no tempo eno espaço”. Bustarret desconsidera o papel dos agricultores no desenvolvimentodas variedades locais, vendo-as apenas como resultado da “seleção natural”, e oseu conceito de variedade (homogênea e estável) serve também para delimitaro campo de especialização profissional do “fitogeneticista” e para operaruma divisão de trabalho entre o cientista “inovador” e o agricultor “usuário”da ciência. Bustarret introduziu os critérios de homogeneidade, estabilidadee “características distintivas”, que passaram a ser exigidos para a inscriçãoobrigatória das variedades agrícolas em um catálogo oficial, a fim de quepudessem ser comercializadas, o que excluiu grande parte das variedades locais(BUSTARRET, 1944). O paradigma fixista da variedade ignora a evoluçãodas variedades agrícolas no tempo e no espaço e os contextos socioculturais eambientais em que elas se desenvolvem. Atende principalmente a um padrãode produção agrícola intensivo e de escala (BONNEUIL ET AL, 2006). Alémdisso, os critérios de homogeneidade e estabilidade, exigidos para o registrooficial, reduzem a diversidade de variedades disponíveis para os agricultores.Além dos critérios de homogeneidade e estabilidade, a introdução detestes para a avaliação do “valor agronômico e tecnológico” das variedadesagrícolas produz outro efeito reducionista sobre a diversidade: os ensaios sóavaliam algumas características, notadamente o rendimento e a produtividade,anulam a diversidade de ambientes em virtude de uma extrema artificializaçãocausada pelo uso intensivo de pesticidas e fertilizantes químicos e, a partirde certo momento, passaram a ser cada vez mais conduzidos em laboratóriose estações de pesquisa agronômica, e não nos campos dos agricultores,distanciando-os ainda mais dos processos decisórios. A avaliação do “valoragronômico e tecnológico” das variedades sem a participação dos agricultores esem considerar os contextos socioambientais tende a excluir qualquer variedadenão adaptada ao modelo agrícola industrial, reduzindo a agrobiodiversidade.O modelo agrícola industrial promoveu a concepção de que tanto omelhoramento (genético) das variedades agrícolas como a produção dassementes deveriam ser atividades desenvolvidas apenas por setores profissionaisespecíficos (fitogeneticistas, agrônomos etc.). Os agricultores passaram a sertratados como simples produtores agrícolas e consumidores de sementes e deHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 89livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 89 12/4/2011 17:33:09


outros insumos agrícolas industrialmente produzidos. Passaram a ser vistos,portanto, como meros usuários finais do trabalho desenvolvido pelos técnicosdo melhoramento vegetal. Trata-se de uma concepção que negou o papel dosagricultores como inovadores e detentores de saberes e práticas fundamentaispara os sistemas agrícolas e para a manutenção da agrobiodiversidade nocampo. As sementes e variedades desenvolvidas e produzidas pelos agricultores,adaptadas às condições locais, começaram a ser substituídas por variedadesestáticas e homogêneas, e os saberes agrícolas, a ser produzidos fora do campo,longe dos agricultores, pelas instituições de pesquisa. As políticas oficiais nãoconseguiram impedir, entretanto, que os agricultores continuassem a inovar,selecionando e produzindo suas próprias sementes, desenvolvendo novasvariedades e realizando trocas e intercâmbios de sementes e saberes agrícolas.As concepções vigentes – da variedade homogênea e estável como a mais“perfeita” e adequada a qualquer sistema agrícola e de que os cientistas são osúnicos capazes de realizar inovações na agricultura – fundamentaram as leis desementes aprovadas no período <strong>pós</strong>-revolução verde, que se inspiraram em leisde países industrializados e procuraram sustentar, juridicamente, um modeloindustrial de produção de sementes. Tais leis tentaram, na verdade, promovera “modernização” da agricultura por meio de uma imposição legislativaartificial, que ignora a realidade sociocultural e econômica dos agricultores edos sistemas agrícolas dos países em desenvolvimento. Atendem aos interessese às necessidades de uma parcela muito pequena dos atores sociais do campoe não reconhecem a existência de complexos e diversificados sistemas locaisde produção, distribuição, comercialização e intercâmbio de sementes, q<strong>uea</strong>brangem extensas redes sociais, reguladas por normas locais.Apesar de terem as suas peculiaridades em cada país, as leis de sementesse fundamentam em uma perspectiva linear: as leis e as políticas devem favorecero desenvolvimento de um setor de sementes “moderno”, comercial, em q<strong>uea</strong>s empresas privadas têm um papel central na produção e comercialização desementes e da qual o poder público vai aos poucos se afastando. As políticas devemestimular os investimentos privados (de empresas nacionais e estrangeiras) naárea de sementes, adotando medidas legais (como a proteção de cultivares) eeconômicas (como incentivos fiscais) de apoio ao setor privado, para incentiváloa assumir o melhoramento, a produção, a distribuição e a comercialização dassementes. Parte-se da perspectiva (linear) de que os sistemas de sementes devem“evoluir”, passando das variedades e práticas agrícolas tradicionais (atrasadas)para as variedades e sistemas agrícolas “modernos”, que empregam tecnologias“modernas” e apresentam alta produtividade. As leis de sementes devem,portanto, impulsionar o sistema “formal” de sementes e eliminar (ou reduzir ao90 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 90 12/4/2011 17:33:09


máximo) os “informais”. Niels Louwaars critica tal perspectiva linear, que sefundamenta principalmente em um modelo proposto por Johnson Douglas paraorientar o desenvolvimento do setor de sementes, com vários estágios sucessivos,que levariam à evolução do “tradicional” ao moderno. (LOUWAARS, 2008;DOUGLAS, 1980). É um modelo que subestima a capacidade dos agricultoresde desenvolver e produzir suas sementes, assim como seus saberes e práticasagrícolas (em geral), e considera que o conhecimento científico dará solução atodos os problemas agrícolas através das variedades melhoradas e das sementes“de alta qualidade”. Os agricultores são vistos como meros recipientes dessastecnologias agrícolas, que só precisam ser convencidos a adotá-las. Além disso,o modelo pressupõe que os sistemas de sementes podem – ou deveriam –funcionar da mesma forma para todas as espécies agrícolas e para todos os tiposde agricultor, o que, evidentemente, não ocorre.Assim, as leis de sementes têm em comum o fato de atender principalmenteao chamado sistema “formal” de sementes, e de desconsiderar o papel dossistemas “locais” (chamados de “informais”), manejados e controlados pelospróprios agricultores, na produção, multiplicação, distribuição, intercâmbio,melhoramento e conservação de sementes. É mais comum a utilização dotermo “sistema formal” (convencional ou institucional) de sementes paraenfatizar a sua adequação a normas legais, e o fato de que combina atores einstituições públicas e privadas no desenvolvimento, produção e distribuiçãode sementes, tais como bancos de germoplasma, instituições de pesquisaagronômica, fitomelhoristas, produtores, beneficiadores, armazenadores,comerciantes e certificadores de sementes, cujas atividades são reguladas pornormas técnicas e metodologias padronizadas. Trata-se de um sistema que sedestina principalmente à comercialização de sementes em grande escala e emmercados/regiões que extrapolam o âmbito local. (Em muitos casos, um doselos da cadeia – o melhoramento genético vegetal – é realizado por instituiçõespúblicas, mas a produção e o comércio das sementes produzidas pelo sistema“formal” tendem a se concentrar nas mãos de empresas privadas.) Os sistemasformais e locais operam sob lógicas e dinâmicas muito distintas, atendendoa necessidades de diferentes modelos agrícolas, o que tem sido subestimadopelas leis de sementes. As leis de sementes devem, portanto, se limitar a regularos sistemas formais, deixando fora de seu escopo os sistemas locais, que nãopodem ser obrigados a se enquadrar em normas tão distantes de sua realidadeeconômica e sociocultural. Só assim as leis de sementes estarão contribuindopara a diversificação dos sistemas de sementes, tão fundamental para umaagricultura heterogênea e para a conservação da biodiversidade agrícola.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 91livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 91 12/4/2011 17:33:09


Analisando o desenvolvimento histórico dos sistemas formais desementes, Niels Louwaars mostra que esses se desenvolveram nos paísesindustrializados na segunda metade do século XIX e evoluíram rapidamentea<strong>pós</strong> a reinvenção das leis de hereditariedade de Mendel no início do séculoXX, tendo ganhado novo impulso com a descoberta do fenômeno da heterosee a subsequente introdução de milhos híbridos. Louwaars mostra que o sistemaformal funciona, do ponto de vista da diversidade genética vegetal, como um“funil”, em que, a partir de uma ampla variedade de materiais disponíveis emcoleções de germoplasma, são desenvolvidas – e chegam aos agricultores –pouquíssimas variedades, adaptadas ao modelo agrícola dominante, que, emgeral, não atendem às necessidades de agricultores que vivem em ambientesmarginais, sujeitos a estresses agroambientais e socioeconômicos maiscomplexos. Os sistemas formais estão voltados principalmente para as espéciesagrícolas de grande valor comercial e de ampla utilização em ambienteshomogêneos ou homogeneizados por fertilizantes químicos e pesticidas. Assim,não são capazes de oferecer grande variedade de sementes adaptadas a usos econdições locais específicas e de atender às necessidades de agricultores quedispõem de poucos recursos e vivem em regiões heterogêneas, ambiental eculturalmente (LOUWAARS, 2007).4. AS SEMENTES E OS SISTEMAS AGRÍCOLAS LOCAISConnie Almekinders prefere chamar os sistemas “locais” de “sistemasdos agricultores”, para enfatizar que são os próprios agricultores que manejame controlam tais sistemas, promovendo a seleção, o melhoramento, a produçãoe a difusão das sementes em contextos locais específicos (ALMEKINDERS,LOUWAARS, 1999). São sistemas em que os agricultores produzem suaspróprias sementes, controlando os recursos genéticos de plantas de maneiraintegrada e com diferentes finalidades, explica Walter de Boef. Acrescenta aindaesse pesquisador que o manejo e a seleção dos agricultores, em combinaçãocom processos naturais, como mutação genética e cruzamento com parentessilvestres, caracterizam um “sistema de evolução contínua dos cultivos” (BOEF,2007). São sistemas que mantêm a diversidade genética no campo, em que sãodesenvolvidas variedades agrícolas adaptadas a condições locais específicas,que os sistemas formais não têm condições e/ou interesse em produzir ecomercializar. Além disso, são os sistemas locais que produzem sementes emáreas remotas e de difícil acesso, aonde os sistemas formais não chegam. Aheterogeneidade das sementes e das variedades produzidas pelos sistemas locais92 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 92 12/4/2011 17:33:09


é, por outro lado, que as torna mais flexíveis e capazes de se adaptar às mudançassocioambientais. Além disso, para os agricultores de baixa renda a possibilidadede eliminar os custos com a aquisição de sementes comerciais também tem umpeso significativo na escolha das sementes locais.Os sistemas locais são amplamente predominantes nos países emdesenvolvimento, especialmente para algumas espécies agrícolas utilizadasna alimentação local. Estima-se que 1,4 bilhão de pessoas vivem em famíliasde agricultores que usam suas próprias sementes (FOWLER, HAWTIN,HODGKIN, 1999). Cerca de 80% das sementes dos países em desenvolvimentosão produzidas pelos próprios agricultores e na África esse total chega a 90%em alguns países (FAO, 1998). Na Índia, apesar de todos os investimentosinternacionais na criação de sistemas formais de sementes, calcula-se q<strong>uea</strong>penas 10% das sementes de variedades de arroz utilizadas pelos agricultoresprovenham de tais sistemas formais. Para outras espécies, como trigo, amendoime grão-de-bico, o percentual atinge menos de 5 por cento (TURNER, 1994). NoNepal, os sistemas formais também contribuem com menos de 5% das sementesdas principais espécies agrícolas, sendo o restante produzido pelos própriosagricultores (JOSHI, 2000). Nos países latino-americanos e caribenhos a FAOestima que cerca de 75% das sementes utilizadas pelos agricultores sejamprovenientes de sistemas locais (que a FAO denomina sistemas informais),apesar de todos os apoios e financiamentos destinados ao sistema formal porinstituições governamentais e multilaterais ao longo das últimas três décadas. Jáos sistemas locais receberam pouquíssimos investimentos e apoios de políticaspúblicas, mas prevalecem nos países latino-americanos.A produção de sementes pelos próprios agricultores é também bastantesignificativa em países industrializados. Os produtores de sementes europeusestimam que cerca de 50% das sementes utilizadas nos cultivos dos principaiscereais sejam produzidas pelos próprios agricultores, e, em países do sul daEuropa, como Itália e Grécia, apenas 10% das sementes (de cereais) sejamcompradas pelos agricultores. Na França, 50% das sementes de espéciesagrícolas de autopolinização, como trigo, são produzidas pelos agricultores, ena Alemanha avalia-se que esse número chegue a 46 por cento. Em Portugal, háestimativas de que esse número chegue a 75% e a 88% na Espanha (TOLEDO,2002). Os agricultores europeus mantêm a prática tradicional de reservar partede sua colheita para semeadura na safra seguinte. (KASTLER, 2005) Até mesmonos Estados Unidos a média de uso de sementes produzidas pelo sistema formal,no período de 1986 a 1997, foi de 37% para trigo, 78% para algodão e 81%para soja, tendo sido de 100% para o milho em virtude da utilização de híbridos(CARRARO, 2005; FERNANDEZ-CONEJO, 2004). Destaque-se que tanto nosHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 93livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 93 12/4/2011 17:33:09


EUA e Europa como nos países em desenvolvimento é equivocado supor quetodas as sementes produzidas pelos próprios agricultores sejam de variedadeslocais, pois eles reproduzem também sementes de variedades comerciais.No Brasil, os sistemas locais são também fundamentais para a agricultura,sendo responsáveis pelo abastecimento de grande parte das sementes utilizadaspelos agricultores tradicionais, familiares e agroecológicos. Em uma estimativafeita ao longo do período de 1991 a 2003 no Brasil, a taxa média de uso desementes produzidas pelo sistema formal foi de 19% para feijão, 48% paraarroz, 72% para soja, 75% para milho, 77% para algodão e 89% para trigo(CARRARO, 2005). Todo o restante das sementes foi produzido pelos sistemaslocais, que abasteceram, durante o referido período, 81% e 52% do total dassementes utilizadas pelos agricultores em culturas fundamentais à segurançaalimentar e nutricional dos brasileiros, como arroz e feijão. Os sistemas locaisabrangem tanto o desenvolvimento, produção, adaptação e distribuição desementes locais como o uso próprio de sementes comerciais (guarda de sementespara uso na safra seguinte). Nesses sistemas, as extensas e complexas redessociais que promovem o intercâmbio de sementes, variedades e conhecimentosagrícolas têm papel fundamental na conservação da diversidade genética.Segundo a Associação Brasileira de Sementes e Mudas (ABRASEM,2008), que reúne os maiores produtores de sementes, os agricultores brasileirosutilizaram, na safra 2006-2007, sementes produzidas pelo sistema formal nasseguintes proporções: 49% na cultura do algodão, 43% na do arroz, 15% na dofeijão, 85% na do milho, 50% na da soja, 74% na do sorgo e 71% na do trigo.Isso significa que as sementes produzidas pelos sistemas locais representaram51% na cultura do algodão, 57% na do arroz, 85% na do feijão, 15% na domilho, 50% na da soja, 26% na cultura do sorgo e 29% na cultura do trigo. Nasafra 2007-2008, o uso de sementes produzidas pelos sistemas formais diminuiuem relação a quase todas as culturas (com exceção da soja e do sorgo), comoindicam os números divulgados pela Abrasem: 44% na cultura do algodão,40% na do arroz, <strong>13</strong>% na do feijão, 83% na do milho, 54% na da soja, 88%na do sorgo e 66 % na do trigo. Ou seja, os sistemas locais são responsáveispelo abastecimento de sementes para a maior parte das culturas no Brasil, e ouso das sementes produzidas pelo sistema formal/comercial tem diminuído nopaís. Entre as razões apontadas pela Abrasem para a prática dos agricultores deguardar sementes para utilização na safra seguinte estão: - tradição familiar ouregional; - tentativa de redução de custos; - escassez de sementes ou cultivares;- preços acima do valor aceito pelo mercado; e - baixa qualidade da sementecomercial.94 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 94 12/4/2011 17:33:09


A FAO, ao analisar as principais razões que levam à predominância dossistemas locais de sementes nos países latino-americanos e caribenhos, concluique: - o sistema formal frequentemente não produz sementes de variedadeslocais, importantes para os agricultores, porque essas não são rentáveis, doponto de vista comercial; - a maior parte das variedades melhoradas, produzidapelo sistema formal, se destina a agricultores comerciais estabelecidos em áreasfavorecidas por chuvas frequentes, irrigação e fácil acesso a insumos externos,e não aos agricultores pobres que vivem em áreas marginais ou mais remotas.Por tais razões a FAO, embora recomende certo nível de privatização no setorde sementes, alerta os países latino-americanos da necessidade de proteçãodos interesses dos pequenos agricultores, especialmente aqueles que vivem emregiões marginais, pois as suas culturas de subsistência dificilmente despertarãoo interesse de empresas privadas. A FAO destaca ainda que nos sistemaslocais os agricultores compartilham, trocam ou vendem, a preços baixos, assementes para outros agricultores, e as vantagens representadas pelo baixopreço, adaptabilidade e fácil acesso acabam compensando eventuais diferençasqualitativas em relação às sementes comerciais. A FAO considera que é por taisrazões, principalmente, que os sistemas locais continuam a prevalecer em todosos países latino-americanos e caribenhos, apesar de todos os investimentosno setor formal realizados nas últimas décadas por inúmeras instituiçõesmultilaterais.(FAO, 2000).As relações de confiança e reciprocidade são muito importantes nossistemas locais, e também ajudam a explicar a sua predominância em muitospaíses. Lone Badstue realizou um interessante estudo nos vales centrais deOaxaca, no México – um centro de diversidade genética do milho –, enfocandoa importância das relações sociais nos intercâmbios de sementes e o papelcentral que a confiança mútua desempenha nos sistemas tradicionais de acessoàs sementes. Muitos agricultores dos vales centrais de Oaxaca consideram queé muito mais arriscado comprar sementes em uma loja do que obtê-las em suacomunidade, onde as pessoas se conhecem e têm que arcar com as consequênciasse as sementes que doarem, trocarem ou venderem não forem de boa qualidade.O estudo mostra que os agricultores têm pouca confiança nos vendedores de lojasagropecuárias, porque sabem que, caso haja algum problema com as sementes,os vendedores lhes dirão que eles não semearam adequadamente ou que suasterras não foram devidamente irrigadas. Confiam mais em outros agricultores.(BADSTUE, 2007)Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 95livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 95 12/4/2011 17:33:09


5. A LEI DE SEMENTES BRASILEIRAApesar da predominância dos sistemas locais nos países latinoamericanos,a lei brasileira (10.711/2003) está essencialmente voltada parao sistema formal. Contempla os sistemas locais de sementes em algunsdispositivos específicos e excepcionais, mas estabelece normas gerais que sópodem ser cumpridas e respeitadas pelo setor industrial de sementes. A lei impõeexcessivas restrições/limitações para que os agricultores possam produzir assuas próprias sementes, desconsiderando o fato de que essas sementes são, emgeral, mais bem adaptadas às condições locais. Além disso, ao impor pesadosônus para a produção e a comercialização de sementes, ignora o fato de que aspequenas empresas de sementes teriam melhores condições de atender demandasespecíficas de mercados locais, contribuindo assim para a conservação e o uso daagrobiodiversidade. As grandes empresas priorizam a produção de sementes q<strong>uea</strong>tendem ao maior número possível de produtores agrícolas e não têm interesseem produzir pequenas quantidades para atender a demandas localizadas.Ao dar primazia ao desenvolvimento de um setor formal/comercial, esubestimar a importância dos sistemas locais, a lei de sementes brasileira excluinão só grande parte dos agricultores, que não têm condições de comprar assementes ou preferem usar sementes adaptadas às condições socioambientaislocais, como também marginaliza as espécies e variedades que os sistemas formaisnão têm interesse em produzir. Assim, a lei de sementes atende principalmenteaos interesses privados (em assegurar mercados para as sementes comerciais), enão aos interesses dos agricultores familiares, tradicionais e agroecológicos. Oobjetivo de uma lei de sementes deve ser – acima de tudo – assegurar o acesso(dos diferentes tipos de agricultor) a sementes de boa qualidade, adequadas àssuas necessidades, na época certa, e em quantidades suficientes. Para atender atais objetivos, as leis de sementes devem favorecer a diversificação dos sistemasde sementes, reconhecendo as complementaridades entre os sistemas formais eos locais.A lei de sementes brasileira dispõe sobre o Sistema Nacional de Sementese Mudas e estabelece que a produção, o beneficiamento e a comercializaçãode sementes e mudas estão condicionadas à prévia inscrição do respectivocultivar no Registro Nacional de Cultivares (RNC). Para ser inscrito no RNC ocultivar deve ser “claramente distinguível de outros cultivares conhecidos, pormargem mínima de descritores e por sua denominação própria”, além de ser“homogêneo e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas”.Para ser homogêneo, o cultivar deve apresentar variabilidade mínima quanto aosdescritores que o identifiquem (por exemplo, altura da planta, largura da folha,96 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 96 12/4/2011 17:33:09


período de floração, pigmentação etc.; os descritores são definidos para cadacultivar, considerando as suas características). Para ser estável, o cultivar devemanter a sua homogeneidade através de gerações sucessivas. O estabelecimentode tais critérios – homogeneidade e estabilidade – exclui as variedades quenão os preenchem, e, em muitos casos, as variedades mais bem adaptadasàs condições locais podem não atender a tais critérios, justamente por seremheterogêneas. Jean Marc von der Weid e Ciro Correa dão o seguinte exemplo:um dos descritores de variedades de milho no Registro Nacional de Cultivaresé o ângulo entre a primeira folha e o colmo. Em variedades convencionais,esse ângulo é constante nas diferentes plantas de uma lavoura e em plantas dediferentes gerações. Já nas variedades crioulas é possível encontrar grandesvariações nesse descritor (CORREA, WEID, 2006).A inscrição de um novo cultivar está também sujeita à comprovaçãode que ele possui valor de cultivo e uso (VCU), definido como o “valorintrínseco de combinação das características agronômicas do cultivar com assuas propriedades de uso em atividades agrícolas, industriais, comerciais ouconsumo in natura.” Os ensaios destinados a demonstrar o valor de cultivo euso das variedades (para fins de registro) devem ser realizados pelo requerenteda inscrição e apresentados ao Ministério da Agricultura, a quem cabe fiscalizálose supervisioná-los. Em tais ensaios são muitas vezes utilizados critériosestatísticos que favorecem variedades que se adaptam em maior número delocais, em detrimento de variedades adaptadas a locais específicos. Tendemtambém a desconsiderar características importantes para os agricultores, como otempo que a variedade leva para cozinhar, por quanto tempo a variedade pode serarmazenada sem se deteriorar etc. Os ensaios tendem a avaliar principalmente orendimento das variedades, ainda que possam ser indicadas outras característicasimportantes que justifiquem sua inclusão no RNC.A permanência da inscrição de um cultivar no Registro Nacional deCultivares (RNC), por outro lado, depende da existência de pelo menos ummantenedor, que se responsabiliza por tornar disponível um estoque mínimode material de propagação do cultivar e deve comprovar que possui condiçõestécnicas para garantir a manutenção do cultivar. Se, por qualquer motivo, deixarde fornecer as sementes, deverá ter o nome excluído do registro. Além disso,a inscrição dos cultivares protegidos no RNC só pode ser feita pelo obtentor(quem obteve ou desenvolveu novo cultivar) ou por pessoa autorizada porele. Já a inscrição de cultivar de domínio público no RNC pode ser requeridapor qualquer pessoa que mantenha disponível estoque mínimo de material depropagação do cultivar. Quando os cultivares registrados caem em domíniopúblico, as empresas de sementes já não têm interesse em mantê-los no mercado,Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 97livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 97 12/4/2011 17:33:09


pois não rendem royalties aos seus obtentores e os agricultores passam a nãoter acesso a tais variedades (a não ser que uma instituição de pesquisa assumaa condição de mantenedor, o que tem-se tornado cada vez mais difícil paravariedades cuja demanda é pequena).O artigo 11, parágrafo 7º, da Lei de Sementes diz que “o regulamentodessa lei estabelecerá os critérios de permanência ou exclusão de inscrição noRNC dos cultivares de domínio público”, mas tais critérios ainda não foramestabelecidos. Quanto aos cultivares cuja manutenção não desperta interessecomercial, por já estarem em domínio público, mas que são importantes paraos segmentos da agricultura familiar e agroecológica e/ou para a conservaçãoda agrobiodiversidade, o poder público (através de suas instituições depesquisa agropecuária) deveria assumir a condição de mantenedor deles, a fimde assegurar que os agricultores continuem a ter acesso a eles, ou, conformeo caso e as circunstâncias, o poder público poderia dispensar a exigência demantenedor para que os cultivares continuassem inscritos no RNC. Afinal,não pode o acesso a um cultivar depender do interesse comercial de grandesempresas privadas, sob pena de prejuízo aos agricultores tradicionais, familiarese agroecológicos, e de redução da diversidade agrícola. Ao definir os cultivaresde domínio público que permanecerão no RNC e aqueles que serão excluídos,os critérios socioambientais devem ser considerados.O artigo 16 do Decreto 5.153/2004 (que regulamentou a Lei de Sementes)dispõe que o Ministério da Agricultura poderá autorizar, “observado o interessepúblico e desde que não cause prejuízo à agricultura nacional”, a inscrição noRNC de espécie ou de cultivar de domínio público que não apresentem origemgenética comprovada, sem o cumprimento das exigências de mantenedor. Até omomento, entretanto, a dispensa de mantenedor pelo Ministério da Agriculturase deu em duas hipóteses: para o pinhão-manso, a fim de atender às demandasdo programa brasileiro de biodiesel, e para as espécies florestais, com base noartigo 47 da Lei de Sementes. Entretanto, tais possibilidades de inscrição noRNC sem o cumprimento das exigências de mantenedor devem se estendertambém àqueles casos em que o interesse na conservação de variedades, emvirtude de sua importância para alguns segmentos de agricultores ou para aconservação da agrobiodiversidade, justifique a dispensa de mantenedor.A Lei de Sementes estabelece ainda o registro obrigatório de todas aspessoas (físicas e jurídicas) que produzam, beneficiem, embalem, armazenem,analisem, comercializem, importem e exportem sementes e mudas no Ministérioda Agricultura. A inscrição ou credenciamento no Registro Nacional deSementes e Mudas (Renasem) depende do pagamento de valores que variamconforme a natureza da inscrição, assim como as condições exigidas para a98 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 98 12/4/2011 17:33:09


inscrição variam segundo cada categoria (produtor, beneficiador, armazenador,certificador, comerciante de sementes e mudas etc.). O produtor de sementes,por exemplo, deve atender às seguintes exigências: inscrever os campos deprodução de sementes, comprovar a origem do material de reprodução, apresentara autorização do obtentor (no caso de cultivar protegido) e o contrato com ocertificador (quando for o caso), além dos mapas de produção e comercializaçãode sementes. Deve ainda manter à disposição do órgão de fiscalização oprojeto técnico de produção, os laudos de vistoria de campo, o controle debeneficiamento, o termo de conformidade e o certificado de sementes, o contratode prestação de serviços (quando o beneficiamento e o armazenamento foremrealizados por terceiros) etc.Os pequenos produtores de sementes têm enfrentado enormes dificuldadespara cumprir tais requisitos, que são extremamente onerosos para uma produçãode sementes de pequena escala, em quantidades reduzidas, e destinada a atenderapenas os mercados locais. A lei de sementes e o seu regulamento não apenasbeneficiam os sistemas formais como também privilegiam as grandes empresassementeiras, ao impor condições que apenas elas conseguem cumprir. Oimpacto sobre a agrobiodiversidade é perverso: deixam de ser produzidas (e,consequentemente, utilizadas) sementes de variedades adaptadas a condiçõessocioambientais específicas e passam a ser produzidas apenas as variedadescomerciais, vendidas em larga escala, cujos custos para a manutenção daestrutura técnica exigida pela lei são compensados com as vendas em grandesquantidades.O artigo 8º, parágrafo 3º, da Lei de Sementes prevê, entretanto, que “ficamisentos da inscrição no Renasem (Registro Nacional de Sementes e Mudas) osagricultores familiares, os assentados da reforma agrária e os indígenas quemultipliquem sementes ou mudas para distribuição, troca ou comercializaçãoentre si”. Ou seja, desde que a distribuição, troca e mesmo a venda de sementese mudas sejam realizadas entre os próprios agricultores, não há necessidadede inscrição no Renasem. O Decreto 5.153/2004, entretanto, regulamentou areferida exceção legal em dois dispositivos:- o artigo 4º, parágrafo 2º, dispõe que “ficam dispensados de inscriçãono Renasem os agricultores familiares, os assentados da reforma agrária e osindígenas que multipliquem sementes ou mudas para distribuição, troca oucomercialização entre si.”- o artigo 4º, parágrafo 3º, dispõe que “ficam dispensadas de inscriçãono Renasem as organizações constituídas exclusivamente por agricultoresfamiliares, assentados da reforma agrária ou indígenas que multipliquemsementes ou mudas de cultivar local, tradicional ou crioulo para distribuição aosHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 99livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 99 12/4/2011 17:33:09


seus associados”. [negrito nosso]O Decreto 5.153/2004 faz, portanto, uma distinção que a Lei de Sementesnão faz: a lei afirma que os agricultores familiares, os assentados da reformaagrária e os indígenas podem distribuir, trocar e vender sementes e mudas sema necessidade de registro, desde que o façam entre si. Os agricultores poderãose organizar em associações, cooperativas ou sindicatos para desempenhartais atividades (distribuição, troca ou comercialização), e o decreto não podeestabelecer que a distribuição deve se limitar aos associados de tais organizações.O objetivo da lei é estabelecer que, para fins de isenção do registro no Renasem,a distribuição, a troca ou a comercialização de sementes ou mudas devem se darentre os agricultores familiares, assentados da reforma agrária ou indígenas, masnão faz nenhuma referência à obrigatoriedade de que os referidos agricultoressejam associados quando tais atividades se desenvolverem através de suasorganizações. O decreto extrapolou os limites da lei, impondo restrições àsorganizações constituídas por agricultores que a lei não dispõe. A lei permite amultiplicação de sementes ou mudas para distribuição, troca ou comercialização,desde que sejam realizadas entre agricultores familiares, assentados da reformaagrária e comunidades indígenas, e não estabelece nenhuma restrição àsorganizações constituídas por agricultores, seja no tocante à distribuição, sejaquanto à troca ou comercialização de sementes.De acordo com o artigo 84, IV, da Constituição, o decreto deve garantira “fiel execução da lei”, e não pode estabelecer restrições a direitos q<strong>uea</strong> lei não estabelece. O decreto deve se limitar a facilitar a execução da lei,dando orientações práticas para a sua aplicação, e jamais estabelecer novaregulamentação da matéria. Afinal, desde que a Constituição de 1988 entrouem vigor já não existe no direito brasileiro a figura do decreto “independente”ou “autônomo”, que disciplina matéria não regulada em lei. De qualquerforma, não é esse o caso, pois o Decreto 5.153/2004 foi editado justamentepara regulamentar a Lei de Sementes. Além disso, o artigo 4º, parágrafo 3º, aorestringir o âmbito de atuação das organizações constituídas por agricultores, estáafrontando o princípio constitucional da liberdade de associação, expressamenteassegurado pela Constituição (artigo 5º, XVII: “é plena a liberdade de associaçãopara fins lícitos...”; XVIII: “a criação de associações e, na forma da lei, a decooperativas, independem de autorização, sendo vedada a interferência estatalem seu funcionamento”). O artigo 4º, parágrafo 3º, do Decreto 5.153/2004 é,portanto, ilegal, por estabelecer restrições aos direitos dos agricultores que alei não estabelece. Os agricultores familiares, os assentados da reforma agráriae os indígenas podem criar as suas organizações – cooperativas, associações,sindicatos etc. – e realizar a distribuição, troca e comercialização de sementes100 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 100 12/4/2011 17:33:09


entre si, pois o direito a se associar está previsto no artigo 5º, XVII, daConstituição, e o direito a distribuir, trocar e vender sementes (entre si), estáprevisto na Lei de Sementes (artigo 8º, parágrafo 3º). Essa lei, em momentoalgum, obriga ao exercício individual de tal direito. O direito de multiplicarsementes para distribuição, troca ou comercialização é, por sua própria natureza,um direito coletivo dos agricultores e, portanto, nada mais lógico que eles oexerçam de forma coletiva, através de suas organizações. Além disso, o fluxoe o intercâmbio de sementes – por troca ou venda – e de saberes agrícolas sãoessenciais para a conservação da agrobiodiversidade.A Lei de Sementes deixa, entretanto, algumas brechas para os sistemaslocais de sementes. Reconhece os cultivares locais, tradicionais ou crioulos, ecria exceções às normas que obrigam o registro de cultivares para que as suassementes e mudas possam ser produzidas, beneficiadas e comercializadas,assim como estabelece exceções ao registro obrigatório de pessoas e empresasdedicadas a tais atividades. Além disso, contém um importante dispositivo (artigo48) que veda o estabelecimento de restrições à inclusão de sementes e mudas decultivares locais, tradicionais ou crioulos em programas de financiamento ou emprogramas públicos de distribuição ou troca de sementes, desenvolvidos juntoa agricultores familiares. A Lei de Sementes define ainda as “sementes para usopróprio” e ressalva o direito dos agricultores de reservarem, a cada safra, partede sua produção para semeadura na safra seguinte, uma prática tradicionalmenteutilizada por agricultores e muito importante para os sistemas locais. Taisexceções representam conquistas importantes dos movimentos sociais e dasorganizações da sociedade civil e merecem ser destacadas, apesar de algunsimpasses que impedem sua plena aplicação.6. AS SEMENTES LOCAIS, TRADICIONAIS OU CRIOULASSegundo a Lei de Sementes, entende-se por cultivar local, tradicionalou crioulo a variedade desenvolvida, adaptada ou produzida por agricultoresfamiliares, assentados da reforma agrária ou indígenas, com característicasfenotípicas bem determinadas e reconhecidas pelas respectivas comunidades eque, a critério do Ministério da Agricultura, considerados também os descritoressocioculturais e ambientais, não se caracterizem como substancialmentesemelhantes aos cultivares comerciais”. As sementes dessas variedadessão conhecidas também como “sementes da paixão” e como “sementes dabiodiversidade”.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 101livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 101 12/4/2011 17:33:09


Apesar do avanço no reconhecimento das sementes locais, a lei deixa acritério do Ministério da Agricultura, “considerados os descritores socioculturaise ambientais”, definir se as variedades locais se caracterizam ou não como“substancialmente semelhantes aos cultivares comerciais”. Trata-se de umaincoerência, pois é a própria lei que define a variedade local como aquela“desenvolvida, adaptada ou produzida por agricultores familiares, assentadosda reforma agrária ou indígenas”, com características fenotípicas “reconhecidaspelas respectivas comunidades”. Deve competir às comunidades locais (aindaque com o apoio e a participação do Ministério da Agricultura ou do Ministériodo Desenvolvimento Agrário e de técnicos da área agrícola) definir os critériospara a identificação e a caracterização das variedades que desenvolveram,produziram ou se adaptaram às condições socioambientais locais e específicas,assim como os critérios para diferenciá-las dos cultivares comerciais.Muitas definições de variedades (e sementes) locais, tradicionais oucrioulas têm sido propostas, e destacamos algumas delas. Para Jean Marc vonder Weid e Ciro Correa, as sementes crioulas ou locais são aquelas melhoradase adaptadas por agricultores, por seus próprios métodos e sistemas de manejo,desde que a agricultura se iniciou, há mais de dez mil anos. Eles destacam queexistem centenas de variedades de cada uma das espécies cultivadas, e cadauma delas evoluiu sob condições ambientais, sistemas de cultivo e preferênciasculturais específicas (WEID, CORREA, 2006). Segundo Paulo Petersen, da AS-PTA, as “sementes da biodiversidade” são mantidas pelas famílias agricultorascomo um patrimônio essencial à reprodução de seus modos de vida. “Sãobens naturais e culturais ao mesmo tempo, possuindo características genéticasmoldadas por processos de escolha consciente realizados pelos agricultores”,afirma Paulo Petersen (2007). Dominique Louette propõe que as variedadeslocais de milho sejam consideradas “estruturas genéticas abertas (1999) eWalter de Boef e Jaap Hardon definem as variedades locais como “variedadesou populações que estão sob contínuo manejo pelos agricultores, a partir deciclos dinâmicos de cultivo e seleção (não necessariamente) dentro de ambientesagroecológicos e socioeconômicos específicos” (1993).A Lei de Sementes exige a consideração dos descritores socioculturais eambientais, e não só dos descritores agronômicos e botânicos, justamente paraque sejam considerados, na definição e caracterização das variedades locais, oscontextos socioculturais e ambientais em que essas variedades se desenvolveramou se adaptaram, por seleção natural e pelo manejo dos agricultores. LaureEmperaire destaca que a noção de variedade local, ou cultivar local, varia deacordo com o contexto cultural no qual é usada. Laure Emperaire cita o exemploda mandioca: para o geneticista, uma variedade de mandioca – planta de102 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 102 12/4/2011 17:33:09


multiplicação vegetativa – é um clone, isto é, a variedade é constituída por umconjunto de indivíduos geneticamente idênticos. Para o agricultor, a variedadeé constituída de um conjunto de indivíduos considerados suficientementepróximos e diferentes de outros conjuntos para constituir uma unidade demanejo e receber um nome próprio. Do ponto de vista biológico, a noção localde variedade encobre diversos clones aparentados, deixando espaço para umacerta variabilidade, diferente daquela aceita pelas normas legais (EMPERAIRE,2008). Nivaldo Peroni também destaca que entre os caiçaras da região sul de SãoPaulo foram identificados 58 nomes locais para variedades de mandioca, quecorrespondem tanto a variedades com nomes iguais e genótipos diferentes comotambém genótipos iguais e nomes diferentes. Isso ocorre porque muitas vezesos agricultores desconsideram pequenas variações morfológicas nas variedadesde mandiocas, e as identificam apenas por suas características mais marcantes,sendo relativamente comum encontrar variedades que são, na verdade, famíliasde genótipos com algum grau de diferenciação genética, mas com alto grau desemelhança morfológica, explica Peroni (2007).O Ministério da Agricultura deverá, portanto, consultar os agricultorese prever a participação deles na definição das variedades locais e dos critériospara distingui-las das comerciais. Até o momento, o referido ministério nãoeditou nenhum ato normativo para definir as variedades locais. O Ministério doDesenvolvimento Agrário editou, entretanto, a Portaria 51, em 3 de outubro de2007, que estabelece que, para fins de cadastramento na Secretaria de AgriculturaFamiliar, os cultivares locais, tradicionais ou crioulos são entendidos comovariedades que, cumulativamente: - tenham sido desenvolvidos, adaptados ouproduzidos por agricultores familiares, assentados da reforma agrária, povose comunidades tradicionais ou indígenas; - tenham características fenotípicasbem determinadas e reconhecidas pelas respectivas comunidades; - estejamem utilização pelos agricultores em uma dessas comunidades há mais de trêsanos; - não sejam oriundas de manipulação por engenharia genética nem outrosprocessos de desenvolvimento industrial ou manipulação em laboratório, nãocontenham trangenes e não envolvam processos de hibridação que não estejamsob domínio das comunidades locais de agricultores familiares.Já o artigo 48 da Lei de Sementes veda o estabelecimento de restriçõesà inclusão de sementes e mudas de cultivar local, tradicional ou crioula emprogramas de financiamento ou em programas públicos de distribuição outroca de sementes desenvolvidos junto a agricultores familiares. Tal previsãolegal representou um avanço importante, porque a lei de sementes anterior(6.507/77) não reconhecia as sementes locais, que eram tratadas apenas como“grãos”, o que dificultava o apoio de políticas públicas a iniciativas voltadas aoHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 103livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 103 12/4/2011 17:33:09


esgate, melhoramento e reintrodução de sementes crioulas, desenvolvidas pororganizações da sociedade civil brasileira em parceria com os agricultores. Oreconhecimento legal permitiu o apoio de políticas públicas a várias iniciativasdessa natureza.O artigo 48 é claríssimo ao vedar expressamente qualquer restrição àinclusão das sementes locais em programas voltados para a agricultura familiar.Entretanto, os agricultores que usaram tais sementes nas safras 2004-2005 e2005-2006, obtiveram o crédito rural do Programa Nacional de Fortalecimentoda Agricultura Familiar (Pronaf) e perderam suas lavouras em virtude daforte seca na região Centro-Sul tiveram o seguro agrícola negado, justamentepor terem usado sementes locais. O seguro agrícola exige que as sementesutilizadas nas lavouras estejam no zoneamento agrícola de risco climático doMinistério da Agricultura, e só entram no zoneamento variedades registradas noRegistro Nacional de Cultivares. Ocorre que o artigo 11, parágrafo 6º, da Lei deSementes, estabelece que “não é obrigatória a inscrição no Registro Nacionalde Cultivares de cultivar local, tradicional ou crioulo, utilizado por agricultoresfamiliares, assentados da reforma agrária ou indígenas”, justamente em virtudeda inadequação dos requisitos exigidos pelo Registro Nacional de Cultivares àssementes locais.O registro corre ainda o risco de “engessar” as sementes locais, que secaracterizam justamente por sua evolução no tempo e no espaço. “Determinardefinitivamente as características de cada variedade significaria congelar a suaevolução”, explica a engenheira agrônoma Flávia Londres. São variedadesessencialmente dinâmicas, sujeitas a processos de evolução e transformaçãocontínuos. Além disso, as diferentes variedades podem ter o mesmo nome emregiões distintas, assim como a mesma variedade pode ter nomes distintos em ummesmo lugar ou em lugares diferentes, pois são constantemente intercambiadas.Na safra 2004-2005, a Medida Provisória 285/06 autorizou(retroativamente) a cobertura de perdas pelo seguro agrícola, exclusivamentepara essa safra, aos produtores rurais que tenham plantado cultivares nãoprevistos no zoneamento agrícola estabelecido pelo Ministério da Agricultura.Na safra 2005-2006, o Conselho Monetário Nacional autorizou o pagamento doseguro agrícola aos agricultores que utilizaram sementes locais, estendendo obenefício às lavouras de soja transgênica do Rio Grande do Sul. Em 18 de julhode 2006, foi editada a Portaria nº 58, do ministro do Desenvolvimento Agrário,instituindo, no âmbito da Secretaria da Agricultura Familiar, um cadastronacional das entidades que “desenvolvem trabalho reconhecido com resgate,manejo e/ou conservação de cultivares locais, tradicionais ou crioulos”. APortaria nº 51, de 3 de outubro de 2007, ampliou e tornou permanente o cadastro104 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 104 12/4/2011 17:33:09


estabelecido pela Portaria nº 58/2006, estabelecendo que, para ser cadastrada, aentidade deverá ter dois anos de existência legal e descrever no formulário pelomenos duas atividades de resgate, manejo e/ou conservação de cultivares locais,tradicionais ou crioulos.A entidade cadastrada deverá informar os cultivares locais com osquais vem desenvolvendo seu trabalho, suas características básicas e regiãode adaptação, assim como designar técnicos que se responsabilizem pelasinformações.Além das dificuldades inerentes a qualquer registro de variedades locais,outra crítica das organizações da sociedade civil ao referido cadastro é o fatode deixar “desamparados” os agricultores que desenvolvem, adaptam ouproduzem variedades locais, mas não são assessorados por técnicos e entidadesda sociedade civil e teriam, portanto, dificuldades para realizar o cadastramentoe acessar o seguro agrícola. Para o Ministério do Desenvolvimento Agrário,o cadastramento é necessário, entretanto, não só para atender às exigênciasdo seguro agrícola como também para identificar os trabalhos e experiênciasde agricultores familiares com cultivares locais, tradicionais ou crioulos paraorientar políticas públicas nessa área.A Portaria nº 51/2007 estabelece ainda que, pela sua própria naturezae tradição histórica, os cultivares locais, tradicionais ou crioulos constituempatrimônio sociocultural das comunidades, não sendo aplicável patente,propriedade e nenhuma forma de proteção particular para indivíduos, empresasou entidades. Prevê ainda a referida portaria que o cadastro não confere àentidade direito de propriedade ou posse ao cultivar por ela cadastrada nemprerrogativa de detentora do cultivar, nem concede nenhum tipo de direito anenhuma pessoa física ou jurídica.7. AS SEMENTES “PARA USO PRÓPRIO”Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 105Outro aspecto a ser destacado na Lei de Sementes e no Decreto 5.153/2004,que a regulamentou, é a forma como define e regula as sementes “para usopróprio”. De acordo com o artigo 2º, XLIII, a “semente para uso próprio” éa “quantidade de material de reprodução vegetal guardada pelo agricultor, acada safra, para semeadura ou plantio exclusivamente na safra seguinte e emsua propriedade ou outra cuja posse detenha, observados, para cálculo daquantidade, os parâmetros registrados para o cultivar no Registro Nacionalde Cultivares – RNC”. Conforme já destacado, o uso próprio de sementes éuma prática amplamente difundida não só no Brasil e em outros países latinolivrohileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 105 12/4/2011 17:33:10


americanos como também em países industrializados, como França, Alemanhae Estados Unidos, especialmente para espécies de autopolinização. A guarda desementes para semeadura na safra seguinte é uma tradição e uma necessidade degrande parte dos agricultores familiares e abrange diferentes cultivos agrícolas.A salvaguarda legal dessa prática é essencial para os sistemas locais e para aconservação da diversidade de espécies, variedades e agroecossistemas.A Lei de Sementes prevê o uso próprio de sementes, mas restringeessa prática à safra seguinte e limita a quantidade de sementes que pode serguardada. Ela estabelece três condições para o exercício do direito ao usopróprio de sementes: - 1) que sejam utilizadas na propriedade do agricultor ouem outra cuja posse detenha; - 2) que a quantidade de sementes guardadas nãoseja superior aos parâmetros registrados para o cultivar no RNC; - 3) que assementes guardadas sejam utilizadas exclusivamente na safra seguinte. Ora, aLei de Sementes tem como finalidade “garantir a identidade e a qualidade” dassementes produzidas, comercializadas e utilizadas no país, e, portanto, não faznenhum sentido que estabeleça qualquer restrição ao direito dos agricultores deguardar parte de suas sementes, a cada safra, para semeadura nas safras seguintes.Afinal, se foi o próprio agricultor que selecionou algumas sementes (de suacolheita) para serem utilizadas nas safras seguintes, ninguém melhor do queele conhece a “identidade e a qualidade” das sementes que ele próprio plantou,colheu e selecionou. Não faz sentido restringir o uso próprio das sementes paraassegurar a “identidade e a qualidade” de materiais de propagação que ele jáconhece. Portanto, não condiz com os objetivos da lei criar restrições ao direitode uso próprio das sementes.O Decreto 5.153/2004, em seu artigo 115, parágrafo único, ressalva,entretanto, que as condições exigidas para o uso próprio de sementes (descritasacima e reproduzidas pelo decreto) não se aplicam aos agricultores familiares,assentados da reforma agrária e indígenas que multipliquem sementes ou mudaspara distribuição, troca ou comercialização entre si. Portanto, ainda que seconsidere que a Lei de Sementes não deve estabelecer restrições ao uso próprio,pois essas não são compatíveis com os seus objetivos, o Decreto 5.153/2004esclarece que as obrigações de só utilizar sementes guardadas na safra seguintee na propriedade do agricultor, assim como de limitar a quantidade de sementesguardadas, só se aplicam aos agricultores que não sejam familiares, assentadosda reforma agrária e indígenas.Os sistemas locais (que a FAO chama de informais) deveriam, na verdade,ficar fora do escopo da Lei de Sementes, que deve se aplicar exclusivamenteaos sistemas formais. Assim, o uso próprio de sementes não sofreria restriçõesindevidas, prejudiciais aos agricultores, e a distribuição, troca e comercialização106 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 106 12/4/2011 17:33:10


entre os agricultores não correriam o risco de ser limitadas por decretos eregulamentos, como ocorreu com o Decreto 5.153/2004 (artigo 4º, parágrafo3º, citado acima). O argumento mais frequente, para justificar a necessidade decontroles tão rígidos sobre o uso, a produção e o comércio de sementes, tem sidoo risco de doenças – especialmente sua disseminação entre diferentes regiões,e a necessidade de assegurar a pureza genética e a capacidade de germinaçãoe o vigor das sementes. Ainda que se compreenda tal argumento, é necessárioconsiderar que os sistemas locais de sementes se baseiam principalmente emvariedades localmente adaptadas, utilizadas, distribuídas e comercializadasno âmbito local, e que outras soluções precisam ser encontradas para resolveras questões fitossanitárias. É importante avaliar quais os benefícios que taiscontroles de qualidade representam efetivamente para os agricultores, secomparados com as dificuldades e restrições a que submetem os sistemas locaisde sementes.Além disso, as leis de sementes foram desenvolvidas para cadeias deprodução, distribuição e comercialização de sementes que envolvem váriosintermediários entre os produtores e os consumidores, chamadas de “cadeias decircuito longo”, em que os consumidores das sementes (os agricultores) não têmnenhuma relação direta com os produtores (as grandes empresas de produção ecomercialização de sementes), destaca Shabnam Anvar (2008). Há uma enormedistância entre o produtor e o consumidor das sementes, e nenhuma relaçãode confiança, colaboração ou reciprocidade entre eles. A rigidez das normasestabelecidas para as cadeias de circuito longo não se justificam, entretanto,quando as sementes são produzidas e comercializadas no âmbito local e osagricultores têm acesso aos produtores de sementes. Tais normas são aindamenos justificáveis quando os agricultores produzem suas próprias sementesou as adquirem de outros agricultores locais, através de suas redes sociais. Se,originariamente, o objetivo das leis de sementes era evitar a disseminação desementes de má qualidade, elas acabaram extrapolando muito os seus pro<strong>pós</strong>itosiniciais e passaram a impor um único modelo agrícola, industrial e produtivista.É também curioso que uma lei (na verdade, o decreto que a regulamenta)imponha tantas condições para o uso próprio de sementes e para distribuição,troca e comercialização de sementes entre os agricultores, sob a justificativada necessidade de “garantir a identidade e a qualidade” das sementes, e, aomesmo tempo, permita que o próprio produtor certifique a sua produção(“autocertificação”), ainda que sob a fiscalização do Ministério da Agricultura- que tem, como os órgãos públicos em geral, deficiências estruturais e defiscalização. O sistema de controle de qualidade das sementes se baseia, emgrande parte, em informações prestadas pelos produtores de sementes, aindaHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 107livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 107 12/4/2011 17:33:10


que essas sejam, a princípio, controladas pelo Ministério da Agricultura. Atémesmo a certificação das sementes fica a cargo do próprio produtor: a Lei deSementes, em seu artigo 27, parágrafo único, faculta ao produtor de sementes emudas certificar sua própria produção, desde que credenciado pelo Mapa.CONCLUSÃOAinda que as leis de sementes não possam ser inteiramenteresponsabilizadas pela perda da diversidade genética e sociocultural no campo,elas têm contribuído para agravar os seus efeitos. As exceções feitas às sementeslocais pela Lei de Sementes brasileira – apesar de representarem uma conquistaimportante da agricultura familiar e agroecológica – buscam atenuar os efeitosnegativos dessa lei sobre a agrobiodiversidade, mas não alteram os princípios econceitos gerais em que ela se baseia: setorização industrial e padronização daagricultura, negação do papel dos agricultores como selecionadores e inovadoresetc. São princípios e conceitos que vão essencialmente contra a lógica e osprocessos socioculturais e ambientais que geram e mantêm a agrobiodiversidade,em todos os seus níveis.As leis de sementes e o pouco espaço legal que abrem para os sistemaslocais dificultam a adoção de um modelo de agricultura “sustentável”.A agrobiodiversidade é um componente essencial dos sistemas agrícolassustentáveis, e cada agroecossistema apresenta características distintas, queexigem soluções específicas, adequadas às suas condições socioambientais. Assementes representam escolhas que não são apenas agronômicas, mas tambémsocioculturais, ambientais e econômicas. Para que os agricultores possamescolher livremente as suas sementes, as políticas públicas devem promover umaampla diversificação das sementes e conferir maior espaço – legal e institucional– para os sistemas locais, em vez de tentar impor, artificialmente, um únicosistema (o sistema formal). A Lei de Sementes deve, explicitamente, deixar forade seu escopo os sistemas locais, cujas variedades localmente adaptadas sãoutilizadas, distribuídas e comercializadas no âmbito local.As leis de sementes deveriam, pelo menos, não prejudicar os esforços paraa conservação e o uso da biodiversidade agrícola. Mais do que isso, deveriammanter coerência com o princípio constitucional que determina ao poder públicoa obrigação de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genéticobrasileiro, com medidas destinadas a salvaguardar a diversidade genética, deespécies agrícolas e agroecossistemas, através do fortalecimento dos sistemaslocais e de medidas de apoio a experiências de resgate, produção, multiplicação108 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 108 12/4/2011 17:33:10


e distribuição de sementes locais, como feiras, casas e bancos de sementescomunitários, além do apoio a programas de melhoramento participativo,realizados com a participação dos agricultores.Outras medidas de apoio à agrobiodiversidade deveriam ser incluídas– por meio da edição de leis especificamente voltadas para conservaçãoe utilização sustentável da agrobiodiversidade. As leis de proteção àagrobiodiversidade devem resguardar especialmente os centros de origeme de diversidade dos cultivos agrícolas. Os sistemas agroecológicos tambémdevem ser objeto de proteção legal especial contra eventuais contaminações porinsumos externos (como pesticidas e fertilizantes químicos) usados em cultivosconvencionais, assim como contra a contaminação pelo cultivo de organismosgeneticamente modificados. Dessa forma, as leis (de sementes e de proteção àagrobiodiversidade) estariam contribuindo não só para a conservação e o uso dadiversidade agrícola como também para a segurança alimentar das populaçõeshumanas, a inclusão social e o desenvolvimento rural sustentável.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:ABRASEM. O mercado de sementes no Brasil. Brasília, 2008. Palestrainstitucional. Disponível em: www.abrasem.com.br. Acesso em: 21/07/2008.ABRASEM. “Semente: inovação tecnológica”. In: Anuário 2008. Brasília,2008.ALMEKINDERS, C.; LOUWAARS, N. Farmers’ seed production: newapproaches and practices. Londres: Intermediate Technology Publications,1999.ANVAR, S. L. Semences et droit: l´emprise d´un modèle économique dominantsur une réglementation sectorielle. Paris, 2008. Tese (Doutorado) Université deParis I Panthéon-Sorbonne.BADSTUE, L. “Confiança mútua como base para a aquisição de sementes”. In:Agriculturas: experiências em agroecologia. Rio de Janeiro: AS-PTA; Leusden:Ileia, v. 4, nº 3, p. 18-21, out. 2007.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 109livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 109 12/4/2011 17:33:10


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MEIO AMBIENTE, PROPRIEDADE ECOBERTURA FLORESTAL*Edilson Pereira Nobre Júnior **Sumário: 1. Função social da propriedade e a tutela do meio ambiente; 2. Intervençãoestatal na propriedade e meio ambiente; 3. Das florestas de preservação permanente; 4.A reserva legal; 5. Agrupamento das situações que ensejam indenização e modo de suaquantificação; Referências.Resumo: Neste trabalho são analisadosos reflexos jurídicos das ações da AdministraçãoPública voltadas para a preservaçãoflorestal, dando-se enfoque aos meiosadotados para esse fim, como as limitaçõesadministrativas, decorrentes do poder depolícia, e a desapropriação, que se configuraforma mais drástica de intervençãodo Estado na propriedade. São tecidos comentáriosà Lei nº 4.771/65, que se mostracomo importante instrumento de proteçãoao meio ambiente, finalizando-se com otema relativo à indenização pela limitaçãodo uso da propriedade.Palavras-Chave: Meio ambiente; coberturavegetal; propriedade; intervenção;Estado.Abstract: In this work, the juridical reflexesof the public administration’s actionstowards forest preservation are analyzed,focusing on the means adopted forsuch end, such as the administrative limitationsincurring from the power of the policeforce, and the disappropriation, whichconfigures a more drastic way for the Stateto intervene in property. Comments aremade in regard to law number 4.771/65,which shows as an important instrumentin environmental protection, closing withthe matter of indemnity for property uselimitations.Keywords: Environment; vegetation covering;property; intervention; State* Escrito que condensa palestra proferida no Curso Meio Ambiente e Justiça Federal:a visão multidisciplinar dos problemas e soluções, patrocinado pela ESMAFE – 5ªRegião, atendendo a convite de sua Diretora, Des. Fed. Margarida Cantarelli, e do CoordenadorCientífico do evento, Juiz Federal Ivan Lira de Carvalho.** Juiz Federal. Mestre e doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito do Recife– UFPE. Professor da UFRN e da Universidade Potiguar.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 115livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 115 12/4/2011 17:33:10


1 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A TUTELA DO MEIO AMBIENTEConstatação inexorável é a de que a propriedade, como direito subjetivo,vem, com o passar do tempo, sendo objeto de forte transformação. Sempretensão de recuar às eras mais remotas, é possível notar que a RevoluçãoFrancesa, com o pro<strong>pós</strong>ito de liquidar o regime dominial predominante nofeudalismo 1 , patrocinou o reviver de panorama similar ao vigorante no direitoromano, através do qual aquela deveria ser reputada como um direito inviolávele sagrado (inviolable et sacré).Poder-se-ia, inclusive, afirmar que o movimento de 1789 foi além doprevalecente em Roma 2 , pois o art. 17º da Declaração de Direitos do Homem edo Cidadão, de 26 de agosto do referido ano, condicionando o modo pelo qualpoderia o Estado, ao argumento de utilidade pública, suprimir a propriedade docidadão, dispunha: “A propriedade consiste num direito inviolável e sagrado;ninguém dela pode ser privado, salvo se a necessidade pública, legalmenteconstatada, evidentemente o exigir, e sob a condição duma justa e préviaindenização” 3 .O desenvolvimento dessa orientação adveio, em sede legislativa, com oCódigo Civil de 1804, o qual dispôs, no seu art. 544, o seguinte: “A propriedadeé o direito de gozar e dispor das coisas da maneira a mais absoluta, contanto quenão se realize um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos” 4 .Passadas algumas décadas, os efeitos das transformações econômicasprovocadas pela consolidação da Revolução Industrial, acarretando, dumamaneira abrupta, desumanas condições de vida ao universo cada vez mais1Esse intento, bem como as injustas obrigações que decorriam da divisão do domínioimpostas pelo regime feudal, estão expostos por Laurent Pfister (2004, p. 54-57 e 89-91).2Assim se afirma porque, muito embora em Roma as limitações ao direito de propriedadetivessem seu fundamento no direito de vizinhança e nas intervenções do Estadoque invocassem utilidade pública, coincidindo, à primeira vista, com o regime do documentode 1789, não se podia olvidar neste a necessidade da autoridade pública em satisfazerdeterminados pressupostos para a expropriação.3Tradução nossa a partir de texto em francês disponível em: www.conseil-constitutionnel.fr.Acesso em: 06-03-2009.4Tradução nossa de texto em francês disponível em: www.legifrance.gouv.fr. Acessoem: 06-03-2009.116 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 116 12/4/2011 17:33:10


crescente da classe operária, fez com que as manifestações constituintes que seseguiram à Primeira Guerra Mundial passassem a trilhar direção diversa quantoà disciplina do direito de propriedade 5 .Daí que, com vistas a sanar o grave problema da má distribuição da terra,dispôs o art. 27o, n. 3o, da Constituição mexicana, de 31 de janeiro de 1917,possuir a Nação o direito de impor à propriedade privada regras ditadas pelointeresse público, com vistas à sua distribuição equitativa e à conservação dariqueza da sociedade.Aproximadamente dois anos mais tarde, a Constituição alemã, de 11 deagosto de 1919, enfatizou, no seu art. 153o, n. 3o, a seguinte proclamação: “Apropriedade obriga e seu uso e exercício devem ao mesmo tempo representaruma função no interesse social” 6 .Deixava, assim, o domínio de constituir um direito, cuja garantia lheatribuía a ordem jurídica independentemente da postura assumida pelo seutitular, passando, ao invés, a ostentar a natureza de um poder-dever, de modoque o seu respeito estaria vinculado ao correspondente exercício em prol dacoletividade.O ideal perpassou os textos constitucionais do segundo <strong>pós</strong>-guerra. Paratanto, citem-se como exemplos as Constituições da Itália de 1947 (art. 42, n.1), da Alemanha de 1949 (art. <strong>14</strong>, n. 2), o Preâmbulo da Constituição francesade 1946, possuidor de valor constitucional por remissão do Preâmbulo da LeiFundamental de 04 de outubro de 1958, e a Lei Maior da Espanha de 1978 (art.33o, n. 1).Consagrada, portanto, a função social como o elemento primordial dodireito de propriedade, a qual, como bem expõe Ramón Vicente Casanova(1982, p. 154), “clarifica-se e se mostra como a determinante, em virtude da qual5Esse movimento, na realidade, não se limitava à regulação do direito de propriedadeisoladamente, mas sim à pesquisa de novo fundamento para o direito objetivo e para odireito subjetivo. Prova disso, Duguit (2005, p. 23 e 25), no começo da centúria pretérita,alertava para o ponto de que uma regra de conduta se impunha ao homem pelaprópria força das coisas, consubstanciada em nada fazer que atentasse contra a solidariedadesocial, salientando que esta seria tanto o fundamento de todo o direito objetivo,o que, direta e logicamente, estende-se ao direito subjetivo. Adiante rematou: “Nas relaçõesdos governantes com os governados, e nas relações dos governados uns com osoutros, só há e só pode haver uma regra de direito que é sempre a mesma: cooperar nasolidariedade social. O direito público e o direito privado têm, portanto, igual fundamento”(op. cit., p. 66).6Tradução nossa a partir de texto em espanhol disponível em http://constitucion.redires.es/principal/constituciones-weimar.htm. Acesso em 15.07.2003.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 117livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 117 12/4/2011 17:33:10


a propriedade territorial atende interesses individuais e públicos a um mesmotempo e com igual medida” 7 .De idêntica forma, resulta acertado o dito por Caio Tácito (1997, p. 582):“Ingressa, por essa forma, no direito público, a noção de que à propriedadecorresponde uma função social: ao poder do proprietário se acresce o deverperante a comunidade na qual ele se integra”.Escrevendo à luz do art. 160, III, da Constituição pretérita, já ensinava ErosRoberto Grau (1983, p. 67) que o “princípio da função social da propriedade,desta sorte, passa a integrar o conceito jurídico–positivo de propriedade, de modoa determinar – repita-se – profundas alterações estruturais na sua interioridade”.Significa, diz o autor, que a propriedade se transmuda em dever.O vigente constitucionalismo pátrio não fugiu à regra. De logo, observasedos fundamentos e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasila reverência à função social da propriedade, ao se reportarem à dignidadeda pessoa humana (art. 1o, III) e à construção duma sociedade livre, justa esolidária (art. 3o, I).E, como se não bastasse, a função social foi inserida no rol dos direitose garantias individuais, no art. 5o, XXIII, ao depois da garantia do direito depropriedade, o que é repetido quando da indicação dos princípios retores daatividade econômica (art. 170, III). Está ainda o seu modo de concretizaçãoplasmado tanto para os bens imóveis urbanos (art. 182, §2o) quanto rurais (art.186, I a IV).De notar que, recentemente, as consequências da industrialização se fizeramsentir não apenas em face dos direitos da classe operária. O desenvolvimentoda atividade capitalista, na centúria passada, mostrou que, para fins de alcançaro progresso, bem assim da elevação do consumo de bens, o homem assumiuatitude mais agressiva com a natureza, propiciando, dessa maneira, gastos derecursos energéticos sem controle e de forma excessiva.Portanto, a contar da década de 1970, veio se enfatizando convicção deque o crescimento econômico possuía, dentre os seus limites, a necessidade derespeitar o axioma de que os recursos naturais do planeta não são ilimitados e oseu desgaste desordenado poderia pôr em risco a vida humana.Tomando-se como divisor de águas a Declaração de Estocolmo sobre oMeio Ambiente Humano, de 05 a 16 de junho de 1972 8 , os diversos sistemas7“se clarifica y se muestra como la determinante en virtud de la cual la propriedadterritorial atiende interesses individuales y públicos a un mismo tiempo y com igualintensidad.”8Íntegra do documento se acha disponível em www.dhnet.org.br, conforme acesso de02-03-2009.118 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 118 12/4/2011 17:33:10


jurídicos passaram a atentar para a exigência de que a função social da propriedadedeveria ir além da imposição de seu uso num fim de interesse coletivo pelo seutitular, devendo, antes de tudo, voltar-se para o seu emprego racional, medianteo alcance do equilíbrio entre o desenvolvimento e o respeito ao meio ambiente.Por isso, o constitucionalismo das últimas quatro décadas erigiu a direitofundamental do ser humano, na condição de integrante duma coletividade, oinerente à proteção do ambiente. Tal implica, em contrapartida, que à funçãosocial imposta ao proprietário reste imperiosa a preservação dos recursosnaturais. Assim, a função social vai além da justa distribuição da propriedade,exigindo o aproveitamento desta com respeito à preservação dos recursosnaturais 9 .Isso se evidencia seja com as constituições há pouco promulgadas,como é o caso daquelas de Portugal (art. 66º), Espanha (art. 45), Holanda (art.21º), Colômbia (art. 58), Uruguai (art. 47), Bulgária (art. 15), Rússia (art. 42),Finlândia (art. 2º, nº 2º), seja pela reforma daquelas já existentes, tal comoocorreu com a Lei Fundamental de Bonn (art. 20a) e da Argentina (art. 41),ambos por força de revisões sucedidas no ano de 1994. Mais recentemente, omesmo sucedeu com a Constituição Francesa, em cujo preâmbulo é proclamadaadesão aos direitos e deveres constantes da Carta do Meio Ambiente de 2004,integrando-a, assim, no chamado bloc de constitucionalité.Não foi diferente entre nós. A Constituição de 1988, demais de dedicarà garantia da preservação do meio ambiente o Capítulo VI (art. 225) do seuTítulo VIII (Da Ordem Social), apontou-a, na forma de dever ao proprietário,como integrante do conceito de função social da propriedade, seja por prever,no art. 186, I e II, quanto os imóveis rurais, a obrigatoriedade de aproveitamentoracional e adequado, e de utilização adequada dos recursos naturais disponíveise preservação do meio ambiente.Em complemento, o vigente Código Civil prescreve, afastando-se daorientação individualista que marcava o art. 524 do diploma de 1916, no seu art.1.228, §1º, que o direito de propriedade deverá ter seu exercício em consonânciacom as suas finalidades econômicas e sociais, preservando-se, nos moldes dalei, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimôniohistórico e artístico, de modo a evitar-se a poluição do ar e das águas.9Prova disso, Maria Elizabeth Moreira Fernandez (2001, p. 188, 204 e 300) alude a umafunção social-ecológica da propriedade privada.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 119livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 119 12/4/2011 17:33:10


Diante da consideração acima, segundo a qual o direito a um ambientesadio constitui verdadeiro direito subjetivo fundamental, não se pode negar que,à sua efetivação, estão vinculados os poderes públicos 10 .Tecidas essas considerações, é de ressaltar-se que, no angusto âmbito destetrabalho, interessa-nos analisar os reflexos jurídicos que resultam de parcela daação da Administração Pública, orientada para fins de preservação florestal.2 INTERVENÇÃO ESTATAL NA PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTEDentre as múltiplas competências do Estado, com vistas à preservação doecossistema, apresenta destaque a consistente na intervenção sobre a propriedadeprivada.Observados os correspondentes instrumentos, de logo é de assentar-seque, grosso modo, tem-se a possibilidade do emprego de dois deles, quais sejamas limitações administrativas e a desapropriação 11 .Na primeira hipótese, tem-se condicionamento do direito de propriedadepor determinado interesse coletivo, preservando-se a substância do direito depropriedade.Decorrentes do denominado poder de polícia, as limitações ostentamalgumas características. A primeira delas é a de que a decorrem de ato gerale abstrato, que, sem distinção, impõe-se a todos os administrados que seencontram sob determinadas situações. Como afirma Celso Antônio Bandeira deMello (1969, p. 63), nas limitações “alcança-se toda uma categoria abstrata debens, ou, pelos menos todos os que se encontrem em uma situação ou condiçãoabstratamente determinada”.10Para Canotilho (2005, p. 56), o direito à proteção do ambiente impõe ao Estado “o dever:(1) de combater os perigos (concretos) incidentes sobre o ambiente, a fim de garantire proteger outros direitos fundamentais imbricados com o ambiente (direito à vida,à integridade física, à saúde); (2) de proteger os cidadãos (particulares) de agressões aoambiente e qualidade de vida perpetrados por outros cidadãos (particulares)”.11Com o afirmado acima, não desconheço que, por força do art. 216, V, da Constituição,os sítios de valor ecológico integram o patrimônio cultural brasileiro e, por isto, ensejamproteção através de tombamento, instituto com características próprias. No entanto,deixo de referir-me ao tombamento, fixando-se apenas nas limitações e na desapropriaçãoapenas para o fim de extremar o sacrifício de direitos dos seus condicionamentos,apontando as consequências que advêm dos respectivos regimes jurídicos. Desse modo,o tombamento, conforme o caso, poderá apresentar-se como limitação administrativa,embora com características específicas, ou como expropriação.120 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 120 12/4/2011 17:33:10


Assim, as limitações são impostas mediante lei formal e material, veículoque dá substrato à manifestação do poder de polícia. Caso, excepcionalmente,a restrição de direito advenha de lei que se pré-ordene a abranger destinatáriosdeterminados se está diante da expropriação. É que, in casu, estar-se-á diante delei meramente formal, cujo conteúdo, na realidade, mais se aproxima daqueleinerente ao ato administrativo.Ao depois, tem-se que as limitações impelem ao particular um não fazerou deixar de fazer. Porém, nada impede – e nisto há relevância para o direitoambiental – que, nalgumas vezes, venha-se a impor um fazer. A pro<strong>pós</strong>ito,Zanella di Pietro (2006, p. <strong>14</strong>3) afirma que, em muitos casos, a necessidadede se não pôr em risco determinado interesse da sociedade poderá resultar naimposição de obrigação positiva ao proprietário, como é exemplo a realizaçãode medidas de segurança contra incêndio, medidas impostas por autoridadessanitárias, ou ainda a obrigatoriedade de demolir prédio em ruína.Em representando apenas condicionamento, não atingindo o conteúdoessencial do direito de propriedade, a limitação administrativa não ensejaindenização 12 .Contrariamente, com a desapropriação o Estado suprime, em favor dointeresse que visa tutelar, o direito de propriedade do particular. Configuraforma mais drástica de intervenção sobre o domínio.Verifica-se sua presença não apenas quando o ente expropriante passa ainvestir-se na qualidade de novo proprietário, mas também quando, mesmo nãohavendo transferência dominial, o Poder Público, com a medida administrativa,esvaziar, por inteiro, a capacidade de utilização do bem de acordo com asaptidões que àquele são inatas <strong>13</strong> .Aldo Sandulli (2000, p. 1.104-1.105) deixa claro que a instituição reiteradade vínculos restritivos à propriedade, acarretando um verdadeiro revolvimentoda essência de tal direito, como se dá quando se impõe a impossibilidadeabsoluta de edificar, equipara-se à expropriação.12Nesse sentido, conferir: STJ (1ª T., REsp 760.498 – SC, v.u., rel. Min. José Delgado,julg. em 05-12-2006; 1ª T., REsp 750.050, v.u., rel. Min. Luiz Fux, julg. em 05-10-2006) TRF – 4ª Reg. (3ª T., AC 200172030018236 – SC, rel. Des. Fed. Vânia Hack deAlmeida, DJU – II de 06-09-2006, p. 752).<strong>13</strong><strong>13</strong> A frequência do fenômeno na seara ambiental é realçada por Maria ElizabethMoreira Fernandez (2001, p. 296): “Existem, consequentemente, no direito ambiental,leis que de normas passam a medidas, de meras disposições se transformam emexecução, leis que, em suma, deixam de ser disciplina de acção para passar a ser, em simesmas, acção”.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 121livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 121 12/4/2011 17:33:10


Entre nós, Pontes de Miranda (1974, p. 405) já asseverava: “Desapropriaçãohá, mesmo se não resulta aquisição por alguém, posto que a transdesapropriaçãoseja a espécie mais freqüente. Tornar extracomércio o que está no patrimôniode outrem é desapropriar. O que veda a produção por alguma empresa, ou arestringe, desapropria. Também desapropria quem cerceia direito patrimonial,seja de origem privatística, seja de origem publicística”.Na experiência dos tribunais, há precedente demasiado ilustrativo no RE<strong>13</strong>4.297–8/SP <strong>14</strong> , reconhecendo que a constituição de Estação Ecológica Juréia-Itatins, através da Lei paulista 5.649/87, abrangendo propriedades determinadas,com o impedimento total à sua exploração, por esgotar o conteúdo econômicodo direito de propriedade, reclama o pagamento de indenização, pois foi alémda mera limitação administrativa.Daí se tem que emana de ato concreto e não abstrato, atingindoadministrados determinados. A lei unicamente formal e não material, comoressaltado, poderá apresentar-se como veículo hábil para que se institua adesapropriação.Noutro passo, por representar sacrifício e não condicionamento dedireito, reclama, para sua válida implementação, prévia e justa indenização (art.5º, XXIV, CF) 15 .Isso porque, presente hipótese legal para a expropriação, verifica-se, nocaso concreto, a partir de ponderação de interesses, a supremacia do interessepúblico, o que, de forma alguma, autoriza a destruição, pura e simples, do interesseparticular. Antes obriga a substituição deste pelo equivalente pecuniário.Com propriedade, Héctor Escola (1989, p. 251), muito embora reconheçaa prioridade do interesse público, por sua índole e condição, sobre os interessesindividuais, conclui que aquele somente pode deslocá-los ou substituí-los,mas nunca aniquilá-los. Sendo assim, inarredável o direito à indenização nasexpropriações.De outro lado, a desapropriação, diversamente da limitação administrativa,exige, para sua concretização, adoção do devido processo legal, o qual, emhavendo discordância do atingido, deverá se desenvolver perante o PoderJudiciário. As limitações administrativas, por seu turno, têm sua instituiçãooriginada diretamente da lei ou de ato normativo com força de lei.<strong>14</strong>STF, 1ª T., v.u., rel. Min. Celso de Mello, DJU de 22-09-95.15Essa singularidade é a que distingue a desapropriação de outra hipótese supressiva dojus proprietatis, consubstanciada no confisco, figura somente admissível contanto quehaja explícita previsão constitucional, como se dá, no direito brasileiro, com as situaçõesdo art. 5º, XLVI, b, e art. 243, e parágrafo único, todos da Lei Maior vigente.122 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 122 12/4/2011 17:33:10


Um ponto se apresenta relevante é o inerente à aplicação no tempo dasleis que impõem restrições à propriedade privada. Equacionou o problema Joséde Oliveira Ascensão (2005, p. 559), assentando que, quanto à verificação daaquisição do direito real, o critério a adotar é o da lei vigente à época do fatoaquisitivo. Porém, em sendo de caráter continuativo a relação entre o sujeito eo bem, nada impede que lei nova altere o conteúdo do direito, estabelecendonovos limites, sem que se cogite de direito adquirido a regime anterior 16 .3 DAS FLORESTAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTEConfigurando importante instrumento de proteção ao meio-ambiente, opróprio legislador, no art. 1º, §2º, II, da Lei 4.771/65, ofertou-nos definição doque se deveria compreender por área de preservação permanente 17 , constituindosena “área protegida nos termos dos arts. 2º e 3º desta Lei, coberta ou não porvegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, apaisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna eflora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.De logo, vê-se que há dois tipos de florestas de preservação permanente. Oprimeiro deles resulta, apenas e tão-só, da dicção legal, sendo impostas genéricae indistintamente para todos os imóveis, urbanos ou rurais. São aquelas queestão enunciadas no art. 2º, alíneas a a h, da Lei 4.771/65.São também dessa modalidade as florestas e demais formas de vegetaçãonatural, que se destinam à manutenção do ambiente de vida indispensável àspopulações silvícolas, a que se refere o art. 3º, alínea g, do mencionado diplomalegal. Isto porque o §2º do referido artigo é explícito em afirmar que, em talcaso, a condição de preservação permanente advém pelo só efeito da mençãolegal.16Nesse diapasão parece afinar-se o Supremo Tribunal Federal, uma vez, no particularda propriedade urbana, não vislumbrar plausibilidade na invocação de direito adquiridodiante de titular de licença, mas que ainda não iniciou a edificação, permitindo, assim,a incidência de lei nova que institui novas restrições ao direito de construir. Consultar:AI 121.798-7 - RJ (1ª T., v.u., rel. Min. Sydney Sanches, DJU de 04-03-1988), AgravoRegimental no AI <strong>13</strong>5.464-0 -RJ (1ª T., v.u., rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 22-05-92) eRE 178.836-4 -SP (2ª T., v.u., mv, rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 20-08-99).17Antes havia as chamadas florestas protetoras a que se referia o art. 4º do Decreto23.793/34.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 123livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 123 12/4/2011 17:33:10


Ao contrário do que afirma Nicolao Dino de Castro e Costa Neto (2003,p. 205), não se trata o disposto no art. 2º do Código Florestal de lei de efeitosconcretos. Isto porque não há destinatários determinados. O preceito legal, comoressaltado, aplica-se genericamente a todos que se encontrem na qualidade deproprietários.A particularidade é importante, porquanto, não se cuidando de lei deefeito concreto – que é configurável quando se tem da lei unicamente a forma,mas, ao invés, a substância de ato administrativo -, mas sim de lei material(regra de direito), está-se, por via de regra, diante de condicionamento do direitode propriedade e não se sacrifício deste.Diferentemente, a outra espécie de floresta de preservação permanenterecai naquelas que, para tanto, são objeto de declaração por ato do Poder Público– a meu sentir, Federal, Estadual, Distrital e Municipal – com vistas à satisfaçãodas finalidades previstas no art. 3º, a a f e h, da Lei 4.771/65.Nessa situação, a Administração, mediante ato concreto e específico, impõea determinado proprietário, ou a um conjunto identificável de proprietários, aimpossibilidade de aproveitamento do bem, em face de sua importância comofloresta de preservação permanente.Está-se, sem sombra de dúvida, diante de expropriação, tendo em vistaque, para a satisfação do interesse coletivo, a Administração impôs prejuízoespecial em desfavor de determinados administrados 18 .O prazo para a dedução da pretensão em juízo é de cinco anos, emconformidade com parágrafo acrescentado pela MP 2.183–56/2001 ao art.10 do Decreto-lei 3.365/41, ao ditar: “Extingue-se em cinco anos o direito depropor ação que vise a indenização por restrições decorrentes de atos do PoderPúblico” 19 .As florestas de preservação permanente, que abrangem terras do domíniopúblico ou particular, encontram-se excluídas da possibilidade de exploraçãoeconômica, ressalvada apenas a hipótese daquelas que se encontrem situadas emterras indígenas, pois o art. 3º - A da Lei 4.771/65, introduzido pela MP 2.166-67/2001, assim o permite, desde que observadas algumas condições, tais comoa ouvida das respectivas comunidades, para fins de atender à sua subsistência e,18Outros casos se encontram, de maneira abundante, na Lei 9.985, de 18-07-2000, queinstituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC. Ei-los,segundo se enquadrem como Unidades de Proteção Integral ou Unidades de Uso Sustentável:a) estação ecológica (art. 9º, §1º); b) reserva biológica (art. 10, §1º); c) parquenacional (art. 11, §1º); d) florestal nacional (art. 17, §1º); e) reserva extrativista (art. 18,§1º); f) reserva de fauna (art. 19, §1º); g) reserva de desenvolvimento sustentável (art.20, §2º); h) reserva particular do patrimônio natural (art. 21, §2º).19A constitucionalidade do preceito foi assentada pelo Supremo Tribunal Federal naADI (Medida Cautelar) 2.260 (Pleno, mv, rel. Min. Moreira Alves, DJU de 02-08-2002).124 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 124 12/4/2011 17:33:11


mesmo assim, com a adoção de regime de manejo sustentável.As finalidades para as quais visam atender tais florestas, disse o legislador,centra-se na preservação dos recursos hídricos, da paisagem, da estabilidadegeológica, da biodiversidade, do fluxo gênico da fauna e da flora, da proteção dosolo e, com isso, assegurar o bem-estar das populações humanas.Inicialmente, o legislador, através do art. 3º, §1º, da Lei 4.771/65,enunciou permissão para a supressão, total ou parcial, de ditas florestas quandohouver necessidade ditada pela execução de obras, planos, atividades ouprojetos de utilidade pública, sendo indispensável, para tanto, autorização doPoder Executivo Federal.Posteriormente, numa disciplina mais ampla, e, por isto, derrogatória daanterior, na forma do art. 2º, §1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, o art.4º da Lei 4.771/65, introduzido pela MP 2.166-67/2001, admite a supressãode vegetação em área de preservação permanente em casos de utilidadepública ou interesse social, devidamente caracterizado e justificado através deprocedimento administrativo, quando inexistir alternativa técnica e de lugar aoempreendimento proposto.Para tanto, far-se-á indispensável autorização do órgão ambiental estadualcompetente, com anuência prévia, quando couber, do órgão federal e municipalde meio ambiente.Não vislumbro incompatibilidade material da previsão com o art.225, §1º, III, da Lei Maior, porquanto a disciplina da supressão se dá por vialegislativa. Apenas cabe à Administração, cujo papel é aplicar o direito de ofício,desenvolver o comando legal 20 .20Assim compreendeu o Supremo Tribunal Federal, salientando que a reserva legal, imposta constitucionalmente,refere-se apenas à disciplina do regime jurídico da tutela dos espaços territoriaisem comento. Tal restou cristalino no julgamento de medida cautelar na ADI 3.540, conformeretrata passagem da respectiva ementa: “ (...) O ART. 4º DO CÓDIGO FLORESTAL E A MEDI-DA PROVISÓRIA Nº 2.166-67/2001: UM AVANÇO EXPRESSIVO NA TUTELA DAS ÁREASDE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. - A Medida Provisória nº 2.166-67, de 24/08/2001, naparte em que introduziu significativas alterações no art. 4o do Código Florestal, longe de comprometeros valores constitucionais consagrados no art. 225 da Lei Fundamental, estabeleceu, aocontrário, mecanismos que permitem um real controle, pelo Estado, das atividades desenvolvidasno âmbito das áreas de preservação permanente, em ordem a impedir ações predatórias e lesivasao patrimônio ambiental, cuja situação de maior vulnerabilidade reclama proteção mais intensa,agora propiciada, de modo adequado e compatível com o texto constitucional, pelo diploma normativoem questão. - Somente a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos espaçosterritoriais especialmente protegidos qualificam-se, por efeito da cláusula inscrita no art. 225, §1º, III, da Constituição, como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal. - É lícito ao PoderPúblico - qualquer que seja a dimensão institucional em que se posicione na estrutura federativa(União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) - autorizar, licenciar ou permitir a execuçãode obras e/ou a realização de serviços no âmbito dos espaços territoriais especialmenteprotegidos, desde que, além de observadas as restrições, limitações e exigências abstratamente estabelecidasem lei, não resulte comprometida a integridade dos atributos que justificaram, quantoa tais territórios, a instituição de regime jurídico de proteção especial (CF, art. 225, § 1º, III)”(Pleno, rel. Min. Celso de Melo, DJ 03-02-2006, p. <strong>14</strong>).Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 125livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 125 12/4/2011 17:33:11


Trata-se de hipótese na qual, uma vez ocorrente, transmudar-se-á alimitação administrativa em desapropriação, pois incide em propriedadeindividualizada e de modo a dar ao bem uso de interesse público para o qualo Poder Público somente poderia fazê-lo mediante tal instituto. Não vislumbrooutra via pela qual o Estado, visando a realização de fim de utilidade pública ouinteresse social, possa assenhorear-se de imóvel que não lhe pertence.4 A RESERVA LEGALOutro relevante instrumento de tutela das florestas é a reserva florestallegal que, a exemplo das florestas de preservação permanente, está definidapelo art. 1º, §2º, III, da Lei 4.771/65, por configurar “área localizada no interiorde uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente,necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitaçãodos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteçãode fauna e flora nativas”.É característica da reserva florestal legal tratar-se de limitação imposta,de maneira geral e abstrata, a todos os imóveis rurais do país, sejam objeto depropriedade ou de mera posse de boa-fé.Não há vedação integral sobre seu emprego pelo proprietário. O art. 16,§2º, da Lei 4.771/65, concebe sua utilização sob o regime de manejo florestalsustentável , nos termos de critérios estabelecidos em regulamento. É proibidoo corte raso da vegetação.Contrariamente às florestas de preservação permanente, a reserva florestallegal somente se faz presente em imóveis rurais.A despeito do sustentado pela maioria dos doutrinadores , partilho daopinião de Raimundo Alves de Campos Júnior (2004, p. 175), no sentido de queo Código Florestal não contém passagem a permitir a conclusão de que a reservaflorestal legal não abrange os imóveis rurais do domínio público.Com efeito, a obrigação de respeitar a função social da propriedade,na qual está integrada a proteção do meio ambiente, é imposta não somenteaos particulares, mas também ao Estado quanto aos seus bens, estejam ou nãoafetados a um uso público.Conforme os incisos do art. 16 da Lei 4.771/65, a sua dimensão érepresentada pelo percentual de vinte por cento da área da propriedade rural,exceto em duas situações, relacionadas com a Amazônia Legal. Nos imóveisrústicos sitos nesta, o percentual da reserva florestal legal corresponderá a:a) oitenta por cento quando situados em área de floresta; b) trinta e cinco por126 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 126 12/4/2011 17:33:11


cento quando localizados em área de cerrado, podendo ser vinte por cento napropriedade e quinze por cento mediante compensação em outra área, desde quesituada na mesma micro-bacia.Por isso, pode-se vislumbrar, estreme de dúvidas, que a reserva florestallegal, é de ser reputada como condicionamento e não instrumento supressivoda propriedade. Além de ser imposta genérica e indistintamente a todos osproprietários de imóveis rurais, não esvazia o conteúdo econômico da propriedade,seja por permitir, sob determinadas condições, o seu aproveitamento, seja porsua fixação haver sido modulada dentre parâmetros razoáveis.Mesmo quanto às propriedades localizadas na Amazônia Legal, a grandeextensão das propriedades justifica elevação do percentual para trinta e cincopor cento nas áreas de cerrado e, quanto às áreas de floresta, a vital e indiscutívelimportância ecológica também respalda seu estabelecimento em oitenta porcento.Portanto, o instrumento do art. 16 da Lei 4.771/65 não pode ser equiparadoà desapropriação, não respaldando pagamento de indenização.A área da reserva florestal legal deverá ser averbada à margem damatrícula do imóvel, mas tal não é imprescindível para a existência da limitaçãoadministrativa. Esta decorre da lei, sendo a averbação no ofício imobiliário, emface de seus efeitos de publicidade, mecanismo para impedir alteração de suadestinação nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento, oude retificação de área.Interessante se mostra entendimento defendido Ricardo DomingosRinhel (op. cit., p. 169, 170-171, 177-180), a partir da consideração de que,não obstante a diversificação dos fins mencionados no art. 1º, §2º, II e III, doCódigo Florestal, tanto as florestas de preservação permanente quanto a reservaflorestal legal possuem os mesmos objetivos, os quais, em suma, consistem napreservação da biodiversidade, dos recursos hídricos e do solo.Em vista disso, representaria bis in idem considerar-se, para fins doestabelecimento da reserva florestal legal, a área integral da propriedade quandonesta existir floresta de preservação permanente. O correto, por força de critériode proporcionalidade, seria a aplicação da alíquota legal sobre a área do imóvel,excluída a parte coberta por vegetação de preservação permanente.Por outro lado, não esquecer ainda imposição constante do art. 99 da Lei8.171, de 17-01-91, ao prescrever: “A partir do ano seguinte ao de promulgaçãodesta lei, obriga-se o proprietário rural, quando for o caso, a recompor em suapropriedade a Reserva Florestal Legal, prevista na Lei 4.771, de 1965, com anova redação dada pela Lei 7.803, de 08-07-89, mediante o plantio, em cadaano, de pelo menos um trinta avos da área total para complementar a referidaHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 127livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 127 12/4/2011 17:33:11


Reserva Florestal Legal”.Trata-se, a nosso sentir, de limitação, concretizável, excepcionalmente,como obrigação de fazer, possuindo seu fundamento na reconstrução da reservaflorestal legal quando esta tiver sido, por qualquer motivo, suprimida, parcial ouintegralmente.A realização de tal atividade, que o legislador consentiu fosse levada acabo em prazo razoável, apenas restaura, em prol da coletividade, a reservaflorestal legal, não ensejando qualquer indenização e impondo-se a quem setornou proprietário mesmo depois da destruição , total ou parcial daquela.Ora, demais da impossibilidade do proprietário evitar aplicação de leisfuturas, estabelecendo novas limitações à propriedade, não se pode negar que,desde a vigência da Lei 4.771/65, há previsão, dentre nós, da reserva florestallegal, embora em condições diversas da atualmente vigorante. Basta visualizara redação original do art. 16 do referido diploma.5 AGRUPAMENTO DAS SITUAÇÕES QUE ENSEJAM INDENIZAÇÃO EMODO DE SUA QUANTIFICAÇÃODe conformidade com as considerações antes tecidas, pode-se afirmar,com segurança, que a atividade administrativa tendente à proteção do patrimônioambiental florestal é capaz de ensejar, a título de compensação do proprietário,o pagamento de indenização quando: a) cuidar-se da instituição, através deato administrativo, de floresta de preservação permanente na forma do art. 3ºda Lei 4.771/65, por afetar propriedade(s) determinada(s), impedindo-lhe suautilização ; b) supressão de floresta de preservação permanente, na forma do art.4º da Lei 4.771/65, pois, ao substituir o direito de propriedade, para afetá-lo afim de utilidade pública ou de interesse social, o Estado somente poderá fazê-lomediante expropriação.Porém, não se pode abstrair que, mesmo nessas situações, primordial seráa análise do caso concreto.Além dessas situações, não esquecer outra hipótese de realce, na qual édiscutível a indenização da cobertura vegetal de forma autônoma, que residenas desapropriações de imóvel por interesse social, notadamente para fins dereforma agrária.Diversamente, a instituição de floresta de preservação permanentepor injunção legal, na forma do art. 2º da Lei 4.771/65, desde que não atinjapropriedades facilmente individualizáveis, por constituir limitação administrativaà propriedade, não respalda o pagamento de indenização.128 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 128 12/4/2011 17:33:11


O mesmo acontece com o estabelecimento, por lei, de reserva florestallegal. Tratando-se de obrigação genérica e que não esvazia a substância dodireito de propriedade, não haverá que se cogitar de indenização.Feita essa sistematização, importante saber o modo como se procederáà quantificação da indenização, avaliando-se ou não o potencial madeireiro deforma autônoma, destacado da terra nua.Inicialmente, não se há de negar que a jurisprudência reconhecia, demaneira pacífica, valor próprio à cobertura florestal. Assim o entendimento doSupremo Tribunal Federal, conforme se pode ver do RE 1<strong>14</strong>.682 . Apenas secensurou que tal quantum fosse fixado com base em percentual aplicado abstratae arbitrariamente, devendo observar estudo contido em inventário florestal, poisa este caberia traduzir importância econômica inegável das espécies vegetais.A orientação pretoriana, assim pacificada, teve seu engenho em épocana qual a desapropriação representava, na prática, verdadeiro flagelo parao proprietário, que decorria da elevadíssima inflação que grassava no país eda ausência de mecanismos eficazes, principalmente antes da Constituição de1988, que preservassem o valor real dos montantes pagos através de precatórios.Na atualidade, assiste-se o fenômeno de desapropriações semelhantesem cenário no qual à execução contra a fazenda pública vem se legando maiorefetividade, seja quanto à certeza do pagamento, seja quanto à atualização dovalor devido.Sendo assim, urge chamar atenção à complexidade que envolve a avaliaçãoda cobertura vegetal. Não se deve, pura e simplesmente, fixar o seu valor empercentual sobre a terra nua, ou com base unicamente nos dados constantes doinventário florestal.A adoção de cautelas, aqui examinadas com ligeireza, afiguram-se valiosasno panorama atual da proteção ambiental brasileira diante do elevado custodas desapropriações ambientais, onde, segundo aponta Eduardo de CarvalhoLages, somente no Estado de São Paulo alça a 25 bilhões de dólares, onerandosobremaneira os finitos recursos do erário, que ainda têm como destinaçãooutros encargos de interesse da sociedade, como, por exemplo, investimentosna área de educação, segurança e saúde.A primeira providência para tanto adveio do legislador, cabendo à MP2.183-56, de 24-08-2001, ao alterar o art. 12, §2º, da Lei 8.629/93, dispor,expressamente, sobre a integração, no preço da terra, das florestas naturais,matas nativas e quaisquer outras formas de vegetação.Diante disso, a jurisprudência vem estatuindo algumas condições para afixação do valor da indenização como valor autônomo.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 129livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 129 12/4/2011 17:33:11


A primeira delas pode ser vista no RESP 301.111 – CE , no qual se fazpreciso que, na localidade do imóvel, a cobertura vegetal, quando aproveitadaeconomicamente, influencie na estimativa do bem.A observação ganha o respaldo técnico sobre o assunto. Deslindando,com maestria, as dificuldades que gravitam em torno da avaliação de imóvelcontendo floresta, Paulo de Mello Schwenck Júnior deixa claro que não sepode dissociar o potencial econômico da floresta de sua relação com o valor dapropriedade.Além disso, o Superior Tribunal de Justiça vem exigindo não só averificação do potencial florestal, mas a demonstração, o quanto baste, daviabilidade econômica da exploração. Nalgumas situações, o custo para explorara cobertura vegetal, só por só, mostra não ser aconselhável fazê-lo.Nessa linha, cujo acerto é irrefutável, Paulo de Mello Schwenck Júniorafirma que imperioso se faz realização de inventário florestal, bem como averificação atenta das condições de exploração da floresta, considerando-se onúmero de dias de chuva durante o período de exploração, custo de construçãode estradas e ramais de exploração, construção de pontes, entre outras. Nãoé só. Indispensável ainda estimar o período de rotação, consistente no espaçode tempo destinado à regeneração para cada espécie ou grupo de espécies, eo valor do produto, através da busca das cotações no mercado específico doproduto, levando-se em conta alguns fatores, tais como quantidade, freqüênciae regularidade do fornecimento, averiguação do risco do comprador deixar dehonrar seus compromissos.Quanto à inclusão, no cômputo do valor da cobertura, da reserva florestallegal, a jurisprudência se tem posicionado afirmativamente . No que tange àinclusão da área das florestas preservação permanente, constata-se dissensão. Sou, no entanto, da opinião contrária, porque persistirá a impossibilidade deaproveitamento econômico, salvo se tratar de expropriação que implique nasupressão da restrição.Um limite, todavia, não poderá ser olvidado. A indenização pela totalidadedo bem não poderá superar o máximo do valor de mercado que, em condiçõeseconômicas normais, obteria o proprietário.Isso porque indenização justa não poderá assegurar ao proprietário valorque supere aquele que poderia auferir com a propriedade do bem que lhe foiretirada por motivo de interesse público. A desapropriação não visa à obtençãode lucro pelo titular do domínio, mas proporcionar contrapartida equivalente àsubstituição do seu direito de propriedade pelo interesse público.<strong>13</strong>0 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>13</strong>0 12/4/2011 17:33:11


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EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOSE COLETIVOS: UMA BATALHA DASCOMUNIDADES TRADICIONAIS DA REGIÃO SULGladstone Leonel da Silva Júnior*Roberto Martins de Souza**Sumário: Introdução; 1. Os reconhecimentos jurídicos históricos, a partir da organizaçãoe da luta; 2. Aparatos normativos garantidores e a utilização do positivismo de combate;2.1. Normas gerais utilizadas pelas comunidades tradicionais; 2.2. Normas específicas;2.2.1. Quilombolas; 2.2.2. Faxinalenses; 2.2.3. Indígenas; 2.2.4. Pescadores Artesanais;2.2.5. Cipozeiras; 2.2.6. Ilhéus; 3. O choque entre as concepções liberais do direito eos reconhecimento de direitos étnicos e coletivos; Conclusão; Referência BibliográficaResumo: Na região Sul, especialmenteno Paraná e Santa Catarina, a invisibilidadesocial é algo histórico para os povose comunidades tradicionais frente à sociedade.O reconhecimento de direitos porestes grupos decorrentes da articulação eorganização dos mesmos, além de inédito,mediante realização de diversas ações coletivas,tem gerado novos paradigmas nocampo jurídico. Tal “invisibilidade” dospovos e comunidades tradicionais, tem,historicamente, resultado na implementaçãode políticas públicas nas quais seencontram fundados os processos como oêxodo rural, a favelização nos centros urbanos,o aumento da pobreza e a degradaçãoambiental dos territórios tradicionais.Existem normas positivadas tanto no ordenamentojurídico nacional, quanto nointernacional, as quais são utilizadas paraAbstract: In the south region, especially inParaná and Santa Catarina, the social invisibilityis something historical to the peopleand traditional communities in front thesociety. The recognition of laws by thesegroups appear for an articulation and organizationof the same, by means of realizationof some collective actions, originatingnew paradigms in the juridical knowledge.This “invisibility” of people and traditionalcommunities have, historically, producedthe implementation of public politics likeagrarian exodus, the poor neighbourhoodsof urban center, the increase of poverty andthe nature degradation of traditional territories.There are write laws in the nationallaws and international, that can be utilizedto guarantee fundamental rights of peopleand traditional communities. One of theway to utilize these laws is called “positiv-* Advogado, Mestrando em Direito Agrário - UNESP. Endereço eletrônico: juninhostone@yahoo.com.br** Sociólogo, Doutorando em Sociologia UFPR, Asssessor da Rede Puxirão dos Povose Comunidades Tradicionais. Endereço eletrônico: okolofe@bol.com.brHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 <strong>13</strong>3livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>13</strong>3 12/4/2011 17:33:11


garantir direitos fundamentais dos povose comunidades tradicionais. Uma das formasde utilização destas normas é conhecidacomo positivismo de combate, sendotravada uma luta para prevalência de direitosdos grupos subalternos. Questiona-seainda a construção do Direito sob uma óticaindividual e formalista, a qual dificultao reconhecimento de direitos coletivos eplurais. Hoje, apesar do liberalismo ser oparadigma da ciência jurídica, o Direitoestá se inserido nas práticas sociais, produtoproveniente da dialética de uma práxiscotidiana, conforme estimulado pelas comunidadestradicionais.Palavras-chave: comunidades tradicionais,direitos étnicos, direitos coletivos, positivismode combate e pluralismo jurídico.ism of battle”, when is engaged a fight toprevail the rights of subaltern groups. It iswrangled the development of right with anindividual and formalist optical, that difficultthe recognize of collective and pluralrights. Today, in spite of liberalism be theparadigm of juridical science, the right isinsert in the social practice, product comingfrom dialectical of a praxis producedday by day, alike stimulated by the traditionalcommunities.Key words: traditional communities, ethniclaws, collectives laws, positivism ofbattle, juridical pluralism.INTRODUÇÃOIdentidades coletivas diferenciadas emergem no Brasil, revelandonas últimas décadas a existência de diversos grupos étnicos, organizados emmovimentos sociais, que buscam garantir e reivindicar direitos, que sempre lhesforam negados pelo Estado. Desta forma, compreendem-se sem exaustão osmotivos para o qual um país tão diverso em sua composição étnica, racial ecultural, a persistência de conflitos oriundos de distintas visões de mundo emodos de vida, que desencadeiam desde o período colonial, lutas pela afirmaçãodas identidades coletivas, territorialidades especificas e reconhecimento dosdireitos étnicos.O processo de reconhecimento dessa imensa diversidade socioculturaldo Brasil é acompanhado de uma extraordinária diversidade fundiária eambiental ainda que pouco conhecida no país e, mais ainda, pouco reconhecidaoficialmente pelo Estado brasileiro. As denominadas comunidades ou povostradicionais encontram-se ainda, em sua grande maioria, na invisibilidade,silenciadas por pressões econômicas, fundiárias, processos discriminatórios eexcluídas da formulação e proposição das políticas públicas. Todavia, buscamcompor, cada um deles, com suas formas próprias de inter-relacionamento,<strong>13</strong>4 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>13</strong>4 12/4/2011 17:33:11


grupos e comunidades tradicionais autodefinidas coletivamente, juridicamentereconhecidas e auto-reguladas internamente pela gestão tradicional dos recursosnaturais.Destarte atualmente serem estimadas em cerca de 4,5 milhões de pessoaspertencentes a distintos povos e comunidades tradicionais no Brasil, ocupandouma área equivalente a 25% do território nacional, tais grupos na condição deestigmatizados socialmente, são sistematicamente vítimas de diversas formasde violência oriundas face conflitos contra seus antagonistas, bem como dasações universalistas inscritas nas políticas de governo que diluem o fator étniconas diferenças econômicas, tratando tais grupos como segmentos populacionais“carentes”, sujeitos à atenção das políticas assistenciais, desfocando dasdemandas prementes relacionadas ao reconhecimento jurídico-formal, o acessoao território e aos recursos naturais essenciais à sua existência.A mobilização social em torno dos direitos coletivos é observada,especialmente a partir de 1988, quando do início do processo de emergênciae visibilidade na sociedade brasileira, de grupos até então ocultados social ejuridicamente, os quais passam a se organizar mediante realização diversasações coletivas visando seu reconhecimento. Grupos estes, que se desenvolvemsem a necessidade de reproduzirem a lógica de uma sociedade eminentementeconsumista, mas, prezando, de fato, pela sustentabilidade em seus diferentesaspectos atrelada, principalmente ao fator étnico. A visibilidade social ereconhecimento de direitos destes grupos decorrentes da articulação dosmesmos, além de inédito, têm gerado novos paradigmas no campo jurídico.Paradigmas, até então, desconhecidos, normas pouco reconhecidas ou ignoradaspor tratarem de “povos originários”.Na região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a invisibilidadesocial é uma das principais características dos povos e comunidades tradicionais.Até pouco tempo atrás, a inexistência de estatísticas e censos oficiais fez comque estes grupos elaborassem seus levantamentos preliminares numa tentativade afirmarem sua existência coletiva em meio a tensões, disputas e pressões q<strong>uea</strong>meaçam seus diretos étnicos e coletivos garantidos pela Constituição Federalde 1988 e, diversos outros dispositivos jurídicos infraconstitucionais.Destas demandas surge, na região Sul, a Rede Puxirão dos Povose Comunidades Tradicionais, fruto do 1º Encontro Regional dos Povose Comunidades Tradicionais, ocorrido no final do mês de Maio de 2008,em Guarapuava, interior do Paraná. Neste espaço de articulação, distintosgrupos étnicos, a saber: xetá, guaranis, kaingangs, faxinalenses, quilombolas,pescadores artesanais, caiçaras, cipozeiras e ilhéus; tais segmentos se articulamna esfera regional fornecendo condições políticas capazes de mudar as posiçõesHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 <strong>13</strong>5livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>13</strong>5 12/4/2011 17:33:11


socialmente construídas neste campo de poder. Ademais, a conjuntura políticanacional corrobora com essas mobilizações étnicas, abrindo possibilidades devazão para as lutas sociais contingenciadas há pelo menos 3 séculos, somenteno Sul do País.1. OS RECONHECIMENTOS JURÍDICOS HISTÓRICOS, A PARTIR DAORGANIZAÇÃO E DA LUTANa análise da formação e da luta destas comunidades tradicionais do Suldo Brasil, cabe compreender exemplos de julgados nacionais que repercutirãoem todos estes grupos sociais espalhados pelo país. O julgamento do casoda reserva indígena Raposa Serra do Sol é um dos marcos de efervescênciae luta por direitos das diversas comunidades tradicionais espalhadas Brasil afora. Embora, os índios sejam os povos que possuem o maior amparo jurídicono tocante a diversidade normativa, não tem seus direitos, inúmeras vezes,efetivados.Este julgado, além de chamar a atenção das violações históricaspraticadas contra os índios por pessoas que utilizavam daquelas terras comomero instrumento mercadológico, mobilizou a Suprema Corte do país aencontrar respostas jurídicas que tem a possibilidade de garantir a permanênciae sobrevivência destes povos de maneira digna nas terras que habitamoriginalmente.Cabe citar alguns trechos do Voto do Ministro Relator deste caso, Dr.Carlos Ayres Britto, apresentando um posicionamento paradigmático doSTF (Supremo Tribunal Federal) quanto à relevância de direito dos índios econsequentemente de comunidades, que lutam pelo reconhecimento de seusespaços tradicionalmente ocupados.Em determinada parte do voto, o eminente Ministro trata do históricode discriminação sofrida, omissão do Estado Brasileiro e deturpação devisão da sociedade que analisa esta situação, de acordo com o apresentadosuperficialmente pelo senso comum. Vejamos.<strong>13</strong>6 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010Pelo que, entregues a si mesmo, Estados e Municípios,tanto pela sua classe dirigente quanto pelos seus extratoseconômicos, tendem a discriminar bem mais do que protegeras populações indígenas. Populações cada vez maisempurradas para zonas ermas ou regiões inóspitas do país,num processo de espremedura topográfica somente redislivrohileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>13</strong>6 12/4/2011 17:33:11


cutido com a devida seriedade jurídica, a partir, justamenteda Assembléia Constituinte de 1987/1988.Quanto à forma de atuação do Estado, o voto possui algo primorosona análise e papel devido quanto ao relacionamento com as comunidadestradicionais, expondo o seguinte;Seja como for, é do meu pensar que a vontade objetiva daConstituição obriga a efetiva presença de todas as entidadesfederadas em terras indígenas desde que em sintonia com omodelo de ocupação por ela concebido .Aqui, observa-se o lastro de autonomia e respeito garantido as comunidadestradicionais, que historicamente optaram por desenvolverem peculiar meio devida que deve ser, sobretudo, assegurado pelas entidades que compõe o Estado.Por mais que, ao fim do julgamento, o Estado tenha garantido o acesso a estasáreas.Tanto os indígenas, exemplificadas pelo julgamento do caso Raposa Serrado Sol, quanto às outras comunidades tradicionais existentes em nosso paísbuscam, cada vez mais, garantirem seus direitos, visto que as ameaças aos seusespaços ocupados estão sendo concretizadas pelo avanço do modelo econômicode concentração fundiária aliado ao desrespeito ambiental em conflito e oposiçãoàs modalidades de uso comum dos recursos naturais desenvolvidas secularmentepelas comunidades tradicionais como praticas inerentes à sua cultura.À semelhança dos povos indígenas na Amazônia, os conflitos sociais emvoga no Sul do Brasil pouco se diferenciam, a não ser pela sua ocultação dasviolentas formas de repressão aos movimentos sociais empreendidas por seusantagonistas em regiões de ocupação agrária antiga, como no caso da Guerrado Contestado. De outra maneira, o processo de produção da “invisibilidadesocial” dos povos e comunidades tradicionais no Sul, não teve um percursomuito distinto do restante do País.A ocupação territorial ancorada nas atividades econômicas e centradassequencialmente nos ciclos da mineração, do gado, erva-mate, madeira, iniciadasainda no século XVII, conduziram ao domínio das terras, quem dispusesse decapital econômico e social, capaz de inclusão no circuito mercadológico vigente.Sistematicamente, os povos e comunidades tradicionais, foram expulsos,eliminados ou imobilizados em sua força de trabalho como componentesfundamentais do processo de expropriação e exploração econômica, sem a qualnão haveria extração produtiva e geração de riqueza.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 <strong>13</strong>7livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>13</strong>7 12/4/2011 17:33:11


Atualmente, o “silenciamento” destes grupos tem sido provocado porempreendimentos econômicos de grande impacto socioambiental gerando aexpropriação ou usurpação de seus territórios, como os impactos causados porusinas hidrelétricas e mineradoras; grilagens de terras em áreas de apossamento;aquecimento do mercado de terras motivado pelo agronegócio ou mesmo pelainvasão de empreendimentos de lazer (chácaras), assim como pela implantaçãode Unidades de Conservação de uso integral, provocando gradualmente adispersão e esvaziamento desses grupos sociais a partir obstrução de suascondições de reprodução física e social.Afinal, um breve cenário possibilita antever que as pressões sobre ospovos e comunidades tradicionais ainda são intensas, sobretudo, desde a décadade 1960, a partir de 3 origens. A primeira é o avanço da “agricultura moderna”.Notadamente reconhecido como “Celeiro agrícola do País”, o Paraná, desde adécada de 1970, sustenta sucessivamente a evolução nos recordes de produçãoe exportação de commodities agrícolas e florestais, tais como, soja, gado, pinus,eucaliptos e recentemente, cana-de-açúcar. Somente a soja em 15 anos (1990 a2005) teve ampliada sua área plantada em 70,8%. Já o complexo madeira, perdeneste período apenas para o complexo soja. Sendo considerado o maior produtornacional de papel fibra longa, o Paraná ocupa 2,8% do seu território ou 560 milhectares, com a meta de ocupar até 5% da área do Estado até 2010.A farta presença de recursos hídricos observadas na geografia do Estadodo Paraná, implicaram numa segunda tensão direta contra as comunidadestradicionais, qual seja, a implantação de projetos de usinas geradoras de energia,produzida por meio de hidrelétricas, sobretudo, a partir da construção deItaipu, na década de 1980. Nos anos seqüentes, o Paraná ampliou sua produçãoenergética, impulsionado pela construção de diversas barragens no Rio Iguaçu e,mais recentemente, com os investimentos da COPEL – Companhia Paranaensede Energia, dirigidos à construção de PCHs nos rios Piquiri e Ivaí, além dojá avançado processo de pré-implantação (vencidas as barreiras jurídicas eambientais) da Usina Hidrelétrica de Jataizinho no baixo rio Tibagi.Soma-se a esses empreendimentos impulsionados pelas políticas publicasdesenvolvimentistas, as políticas conservacionistas, de cunho ambientalista,referidas a implantação de unidades de conservação de uso integral, a partir de1980, tal como o Parque Nacional de Superagui, criado em 1989, com 21.000ha, e o Parque Nacional de Ilha Grande criado em 1997, com 78.875 ha, entreoutros.Este período, marcado por grandes investimentos do Estado, associado àcapitais privados, produziu mais que o aclamado progresso econômico propaladopelas agências públicas. De um modo violento, gerou um desastre social e<strong>13</strong>8 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>13</strong>8 12/4/2011 17:33:11


ambiental sem precedentes na história da região. Demarcando a instalação deum modelo de desenvolvimento extremamente impactante aos recursos naturais,e violador dos direitos humanos, resultando na expropriação de bens, terras edireitos de grupos sociais culturalmente diferenciados.Tal “invisibilidade” dos povos e comunidades tradicionais, reiteradaspela ideologia dos “vazios demográficos” e associada ao desenvolvimentobaseado nas premissas do universalismo, tem, historicamente, resultado naimplementação de políticas públicas nas quais encontram-se fundados osprocessos como o êxodo rural, a favelização nos centros urbanos, o aumento dapobreza e a degradação ambiental dos territórios tradicionais. Isto também setraduz no atual baixo investimento de esforços na promoção do desenvolvimentosustentável dessas comunidades.Tal afirmação faz consonância com a tônica dos relatos e manifestações demais de 120 representantes desses grupos étnicos participantes no 1º EncontroRegional de Povos e Comunidades Tradicionais. Invariavelmente, as exposiçõesrelatam conflitos relativos ao acesso à terra, ou, no caso, ao território. Visto queestas comunidades sabem que assegurar o acesso ao território significa mantervivos na memória e nas práticas sociais os sistemas de classificação e de manejodos recursos, os sistemas produtivos, os modos tradicionais de distribuição econsumo da produção. Isso além de sua dimensão simbólica: no território estãoimpressos os acontecimentos ou fatos históricos que mantêm viva a memóriado grupo; nele também estão enterrados os ancestrais e encontram-se os sítiossagrados.Em que pese favorável que Xetás, Guaranis, kaingangs, Quilombolas,Faxinalenses, Caiçaras, Pescadores Artesanais, Cipozeiros e Ilhéus, tenhamconquistado de forma gradual reconhecimento jurídico-formal, por meio desuas mobilizações, ainda impõe-se na esfera do Estado, limites burocráticos,jurídicos e políticos para sua efetivação, além do que é notório que suasprincipais demandas – especialmente a territorial – encontra-se “engessada”.Em outros casos, nos deparamos com grupos sociais que ainda nem sequerpossuem instrumentos disponíveis para o reconhecimento jurídico-formal peloEstado, como é o caso dos ilhéus, cipozeiros, caiçaras, pescadores artesanais,portanto não dispõe de programas governamentais específicos dirigidos agarantia de seus direitos diferenciados e fundamentais, registrando-se inúmerosconflitos territoriais com empreendimentos governamentais, sejam parques deconservação ambiental ou obras públicas.O que significa dizer, que no âmbito da região Sul, especialmente noParaná e Santa Catarina, a Constituição Federal de 1988, marco históricodo processo de redemocratização política do Brasil, sendo entendida comoHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 <strong>13</strong>9livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>13</strong>9 12/4/2011 17:33:12


elemento primordial na solidificação dos direitos individuais e coletivos, aindanão opera abertamente com o reconhecimento de formas diferenciadas deorganização social e cultural de distintos segmentos da sociedade brasileira.Esse é o caso, por exemplo, dos direitos diferenciados reconhecidos aos povosindígenas e comunidades quilombolas, mas não assimilados pela burocracia doEstado (Governos estaduais e municipais, em especial) ao permanecer operandocom adaptações às políticas universalistas, evitando instituir uma “política deidentidades”, assentada em novas instituições. No caso de identidades étnicase coletivas emergentes, como dos caiçaras, pescadores artesanais, cipozeirose ilheiros, se quer há menção da existência desses grupos, sua localização,situações de conflito e demandas. O que denota desconhecimento público e usode pré-noções classificatórias que impelem estes grupos a categorias econômicase situações sociais, tal como “pobres”, “assalariados temporários”, “bóiasfrias”,“pequenos agricultores”, “agregados”, “pescadores” ou “agricultoresfamiliares”.Ao estabelecer prerrogativas diferenciadas para esses povos ecomunidades, a Carta Magna opera de forma direta nos princípios fundamentaisda constituição do próprio Estado Brasileiro, uma vez que se flexibilizam osconceitos vigentes sobre o que é a sociedade brasileira, a forma como ela écomposta e como ocorreu a sua formação. Em última instância, a consolidaçãode tais direitos revela não só o reconhecimento por parte do Estado dadiversidade sociocultural existente no Brasil, mas também a necessidade de serepensar conceitos atinentes às noções de desenvolvimento, propriedade e usodos recursos naturais, de forma que os mesmos passem a incluir princípios maisadequados às realidades diferenciadas desses povos e comunidades.Buscando fomentar a produção da visibilidade social desses grupos, desde2003, tem sido estimulada no Paraná iniciativas que visam a identificação dessesgrupos, tal como o Mapa da presença Indígena e o Mapeamento dos Quilombolasno Paraná. Em 2005, inicia-se, em articulação com os movimentos sociais,o Projeto Nova Cartografia Social, vinculado ao PPGSCA da UniversidadeFederal do Amazonas – UFAM com apoio do Centro Missionário de Apoio aoCampesinato - CEMPO e Instituto Equipe de Educadores Populares - IEEP, naprodução da Auto cartografia Social desses povos e comunidades tradicionais.Mais do que exercitar uma nova cartografia, tal pesquisa tem estimulado processosorganizativos associados ao auto-reconhecimento e reconhecimento publicoda existência coletiva desses grupos sociais. Neste percurso de quase 3 anos,contabilizamos a identificação de diversos povos e comunidades tradicionaisinteressados em constituir formas organizativas capazes de reivindicar seureconhecimento face ao Estado, bem como encaminhar suas demandas aos<strong>14</strong>0 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>14</strong>0 12/4/2011 17:33:12


órgãos competentes, numa explicita tentativa de que cessem violações e ameaçascontra seus direitos. Todavia, ainda são muitos os obstáculos burocráticos,políticos, jurídicos e econômicos para que os mesmos se realizem.A formação da Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais noParaná, exemplifica bem toda esta movimentação, possibilitado entre outrasações a identificação de demandas comuns à estes grupos, como as descritas nodireito aos territórios tradicionais. A despeito serem constatadas variadas formasde violações de direitos étnicos e coletivos, os referidos grupos apreendem anecessidade de ocuparem seu lugar de direito assegurado pela ConstituiçãoFederal, especialmente na percepção de que constituem identidade coletivasmotivadas por expressões culturalmente diferenciadas. Visando operacionalizartais demandas, sobressaem apoiadas por assessorias especificas inúmeros cursose oficinas intituladas de Formação de Operadores de Direito, organizadas erealizadas nas comunidades e tem a função de promover a apropriação e domíniodestes conhecimentos e instrumentos específicos qualificando a ação dossujeitos. Esta estratégia resulta em pressão perante os poderes públicos por partedestes grupos, além da consolidação de um ordenamento jurídico desconhecidoe pouco estimulado pelo Estado. Essa ação fica nítida no estabelecimento de umanova relação com o Ministério Publico Estadual e Federal, que gradualmentetambém se apropriam desses conhecimentos normativos posicionando-se nadefesa dos grupos citados.Cabe então, apresentar algumas iniciativas e instrumentos normativosutilizados frequentemente pelos povos e comunidades tradicionais no âmbitoda Rede Puxirão e, que tem dado um suporte mínimo, tanto de forma genérica,como normas específicas, as quais relacionamos num segundo momento porgrupos específicos.2. APARATOS NORMATIVOS GARANTIDORES E A UTILIZAÇÃO DOPOSITIVISMO DE COMBATEExistem normas positivadas tanto no ordenamento jurídico nacional,quanto no internacional, as quais são utilizadas para garantir direitosfundamentais dos povos e comunidades tradicionais. Estas normas, também,são fruto de lutas históricas travadas em vários cenários e épocas, as quais hojerepresentam um instrumento dentro do campo jurídico para a efetivação destesdireitos que chamamos de étnicos e coletivos.Uma das formas de utilização destas normas é conhecida comopositivismo de combate. Isto significa que, estas normas postas são utilizadasHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 <strong>14</strong>1livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>14</strong>1 12/4/2011 17:33:12


pelos grupos sociais de uma forma contra-hegemônica, combatendo as injustiçase desigualdades através da própria regra positivada, ou seja, gerando um conflitolegal com o pro<strong>pós</strong>ito de derrubar o status quo.É exatamente a luta, dentro do aparato oficial do Estado(juízos, tribunais, repartições administrativas etc.), pelaefetivação das normas que expressam de modo autêntico osinteresses populares. Ou seja, por meio do “positivismo decombate” trava-se uma luta pelo cumprimento das leis deinteresse das classes subalternizadas, as quais, na maioriadas vezes, permanecem apenas no plano retórico do ordenamentojurídico – são as chamadas leis que “não pegam”.Essas leis e normas, em boa medida, integram a estruturajurídico-positiva do Estado tão somente com o objetivo deatingir um efeito “encantatório”, proporcionando a sensação,desmentida pela realidade, de que os interesses damaioria estão efetivamente assegurados pelo direito .O professor Antônio Alberto Machado chega a sugerir a troca do termo“positivismo de combate”, para evitar que o termo se confunda com a ideologiapositivista, para o de “positividade de combate”. Certo é que, as normas a seremanalisadas servem para alimentar esta luta incessante por efetivação de direitos.2.1. NORMAS GERAIS UTILIZADAS PELAS COMUNIDADES TRADICIO-NAISComeçamos com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacionaldo Trabalho). Esta estabelece algumas normas internacionais que devem serobedecidas em todos os países que assinaram a Convenção, inclusive o Brasil.O conteúdo da Convenção trata das comunidades que estão estabelecidashistoricamente no território, desenvolvendo suas culturas próprias, costumes eformas de vida. Reconhecendo então, as aspirações desses povos a assumir ocontrole de suas próprias instituições, formas de existência e seu desenvolvimentoeconômico, mantendo e fortalecendo suas identidades, culturas e religiões,dentro do âmbito dos Estados onde estão situadas.Esta Convenção por ser reconhecida internacionalmente, através doacordo estabelecido entre os países, possui uma força e importância na defesa dosdireitos humanos em todo o planeta. Isto porque, a Organização Internacional doTrabalho é uma agência ligada as Nações Unidas (ONU). Desta forma, podemos<strong>14</strong>2 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>14</strong>2 12/4/2011 17:33:12


afirmar que a luta e o direito das comunidades tradicionais tem reconhecimentointernacional.Outro instrumento normativo necessário de explicitar-se é nossa CartaMaior. A Constituição Federal é o conjunto de normas mais importantes deum país. Ali, estão contidos os pontos principais e mais importantes para odesenvolvimento e organização do Brasil.A partir do momento que uma destas normas preveja o direito dos diversosgrupos formadores da nossa sociedade, fica demonstrada uma importância maiorpara este assunto. A partir desta lei maior, outras poderão continuar surgindo,como ocorre nos dias de hoje. Vejamos o que dispõe o artigo 216 da ConstituiçãoFederal;Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bensde natureza material e imaterial, tomados individualmenteou em conjunto, portadores de referência à identidade, àação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedadebrasileira, nos quais se incluem:I - as formas de expressão;II - os modos de criar, fazer e viver;III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demaisespaços destinados às manifestações artístico-culturais;V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,artístico, arqueológico, paleontológico, ecológicoe científico.Este artigo expõe que, os diferentes grupos e comunidades organizadasem nosso país possuem um direito legítimo de terem sua identidade e modode vida preservado. Está claro, o objetivo de preservar o patrimônio culturalbrasileiro, que é formado por diversas comunidades espalhadas pelo país.Além do mais, o artigo 215, § 1º da Constituição Federal dispõe sobre aimportância da manifestação cultural e, consequentemente dos hábitos e formasde vida das diversas comunidades formadoras do nosso país.Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dosdireitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, eapoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestaçõesculturais.§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturaspopulares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outrosgrupos participantes do processo civilizatório nacional.(grifo nosso)Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 <strong>14</strong>3livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>14</strong>3 12/4/2011 17:33:12


Outro instrumento que deve ser levado em consideração na garantia dedireitos das comunidades tradicionais de forma geral se trata do Decreto nº6040/2007 e o Decreto nº 10884/2006.O Decreto nº 6040/2007 reconhece a Comissão Nacional de ComunidadesTradicionais, como entidade representativa dos Povos Tradicionais Brasileiros.Contendo no Decreto, também, a importância dos Territórios Tradicionais e doDesenvolvimento Sustentável das Comunidades como elementos necessáriospara a ampliação de direitos.Nele está instituído a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentáveldos Povos e Comunidades Tradicionais. Hoje, finalmente existe uma norma quereconhece a organização e os direitos dos diversos povos formadores do nossopaís, especificando o direito já concedido no artigo 216 da Constituição Federal.Já o Decreto nº 10884/2006, trata de tema bem parecido com o decretoanterior. Ele altera alguns pontos da Comissão Nacional de DesenvolvimentoSustentável das Comunidades Tradicionais. Esta Comissão poderá coordenar aelaboração e implementação de Políticas de Desenvolvimento Sustentável dasComunidades Tradicionais.Este Decreto apresenta ações que esta Comissão Nacional dasComunidades Tradicionais poderá tomar. Assim poderá ser fortalecido egarantido os direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais,com respeito e valorização à identidade dos diferentes povos, suas formas deorganização e instituições.2.2. NORMAS ESPECÍFICAS2.2.1. QUILOMBOLASAs comunidades quilombolas, sinônimo histórico de resistência, estãoreconhecidas, não só pelas legislações já apresentadas, como também emaspectos específicos e normas pontuais que asseguram alguns direitos.Tal caso está exemplificado no artigo 68 do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias, o qual garante as terras tradicionalmente ocupadaspor estes povos.Art. 68. Aos remanescentes das comunidades de quilombosque estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedadedefinitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.<strong>14</strong>4 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>14</strong>4 12/4/2011 17:33:12


Observa-se que a Constituição Federal de 1998 explicitou bem odireito das comunidades às suas terras, cabendo ao governo tomar as medidasnecessárias para emitir os títulos de propriedade.Apesar do aparato normativo, pouco foi feito para efetivação do ato.O governo reconhecia a propriedade, mas nada fazia para que a comunidadepudesse permanecer, retomar ou seguir vivendo em suas terras.No início do governo Lula, um grupo de trabalho foi formado com amissão de elaborar um plano para que o governo pudesse titular definitivamenteas comunidades quilombolas.Isto resultou na promulgação e entrada em vigor do Decreto 4.887/2003,que passou a valer em setembro de 2005. Este decreto criou um mecanismopara o reconhecimento e titulação das terras e os instrumentos jurídicos para agarantia do direito à terra das comunidades quilombolas.Hoje, quem determina quem é quilombola, é a própria comunidade, atravésda “auto-atribuição”. A<strong>pós</strong> a auto–atribuição, a Fundação Palmares deveráexpedir uma certidão, que é o documento oficial sobre o auto-reconhecimentoda comunidade.Atualmente, os direitos territoriais quilombolas vêm sendo questionadose ameaçados com a edição de nova instrução normativa, em substituição a IN20/2005 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Amudança afeta os procedimentos de identificação e titulação de tais territórios.A justificativa do governo federal para a alteração é evitar que iniciativas emcurso, no Judiciário e no Congresso Nacional, suspendam ou anulem o Decretonº4.887/2003 que regulamentou o processo administrativo de reconhecimentodos direitos territoriais previstos no Art. 68 do ADCT da Constituição Federal.Apesar dos avanços conquistados, os resultados foram pequenos. Das2.228 comunidades quilombolas conhecidas no Brasil, apenas em 27 o governoconseguiu finalizar os procedimentos de titulação. Há 278 procedimentosiniciados pelo Incra, em todo o país.2.2.2. FAXINALENSESQuanto aos Povos Faxinalenses existem algumas normas que abarcam egarantem na integralidade o direito destes povos.A lei 15.673/2007 é o exemplo vigente disto, confirmando num patamarestadual (no Paraná) algo já colocado em normas internacionais, nacionais etambém estaduais, reconhecendo plenamente os povos faxinalenses comocomunidades tradicionais, inclusive seus acordos comunitários.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 <strong>14</strong>5livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>14</strong>5 12/4/2011 17:33:12


Este tipo de positivação dialética, decorrente da luta dos Povos Faxinalensese seu Movimento Social, Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses, dá ensejoa um processo transformativo que pode acontecer mesmo dentro das esferasinstitucionais.Várias questões devem ser ressaltadas para o entendimento daspeculiaridades destes povos e o quão relevante são estes direitos. O primeiroponto é a descrição dos elementos peculiares das comunidades faxinalenses,salientando a forma de vida e as características próprias deste povo.Importante salientar também, o auto-reconhecimento da identidadefaxinalense, onde cabe ao próprio grupo social se reconhecer como tal, desdeque seu modo de viver seja o característico desta comunidade tradicional, nocaso a faxinalense.Um próximo ponto é a vinculação do poder público, no reconhecimentodos faxinalenses através de certidão de auto-reconhecimento. Algo que deixamais evidente a necessidade de se assegurar o direito destes povos.Por fim, o caráter de legitimidade existente nos acordos comunitários,feito entre os próprios faxinalenses, sendo reconhecidos pelo poder público estaprática da comunidade.Outra norma que pode ser citada é o Decreto nº 3446/97 – ARESUR (ÁreasEspeciais de Uso Regulamentado). Este Decreto, por ser estadual, vale para asáreas que se encontram dentro do Estado do Paraná. Ele reconhece e caracterizaclaramente, a existência do modo de produção denominado “Sistema Faxinal”,buscando criar condições para a melhoria da qualidade de vida das comunidadesresidentes, a manutenção do seu patrimônio cultural e preservação dos recursosambientais. Não cabendo então, nenhum outro modo de produção ou forma deações que diferenciem do jeito de ser dos faxinalenses dentro das áreas.Alguns faxinais ainda não foram reconhecidos por este Decreto, poiso reconhecimento se dá caso a caso, por faxinal. Nas áreas devem conter suadenominação, superfície, os limites geográficos, diretrizes para conservaçãoambiental, que deverão ser analisados pelo Secretário de Estado do MeioAmbiente, que definirá a área através de um ato administrativo.Assim, as áreas poderão ser registradas no Cadastro Estadual de Unidadesde Conservação – CEUC – desde que caracterizado o uso coletivo da terra paraprodução animal, a produção agrícola de policultura alimentar e a conservaçãoambiental, característica dos povos faxinalenses.Além disso, os Municípios em que estão reconhecidas áreas de faxinaisatravés do Decreto ARESUR, podem receber o ICMS (Imposto de Circulaçãode Mercadorias e Serviços) Ecológico, sendo uma fonte de renda a mais parao Município, que através de leis municipais podem reverter estas verbas parafomento do próprio Faxinal.<strong>14</strong>6 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>14</strong>6 12/4/2011 17:33:12


2.2.3. INDÍGENASEm 1750 a Espanha queria trocar com Portugal as terrasdas missões dos jesuítas, conhecida como os Sete Povosdas Missões, pela colônia de Sacramento. O problema éque os Sete Povos das Missões eram habitados por milharesde índios.Este trecho da lenda de Sepé Tiaraju ilustra bem o tratamento quehistoricamente é dado aos índios no Brasil, sendo apresentados desrespeitosamentecomo uma questão problemática. Contudo, problemática quanto ao interesse degrupos que só viam a terra e os recursos naturais com um olhar exploratório,diferentemente da maneira sustentável e vital desenvolvida pelos índios.Certamente os indígenas representam hoje no Brasil um dos povosorganizados, mais ativos e radicalizados em defesa dos seus direitos frente aoEstado. Estão em evidência por ocupações de prédios de órgãos do Estado comoFunasa e Funai, e lutando permanentemente pela retomada dos seus territóriosinvadidos, como no caso já citado de Raposa Serra do Sol.Os indígenas reivindicam direitos ancestrais, de povos literalmenteoriginários, do que hoje constitui o território brasileiro. Segundo a descriçãodo Ministro Carlos Ayres Britto, “o termo originários a traduzir uma situaçãojurídico-subjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderarsobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favorde não índios. ” Como garantias, estes povos obtiveram o reconhecimento daConstituição Federal brasileira, a qual reserva um capítulo específico só paratratar dos indígenas. Vejamos um dos artigos;Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social,costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitosoriginários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitartodos os seus bens.§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios aspor eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas parasuas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservaçãodos recursos ambientais necessários a seu bem-estar eas necessárias a sua reprodução física e cultural, segundoseus usos, costumes e tradições. (...)Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 <strong>14</strong>7livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>14</strong>7 12/4/2011 17:33:12


Aqui estão dispostos elementos importantes, os quais reconhecem egarantem direitos essenciais ao desenvolvimento do modo de vida das diferentestribos indígenas espalhadas por todo o país.Na Constituição do Estado do Paraná, também podem ser encontradasnormas específicas garantidoras dos direitos indígenas. Assim está disposto noartigo 216 da referida norma.Art. 226. As terras, as tradições, usos e costumes dos gruposindígenas do Estado integram o seu patrimônio culturale ambiental, e como tais serão protegidos.Parágrafo Único. Esta proteção estende-se ao controle dasatividades econômicas que danifiquem o ecossistema ouameacem a sobrevivência física e cultural dos indígenas.Existem ainda, outras normas que tratam de temas específicos dos direitosindígenas, como Decreto 1.775/1996 sobre demarcação de Terras indígenas;Decreto 1.<strong>14</strong>1/94 dispondo sobre ações de proteção ambiental saúde e apoio“as atividades produtivas para as comunidades indígenas; diversas normasrelacionadas à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), entre outras.2.2.4. PESCADORES ARTESANAISOs pescadores artesanais, ainda possuem um reconhecimento específico,existindo pouca incidência normativa direcionada a este tipo de comunidadetradicional.Áreas marítimas e de águas interiores tem sido, nas últimas décadas objetosde conflitos, muitas vezes violentos entre a pesca industrial, geralmente de forada região, e a artesanal, feita pelos pescadores das comunidades litorâneas.Recentemente, uma norma específica foi sancionada, a qual dispõesobre as colônias e federações de pescadores, tratando de características maisorganizativas. Observa-se o conteúdo limitado da lei 11.699/2008, emborademonstre um primeiro passo para o reconhecimento concreto e integral de todae qualquer comunidade de pescadores artesanais, seja qual for suas respectivasformas de se organizarem.Existem ainda, algumas leis municipais específicas espalhadas pelo país,que buscam garantir e reconhecer alguns direitos aos pescadores artesanais,sendo importante fomentar este debate nos municípios em que estas comunidadesestão inseridas.<strong>14</strong>8 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>14</strong>8 12/4/2011 17:33:12


2.2.5. CIPOZEIRASOs povos caracterizados como “cipozeiras”, por viverem e se identificaremquanto grupo, justamente pelo trabalho tradicionalmente desenvolvido deextração do cipó em Santa Catarina, constituem outro tipo de comunidadeque busca sair da invisibilidade jurídica e social fazendo valer seus direitoshistóricos.Estes grupos, atualmente, se concentram na região de Garuva, municípiode Santa Catarina. Além da extração do cipó imbé, atuam como pequenosprodutores rurais. Assim, os grupos que trabalham com esta matéria-prima edesenvolvem uma forma de vida por conta da cultura desenvolvida no manejodo cipó, estão situados entre as pessoas mais desfavorecidas do município.Hoje, eles são perseguidos e diversas vezes confundidos, equivocadamentecom extratores de palmitos. Por isso, apesar de não existirem normasespecíficas, estão se organizando e lutando pelo reconhecimento da forma devida desenvolvida por estes grupos.2.2.6. ILHÉUSAinda existem os povos ilhéus, comunidades tradicionais que habitamou habitavam o arquipélago da Ilha Grande, localizadas no alto do Rio Paraná,próximo às divisas do Paraná e Mato Grosso do Sul.Alguns deixaram as terras por conta da construção de Itaipu, depois daUsina da Ilha Grande e finalmente, do Parque Nacional da Ilha Grande na região.As alternativas que se apresentam para aqueles que permanecem nos municípiosribeirinhos são poucas: o trabalho assalariado em propriedades agrícolas; osvolantes (bóia-fria); os pequenos comércios (biscateiros) e alguns serviçosligados ao turismo e à pesca.Atualmente, os ilhéus enfrentam problemas frente a órgãos como IBAMA(Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis),INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e IAP (InstitutoAmbiental do Paraná). Existe ainda, falta de compreensão frente ao MinistérioPúblico, sendo inclusive, estes povos pressionados a deixarem as ilhas queocupam.Esta é uma luta, que apesar de antiga, começa a se articular com outras ebusca possibilidades de garantir a retomada dos direitos coletivos deste tipo decomunidade.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 <strong>14</strong>9livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd <strong>14</strong>9 12/4/2011 17:33:12


3. O CHOQUE ENTRE AS CONCEPÇÕES LIBERAIS DO DIREITO E OSRECONHECIMENTO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOSComeçar uma movimentação na sociedade civil reivindicando direitosatribuídos a uma coletividade, e não meramente particulares e localizados,apresenta um panorama real de percepção e concretização de garantiasconstitucionais devidas, e consideração de fato das comunidades tradicionaisem nosso país. Muitas destas comunidades brasileiras se formaram à margem doprocesso socioeconômico hegemônico e sobreviveram pelos tempos mantendomuitas tradições e práticas sociais antigas. Daí, a importância em valorizar adiversidade social, econômica e cultural produzida por eles. Ademais, aliado aspróprias necessidades humanas fundamentais, novos tipos de conflitos de massasurgem e o direito deve ter uma resposta adequada e garantidora a estas novasquestões.Uma grande dificuldade na efetivação destes direitos passa pela visãojurídica formalista, dogmática e liberal-individualista dentro da históriado direito, além da concepção monista que eleva a figura do Estado como aúnica grande fonte normativa, excetuando em algumas oportunidades em queconcedem também aos costumes e outros, certamente em menor relevância, estestatus de fonte do direito.Como primeiro exemplo, podemos destacar uma categoria operacional dodireito, que é o conceito de relação jurídica apreendido em nossas Universidades.Este geralmente ocorre de um sujeito a outro prevendo demandas quevinculam de forma individual, em sua essência, a busca por um bem da vida. Obem é suscetível de apropriação, quase sempre pautada na linguagem possessivado meu, seu, posso, tenho, entre outras, tipicamente individualista. O sujeito quese reproduz no conceito de relação jurídica tem sido essencialmente privatístico.É lançado o dilema de um conceito de relação jurídica próprio, que prevejae dê respostas adequadas às demandas coletivas. Algo que não ousaremosadentrar neste momento.Logo, observa-se a derrocada de um modelo jurídico estatal, que atravésde seus Códigos e de seu próprio Poder Judiciário, limita-se a regulamentarconflitos de cunho individualistas e patrimoniais, afastando-se das demandassociais coletivas. Estes problemas tornam-se visíveis, visto que nos encontramos“formados numa cultura jurídica incapaz de entender a sociedade e seus conflitose há má vontade em discutir a democratização efetiva deste ramo do Estado, ”nocaso específico, o Judiciário.Outra questão emergencial que dificulta a efetivação, em muitasoportunidades, destes direitos postos é a visão estreita utilizada para as150 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 150 12/4/2011 17:33:12


fontes normativas, enfatizando a figura do Estado, influenciado por entesprivados, tendo em vista a própria organização da sociedade dentro da lógicacapitalista. O monismo estatal “se explica ideologicamente, eis que o Estadomoderno é construção da classe dominante no mundo ocidental, organizadoburocraticamente para servir seus próprios interesses de proprietários.” Dessaforma, os grupos subalternos absorvem aquilo como o único direito, submetendosea todo e qualquer tipo legal posto.Por mais, que a luta das comunidades tradicionais consiga avançarpontualmente, com normas garantidoras advindas dentro da lógica formalistado Estado, cabe ainda lutar para que estas normas, além de emanar deste ente,brotem, de fato, destes povos e organizações populares.Tendo presente a perspectiva de um pluralismo comunitário-participativo,há de se chamar a atenção para o fatode que a insuficiência das fontes clássicas do monismoestatal determina o alargamento dos centros geradores deprodução jurídica mediante outros meios normativos nãoconvencionais,sendo privilegiadas neste processo, as práticascoletivas engendradas pelos movimentos sociais.O que se busca salientar com estas indagações é que, este princípiomonista de alcance ontológico, o qual possui sua gênese na figura do Estado, étão só uma das faces do Direito. A outra face deve ser considerada e “seu projetopolítico é o da conquista dos espaços normativos pela organização social dosoprimidos, primeiro passo no sentido da libertação. ”O Direito autêntico e global não pode ser isolado em camposde concentração legislativa, pois indica os princípiose normas libertadores, considerando a lei um simples acidenteno processo jurídico, e que pode, ou não, transportaras melhores conquistas.O Direito deve estar inserido nas práticas sociais, produto provenienteda dialética de uma práxis do dia-a-dia e não encastelado nos gabinetesinstitucionalizados de funcionamento do burocratismo do Estado, tão geradorde injustiças. Infelizmente, a<strong>pós</strong> tantos anos de estudo os juristas conhecemmelhor os corredores dos Fóruns e Tribunais, do que os caminhos e as trilhasdas comunidades que contribuem para a construção do meio cultural, há séculosem nosso país.Podemos estar vivendo momentos pré-paradigmáticos. Os paradigmasjurídicos e políticos estão em crise, sem ainda terem nascido novos. O liberalismoé paradigma da ciência jurídica. Os novos direitos exigem nova teoria.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 151livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 151 12/4/2011 17:33:12


CONCLUSÃOTendo por base o estudo realizado, alguns direcionamentos podem servisualizados diante da luta das comunidades tradicionais, sobretudo do Sul doBrasil, e os delineamentos jurídicos apresentados.Nota-se uma inquietação e organização crescente entre os povos ecomunidades tradicionais, na ânsia de serem reconhecidos, de fato, comosujeitos coletivos de direitos. Contudo, nem sempre o Direito dá as respostasesperadas por estas comunidades, mas tão só, reproduz seus feitos de maneiradisforme a uma situação que nada se equipara a uma relação entre indivíduos elógico-formalista.Sendo assim, além da batalha por reconhecimento de direitos quegerminam da própria luta histórica, advinda destas comunidades, desconstruindoa mística da teoria monista estatal, em diversas situações, o entrave ocorreráentre as normas postas, vigentes no ordenamento. Roberto Lyra Filho oferece ofundamento para resolução desta questão e efetivação destes direitos humanos;o padrão de legitimidade, na concorrência das normas, estáno vetor histórico, donde se extrai a resultante mais avançadaduma correlação de forças em que se torna reconhecívela vanguarda, marca-se o posicionamento progressista e seatua para garantir suas reivindicações, tratando de espremero sumo e o extrato do processo libertador a que se dá onome de direitos humanos .Nessa monta, os direitos humanos são postos, de fato, como garantiasdecorrentes e possibilitadas diante de uma luta histórica, em que novos sujeitoscontinuamente são forjados, enquanto perdurar a desigualdade social e dedireitos no país.152 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 152 12/4/2011 17:33:12


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ÍNDICE - PARTE IIACESSO E USO DA BIODIVERSIDADEOzorio J. M. Fonseca.....................................................................................157PROTEÇÃO AMBIENTAL YANOMAMI: convergências cosmológicas,culturais e de sustentabilidade com suporte constitucional no Estado BrasileiroEdson Damas da Silveira..............................................................................175Introdução;1. Relação da Civilização Ocidental com a natureza;2. Relação do povo Yanomami com a natureza;3. “Constitucionalidades Yanomami”;Conclusão;ReferênciasA EFETIVIDADE PROCESSUAL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICANA GARANTIA DE PREVALÊNCIA DOS DIREITOSTRANSISNDIVIDUAIS EM FACE DOS DANOS AO MEIOAMBIENTEAntônio Ferreira do Norte FilhoSerguei Aily Franco de Camargo.................................................................195Introdução1. A ação civil pública como instrumento protetivo do meio ambiente – conceitos eantecedentes históricos2. A ação civil pública e o dano ambiental3. Legitimidade ativa e passiva da ação civil pública ambiental4. A competência jurisdicional na ação civil pública ambientalConclusãoReferências.DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, TRIBUTAÇÃO E INDUÇÃOAMBIENTALRaymundo Juliano FeitosaAlexandre Henrique Salema Ferreira.........................................................209Introdução1. Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômicolivro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 155 12/4/2011 17:33:12


1.1 Estado e Meio Ambiente2 Tributação e Indução Ambiental2.1 A natureza indutora das normas tributárias2.2 A tributação com finalidade de indução ambiental3 Análise Econômica do Direito e Tributação Ambiental3.1 O tributo como custo de transação3.2 A tributação com finalidades ambientaisConclusõesReferências BibliográficasA PÓS-MODERNIDADE E AS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃOWalmir de Albuquerque Barbosa................................................................231Introdução;A <strong>pós</strong>-modernidade;As ciências da Comunicação no contexto da modernidade;Referências.A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A BIOPIRATARIANA AMAZÔNIAAline Ferreira de AlencarFernando Antônio de Carvalho DantasMaria Auxiliadora Minahim........................................................................247Introdução1. Biopirataria na Amazônia Brasileira1.1 A necessidade de Tutela do Direito Penal sobre o Crime de Biopirataria1.2 A importância da identificação do bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal nocrime de Biopirataria1.3 Reflexões sobre formas de evitar e combater a biopirataria na Amazônia BrasileiraConsiderações FinaisReferênciaslivro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 156 12/4/2011 17:33:12


ACESSO E USO DA BIODIVERSIDADEOzorio J. M. Fonseca*Resumo: É feita uma avaliação de problemase questões ligadas ao acesso e usoda biodiversidade amazônica, incluindonessa análise a problemática relacionadaao conhecimento tradicional associadoque impede e/ou dificulta a utilização dosorganismos autóctones e alóctones. O trabalhodiscute o aproveitamento de espéciesbiológicas nativas na alimentação,construção civil, fabricação de móveis,artesanatos, etc., e inclui uma relaçãodos principais organismos utilizados naculinária regional, indicando sua origemgeográfica. Adicionalmente foram inseridas,no texto, indicações bibliográficas deinventários científicos sobre as potencialidadesagronômicas, florestais, industriaise biotecnológicas de espécies da flora, dafauna e de microorganismos amazônicos,ressaltando as restrições legais que dificultamseus usos.Palavras-chave: Biodiversidade; acesso euso; Convenção da Diversidade Biológica;espécies úteis para o homem.Abstract: It is an assessment of problemsand issues related to access and useof Amazonian biodiversity, including inthis analysis the problem related to traditionalknowledge associated with preventingand/or hinders the use of autochthonesand exotics. The paper discusses the use ofnative species in food, construction, furniture,handicrafts, etc.. And includes a listof the main organisms used in regionalcuisine, indicating geographical origin.Additionally were inserted in the text, bibliographiesof scientific surveys on the potentialagronomic, forestry, industrial andbiotechnology species of flora, fauna andmicroorganisms Amazon, noting the legalrestrictions that hinder their use.Key-words: Biodiversity, access and use;Convention on Biological Diversity; speciesuseful to man.* Professor Doutor do Programa de Pós-<strong>graduação</strong> em Direito Ambiental da Universidadedo Estado do Amazonas e, Membro da Ordem Nacional do Mérito Científico.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 157livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 157 12/4/2011 17:33:12


O acesso e uso da biodiversidade é um dos temas mais polêmicos ligadosà relação homem-natureza, pois além da extrema complexidade no âmbito dasciências naturais ele ainda tem uma indissociável ligação com o conhecimentotradicional associado que tem implicações jurídicas, sociais, políticas, filosóficas,ideológicas, etc.As controvérsias ligadas aos saberes baseados na tradição tiveram suaimportância reconhecida pela Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB)que admite a soberania dos governos sobre seus recursos genéticos (artigo 3º)e os obriga a “respeitar, preservar e manter o conhecimento, as inovações eas práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vidatradicionais, relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidadebiológica [...]” (artigo 8, letra “j”).Os manuais de metodologia de pesquisa separam “conhecimentocientífico” do “conhecimento tradicional” (popular) por considerarem que esteúltimo, por ter origem na relação do homem com seu meio, sem método e semsistematização, tem suas bases assentadas em critérios reflexivos e valorativossendo, por isso falível e inexato. Essa tipificação, contudo, não subtrai valordos saberes construídos nas experiências práticas decorrentes dos costumes, dastradições e do uso do espaço, cujo domínio é difuso (Dantas, 2003) e cujosdireitos de propriedade têm natureza coletiva e intergeracional (Oliveira,2004). Além disso, como a cultura dos povos da floresta é formatada a partir daobservação e da articulação lógica de idéias, o conhecimento resultante tem omesmo nível de importância do conhecimento científico (Dantas, op. cit.).Para Jacinto (2006) essa contextualização impõe a necessidade de“abordar cientificamente a dicotomia natureza e cultura, enfocando a dimensãoda sua construção social em sistemas de classificação e de conhecimento, emhistoricidades e especialidades particulares, bem como em campos políticos eideológicos”.Com isso e por isso, a questão do acesso e uso da biodiversidade focalizadasob o prisma do conhecimento tradicional associado ao patrimônio natural,ganha enorme complexidade que é agravada pelas muitas definições teóricase legais decorrentes das diferenças de posicionamentos filosófico, políticos eideológicos.Uma definição bem contextualizada de conhecimento tradicional foiescrita por Derani, (2002), para quem:O conhecimento tradicional associado é conhecimentoda natureza, oriundo da contraposição sujeito-objeto sema mediação de instrumentos de medida e substâncias isoladasem códigos e fórmulas. É oriundo da vivência e da158 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 158 12/4/2011 17:33:<strong>13</strong>


experiência construída num tempo que não é aceito pelamáquina da eficiência e da propriedade privada, mas cujosresultados podem vir a ser traduzidos em mercadoria geradorade grandes lucros quando tomados como recursos deprodução mercantil.A Medida Provisória 2.186 de 27/07/2001 (em tramitação no CongressoNacional), que regulamenta o inciso II do § 1º do artigo 225 da ConstituiçãoFederal e vários artigos da Convenção sobre a Diversidade Biológica, estabelece,em seu artigo 2º, que o acesso depende de autorização da União, ficando acomercialização, o aproveitamento e a repartição de benefícios, submetidos aostermos estabelecidos pela própria MP.Derani (2003), ao analisar essa Medida Provisóra, considera que aautorização de acesso não estabelece qualquer direito de propriedade sobre oconhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, e a lógica dessareflexão deveria ser adotada para dirimir as inevitáveis pendengas administrativase judiciais que decorrem do confronto entre o setor público (ineficiente edeficiente) e as organizações beneficiárias dessas autorizações, normalmentedotadas de excelente estrutura operacional.Uma controvérsia com peso mundial é o posicionamento da OrganizaçãoMundial de Propriedade Intelectual (OMPI) que considera a possibilidade daexpressão conhecimentos tradicionais ser usada de modo flexível para alcançarobras literárias, artísticas, ou científicas baseadas na tradição. Essa possibilidadesinalizada pelo organismo internacional faz crescer a magnitude do problemaporque na linguagem da OMPI, a expressão baseada na tradição significa umasempre renovada relação com o sistema de conhecimentos, criações, inovaçõese expressões culturais “que geralmente se transmitem de uma geração à outra eque, em geral, são consideradas como pertencentes a um povo em particular ouao seu território, e que evoluem, constantemente, em função das trocas que seproduzem em seu entorno” (grifei).O trecho grifado na definição da OMPI infere que a agregação de novasinformações advindas de realidades emersas, ou a incorporação de saberes nãotradicionais produz um novo conhecimento livre de autorizações oficiais e dedireitos de propriedade. Essa ameaça, entretanto, é contestada por Oliveira(2004), para quem a definição da OMPI não tem qualquer caráter formal nemprecisão científica, não anulando, portanto, a titularidade dos direitos incidentessobre conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos.Uma complicação adicional ligada ao acesso e uso da biodiversidade, é acontradição inserida na Convenção sobre Diversidade Biológica que reconheceos direitos de propriedade intelectual de pessoas físicas e jurídicas, mas nãoHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 159livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 159 12/4/2011 17:33:<strong>13</strong>


econhece os direitos intelectuais das comunidades. Essa questão tambémaparece na Constituição do Brasil de 1988 que incluiu alguns direitos coletivosde titularidade difusa (direito à bio e à sociodiversidade, p.ex.), mas não garantea possibilidade de patrimoniar esses direitos. E como a noção de propriedadeestabelecida nos diplomas legais do Brasil e na Convenção sobre DiversidadeBiológica está direcionada para os direitos individuais e de pessoas jurídicas,fica difícil, por enquanto, sua expansão para a esfera dos direitos coletivos.Para debater e equacionar esse tema de alcance e implicações mundiais,em 2002, foi criado o Grupo dos Países Megadiversos , um importante conjuntode 17 Nações que detém cerca de 70% da biodiversidade do planeta, a quem seatribui a tutela de aproximadamente 22% dos recursos biológicos do mundo.Entre as finalidades do grupo figurava a discussão sobre o regime de repartiçãode benefícios resultantes do uso dos recursos genéticos, com o objetivo deencontrar uma solução que tivesse, ao menos, a aprovação majoritária dos paísesbiologicamente ricos e economicamente pobres.O dado curioso e contraditório das conclusões desse grupo é que assoluções encontradas foram encaminhadas para debate em Fóruns Internacionais,onde a grande força decisória pertence aos países biologicamente pobres eeconomicamente ricos.Muitas Nações, entre elas o Brasil, têm discutido a elaboração de políticaspúblicas que obriguem o respeito aos direitos das comunidades tradicionais sobreo acesso e uso de recursos genéticos em seus territórios, e um dos princípiosem discussão é o conhecimento prévio informado (CPI) que exige consultaàs comunidades locais e indígenas para que elas, através de consentimentovoluntário prévio (CVP) permitam à pessoas, instituições ou empresas o acessoaos recursos genéticos em seus territórios (Firestone, 2003).Essa abordagem não está livre de controvérsias, pois segundo Kish(2004), a doutrina jurídica distingue o termo conhecimento prévio informado(CPI) de consentimento prévio fundamentado (CPF), tendo a Convenção sobreDiversidade Biológica adotado o CPF sob a perspectiva de que o consentimentofoi fundado na informação dos riscos e benefícios (consentimento prévioinformado - CPI) que podem ser o fundamento para o consentimento préviojustificado (CPJ). Como informação adicional deve ser dito que a MP 2186/2001introduziu mais uma complexidade, ao criar a expressão anuência prévia (AP).Na Amazônia existe uma grande contradição entre o tamanho dabiodiversidade autóctone e o pequeno número de espécies utilizadas, sendo oexemplo mais emblemático, a utilização da fauna íctica, composta por mais de1.500 espécies conhecidas das quais, entre 1979 e 1983 apenas 18 respondiampor 90% das 300.000 toneladas comercializadas por ano, em toda a região160 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 160 12/4/2011 17:33:<strong>13</strong>


(Batista et al., 2000). Os mesmos autores relataram também que, em toda abacia, apenas 43 espécies ou grupos de espécies fazem parte da dieta regional,embora a preferência recaia apenas sobre 10 espécies , com nítida liderança dotambaqui (Colossoma macropomum).Pereira et al. (1991) analisando as estatísticas de pesca da década de 1980,concluíram que das 18 espécies que historicamente respondem por 90% dascapturas na Amazônia, apenas 4 representavam mais de 60% do total. Nessamesma direção situam-se os dados coligidos por Val e Almeida-Val (1995)revelando que apenas 15 espécies têm importância realmente significativa nocomércio regional.No Médio Amazonas, região de Santarém (PA), Ferreira, Zuanon eSantos (1998) identificaram <strong>13</strong>1 diferentes espécies biológicas, registrando q<strong>uea</strong> identificação pelo nome vulgar é bem menor porque a população local dáo mesmo nome popular à organismos taxonomicamente diferentes. Os doisexemplos mais significativos revelados pelos autores são a “branquinha”, nomedado por pescadores e consumidores a oito espécies diferentes e o “aracu” q<strong>uea</strong>grupa nove espécies distintas.Santos, Ferreira e Zuanon (2006) em um estudo realizado entre 1998 e 1999nos mercados e feiras livres de Manaus, registraram 53 tipos de denominaçãopopular alguns dos quais têm várias espécies taxonômicas diferentes, sendo osmelhores exemplos o “aracu” (dez espécies), o pacu (seis espécies), a piranha(cinco espécies) e o tucunaré (quatro espécies).Apesar do número reduzido de espécies, da confusão taxonômica e dafalta de informações estatísticas mais robustas sobre o comércio no hinterland,não há dúvida de que o peixe é a mais importante fonte de proteína animal paraa população amazonense que, em 1978 consumia quase dez vezes mais peixedo que a média nacional (Giugliano et al, 1978). Atualmente o consumo médioestimado para os ribeirinhos da Amazônia é de 400 gramas por dia (Ferreira,Santos e Zuanon (op.cit.) enquanto para Itatocatiara e Manaus (AM) o consumoé de 500 e 360g/dia, respectivamente, de acordo com os dados de Cerdeira,Rufino e Isaac (1997).Embora a comercialização de pescado, na Amazônia, tenha atingidoem alguns anos, 300.000 toneladas (Pereira et al.,1991), Bailey e Petrere Jr,(1989) estimaram que a produção máxima sustentável, para toda a bacia nãoultrapassa 200.000 toneladas/ano sinalizando que exceder esse limite significaproduzir uma sobrepressão nos estoques naturais cuja diminuição vem sendotentativamente recompensada pelo incremento da piscicultura, uma atividadeque pode atender, de forma sustentável, o comércio interno e um possívelaumento das exportações (Araújo Lima e Goulding, 1998).Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 161livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 161 12/4/2011 17:33:<strong>13</strong>


A criação de peixes confinados para compensar a pressão sobre osestoques é a solução mais viável e inteligente. Historicamente, essa técnica foiintroduzida no Brasil pelos holandeses no século 17, sofreu longos períodos deinterrupção, mas hoje é praticada em todo o Brasil que ocupa o 19º lugar noranking dos países aqüicultores e o 30º lugar na produção pesqueira.Na Região Norte o cultivo de peixes teve início com os trabalhos doINPA, entre 1970 e 1980, havendo hoje inúmeros criadores espalhados portoda a região, cultivando principalmente tambaqui (Colossoma macropomum),tucunaré (Cichla ocellaris), matrinchã (Brycon cephalus e Brycon lundi), pirarucu(Arapaima gigas), pacu (Myellus spp.), pirapitinga (Piaractus brachypomus) ejaraqui (Samaprochilodus spp.), segundo Hilsdorg e Moreira (2004). Tambémestão incluídos na aqüicultura da região, outros animais aquáticos comoquelônios e jacarés cuja comercialização, a partir de criadouros artificiais, temautorização do órgão ambiental brasileiro.Uma relevante vantagem da piscicultura foi indicada por Camargo e Surgik(2004) que ressaltam o fato de que, em sistemas confinados, os estoques podemser medidos com precisão o que facilita a implantação de medidas de manejo,ao contrário das populações móveis e livres cujo controle e gerenciamento édificultado pela mobilidade dos organismos.Apesar da intrínseca associação entre a natureza e a cosmologia regional, sãopoucas as espécies de peixes que incorporam curiosidades especiais adicionadasàs lendas e à cultura dos povos tradicionais. Entre essas singularidades, podemser destacados os peixes reimosos, a agressividade das piranhas (Serrasalmusspp.), o choque do poraquê ou peixe elétrico (Electrophorus electricus), asdimensões do pirarucu (Arapaima gigas) e a beleza dos peixes ornamentaiscomo acará (Pterophyllum scalare), cardinal (Paracheirodon axelrodi), rosacéu(Hyphessobrycon sp.) e lápis (Nannostomus sp.).Uma crendice que associava o consumo de peixes de couro à tansmissãoda hanseníase (lepra) chegou a ser difundida até por pessoas com elevadograu de responsabilidade cívica, como o deputado provincial Aprígio Martinsde Menezes que disse “ter ouvido de pessoas desta província que atribuema morféia à alimentação continuada dos peixes de pelle que nella abundam”,completando sua declaração imputando à “pirahyba, ao peixe-boi, à pirarara eao surubim” a condição de vetores da lepra (Magalhães, 1882).Referindo-se especificamente à piraíba, o escritor Antonio MonteiroBaena (apud Magalhães, 1882), em seu livro “Ensaio Corographico”, publicadoem 1839 escreveu:162 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 162 12/4/2011 17:33:<strong>13</strong>


Comtudo nem este nem outros são escamosos como elle;ninguem que tenha regimen dietético se atreve a comel-osassiduamente, porque sabe que todos fazem espessos oshumores, obstam a transpiração e causam a elephancia ouasquerosas e comedoras crostas na pelle.Os outros grupos animais como aves, répteis e mamíferos nativos têm umaproveitamento muito reduzido, limitando-se à captura (proibida) de algumaspoucas espécies. No grupo das aves, o principal aproveitamento é o comércioilegal de espécies coloridas como arara azul (Ara hyacinthe ou Anodorhynchushyacinthinus), arara vermelha (Ara chloroptera), além da garça branca(Casmerodius alba) e garça cinza (Ardea cocoi) cujas penas são usadas paraconfecção de adornos. Outras aves como periquitos (Brotogeris versicolurus ouTirica chiriri), papagaios (Amazona aestiva) e tucanos (Ramphastos spp.) alémde espécies canoras e ornamentais como bico de lacre (Estrilda astrild) e curió(Oryzoborus angolensis), são criadas como animais de estimação.As principais espécies de aves nativas e exóticas, silvestres e domésticasincluídas na dieta do homem do hinterland, são: mutum (Crax fasciolata),jacamim (Psophila viridis), inhambu relógio (Crypturus strigulosus), galinhad’Angola (Numida meleagris) e, mais comumente, galinha (Gallus gallusdomesticus), pato (Neophron percnopterus e Carina moschata), peru (Meleagrisgallopavo e Alectura lathani), das quais apenas o mutum, o jacamim e a inhambusão nativas.Alguns répteis como jabuti (Geochelone carbonaria), tartaruga(Podocnemis expansa), tracajás (P. unifilis), cabeçudo (P. erithrocephala) e pitiú(P. enterocephala) têm uso na alimentação da Amazônia Ocidental, enquantoo muçuã (Kinostermon scorpioides) e os jacarés, especialmente as espécies(Melanosuchus niger e Caiman latirostris) estão incluídas na dieta dos habitantesdo leste da Amazônia.O uso mais intenso de mamíferos é para suprimento alimentar e venda decouros que têm alto valor comercial. Os alvos preferidos para uso culinário sãoa anta (Tapirus terrestris), capivara (Hydrochoerus hidrochoeris), tatu canastra(Priodontes tridactylus), tatu galinha (Dasypus novemcinctus), veado mateiro(Mazama americana), paca (Agouti paca). caititu (Tayassu tajacu), queixada(Tayassu pecari) e cutia (Dasyprocta sp.). A caça direcionada para o comérciodas peles inclui, principalmente, a onça, (Panthera onca), o maracajá (Feliswiedii ou F. pardalis) e a jaguatirica (Leopardus pardalis) cujas suas peles sãomuito valorizadas no mercado.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 163livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 163 12/4/2011 17:33:<strong>13</strong>


Apesar de constituir crime contra o meio ambiente (artigo 29º da Lei9.605 de 12/02/1998) todas as casas e vilas do “beiradão” mantêm animaissilvestres em cativeiro, tanto na condição de bichos domesticados (papagaios,araras, periquitos, pássaros canoros, macacos, jacamins, porcos do mato, cutias,pacas, jabutis, etc.), como em cativeiro para abate.Entre os invertebrados, o único grupo historicamente usado na Amazôniaé o das abelhas, cujo mel serve às populações nativas e do interior, mais comfinalidades terapêuticas do que nutricionais. No passado, congregações religiosasde origem européia produziam mel de abelhas nativas com a finalidade de“fabricar” xaropes que eram fornecidos para a população de baixa renda, mas apartir de 1976 o biólogo angolano, - Virgílio Portugal de Araújo - trazido para oINPA pelo Diretor da época - Warwick Estevam Kerr - deu início ao processo decriação racional de abelhas nativas e exóticas com orientação científica.Atualmente, a criação de abelhas para produção de mel e derivadosrecebe incentivos governamentais em todos os Estados da Região Norte, ondeessa atividade deveria priorizar as espécies nativas sem ferrão como Jurupá(Melípona compressipes), Uruçú (M. rufiventris), Uruçú boca de renda (M.seminigra), Jandaíra (M. rufiventris) e Jandaira amarela (M. crinita).Souza et al. (2004) estudaram as espécies amazônicas sem ferrão erelataram que o valor nutritivo do mel atinge 305,3 ± 2,4 kcal/100 gramas eo pólen 309,8 ± 0,8 kcal/100g, com 15,7 % de proteína, uma informaçãonutricional que deveria priorizar a pesquisa tanto em aumento da produção,como em tecnologia para garantir a qualidade sanitária dos produtos. Emmercados e feiras da Amazônia o mel é vendido em garrafas reaproveitadasde refrigerantes ou bebidas alcoólicas, sem qualquer garantia de pureza ou dequalidade sanitária.Para aumentar a produção, a maioria dos criadores introduziu espéciesexóticas como a italiana (Apis mellifera ligustica), a africana (Apis melliferascutellata) e seus híbridos.Além da importância na produção direta de alimentos, as abelhas aindatêm forte influência na economia, como agentes polinizadores. Nos EstadosUnidos, por exemplo, em 2006, foram produzidas 70 mil toneladas de mel e aação polinizadora das abelhas foi responsável por 33% dos alimentos produzidoso que equivale à US$ <strong>14</strong>,6 bilhões/ano (Ambiente, 2007).O grupo dos vegetais, apesar dos obstáculos legais até para a retiradade amostras para estudos científicos é o que detém a maior quantidade deinformações sobre possibilidades de uso sendo importante ressaltar que quasetodas as pesquisas de longo prazo têm sido financiadas por recursos externos,já que as verbas do orçamento nacional, além dos contingenciamentos, não têm164 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 164 12/4/2011 17:33:<strong>13</strong>


liberação financeira assegurada.Vários autores têm indicado formas de usar os organismos amazônicos,entre eles Siqueira (1996); Noda, Souza e Fonseca (1997); Fonseca e Ferreira(1998); Mma (1998); Ferreira e Oliveira (1999); Clay, Sampaio e Clement (1999a); Revilla (2001 e 2002); Abrantes (2002), Clements (2008).Clay, Sampaio e Clement (1999 op.cit.), por exemplo, com recursos doPPG-7 e apoio do SEBRAE-AM, publicaram um trabalho bastante exaustivo sobrevárias espécies, demonstrando suas possibilidades de utilização descrevendo, deforma minuciosa, as partes das plantas que podem ser aproveitadas, os tipos deuso, o armazenamento, os mercados, etc.Nesse trabalho, trinta e três espécies foram separadas pelo tipo de usoem: “Frutos amidosos ou oleosos”; “Frutos suculentos”; “Óleo-resinas elátex”; “Óleos industriais”; “Óleos essenciais” e “Materiais industriais e paraartesanato”. Além da descrição botânica, fenológica e silvicultural, também sãoindicadas as possibilidades econômicas detalhadas em planilhas, onde figuramas principais etapas de cultivo, cada uma delas com os custos econômicoscorrespondentes, com previsão de investimento desde a preparação do solo paraplantio, até a disponibilização do produto no mercado, com lucro estimado.Clements (2008) lembra que os povos indígenas domesticaram cerca de50 espécies frutíferas na Amazônia embora tenham feito uso de um númerodesconhecido delas, mas ressalta que com exceção do açaí (Euterpe spp.),guaraná (Paulinia cupana), cacau (Theobroma cacao) e cupuaçu (Theobromagrandifolia), as demais estão a espera de mercado.Esse acervo de informações sobre uso da biodiversidade amazônicaencontra limitações de uso na esfera do conhecimento tradicional, na falta deassistência técnica competente, na ausência de transporte para escoamento daprodução e na inexistência de preços mínimos, existindo ainda, para o pequenoprodutor, a questão da titularidade da terra que é um documento importante paraconseguir financiamento bancário.Outro promissor uso da biota vegetal é formado por centenas de fragrânciasproduzidas por plantas aromáticas embora apenas três óleos essenciais sejamaproveitados pela indústria de perfumaria sendo o de maior representatividade olinalol extraído, do pau-rosa (Aniba roseadora) usado como fixador do perfumeChanel nº 5. O Mercado Ver-o-Peso, em Belém, concentra o comércio maisintenso e diversificado dessas espécies que produzem essências aromáticas,usadas pela população na fabricação de perfumes caseiros, chás, xaropes,infusões, “poções mágicas”, banhos de cheiro, e em rituais afro-brasileiros(Santos, 2008).Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 165livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 165 12/4/2011 17:33:<strong>13</strong>


O uso das plantas amazônicas como medicamentos é bastante difundidotendo Revilla (2002) listado mais de 5.000 espécies que a cultura popularacredita ter algum tipo de ação curativa, embora seja evidente que essa enormequantidade de indicações constitui um exagero. Se a terapêutica da flora fosseassim tão eficiente, os povos da floresta teriam o mesmo padrão de saúde doshabitantes dos países desenvolvidos, podendo atingir esse patamar apenas como mascar de folhas e a ingestão de chás e infusões.Isso não significa que as plantas não contenham propriedades curativas,havendo inúmeros trabalhos científicos relatando a presença de substânciasbioativas com alguma atividade potencial na cura de patologias. Algunsexemplos de princípios ativos de espécies amazônicas comprovadamenteeficazes são: cocaína (analgésico local), extraído de Erythroxylum coca, usadopelas populações tradicionais como inibidor do apetite; emetina (amebicidae emético) extraído de ipecacuanha (Cephalus ipecacuanha); claucarubina(amebicida) extraído de marupá (Simaruba glauca); quinino (antimaláricoe antipirético) extraído de quina (Chichona ledgeriana); rotenona (piscida)extraído do timbó (Lonchocarpus nicou); curare, bloq<strong>uea</strong>dor de receptores deacetilcolina e relaxante de músculo liso, extraído de várias espécies; andiroba(Carapa guianensis) de uso cosmético e medicinal; crotão (tipo de cróton)com princípios ativos contra diarréias e herpes genital; jaborandi (Tabebuiarepetiginosa); ayahuasca (Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis) usados nosrituais do Santo Daime; unha de gato (Uncaria tormentosa) usada na dengue;bibiri (Ocotea rodiei) usado como anticoncepcional; veneno da jararaca (Bothropsjararaca) usado no controle da hipertensão; sapo tricolor (Epipedobates tricolor)produtor de uma toxina cerca de 200 vezes mais potente que a morfina. Alémdesses mundialmente (re)conhecidos existem muitos outros organismos usadosem infusões, chás, xaropes, etc., como fitoterápicos ou medicamentos pelaspopulações tradicionais embora não tenham eficácia comprovada por estudoscientíficos.O uso das espécies amazônicas só não é maior por causa das restrições aoacesso o que, todavia, não impede a retirada ilegal desses organismos aos quaisestá inalienavelmente associado o conhecimento tradicional.Esse uso modesto da biodiversidade da Amazônia se estende para a partenutricional, com poucas espécies participando da alimentação e da economiaregional, embora muitas delas sofram enorme pressão extrativista clandestina. Umexemplo emblemático desse cenário é a dieta regional constituída, basicamente,por espécies exóticas introduzidas no tempo da colonização ou biopirateadasnos tempos modernos. O cardápio básico diário de todos os extratos sociais nacapital e no interior é formado por alimentos não amazônicos, a maioria sequer166 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 166 12/4/2011 17:33:<strong>13</strong>


de origem brasileira (Quadro 1).Os microorganismos que são extremamente abundantes nos ecossistemasamazônicos têm seu uso bastante reduzido pelas populações nativas etradicionais. A utilização indígena mais conhecida é para fabricação de bebidasalcoólicas a partir da fermentação de massas de mandioca, milho e pupunha,cujo produto final, o cauim, - e suas variações (caiçuma, pajuaru, caxiri, tarobá,etc.) - eram (são) utilizadas nas comemorações e rituais.Entre os poucos trabalhos científicos sobre o uso de fungos pelaspopulações indígenas figura o trabalho de Prance (1972) que relata a utilizaçãode quatro espécies da família Polyporaceae na alimentação dos Ianomâmis eWaikás, na Serra do Surucucu e no rio Uraricoera, em Roraima, cujos nomesna língua indígena, seguidos da determinação taxonômica são indicados como:Hadohodokuk (Neoclitocybe bissiseda);Shikimamok (Polyporus dermoporus = Favolus brasiliensis;Adamasik (Polyporus sp. cf. Favolus tesselaris ou Fexazonasubcaperatta);Mafcomcuk (Polyporus stipitarius).Ainda sobre fungos, Batista (2007) descreveu o encontro de váriosexemplares de um grande cogumelo, de até 60 kg, durante a abertura da rodoviaManaus-Itacoatiara (AM 010), que a população local acreditava ser um “pãode índio”. Esse fungo foi identificado pelo micólogo Augusto Chaves Batistacomo Polyporus sapupema e a análise química realizada por Maravalhas(1965) determinou 49% de umidade, 0,18% de cinzas, 0,175% de substânciasnitrogenadas e 50,48 % de polissacarídeos.Um importante exemplo de uso da biodiversidade microorgânica estáassociado à descoberta, em 1976, de uma substância produzida pela bactériaChomobacterium violaceum, cuja alta freqüência, no Lago Cristalino (baixorio Negro), foi destacada por Fonseca (1984) e cuja ocorrência e distribuiçãona Amazônia tinha sido registrada, anteriormente, por Guarim (1979). Essasubstância – violaceina – tem atividade antibiótica, antivirótica, antitripanosômicae antitumoral, estando com o pedido de patente feito pela Agência de Inovação(Inova) da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp (www.unicamp.br).Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 167livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 167 12/4/2011 17:33:<strong>13</strong>


Quadro 1. Principais alimentos usados na Amazônia e suas origens geográficas.ALIMENTO ORIGEM ALIMENTO ORIGEM ALIMENTO ORIGEMLegumes, verduras e temperos Grãos e óleos Frutas e bebidasAlfaceAlhoSul da Europae Oeste daÁsiaNorte daEuropaAlgodão Índia AbacateArroz (*)Azeitona Desertos do Irã AveiaBaunilhaBeterrabaBatata doceBertalhaMéxico eAméricaCentralEuropa eMediterrâneoAméricaCentral ePolinésiaÁsia Tropical– Índia -IndonésiaÍndia e CeilãoCenteioChina, Índia eJapãoNorte deregiãotemperadaIdemAbiuAraticumAta (Pinha)México eAmérica CentralPeru cis andinoAntilhasAntilhasCevada Idem Banana Sudeste da ÁsiaCocoRegião Indo-Pacífica –MalásiaBiribáDendê África Central CaféAntilhasMontanhas daEtiópiaCanelaCana de ChinaErvilha Oeste da Ásia açúcarOeste daÁsia,Ásia TropicalÁfrica, Feijão (*) América, Carambola (Índia àCará AméricaPeru, RegiãoIndonésia)Central e Ásiatemperada,África CentralCebola Sul da Ásia e Gergelim Ásia Fruta pão Ásia – IlhasMediterrâneoMoluscasCenoura Região Girassol América do Graviola AntilhastemperadaNorteChá preto China Grão de bico Oriente Médio Jaca ÍndiaChicória Mediterrâneo Lentilha Sudeste da Jambo ArquipélagoÁsiaMalaioCravo da Ilhas Moluscas Linhaça Ásia Laranja Sul da ÁsiaÍndiaEspinafre Região Mamona África Mamão México etemperadaAntilhasMaxixe África tropical Milho México Manga TrópicosasiáticosNabo Região Oliveira Desertos do Mangarataia Índia e IndonésiatemperadaIrã(Gengibre)Pepino África Soja China Melão ÁfricasubtropicalQuiabo África Sorgo África Sapotilha México até CostaRicaTaioba Ásia Trigo Abissínia Tamarindo ÁfricaTomate Peru e Equador TrigoOrienteMédio, ÁsiaCentral eAbissíniaTaperebá ouCajáAntilhasA carne animal usada na Amazônia é, basicamente, de gado, búfalo, galinha, pato, porco,eventualmente caprinos e ovinos, todas elas espécies exóticas.Fonte: Várias.(*) São usadas várias espécies, todas exóticas.168 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 168 12/4/2011 17:33:<strong>13</strong>


Uma das principais causas inibidoras do acesso e uso da biodiversidade é aassociação entre flora e saúde (leia-se indústria farmacêutica), uma contingênciaque insere questões extremamente complicadas ligadas às ideologias políticas, aopatriotismo inculto e ao nacionalismo ufanista, fatores que atrasam ou dificultamo aproveitamento da biota. Entre os males dessa associação está o direcionamentopara o uso único da biodiversidade, o que constitui uma minimização medíocredo potencial da biota. Várias outras utilidades, economicamente viáveis podemser identificadas, como produção de corantes, pesticidas, fibras, biopolímeros,cosméticos, gomas, látex, óleos comestíveis, óleos essenciais, graxas, gorduras,alimentos, óleos para produção de energia, ração para animais, fertilizantes,microorganismos solubilizadores de fosfato e fixadores de nitrogênio, etc.O apelo emocional relacionado aos enormes lucros da indústriafarmacêutica inibe o acesso e uso da biodiversidade, um posicionamento queobstaculiza o avanço da ciência que, felizmente, foi a primeira atividade humanaglobalizada e que fica a mercê do patrulhamento ideológico.Esse rigor de proteção, entretanto, não tem correspondência na priorizaçãode financiamento de pesquisas voltadas para o cultivo e melhoramento genéticodos organismos amazônicos. Todo o esforço do poder público é direcionadopara o aprimoramento de cultivares exóticas , vegetais (óleos, grãos, legumes,verduras, frutas, temperos e sobremesas) e animais (bovinos, bubalinos, caprinos,ovinos, suínos, galináceos, eqüinos, etc.). Com isso, e por isso, a agropecuáriabrasileira, que dá enormes lucros ao país, é toda alicerçada em espéciesexóticas, trazidas para cá sem autorização dos povos que habitam as regiõesonde elas tiveram origem. Essa atividade bucaneira sequer é comentada peloambientalismo ufanista e inculto que jamais sinalizou, sequer, a possibilidadede o Brasil remunerar o conhecimento tradicional dos povos dos biomas deorigem dos organismos (plantas e animais) que aqui enchem os cofres dogoverno, dos Bancos, dos donos das terras. Vale lembrar ainda que a Convençãosobre Diversidade Biológica, recepcionada pela legislação brasileira (DecretoLegislativo nº 2 de 03/02/1994) em seu artigo 2º, reconhece a existência de Paísde origem dos recursos genéticos e de País provedor de recursos genéticos. (vercapítulo sobre Biopirataria).A pesquisa de melhoramento e cultivo de espécies da flora e da faunaamazônicas nunca foi prioridade governamental, embora alguns pesquisadorestenham seguido esse caminho, abandonado aqui e ali, por falta de financiamento.Na área empresarial, surge, aqui e ali algum investimento no plantio de guaraná,cupuaçu, pupunha e, mais recentemente, de cacau orgânico, no Município deCoari, no médio Solimões, com produção de 120 toneladas em 2007.Resta ainda refletir sobre o uso das madeiras de lei, cujo corte também éHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 169livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 169 12/4/2011 17:33:<strong>14</strong>


proibido ou restrito fazendo com que as populações nativas prefiram cortá-lase vendê-las para serrarias clandestinas, do que usá-las na construção de suasmoradias que são erguidas com madeiras de qualidade inferior. Entre as espéciesutilizadas na construção de residências figura a paxiúba (Socratea exorrhiza)uma palmeira de alta durabilidade cujo tronco cilíndrico não permite qualquerregularidade, seja no assoalho, seja no fechamento das frestas, o que torna a casado caboclo um abrigo com elevada durabilidade, mas sem conforto e proteçãoadequada contra insetos vetores de doenças e morcegos hematófagos.É incontestável que o acesso e uso adequados da biodiversidadeamazônica dependem de ciência, tecnologia e inovação os únicos mecanismosviabilizadores da fabricação e comercialização de bioprodutos com alto valoragregado, retirando da biodiversidade amazônica a inaceitável condição de ser,para o caboclo, uma autêntica bioadversidade.Não é exagero afirmar que os povos da floresta vivem hoje, neste iniciodo século 21, em situação similar à dos árabes antes da revolução industrial.Aqueles povos tinham condições de vida muito precária embora morassem sobreimensas jazidas de um recurso natural mineral que tinha pouca ou nenhumautilidade. Com a descoberta do craq<strong>uea</strong>mento do petróleo pela ciência e odesenvolvimento do motor de explosão pela tecnologia, aquele recurso passoua ser o mais importante propulsor da economia mundial e os árabes alcançaramelevados níveis de riqueza. Na Amazônia de hoje a situação é similar porqueseus habitantes vivem rodeados por um enorme acervo de recursos naturaisde pouca ou nenhuma utilidade, simplesmente por faltar ciência, tecnologia einovação que permitam o seu aproveitamento e sua transformação em riquezae bem estar.Essa comparação insere, obrigatoriamente, a problemática relacionadaao conhecimento tradicional associado ao patrimônio natural e configura umenorme e sólido argumento a favor da formatação de um Projeto de Estadopara a Amazônia, balizado e sinalizado pela interdisciplinaridade, com suarede radicular enterrada no conhecimento científico e sua copa espalhada pelopatrimônio cultural.Um projeto com essas características, no entanto, como adverte (Leff,2001) precisa decodificar os saberes das culturas tradicionais não permitindo,entretanto, que isso signifique uma apropriação capitalista da riqueza genética.A elaboração de um Projeto de Estado para a Amazônia também deve incluirmecanismos nacionais e internacionais que proíbam o patenteamento debioprodutos que não tenham sua origem perfeitamente transparente, evitandoassim que o setor industrial e mercantil se apodere tanto dos saberes sobre a vidacomo daqueles incorporados à vida.170 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 170 12/4/2011 17:33:<strong>14</strong>


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PROTEÇÃO AMBIENTAL YANOMAMI:convergências cosmológicas, culturais e desustentabilidade com suporte constitucional no EstadoBrasileiroEdson Damas da Silveira*Sumário: Introdução; 1. Relação da Civilização Ocidental com a natureza; 2. Relaçãodo povo Yanomami com a natureza; 3. “Constitucionalidades Yanomami”; Conclusão;ReferênciasResumo: A proteção ambiental Yanomamipossui uma relação direta entre as suas:cosmologia, cultura e sustentabilidade,a qual possui um suporte constitucionalno Estado Brasileiro. Parte-se da idéiada desmistificação dos indígenas como“ecologistas natos”, quando há casos emque alguns dos povos indígenas cometemcrimes ambientais. Neste sentido, há umamudança de lógica sistêmica, quando osYanomamis pensam e tem um modelo devida diferencial da perspectiva ocidental,desse modo, que efetivam melhor oprincípio fundamental do meio ambienteecologicamente equilibrado. Diantedeste panorama, as terras indígenas sãotão vulneráveis como qualquer outraárea de proteção ambiental, sendo que,no texto constitucional, especialmenteno título VIII, capítulo VI, somente seautoriza a exploração ambiental noslimites criteriosos da sustentabilidade, deconhecimento e prática dos Yanomamis.Palavras-Chave: proteção ambientalYanomami – cosmologia – Sustentabilidade.Abstract: The Environmental ProtectionYanomami has a direct relationshipbetween their: cosmology, culture andsustainability, which has a constitutionalsupport in the Brazilian state. It starts withthe idea of demystifying the natives as"ecologistas natos," when there are caseswhere some indigenous people committingenvironmental crimes. In this sense, thereis a change in systemic logic, where theYanomami people think and has a model ofliving differential of Western perspective,so that better actualize the fundamentalprinciple of ecologically balancedenvironment. Given this background,indigenous lands are as vulnerable as anyother area of environmental protection,and, in the constitutional text, especially inTitle VIII, Chapter VI, only if authorizationto operate within the limits carefulenvironmental sustainability, knowledgeand practice of Yanomami.Key-Words: environmental protectionYanomami - cosmology - sustainability.* Procurador de Justiça em Roraima, Especialista em Desenvolvimento RegionalSustentável, Mestre e Doutor em Direito Econômico e Socioambiental. Professor doPrograma de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 175livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 175 12/4/2011 17:33:<strong>14</strong>


INTRODUÇÃOTradicionalmente difunde-se a idéia de que os povos indígenas viveme sempre conviveram em perfeita harmonia com a natureza, protegendo-acontra processos de extração e devastação indiscriminados, sendo comumentelembrados como “ecologistas natos” e, também por isso, merecendo o nossorespeito e votos de merecidos agradecimentos.Mas o tema encerra certo desconforto entre os especialistas da causaindígena quando, por exemplo, tem-se notícia de que os índios Tembé do Paráacabaram flagrados comercializando madeira cortada indiscriminadamentedo seu território 1 ou, de outro giro, quando se sabe que em pleno Estado deRoraima grande parte dos focos de incêndio são promovidos pelas diversasetnias indígenas, justamente em razão da prática ancestral de queimadas na matapara preparação da terra ao cultivo agrícola 2 .Diante dessa problemática, não se pode então perder de vista que a açãoantrópica incidente sobre a natureza deixa raízes com o surgimento do própriohomem no ambiente terrestre, ora com maior, ora com menor sacrifício dosrecursos naturais.Ademais, é do próprio funcionamento da natureza – onde o homem seencontra inserido e dentro da sua mais atualizada concepção, qual seja, de umalógica sistêmica – que os organismos vivos se relacionam entre si numa dinâmicaautofágica e de constante mutação, onde se vislumbram processos predatóriosque nem sempre se equilibram, uma vez que muitas espécies são extintas paraque outras sobrevivam ou mesmo venham a surgir dentro do mesmo bioma.Por terem se destacado dos outros animais pela sua inteligência eespetacular habilidade para se adaptarem aos vários ambientes terrestres, é1Divulgado no jornal “Folha de Boa Vista”, edição 5299, de 28 de dezembro de 2007,às fls. 3b e com o título “Funcionários da FUNAI denunciam ameaças de índios queextraíam madeira ilegalmente”.2Bruce Albert, falando dos seus pares, explica que “muitos antropólogos que trabalhamna Amazônia mostraram, ao longo da última década, um desconforto perante oalastramento da ideologia que representa as sociedades indígenas da Amazônia comopopulações em perfeita continuidade com seu meio ambiente e cujos membros,ecologistas espontâneos, devem ser preservados por serem detentores de saberesnaturais fora do comum”. “O ouro canibal e a queda do céu - uma crítica xamânticada economia política da natureza (Yanomami)”. Pacificando o branco: cosmologias docontato no norte-amazônico. ALBERT, B.; RAMOS, R. (orgs.). São Paulo: UNESP:Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 256.176 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 176 12/4/2011 17:33:15


que alguns seres humanos crêem na absoluta submissão do meio ambiente aosseus particulares e inconfessáveis interesses. E me parece que o diferencial donosso comportamento com os dos povos indígenas, que também se servem dasflorestas (muitas vezes desordenadamente), reside exatamente no modo comoencaramos a natureza e a destinação que demos a ela, como se fosse um “serestranho”, “domesticável” e “irredutível”.Portanto, a discussão antes de passar pelo foco da integração ou não como meio ambiente, deve inicialmente ser pautada pela recapitulação das práticassociais de ambas as sociedades (índias e não-índias), tendo sempre presente olapidar ensino de Isabelle Vidal Giannini:[...] não podemos dizer que as sociedades indígenas sãonaturalmente integradas à natureza, pois a prática social danatureza se articula sobre a idéia que uma dada sociedadese faz de si própria, sobre a idéia que ela se faz do ambienteque a circunda e sobre a idéia que ela se faz de sua intervençãosobre o meio ambiente 3 .Desse modo, e para não incorrermos no pecado da injusta generalização,lembramos que se registra no Brasil mais de 730 mil pessoas que se autoidentificamgenericamente como “índios” 4 , divididos de norte a sul do país emaproximadamente 227 povos 5 e que falam 177 línguas diferentes 6 .3Os índios e suas relações com a natureza. Índios no Brasil. GRUPIONI, L. D. B. (org.).São Paulo: Global, 2005, p. <strong>14</strong>5.4Esses números foram colhidos no último censo promovido pelo IBGE (2000),lembrando que não há no país um censo específico e adaptado à realidade dos povosindígenas.5Levanamento realizadoem julho de 2007 pelo Instituto Socioambiental e que constado Almanaque Brasil Socioambiental: uma nova perspectiva para entender a situaçãodo Brasil e a nossa contribuição para a crise planetária. São Paulo: ISA, 2007, p. 226.6Resultado do levantamento feito por Bruna Franchetto junto ao acervo do Setor deLingüística do Museu Nacional, dos primeiros cadastramentos de pesquisadores(ANPOLL e UFGO) e de produções acadêmicas (UFRJ, UNICAMP, UFSC),devidamente perfilhado no trabalho intitulado “O conhecimento científico das línguasindígenas da Amazônia do Brasil”, publicado na obra organizada por F. Queixalós e O.Renault-Lescure, com o título de As línguas amazônicas hoje. São Paulo: IRD: ISA:MCT/CNPq, 2000, p. 171.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 177livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 177 12/4/2011 17:33:15


Essa imensa diversidade social, temperada com costumes e maneirasespecíficas de se relacionarem com a natureza, nos conduziu a eleger o povoyanomami 7 como referencial de análise neste brevíssimo ensaio.Considerado um dos povos mais primitivos do planeta, autênticos“sobreviventes” do processo excludente da modernidade, “os yanomamiformam uma sociedade de caçadores-agricultores da floresta tropical do Norteda Amazônia cujo contato com a sociedade nacional é, na maior parte doseu território, relativamente recente. Seu território cobre, aproximadamente,192.000 km2., situados em ambos os lados da fronteira Brasil-Venezuela naregião do interflúvio Orinoco – Amazonas (afluentes da margem direita do rioBranco e esquerda do rio Negro). Constituem um conjunto cultural e lingüísticocomposto de, pelo menos, quatro subgrupos adjacentes que falam línguas damesma família (Yanomae, Yanõmami, Sanima e Ninam). A população total dosYanomami, no Brasil e na Venezuela, é de hoje estimada em cerca de 26.000pessoas” 8 .Somente no Brasil, e segundo o senso da FUNASA datado de 2005,registrou-se uma população yanomami aproximada de 12.500 pessoas,divididas em 188 comunidades, distribuídas num território de 9.664.980 ha. 9e que compreende parte dos municípios roraimenses de Alto Alegre, Amajari,Caracaraí, Iracema e Mucajaí; bem como das edilidades amazonenses deBarcelos, Santa Izabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira 10 .Em face dessas peculiaridades, reforçada pela destacada e mundialmenteconhecida luta do povo yanomami em defesa da floresta – mormente contra ainvasão de milhares de garimpeiros –, é que resolvemos empreender esforçospara compreender a dinâmica de interação daqueles homens com o meioambientesob uma perspectiva cosmológica e cultural.Dito isso, recapitularemos a seguir os passos dados pela atual civilizaçãoocidental rumo ao antropocentrismo falho para, mais adiante, nos fixarmos numquadro comparativo e juridicamente relevante à nossa realidade ambiental.7O etnônimo “yanomami” foi produzido pelos antropólogos a partir da palavra “yanõmami”que, na língua yanomami ocidental, significa “seres humanos”, opondo-se àscategorias dos animais de caça, dos seres sobrenaturais e dos inimigos, estrangeiros ou“brancos”. Http://www.proyanomami.org,br., acessado em 10/12/2007.8ALBERT, B. “Os Yanomami e sua terra”. Http://www.proyanomami.org.br, acessadoem 10/12/2007.9Homologado pelo então Presidente Fernando Collor, em 25 de maio de 1992.10RICARDO, B.; RICARDO, F. (ed. gerais). Povos indígenas no Brasil: 2001-2005. SãoPaulo: ISA, 2006, p. 335.178 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 178 12/4/2011 17:33:15


1. RELAÇÃO DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL COM A NATUREZANão excede recordar que nos primórdios da civilização ocidental houveum tempo em que os homens se viam como mais um dos elementos integrantesda natureza, em posição de inferioridade e com o pensamento todo centrado nacompreensão da physis.Trata-se do naturalismo antigo, período em que os gregos origináriosalimentavam uma concepção cosmo-ontológica, somente considerando osaspectos da natureza física, ou seja, o mundo do “não eu”.A seu turno, Tales de Mileto (séc. VI a.c.) – que previu um eclipse lunarno ano 585 a.c., bem como trouxe primeiro uma explicação racional para asmarés do Nilo – defendia a tese de que a origem de tudo (arché) estava noelemento “água”. Percebia também uma espécie de “alma” em todas as coisasda natureza que, por ser imortal, justificava o “princípio do movimento” 11 .Heráclito de Éfeso (535 a 475 a.c.) 12 voltou a sustentar a teoria do“dinamismo físico”, mas com base num “devir” <strong>13</strong> permanente, em constantemutação e cujo símbolo primário era o “fogo”, justamente o elemento detransformação dos corpos terrenos.Parmênides de Eléia (530 a 460 a.c.) contribuiu para um melhorentendimento da complexidade do meio ambiente, revelando a existência do“ser”, uma espécie de essência intrínseca à todas as coisas da terra, erigindo o“ar” como elemento fundamental da natureza <strong>14</strong> .Debalde os esforços dos pré-socráticos em manter o pensamento fixadono ambiente que circundava os seres humanos, inicia-se com os sofistasum deslocamento da filosofia da physis para o próprio homem (psiché),predominando entre eles temas como ética, política, retórica e educação.Esse desvio de rumo encontra Sócrates (470 a 399 a.c.) como o seugrande sustentáculo que, à par de reflexões sobre a verdade, morte, moral,felicidade, amizade e outros assuntos exclusivos da humanidade, se notabilizoupor sentenciar: - “conhece-te a ti mesmo” 15 .11MARTINS FILHO, I. G. Manual esquemático de história da filosofia. São Paulo: LTr,1997, p. 20-21.12MONDIN, B. Curso de filosofia. Vol. 1. Tradução de Bênoni Lemos. São Paulo: Paulus,1981, p. 26-28.<strong>13</strong>“Vir a ser”, movimento para frente, em direção do futuro.<strong>14</strong>MONDINI, B. Op. cit., p. 29-32.15MARTINS FILHO, I. G. Op. cit., p. 28-29.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 179livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 179 12/4/2011 17:33:15


Em Platão (427 a 347 a.c.), a physis perde o status de “paraíso” e começaa ser encarada como um ciclo de passagem do homem para o além, em direçãode um mundo metafísico mais importante do que o terrestre 16 .Mesmo interessado em pesquisa de plantas e animais, Aristóteles (384 a322 a.c.) busca a origem do movimento perceptível na natureza em “Deus”, queseria para ele o “motor imóvel” ou “primeiro motor”, aquele que move o mundosem ser movido 17 .Com o desmantelamento político e econômico da Pólis, o sentimentode coletividade do povo grego dá lugar ao homem singular e desesperançado,frustrado com a incompletude da filosofia. Foi assim, no alvorecer do períodohelenístico, que novos movimentos surgem com o escopo de aproximar religiãoe filosofia 18 .Plotino (205 a 270 d.c.) desempenha relevante papel nesse sentido,superando em definitivo a ecológica mitologia grega com a revelação daverdadeira identidade de Deus, qual seja, o “Absoluto”, também designado por“Uno”, princípio supremo da unidade, destituído de forma e inatingível peloconhecimento humano 19 .Portanto, está inaugurado um campo fértil para a propagação da filosofiajudaico-cristã que se assenta na teoria do criacionismo: - Deus criou a terrae tudo que nela existe somente para servir o homem, constituído esse à suaimagem e semelhança. Bastou para que o ser humano fosse alçado à condiçãode “Semi-Deus”, destinatário de todos os bens e da própria natureza.Vingada aquela procissão de fé, Santo Agostinho (354 a 430 d.c.) seguiuentoando que o mal teve a sua origem vinculada à pessoa do próprio homemquando, tentado pela conjugação de dois elementos eminentemente naturais(maça e serpente), descumpriu uma determinação divina e caiu em pecado, nostermos do episódio entre Adão e Eva 20 .As idéias cristãs tomam conta do ocidente, de parte do oriente e se fixamna supremacia do homem sobre a natureza por legado da divindade, onde o16REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: antiguidade e idade média. Vol. 1.São Paulo: Paulus, 1990, p. 157-161.17STRENGER, I. História da filosofia. São Paulo: LTr, 1998, p. 87-91.18Entre eles, sobressaíram os estóicos, epicuristas e céticos.19REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 340-343.20Confissões. Livro VII: a caminho de Deus – I. O problema de Deus e o problema domal. 4. ed. Tradução de J. Oliveira Santos, S. J., e A . Ambrósio de Pina. São Paulo:Nova Cultural, 1987.180 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 180 12/4/2011 17:33:15


“ser” (agora atributo somente do homem), é expressão da máxima perfeição,pois todos os seres originam-se do “Ser Maior” (Deus) por criação 21 .Rente à exposição, emoldura-se por ocasião do renascimento o apogeuda racionalidade humana que, embora desapegada da imagem divina, faz-seainda mais forte em razão dos métodos científicos que permitem observar omovimento das coisas terrenas e o universo infinito.Caracterizada pelo rigoroso antropocentrismo e desvinculada totalmenteda religião, a filosofia ressurge como base intelectual de um novo humanismo,crente que a domesticação da natureza seria possível através da manipulação deum engenhoso instrumental técnico, ordenado por métodos científicos.Descartes (1596 a 1650) 22 inteligentemente nos guiou por um modo deconhecer tão organizado e sistematizado que Francis Bacon (1561 a 1626) 23 ,entusiasmado com o poder da pesquisa, chega a profetizar o domínio absolutodo homem sobre a natureza, transformada com a consolidação do capitalismoem de<strong>pós</strong>ito de recursos naturais e reconhecida como a grande fonte de energiada revolução industrial.Contemporaneamente vozes se ergueram contra a sanha desenvolvimentistae devastadora do homem, surgindo críticas ácidas por parte de FriedrichNietzsche (1844 a 1900) em desfavor da civilização ocidental, da massificaçãoe vida burquesa, então impregnada pelo conservadorismo cristão (“moral derebanho”) 24 .Os séculos XIX e XX passaram dos limites e erraram feio nalgumasapostas, tais como: - infinitude dos recursos naturais; “natureza morta”,dominada e sem condições de reação; infalibilidade da inteligência humana edos métodos científicos; antropocentrismo egoístico extremado; dentre tantosoutros equívocos.Ao lembrarmos que essa breve reconstituição de fatos se presta tãosomenteà uma pontual equiparação, se faz mister avançarmos para aquilo queefetivamente nos interessa ao trabalho, ou seja, em direção da cultura yanomami.21Discurso do método: regra para a direção do espírito. Tradução de Pietro Nassetti. SãoPaulo: Martin Claret, 2003.22Novum organum ou verdadeiras indicações acerca da interpetação da natureza.23Coleção “Os Pensadores”. 4. ed. Tradução de José Aluysio Reis de Andrade. SãoPaulo: Nova Cultural, 1988.24Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo Cesar deSouza. São Paulo: CIA das Letras, 2005.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 181livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 181 12/4/2011 17:33:15


2. RELAÇÃO DO POVO YANOMAMI COM A NATUREZAToda a cosmologia 25 yanomami, donde se extrai um complexo sistemauniversal de intercâmbios simbólicos entre os humanos e outros seres, deitaraízes profundas sobre o xamanismo 26 , principal ponto de interseção entreaquela sociedade e a natureza.Davi Kopenawa 27 , respeitado xamã 28 , grande líder e interlocutor do povoyanomami, explica que os homens, os animais, a floresta e o céu foram criados25Ciência que tem como objeto de estudo o “cosmos”, entendido como o universo, suadinâmica de funcionamento e princípios estruturantes.26Bruce Albert ensina que o xamanismo “é um ver-saber estratégico para a contenção dospoderes entrópicos, da alteridade cosmológica e social; para isso, socializa certas figurasdessa alteridade sob a forma de entidades auxiliares, numa espécie de momeopatiasimbólica generalizada. Sua derrocada levará inexoravelmente a sociedade e o universoe volta ao caos pré-humano”. “O ouro canibal e a queda do céu...”, p. 255.27Davi Kopenawa, nascido em 1956, vive na aldeia yanomami de Watorik+, situadaao pé da serra do Demini (“serra do vento”), no estado do Amazonas. Seu grupo deorigem foi quase inteiramente aniquilado no alto rio Toototobi (perto da fronteiravenezuelana) por duas epidemias sucessivas a<strong>pós</strong> contatos estabelecidos com o Serviçode Proteção do Índio (SPI) e com a missão evangélica Novas Tribos do Brasil (NTB)(1959, gripe; 1967, sarampo). Criança, Davi Kopenawa perdeu, assim, a maior partedos membros de sua família. Em seguida sofreu, e depois rejeitou, o proselitismo dosmissionários da NTB, abandonando na adolescência sua região natal para trabalhar naFundação Nacional do Índio (Funai) como intérprete. No começo dos anos 80, fixouseem Waltorik+, ali se casando com a filhado líder da comunidade, pajé renomadoque o iniciou e, tradicionalista convicto, permanece seu mentor. Ele é hoje a um sótempo chefe do posto indígena Demini e um dos mais influentes pajés da sua aldeia. Ainvasão de suas terras por cerca de 30 a 40 mil garimpeiros custou a vida, entre 1987 e1990, de mais de mil e duzentos yanomami no Brasi. Chocado com essa tragédia quereavivou nele a lembrança das epidemias que dizimaram sua família nos anos 50 e 60,Davi Kopenawa engajou-se em um luta incansável contra a destruição de seu povo e dafloresta de sua terra. Graças a sua experiência com os brancos e à firmeza intelecutal quelhe confere o saber xamanístico, tornou-se o principal porta-voz da causa yanomami,no Brasil e no mundo. Visitou, ao longo dos anos 80 e 90, vários países da Europa e osEstados Unidos. Recebeu, depois de Chico Mendes, o prêmio Global 500 do Programadas Nações Unidas para o Meio Ambiente e, recentemente, a Ordem de Rio Branco aograu de cavaleiro. Http://www.proyanomami.org.br, acessado em 10/12/2007.28“Os xamãs podem por exemplo, `fazer descer´ como espíritos auxiliares (xapiripê) as`imagens´ (utupê) dos ancestrais animais (yaroripê) na cura de doenças epidêmicas”.ALBERT, Bruce. “O ouro canibal e a queda do céu - ...”, p. 255.182 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 182 12/4/2011 17:33:15


pelo demiurgo Omama, entidade que veio da terra e para ela retornou.Antes da existência humana os ancestrais animais se metamorfoseavamsem parar, tanto que “Omama pesca a filha do monstro aquático Teperesiki (àsvezes associado à sucuri) e casa com ela. Teperesiki decide ensinar-lhe o uso dasplantas cultivadas para que possa alimentar sua filha. Assustado com o barulhoque o sogro faz ao se aproximar da casa, Omama esconde-se, tomando a formade uma barra de ferro, metal (pooxiki) encontrado no chão da mata sob a formade `fragmento do céu caído nos primeiros tempos´. É com uma tal barra de ferroque mais tarde ele vai furar a terra para fazer jorrar água, criando, assim, a redehidrográfica que banha as terras yanomami” 29 .A partir daquela copulação nascem os yanomami, filhos do relacionamentode uma divindade terrestre com um ser aquático. E se não bastasse a origemintimamente ligada com a “mãe” água, o mesmo povo é premiado com umapleura de rios que escoam por todo o território yanomami, originados que forampelo emprego de um “fragmento celeste”, mais tarde enterrado por Omama“nas profundezas da terra, com exceção de algumas ferramentas que fez comele e deixou para os ancestrais yanomami. O metal que Omama enterrou é o`pai do minério´, `a ossatura da terra´, `os pés/raízes do céu´, um tipo de axismundi metálico. O ouro e a cassiterita são formas fracas desse `minério forte´.O verdadeiro `metal de Omama´, que os brancos procuram além dos minérios desuperfície, só é acessível aos napê wakaripê, os `brancos espíritos tatu-canastra´,ou seja, as companhias mineradoras” 30 .Percebe-se então, no limiar histórico do povo yanomami, que a suarelação com a natureza é visceral, interdependente ainda hoje com os elementosda terra, da água e do céu, conjugada com a clara consciência dos malefíciosadvindos da exploração garimpeira para o meio ambiente.No entendimento dos yanomami, o ouro é inofensivo “enquanto forconservado no frio das profundezas da terra”. Mas, ao extraí-lo, “os garimpeirosainda o queimam e o expõem ao sol em latas de metal. Esse aquecimento `mata´ oouro e o faz `exalar´ uma fumaça pestilenta que se propaga em todas as direções.Esse calor patogênico afeta não só os seres humanos, mas também a floresta,que vê seu `sopro´ esvair-se e seu `princípio de fertilidade´ fugir, tornando-seinabitável para seus donos, os espíritos xamânicos (que `possuem´ a floresta)” 31 .Numa tradução xamânica do “efeito estufa” e que restou profetizadapor Davi Kopenawa, a “fumaça-epidemia atinge `o mundo inteiro´... O vento29ALBERT, B. “O ouro canibal e a queda do céu -...”, p. 250.30Ibidem, p. 250.31Ibidem, p. 251.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 183livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 183 12/4/2011 17:33:15


leva-a até o céu. Quando chega lá, seu calor queima-o pouco a pouco e ele fura.O `mundo inteiro´ é então ferido como se estivesse queimado, como um sacoplástico derretendo no calor” 32 .Seria aquilo que os yanomami chamam de “doença do minério”, propagadapelo “espírito da epidemia” (Xawari) e que, nas palavras de Davi Kopenawa,“mata e come nossos filhos ... Ele tem fome de carne humana ... Mata as pessoase as come ... Moqueia-as como se fossem macacos. Só pára de matar depois quejuntou bastante vítimas. Então, mal acaba de comer toda essa gente, todas essascrianças, começa a atacar outras. É faminto de carne humana, não quer nem caçanem peixe, só gosta mesmo é da banha do yanomami” 33 .Considerando as deletérias conseqüências da queima do mercúrio pelosgarimpeiros na desenfreada busca do ouro e as doenças por eles disseminadasno seio das comunidades yanomami, não podemos deixar de concordar com osdiagnósticos xamânicos.Essa violência predatória, no discernimento de Davi Kopenawa, devese“em primeiro lugar, à ignorância dos brancos, à `escuridão confusa´ de seupensamento `plantado nas mercadorias´”. E arremata:32Ibidem, p. 252.33Ibidem, p. 253.34Ibidem, p. 248-249.Nós, yanomami, que somos xamã, sabemos. Vemos a floresta.Depois de tomar o poder alucinógeno de suas árvores,nós vemos. Fazemos os espíritos da floresta, os espíritosxamânicos, dançarem suas danças de apresentação. Vemoscom nossos olhos. Depois de `morrer´ sob o poder do alucinógeno,vemos a `imagem essencial´ da floresta. Vemos océu sobrenatural. Nossos ancestrais o viam antes e nós continuamosa vê-lo. Nós não estudamos e nem vamos à escola.Vocês, brancos, vocês mentem. Não conhecem as coisa.Vocês acham que as conhecem, mas só vêem os desenhosde sua escrita ... Somos nós que sabemos das coisa e queprotegemos a floresta. Somos amigos da floresta porquenossos espíritos xamânicos são os seus guardiães ... Sãoeles que nos fazem pensar direito e ficar lúcidos. Quandoestão perto de nós, fazem cresce nossa mente, fazem-na irlonge. Nosso pensamento não é fixado em outras palavras.É fixado na floresta, nos espíritos xamânicos ... Os brancosnão conhecem esses espíritos, nem a imagem do princípiode fertilidade da floresta. Eles acham que ela só existe à toa,por isso a destroem 34 .184 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 184 12/4/2011 17:33:15


Com espíritos alimentados pelo “suco” da floresta, os Xamãs tambéminvocam o princípio da “fertilidade” na atividade agrícola. Davi Kopenawa 35admite o desflorestamento, mas somente depois de cuidadosa pesquisa sobre aqualidade do solo e as reais necessidades alimentares da comunidade. Planta-sebanana, macaxeira, batata, cana, pupunha, mamão e outros gêneros na exatamedida do consumo estimado por determinado tempo, ficando rigorosamenteproibida a comercialização de qualquer produto para fora daquela sociedade.Atendidos esses requisitos, abre-se uma clareira de aproximadamente100 m2. que, a<strong>pós</strong> controlada queimada, destina-se ao roçado. Com a limpezado terreno, aproveitam-se também as árvores abatidas como lenha para o fogoda comida, sob a responsabilidade das mulheres. Sendo boa a colheita naquelaárea, repetem-se os plantios no decorrer de um período não superior a dois anos.Com o esgotamento do solo, abandona-se o local para a naturalrecomposição, partindo-se em busca de outro nas mesmas condições e foradas suas imediações, tudo no mais profundo respeito ao necessário período de“descanso”, que perdura entre dois e três anos. O aldeamento acompanha essamudança, o que faz dos yanomami literalmente um povo nômade “por natureza”.Esses deslocamentos também propiciam certo equilíbrio alimentar emrazão do consumo intercalado de carne de anta, queixada, macaco, catitu,mutum, cotia, paca, nhambu, jabuti e peixes; colhendo-se ainda da florestacastanha, ingá, cupuaçu, cacau, buriti, açaí e outras frutas típicas que abundamna região.Os yanomami conhecem o habitat dos diversos animais, que para elestambém formam “aldeias”. Assim, respeitam os limites territoriais de cadaespécie, bem como os períodos de procriação, sendo defeso o abate dos filhotes.Dentro de uma lógica de reprodução, observam que um determinadonúmero mínimo de espécies deve permanecer naquele espaço para, respeitadoesse limite, concluir que chegou o momento de empreender caçadas ou mesmose fixar em outros territórios, numa distância que não prejudique o repovoamentodos anteriores criadouros. Os cuidados se renovam na atividade extrativista,numa dinâmica de autêntico manejo e respeito ao natural ciclo da vida.Interessante observar que Davi Kopenawa desconhece e se recusa aoperar com a palavra “meio ambiente”, preferindo utilizar “floresta-natureza”35Os procedimentos que doravante serão narrados credita-se a Davi Kopenawa que gentilmenteatendeu este autor na sede da Hutukara (Associação Yanomami), em Boa Vista/RR., para conceder em 20 de novembro p.p. uma longa entrevista que se encontra gravadaem meio magnético.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 185livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 185 12/4/2011 17:33:15


como seu sinônimo. De fato, e como bem observado por Bruce Albert, “`meioambiente´ denota uma exterioridade e pressupõe, portanto, o ponto de vistade um sujeito-centro definidor: a sociedade-mercado industrial global”; modode pensar não concebido pelos yanomami que, como visto anteriormente, seconsideram filhos descendentes da terra e da criatura das águas.O nosso etnocentrismo conseguiu reduzir a natureza a um mero de<strong>pós</strong>itode recursos que imaginávamos inesgotável, sem qualquer possibilidade dereação, inerte e muda às demasiadas violações, “situada fora da sociedade e dacultura, uma `natureza morta´, submetida a vontade e a exploração humanas”.Mas para os yanomami, ao contrário, trata-se de “uma entidade viva,dotada de uma imagem espírito (urihinari), de um sopro vital (wixia) e deuma fertilidade própria (nê rope). Mais ainda, é animada por uma incessantee complexa dinâmica de trocas, conflitos e transformações entre todos os entesque a povoam, sujeitos humanos e não humanos, visíveis e invisíveis” 36 .Na visão yanomami, não há como apartar fisicamente o homem danatureza. São dois organismos vivos que dialogam permanentemente, unidos pormetamorfose desde os primórdios, cuja relação extrapolou o nível da alteridadepara se fixar na reverência à divindade “terra-floresta”.O povo yanomami não ousa se prostrar à “imagem e semelhança” da sua“mãe-natureza”. A terra, o céu e tudo que neles permeiam não lhes foi legadopara usufruto próprio, e nem os yanomami se consideram os protagonistas douniverso. Enxergam-se numa instância inferior e com o firme pro<strong>pós</strong>ito deproteger a sua matriz geracional, numa tarefa messiânica de subserviência aomeio ambiente.3. “CONSTITUCIONALIDADES YANOMAMI”Como alhures relatado, toda a vida social yanomami acabou sendoordenada por símbolos organizados dentro de um sistema (natureza), cujasreferências encontram-se em perfeita relação de interdependência, e ainda hojepresentes no comportamento coletivo daquela sociedade.36ALBERT, Bruce. Os yanomami e a terra-floresta. Terra indígenas & unidades de conservaçãoda natureza: o desafio das sobreposições. RICARDO, Fany (org.). São Paulo:ISA, 2004, p. 385.186 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 186 12/4/2011 17:33:15


Conseqüência disso é o reconhecimento de um “padrão culturalyanomami” 37 , implicante num complexo e estranho conjunto de elementosaparentemente incompreensíveis à civilização ocidental, mas que têm o méritode tornar aquele agrupamento de pessoas diferente do nosso.Por estar com o olhar fixo nas diferenças sociais latentes no âmbitonacional é que o constituinte originário de 1988 resolveu dar um novo rumoao Estado Brasileiro, prometendo - desde o preâmbulo da atual ConstituiçãoFederal – a construção de uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”em relação aos diversos grupos formadores da sociedade pátria, porquantoagora constituem patrimônio cultural brasileiro os bens materiais e imateriaisdefendidos pela etnia yanomami 38 .Na trilha desse direito cultural serodiamente outorgado, compete ao poderpúblico - com a colaboração da comunidade - garantir proteção por todos osmeios de acautelamento e preservação das formas de expressão, bem como dosmodos de criar, fazer e viver do povo yanomami 39 , uma vez que a Constituiçãolhes reconheceu organização social própria, costumes, línguas, crenças etradições diferenciadas 40 .E como visto anteriormente, falar da cultura yanomami sem contextualizálacom os elementos da natureza, seria descaracterizar toda a identificaçãooriginária da respectiva sociedade. Destarte, meio ambiente e culturainevitavelmente se imbricam não somente no caso yanomami, mas representamuma realidade de grande parte dos indígenas brasileiros e especialmentedefendida pelos Programas de Pós-Graduação da Pontifícia UniversidadeCatólica do Paraná, mormente na linha de pesquisa em Direito Socioambiental.Com efeito, e no sendeiro da indissociabilidade entre meios de subsistênciae natureza, certamente o povo yanomami tem sido um dos melhores operadoresdo que muito recentemente destacamos como “manejo ecológico” 41 , sendo que37Eunice Ribeiro Durham explica que “os padrões culturais são construções doinvestigador que explicitam uma lógica própria da conduta. Essa lógica não é, em si,consciente, mas sua produção (reprodução) depende de uma instrumental simbólico queé cristalizado nos mitos, nas regras explícitas, nas teorias que os homens constroempara explicar a natureza, a sociedade e seu próprio destino, e que podem ser concebidoscomo `objetos culturais´, produzidos socialmente”. A dinâmica da cultura: ensaios deantropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 261.38Essa é a mensagem do art. 216, caput, naquilo que interessa ao presente trabalho econsiderando uma interpretação sistêmica da nossa Constituição.39Art. 216, incisos I e II; c/c. § 1º do mesmo dispositivo, todos da CF/88.40Art. 231, caput, CF/88.41Expressão cunhada pelo art. 225, inciso I, CF/88, para autorizar a exploração dasespécies e dos ecossistemas, desde que dentro de uma lógica racional de sustentabilidade.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 187livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 187 12/4/2011 17:33:15


mesmo trabalhando com o fogo - e também cientes do perigo que representapara a mata – conseguem entabular uma produção agrícola dentro dos naturaislimites de suportabilidade da floresta.Os yanomami secularmente desenvolvem e cultivam técnicas de mínimaagressão ao meio ambiente para fins de suplemento alimentar, assim comocostumeiramente consomem recursos naturais (tanto vegetal quanto animal) naexata medida das suas necessidades, sem qualquer preocupação com o acúmulode bens ou estoques desmedidos de providência. Não existe entre eles a práticada mercancia alimentar por imperativo inclusive de norma social proibitiva, talo respeito imaculado que gruardam a pro<strong>pós</strong>ito dos recursos fornecidos pela“mãe-natureza”.O agir conforme com a dádiva nos remete à lembrança de que osyanomami tutelam a fauna e a flora não apenas visando a subsistência, masporque desempenham uma missão originária de bem proteger a “terrafloresta”,realizando assim com sucesso inquestionável os desígnios ambientaisestampados pelo constituinte brasileiro no art. 225, inciso III, CF/88.A “lei yanomami” reguladora das práticas que eventualmente coloquemem risco a função ecológica da floresta restou eficazmente passada de geraçãopara geração, numa saga de conscientização preservacionista de causar invejaaos parâmetros ocidentais de conduta e consumo, cuja cultura exige que aindase faça constar expressamente no corpo da Magna Carta a obrigatoriedade dese promover uma educação ambiental reabilitadora do nosso comportamentopredatório 42 .Passando em revista aos cuidados com a alteração e/ou supressão davegetação nativa, aliada ao efetivo respeito ao ciclo de reprodução e de vidadas outras espécies animais, é de se admitir que a Terra Indígena Yanomamise transformou de fato em autêntica unidade de conservação da natureza, nosexatos termos apregoados pelo art. 225, inciso III, CF/88.Inobstante excluídas da versão final da lei que aprovou o SistemaNacional de Unidades de Conservação 43 , “as terras indígenas possuem umenorme potencial para a conservação dos recursos naturais e suas populaçõestêm importante papel na manutenção da biodiversidade brasileira” 44 . Em vistadessa realidade, conclui Nurit Bensusan que “qualquer estratégia eficiente deconservar e usar de forma sustentável a biodiversidade do país deve considerálas”45 .42Art. 225, incio VI, CF/88.43Lei Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000.44BENSUSAN, Nurit. Terras indígenas: as primeiras unidades de conservação.Terra indígena & unidade de conservação da natureza: o desafio das sobreposições.RICARDO, Fany (org.). São Paulo: ISA, 2004, p. 67.45Op. cit., p. 67.188 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 188 12/4/2011 17:33:15


Neste aspecto a legislação nacional tem muito a evoluir, pois não se podenegar que nas terras indígenas – aí incluídos os esforços do povo yanomami– têm-se mantido os níveis mais baixos de desmatamento dentre aquelesconstatados na Amazônia Brasileira 46 .Entretanto, nem todos os costumes e crenças dos yanomami se subsumemao engate constitucional. E o mais relevante desses pontos de atrito talvezseja a possibilidade de lavra das riquezas minerais em terras indígenas, ateor da hipótese lobrigada no art. 231, § 3º, CF/88. Em que pese a falta de leiregulamentadora, a questão já vem sendo debatida por ativistas, acadêmicos elegisladores ordinários, uma vez que tramita nas comissões da Câmara Federalprojeto que intenta implementar aquele dispositivo constitucional 47 .Se num primeiro momento pode-se entender que o cânone do art. 231,§ 3º – desde que finalmente regulamentado – seja de imposição obrigatóriatambém ao território yanomami 48 , há quem o afaste justamente sob a pecha dainconstitucionalidade em razão de uma interpretação conforme, decorrente danecessária ponderação de direitos fundamentais em tensão.O tema realmente encerra divergências quando ora sabemos que aatividade garimpeira é culturalmente rechaçada pelos yanomami, muito menospela sua capacidade altamente poluidora do que pela ordem cosmológicanorteadora daquela comunidade.O embate futuro será inevitável, reforçado ainda pelo autorizativo do art.225, § 2º, CF/88, que admite a exploração dos recursos minerais, desde que se46André Villas-Boas registra um índice de 1,4%, a<strong>pós</strong> o cruzamento de dados do INPEcom o levantamento do ISA, cuja porcentagem restou calculada sobre a área de florestaefetivamente avaliada, desconsiderando as áreas de “não-floresta”, as com nuveme os corpos de água. “Gestão e manejo em terras indígenas”. Terra indígena & unidadede conservação da natureza: o desafio das sobreposições. RICARDO, Fany (org.). SãoPaulo: ISA, 2004, p. 119.47Trata-se de projeto de lei proposto inicialmente pelo Senador Romero Jucá (PMDB-RR) na Casa Alta do Parlamento que, a<strong>pós</strong> os trâmites de aprovação no Senado, seguiueste ano para revisão na Câmara Federal, sendo escolhido como relator da matérianaquela casa o Deputado Édio Lopes (PMDB-RR).48Essa corrente defende a tese de que o art. 231, § 3º, CF/88, determina que as comunidadesafetadas sejam apenas “ouvidas”, na condição de meros fornecedores de elementospara uma decisão soberana do Congresso Nacional. Não haveria naquela locuçãoqualquer requisito de procedibilidade ou poder de veto por parte dos indígenas, considerandoainda qua tanto a terra tradicionalmente ocupada por eles e os recursos mineraisexistentes no respectivo subsolo são bens da União (art. 20, inciso IX e XI, CF/88), enão das comunidades diretamente atingidas pelo dano ambiental.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 189livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 189 12/4/2011 17:33:15


ecupere o meio ambiente degradado; se produzindo por outro lado notícias deprotesto do povo yanomami contra qualquer tentativa de exploração mineral emsuas terras 49 .A solução para a iminente controvérsia é ainda incerta, mas seria de bomalvitre as nossas autoridades prestarem mais atenção aos encaminhamentosdados por aquela sábia sociedade quando o tema for meio ambiente, pois detudo que até agora nos foi revelado é seguro finalizar com a seguinte conclusão:Comparativamente aos nossos hábitos, o povo yanomami é quem melhorrealiza o princípio fundamental do meio ambiente ecologicamente equilibrado 50 ,conferindo também à Floresta Amazônica um respeito muito maior do q<strong>uea</strong>quele por nós dispensado, justamente o dito “povo civilizado” e que achou porbem categorizá-la como “patrimônio nacional” 51 .Ou seja, quem cumpre com mais eficiência e tenacidade os comandosconstitucionais informadores do meio ambiente não são os autores formais daConstituição, mas um povo que ficou esquecido nos confins da Amazônia eque ressurge com a missão de nos fazer repensar a nossa desgastada relaçãocom a “mãe-natureza” que, aliás, não está “morta”; ao inverso, acha-se muitoviva e dando sinais de profundo descontentamento com as irresponsabilidadeshumanas.CONCLUSÃOEm arremate, retomamos a idéia inicial de que os índios não são“ecologistas naturais”, estando as suas terra tão vulneráveis quanto as demaisáreas protegidas, essas “quase todas ocupadas ou invadidas por populaçõescom menos tradição de manejo brando dos recursos naturais e conhecimentosacumulados sobre seus ecossistemas” 52 .Contudo, e no caso dos yanomami, a cultura da conservação decorreantes de uma cosmologia de equilíbrio com a natureza do que ligada ao desejo49Conforme nota expedida pela Comissão Pró-Yanomami (CCPY) em fevereiro de2001, e publicada às fls. 360 do catálogo Povos indígenas no Brasil: 2001-2005, editadopelo ISA em 2006.50Art. 225, caput, CF/88.51Art. 225, § 4º, CF/88.52RICARDO, B. Povos indígenas e desenvolvimento sustentável. Terra indígena &unidade de conservação: o desafio das sobreposições. RICARO, Fany. São Paulo: ISA,2004, p. 125.190 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 190 12/4/2011 17:33:15


de manter um estoque de produtos naturais, tudo articulado com práticasancestrais tendentes à proteção da “terra-floresta” que, em última instância, sedestaca como a matriz genealógica daquele povo na medida em que forneceu oselementos necessários a um complexo processo de metamorfose.Em que pese todos os esforços para se manter o equilíbrio da floresta,tivemos a oportunidade de ver que a interação dos yanomami com o meioambiente não é tão natural assim, destruindo-se completamente o “mito danatureza intocada”. Como pontualmente observou Nurit Bensusan, “a naturezaselvagem e intocada não existiria à parte da humanidade, mas, ao contrário, essa`natureza´ seria uma criação humana” 53 .A partir desse ponto de vista, e com o comportamento yanomami postopara análise, é possível se sustentar uma ruptura no paradigma ecológico quandose fizer “uma revisão pormenorizada das evidências de que as sociedadesamazônicas enriquecem os recursos naturais, sejam eles rios, solos, animais oudiversidade botânica” 54 .Grupos indígenas, como o eleito para o nosso estudo, “e mesmo algunsgrupos migrantes como os seringueiros de fato protegem e talvez tenham atéenriquecido a biodiversidade nas florestas neotropicais. As florestas amazônicasão dominadas por espécies que controlam o acesso à luz solar. Gruposhumanos, ao abrirem pequenas clareiras na floresta, criam oportunidades paraque espécies oprimidas tenham uma janela de acesso à luz solar – como quandocai uma grande árvore” 55 .Não se pode olvidar que “a biodiversidade de uma área seria, pois, oproduto da história da interação entre o uso humano e o ambiente”. É por isso que“as possibilidades de integração das populações humanas no manejo das áreasprotegidas começaram a ser consideradas e sua importância reconhecida” 56 .Voltando ao texto constitucional para pelo menos justificar formalmenteo discurso, se dessume que a intenção incrustada em todo o título VIII, capítuloVI, não foi alijar o homem da natureza e nem mesmo torná-la intacta, mas simautorizar a sua exploração dentro de limites criteriosos de sustentabilidade. Enisso, os yanomami são mestres. Estamos dispostos com eles aprender ?53Op. cit., p. 67.54Afirmação de Manuela Carneiro da Cunha e de Mauro W. B. Almeida a<strong>pós</strong> contatocom os estudos de W. Balée. “Populações tradicionais e conservação ambiental”. Biodiversidadena Amazônia Brasileira. VERÍSSIMO, A.; at alii. São Paulo: ISA; EstaçãoLiberdade, 2001, p. 188.55CUNHA, M. C. O; ALMEIDA, M. W. B.. Op. cit., p. 188.56BENSUSAN, N. Op. cit., p. 67.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 191livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 191 12/4/2011 17:33:15


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194 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 194 12/4/2011 17:33:16


A EFETIVIDADE PROCESSUAL DA AÇÃO CIVILPÚBLICA NA GARANTIA DE PREVALÊNCIA DOSDIREITOS TRANSISNDIVIDUAIS EM FACE DOSDANOS AO MEIO AMBIENTEAntônio Ferreira do Norte Filho*Serguei Aily Franco de Camargo **Sumário: introdução; 1. A ação civil pública como instrumento protetivo domeio ambiente – conceitos e antecedentes históricos; 2. A ação civil pública e odano ambiental; 3. Legitimidade ativa e passiva da ação civil pública ambiental;4. A competência jurisdicional na ação civil pública ambiental; Conclusão;Referências.Resumo: A ação civil pública nocontexto do meio ambiente, podeser considerada como exemplo deevolução do sistema jurídico brasileiro,representando significativo mecanismojurídico específico na tutela coletiva dobem ambiental. O objeto ensejador dopresente trabalho se constitui de relevânciano âmbito social, sobretudo, por ser asociedade a principal destinatária dodireito constitucional a um meio ambienteecologicamente equilibrado, de modo a lhepropiciar melhoria na qualidade de vida e,conseqüentemente, condições dignas nasua existência. Dentre os diversos meiosde proteção, visando a preservação e aconservação do meio ambiente, está aação civil pública, enquanto adequadoAbstract: Class actions in the contextof the environment can be considered asan example of evolution of the Brazilianlegal system, representing a significantmechanism in the specific legal protectionof collective environmental good. Theobject occasion of the present work is ofrelevance in the social sphere, but ratheras the company's main recipient of theconstitutional right to an ecologicallybalanced environment in order to give itbetter quality of life and, consequently,the decent existence. Among the variousmeans of protection in the preservationand conservation of the environment, isthe class actions, as appropriate proceduraltool in the prevention or prosecution ofenvironmental damage. It is hoped that this* Mestrando do Programa de Pós-<strong>graduação</strong> em Direito Ambiental da Universidade doEstado do Amazonas – UEA.** Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental daUniversidade do Estado do Amazonas e do Departamento de Direito da Uninilton Lins.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 195livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 195 12/4/2011 17:33:16


instrumento processual na prevenção ourepressão de danos ambientais. Espera-secom esta pesquisa contribuir para o maiorconhecimento da aplicação da ação civilpública no campo do Direito Ambiental,proporcionando o aprimoramento jurídicocultural,sob todos os aspectos cognitivos,da sociedade, dos organismos públicos eprivados, das autoridades governamentaise dos operadores do direito. Portanto,objetiva-se a análise do respectivo institutoe da sua aplicação na esfera ambiental,a partir de uma visão prática e efetivaque permita despertar a consciênciaambiental perante a responsabilidadepela degradação ao meio ambiente, bemcomo as conseqüências legais positivas enegativas decorrentes de sua utilização,garantindo-se assim, a prevalência dosdireitos transindividuais relativos ao meioambiente.Palavras-chave: Ação Civil Pública;Meio Ambiente; Dano Ambiental.research contribute to better understandingof the implementation of class actions inthe field of environmental law, providinglegal and cultural improvement, in all thecognitive aspects of society, the publicand private organizations, governmentagencies and law enforcement officers.Therefore, the objective is the analysisof their institute and its application in theenvironmental sphere, from a practicaland effective enabling raise awarenesstowards environmental responsibility forthe degradation of the environment and thelegal consequences arising from positiveand negative of its use, thereby ensuringthat the prevalence of trans-individualrights relating to the environment.Keywords: Class Actions; Environment;Environmental Damage.INTRODUÇÃOA defesa do meio ambiente e a proteção dos recursos naturais encontramgarantias tutelares na legislação brasileira, a qual prevê diversos instrumentoscapazes de auxiliar e aparelhar a atuação de legitimados nessa nobre tarefa,sobretudo no que concerne à defesa dos interesses difusos , assim denominadosem razão da titularidade conferida a um número indeterminado de pessoasligadas por circunstâncias fáticas. A ação civil pública, objeto deste estudo,constitui um desses instrumentos de grande importância no resguardo do bemambiental.É patente o entendimento legal de que a ação civil pública se destina àdefesa de diversos interesses metaindividuais, entre os quais se insere com196 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 196 12/4/2011 17:33:16


elevância a tutela ao meio ambiente e ao bem ambiental.O objetivo do presente trabalho é realizar um estudo da ação civil públicaenquanto instrumento eficaz no âmbito de proteção do meio ambiente, visandoà prevenção e reparação de riscos e danos ambientais.Primeiramente será apresentado o conceito e precedentes históricos daação civil pública e neste diapasão será realizada breve explanação acerca dosconceitos de meio ambiente, bem ambiental, risco e dano ambiental, para acompreensão de como a ação civil pública se insere nesse contexto e se revesteem instrumento de defesa de tão importante direito difuso.Na seqüência, será realizada uma análise dos aspectos técnicoprocessuaisda ação civil pública especificamente aplicada à proteção do meioambiente, abrangendo a legitimidade ativa e passiva, bem como a competênciajurisdicional.O trabalho será baseado em pesquisa bibliográfica e ao longo de todoo estudo serão apresentados os entendimentos dos diversos doutrinadoresespecializados na matéria, seguindo-se a necessária reflexão acerca do tema.Pretende-se analisar a aplicação efetiva da ação civil pública comoinstrumento protetivo dos direitos metaindividuais no campo do DireitoAmbiental.1. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INSTRUMENTO PROTETIVO DO MEIOAMBIENTE – CONCEITOS E ANTECEDENTES HISTÓRICOSA ação civil pública consiste numa ação judicial sujeita ao preenchimentodos pressupostos e requisitos estabelecidos no ordenamento processual vigente.As suas finalidades se consolidam na obrigação de fazer, na obrigação de nãofazer e/ou na condenação em dinheiro. O seu objeto é a proteção dos interessesdifusos, coletivos e individuais homogêneos, sendo que o meio ambienteencontra-se no âmbito dos interesses difusos.Segundo Paulo Affonso Leme Machado:A ação civil pública foi elaborada pela Lei 7.347, de24.7.1985. A ação judicial é denominada “civil” porquetramita perante um juízo civil e não criminal. Acentue-seque no Brasil não existem tribunais administrativos. A açãotambém é chamada “pública” porque defende bens quecompõem o patrimônio social e público, assim como os interessesdifusos e coletivos, como se vê no art. 129, III, daCF/88.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 197livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 197 12/4/2011 17:33:16


Para a compreensão preliminar da ação civil pública enquanto relevanteinstituto protetivo do meio ambiente torna-se necessário o retorno às sendas dahistória jurídica brasileira. Verifica-se que, em termos de defesa dos interessesmetaindividuais, o Brasil, já na década de 60, dispunha da ação popular comoreferencial. Entretanto, mesmo que revolucionária no âmbito do ordenamentojurídico, sendo considerada um avanço para a época, e até para a atualidade,este instituto, no campo instrumental, se mostrou insuficiente para a tutela dosdireitos difusos, visto legitimar o cidadão no campo ativo de sua propositura,bem como comportar o seu cabimento somente contra anulação de atos lesivospraticados pelo Poder Público.Logo, em obediência ao Art. 6º do Código de Processo Civil , no queconcerne à regra de legitimidade extraordinária, inútil seria a busca de açãocondenatória de ressarcimento ou de prevenção de dano aos bens e direitos deuso comum do povo acometidos de violação, posto não ser o cidadão partelegítima na busca de um direito que transcende a sua pessoa.Na década de 70, mais especificamente, inspirados em movimentos declamor internacional, os doutrinadores brasileiros se mobilizaram nos debatesvoltados à tutela jurisdicional dos interesses difusos e coletivos o que inicialmenteredundou na edição da Lei de Política Nacional do meio Ambiente, a qualvislumbrava no seu Art. <strong>14</strong>, § 1º, a possibilidade de o Ministério Público ajuizaração civil de reparação de danos causados ao meio ambiente, porém, parandopor aí, ressentindo-se o Ministério Público da falta de regras específicas paratramitação processual pertinente à responsabilidade civil por danos ambientais.Sob o ponto de vista da defesa do meio ambiente enquanto direito materiala ser tutelado, a lei representou um marco definitivo na ciência ambiental, que atéentão se encontrava fragmentada e sem um tratamento digno da importância queo tema merecia. Contudo, faltava a edição de lei que dispusesse especificamenteda ação civil pública.Na busca de solução para essa lacuna, por ocasião do 1º CongressoNacional de Direito Processual, foi elaborado um anteprojeto de lei para a tutelajurisdicional dos interesses difusos no Brasil por iniciativa de Ada PellegriniGrinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz deOliveira Júnior. O projeto foi apresentado no Congresso Nacional pelo DeputadoFlávio Bierrembach, porém não chegou a ser votado nas Casas Legislativas.Na mesma época os Promotores de Justiça de São Paulo AntônioAugusto Mello de Camargo Ferraz, Édis Milaré e Nelson Nery Júnior, duranteo XI Seminário Jurídico de Grupos de Estudos, discutiram o primeiro projeto(Bierrembach) e apresentaram um novo anteprojeto que foi apresentadodiretamente ao Ministério da Justiça e encampado pela Presidência da República,198 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 198 12/4/2011 17:33:16


convertendo-se no Projeto de Lei que deu origem à Lei nº 7.347 de 24 de julhode 1985.A referida Lei, como menciona Édis Milaré, incorporou definitivamentea terminologia no ordenamento jurídico brasileiro, estabelecendo a ação civilpública como instrumento de defesa de alguns interesses transindividuais, entreos quais o meio ambiente. E o instituto foi consagrado na ordem constitucionalpor ocasião da Carta Magna de 1988.No ordenamento jurídico pátrio, a ação civil pública pode ser conceituadacomo o exercício do direito à jurisdição com titularidade legalmente determinadaao Ministério Público, à Defensoria Pública e à entidade ou pessoa jurídicaprevista em lei, com a finalidade de preservar o patrimônio público ou social,o meio ambiente, os direitos do consumidor e o patrimônio cultural, a ordemeconômica e a economia popular, ou de definir a responsabilização por danosque lhes tenham sido causados, isto é, consiste no instrumento processualadequado para reprimir ou impedir tais danos.Luiz Álvaro Valery Mirra, ao tratar do assunto, pontua:No direito brasileiro, a<strong>pós</strong> a verificação de insuficiência dosinstitutos tradicionais da ação e do processo civil clássicospara a tutela dos denominados interesses ou direitos difusos– entre os quais se inclui o direito ao meio ambienteecologicamente equilibrado –, optou-se pela criação, porvia legislativa, de um instrumento processual específico – adenominada ação civil pública da Lei nº 7.347/85 – quetrouxe uma série de inovações às concepções tradicionaisaté então prevalecentes. Essa nova regulamentação da garantiaconstitucional da ação inscreve-se no movimentomundial de acesso à justiça, por meio do qual se busca tornarmais efetivos os mais diversos direitos – individuais ecoletivos – formalmente reconhecidos.Na atualidade, a busca da função jurisdicional, no que concerne àproteção do interesse coletivo, no campo do Direito Ambiental, se traduz noinstrumento da ação civil pública, uma vez que o meio ambiente constitui umbem pertencente ao grupo dos interesses transindividuais, sendo de uso comumde todos, conforme os ditames constitucionais do artigo 225.Consoante Paulo Alvarenga:Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 199Hoje, no Brasil, como grande mecanismo de defesa judicialdo meio ambiente, dentre outros interesses difusos ou coletivos,aparece sublimada a ação civil pública que é o dilivrohileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 199 12/4/2011 17:33:16


eito de se invocar a função jurisdicional na esfera civil, emnome do interesse público. É denominada pública porquetem sempre por objeto a tutela do interesse público, difuso,impessoal, meta, supra ou transindividual, e dentro dessacategoria de interesses difusos é que é incluído o meio ambiente,o que é dado claramente extrair do disposto no art.225 da Constituição Federal, no que se lê que todos têmdireito ao meio ambiente, bem de uso comum do povo.Entretanto, para se compreender a importância da ação civil públicana defesa do meio ambiente é importante antes de tudo, compreender qual,no ordenamento jurídico pátrio, o conceito de meio ambiente enquanto bemambiental.De acordo com o que preceitua a Constituição Federal de 1988, o meioambiente se traduz em bem de uso comum do povo, podendo ser desfrutado portoda e qualquer pessoa no âmbito da legalidade constitucional, sendo, portanto,essencial à qualidade de vida.José Afonso da Silva em sua concepção ressalta:A qualidade do meio ambiente transforma-se, assim, numbem ou patrimônio, cuja preservação, recuperação ou revitalizaçãose tornaram um imperativo do poder público, paraassegurar uma boa qualidade de vida, que implica em boascondições de trabalho, lazer, educação, saúde, segurança –enfim, boas condições de bem-estar do Homem e de seudesenvolvimento.O conceito de bem ambiental comporta uma amplitude que vai além deseus elementos formadores, tais como ar, água e terra, devendo ser definido comoo conjunto das condições de existência humana de modo a integrar e influenciaros homens, sua saúde e seu desenvolvimento. Logo, os seres humanos integramo ambiente, bem como o conceito e a proteção do meio ambiente só podem serviabilizados a partir do desenvolvimento da relação ser humano-natureza.O bem ambiental então, não pode ser considerado bem público ou privado,posto que, no campo constitucional, a todos cabe a titularidade do seu direito,não se concebendo individualmente, mas sob o aspecto da coletividade depessoas indefinidas, indeterminadas no exercício desse direito transindividual.Consistindo assim, no meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendocompreendido pelo patrimônio, conjunto de objetos materiais e imateriais,indispensáveis à construção orgânica do ambiente juridicamente protegido.200 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 200 12/4/2011 17:33:16


Nesse contexto, surge o instituto da ação civil pública na condição deinstrumento processual à disposição da coletividade para proposição de defesado bem ambiental.2. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E O DANO AMBIENTALCom a compreensão do conceito jurídico de meio ambiente e bemambiental, passa-se, por inferência, a verificar o que vem a ser dano ambientale como sua ocorrência enseja a possibilidade de tutela por meio da ação civilpública.Na opinião de MILARÉ dano ambiental é a lesão aos recursos ambientais,com conseqüente degradação – alteração adversa ou in pejus - do equilíbrioecológico e da qualidade de vida.Tendo em vista que a Política Nacional do Meio Ambiente não defineexpressamente dano ambiental, José Rubens Morato Leite afirma que:O dano ambiental, por sua vez, constitui uma expressãoambivalente, que designa, certas vezes, alterações nocivasao meio ambiente e outras, ainda, os efeitos que tal alteraçãoprovoca na saúde das pessoas e em seus interesses. Danoambiental significa, em uma primeira acepção, umaalteração indesejável ao conjunto de elementos chamadosmeio ambiente, como por exemplo, a poluição atmosférica;seria, assim, a lesão ao direito fundamental que todostêm de gozar e aproveitar do meio ambiente apropriado.Contudo, em sua segunda acepção, dano ambiental englobaos efeitos que esta modificação gera na saúde das pessoas eem seus interesses.Para Michel Prieur, o dano ambiental consiste no prejuízo sofrido pelomeio natural nos seus elementos não apropriados e inapropriáveis e que afeta oequilíbrio ecológico enquanto patrimônio coletivo.Por outro lado, a Política Nacional do Meio Ambiente apesar de nãodefinir expressamente dano ambiental, estabelece a responsabilidade objetiva,isto é, a responsabilização independente da comprovação de culpa do agente,sendo necessária a existência efetiva do prejuízo ao meio ambiente e o nexocausal, fundada na simples atividade implicadora de risco.O processo produtivo e as atividades dele decorrentes sempre irá produzirexternalidades negativas, representadas pelas conseqüências indesejáveis daHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 201livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 201 12/4/2011 17:33:16


atividade que são suportadas pela coletividade, ao contrário do lucro que éauferido unicamente pelo produtor.Assim, faz-se necessária a internalização dessas conseqüências e nessecontexto, para que haja a responsabilidade do causador, bastando existir o danoe o nexo causal, isto é, a relação de causa e efeito entre a atividade e o resultadodanoso.Portanto, aquele que obtém o lucro e causa dano ambiental por suaatividade, responderá pelos riscos ou pela desvantagem dela resultante, por viada ação civil pública ambiental.3. LEGITIMIDADE ATIVA E PASSIVA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICAAMBIENTALA Lei nº 7.347/85 abrange significativo rol de legitimados ativos que,além do Ministério Público, inclui ainda as Associações Civis regularmenteconstituídas há mais de um ano e inclua entre as suas finalidades dentre outras,a proteção do Meio Ambiente; Entes da Administração Pública direta e indiretanas três esferas e mais recentemente, a Defensoria Pública.Na opinião de Alvarenga:Trata-se de legitimidade concorrente e disjuntiva, uma vezque cada uma das referidas entidades poderá, isoladamenteajuizar a ação civil pública, prescindindo-se da anuênciados demais co-legitimados, entre os quais é admitido o litisconsórcioativo.É de se ressaltar que a propositura da ação civil pública não pode ocorrerpor via de particular, devendo este, ao ser atingido no seu direito, buscar, noâmbito do sistema processual brasileiro, outro instituto de previsão constitucionaldenominado ação popular, que tem por objetivo a coibição dos atos lesivosao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidadeadministrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.Não obstante as suas atribuições previstas constitucionalmente, oMinistério Público representa um marco importante, dada a sua atuaçãosignificativa na titularidade na propositura da ação civil pública.Machado entende que:A ação civil pública consagrou uma instituição – o MinistérioPúblico – valorizando seu papel de autor em prol dos202 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 202 12/4/2011 17:33:16


interesses difusos e coletivos. O Ministério Público saiu doexclusivismo das funções de autor e da tarefa de fiscal dalei no terreno cível, para nesta esfera passar a exercer misterde magnitude social.De acordo com o Art. 129, §1°, CF, o Ministério Público, a União,Estados, Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades deeconomia mista, associações e Defensoria Pública, têm legitimidade par propora ação civil pública. Portanto, pode-se dizer que esta legitimidade é concorrente,tendo em vista que todos os relacionados pela legislação podem interpor a ação,em separado ou de forma conjunta.A lei vislumbra a possibilidade de litisconsórcio no pólo ativo, entreos Ministérios Públicos Federal, do Distrito Federal e dos Estados. Apesarda previsão legal, em sentido divergente quanto à constitucionalidade dolitisconsórcio entre o parquet das esferas federal e estadual para a propositurade ação civil pública, conforme assevera Paulo de Bessa Antunes:A possibilidade de litisconsórcio ativo entre os MinistérioPúblico Federal e dos Estados-membros, em nossa opiniãoé, evidentemente, inconstitucional, perante o Art. 127, § 1º,da Lei Fundamental. Assim é porque, se o MP é uno e indivisívelnão pode dividir-se em duas entidades autônomase que se unem em determinados momentos para a propositurade uma demanda judicial. A cooperação e integraçãoentre os diversos segmentos do MP são absolutamente desejáveis.Entretanto, a sua realização deve ser administrativae não judicial.O Art. 5º, § 2º da Lei de ação civil pública preceitua que o MinistérioPúblico deverá atuar obrigatoriamente como custos legis, caso não intervenhacomo parte no processo.Por força da Lei nº 11.448/2007, a Defensoria Pública foi incluída nalista de legitimados ativos para o ajuizamento da ação civil pública. Essaalteração se reveste de extrema importância em virtude do relevante papelexercido pela Defensoria Pública na defesa da sociedade, especialmente, dasclasses hipossuficientes, sendo certa que a atuação deste novel legitimado trarábenefícios significativos na defesa do meio ambiente.Também são legitimadas a administração pública direta na esfera federal,estadual e municipal e ainda a administração indireta, representada pelasautarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e as fundações,contudo, a prática demonstra que a atuação desses legitimados é inexpressiva noHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 203livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 203 12/4/2011 17:33:16


contexto jurisdicional, principalmente pelo fato do Poder Público figurar comcerta freqüência no pólo passivo das ações civis públicas.As associações também são elencadas no rol de legitimados ativos desdeque preencham os requisitos, quais sejam, a constituição há pelo menos um anoe inclusão dentre suas finalidades institucionais da proteção do interesse quepretenda tutelar, isto é, no caso em estudo, o meio ambiente.O sujeito passivo da ação civil pública – aquele passível de sercivilmente processado – pode ser qualquer pessoa física ou jurídica, inclusiveo Poder Público, sem a exigência legal de determinada condição, a não ser aresponsabilidade pelo dano causado ao bem ambiental.4. A COMPETÊNCIA JURISDICIONAL NA AÇÃO CIVIL PÚBLICAAMBIENTALEm razão de força normativa constitucional e infraconstitucional, opoder do Estado de dizer o direito, no que concerne ao seu exercício, contempladistribuição dentre os órgãos jurisdicionais, os quais exercem essa jurisdição noâmbito de limites legalmente determinados, afetos a uma escala de litígios. Taldistribuição desse exercício jurisdicional é denominada competência.A competência, então, consiste na divisão dessa jurisdição dentre váriosjuízes, sendo competente aquele que legalmente pode julgar a causa.A Lei de Ação Civil Pública estabelece que as ações deverão ser propostasno foro do local onde ocorreu o dano, cujo juízo terá competência funcional paraprocessar e julgar a causa.Entretanto, o referido dispositivo se refere à competência de foro e nãoà competência de jurisdição, sendo que esta vai ser definida segundo critériosestabelecidos na Constituição Federal. Nesse sentindo, o artigo 109 da CF/88prevê as causas de competência da justiça federal, tendo especial relevância, noque se refere à ação civil pública ambiental, o inciso I do referido Artigo ao fixara competência dos juízes federais para julgar as causas em que a União, entidadeautárquica ou empresa pública federal tiverem interesse, sendo todas as demaiscausas da competência residual da justiça estadual.No entanto, o interesse da União deve ser claro e qualificado, não podendoser vago ou indeterminado, como é o caso de danos ambientais ocorridos noslimites territoriais de bens de dominialidade da União, o que não caracterizanecessariamente o interesse da União.Assim, Mirra preceitua:204 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 204 12/4/2011 17:33:16


A orientação que vem prevalecendo sobre o assunto é a deque não é qualquer interesse que autoriza ou impõe o ingressodesses entes no processo, mas em um “efetivo interessejurídico”. Não basta, dessa maneira, simples interesseda União e das autarquias ou empresas públicas federaisem acompanhar a demanda, com intervenção meramenteformal, impondo-se, ao contrário, que assumam posiçãoprocessual definida, como autoras, rés, assistentes ou opoentes.Ademais, a Constituição Federal de 1988, determina que sejamprocessadas e julgadas na justiça estadual, no foro de domicílio dos seguradosou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência sociale segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, severificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam tambémprocessadas e julgadas pela justiça estadual.Estabelecida a divisão de competência jurisdicional, torna-se necessáriocompreender como se dá a divisão em relação à competência de foro.Assim, de acordo com o Art. 2º da Lei nº 7.347/85 em conjunto com oArt. 93, I do Código de Defesa do Consumidor, se o dano ocorrer nos limitesde uma única comarca ou seção judiciária, será competente o juiz do foro dolocal da respectiva ocorrência. Se ultrapassar os limites territoriais de mais deuma comarca ou seção judiciária ou afetar diretamente no todo ou em parte oterritório de dois ou mais Estados da Federação, conforme o Art. 2º, parágrafoúnico da Lei nº 7.347/85 combinada com o Art. 1º, IV da Resolução nº 237/97do CONAMA, será competente qualquer um dos foros afetados, observadoo critério da prevenção, devendo considerar-se prevento o juiz que primeirodeterminou a citação válida, posto não tratar-se de competência de juízo e simde foro. Por último, para os danos que afetem todo o território nacional, serácompetente o foro do Distrito Federal, pelos preceitos do Art. 93, II do CDC.Portanto, apesar de complexo, é possível se verificar que o sistema, combase no principio do interesse coletivo, tende a buscar o juízo do local ondese deu o dano, tanto pela sua proximidade quanto pela facilidade de obtençãodas provas, o que ocasionará significativa qualidade nas demandas judiciais demodalidade ambiental e conseqüentemente, na prestação jurisdicional.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 205livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 205 12/4/2011 17:33:16


CONCLUSÃOÀ luz da análise do presente trabalho, levando-se em consideração osaspectos históricos e legais, no que tange à ação civil pública em matériaambiental, chega-se à conclusão que este instrumento processual de resguardodo meio ambiente, previsto no Art. 129, III da Carta Política e no Art. 1º, I, daLei nº 7.437/85, nos últimos anos, proporcionou significativas transformaçõesno ordenamento jurídico brasileiro.A Constituição Federal de 1988 consagrou no seu Art. 225, a tutela domeio ambiente enquanto garantia constitucional, classificando-o como bemde uso comum do povo, podendo ser desfrutado por toda e qualquer pessoano âmbito da legalidade constitucional, sendo, portanto, essencial à sadiaqualidade de vida. E para tanto, objetivando assegurar tal garantia, a CartaMagna recepcionou o instituto da Ação Civil Pública, regulamentado pela daLei nº 7.347/85, consistindo em importante mecanismo jurídico específico natutela coletiva do bem ambiental com finalidade do cumprimento de obrigaçãode fazer, não-fazer e/ou condenação pecuniária.A ação civil pública ambiental consiste no mais pertinente mecanismoprocessual voltado à prevenção ou a repressão dos danos que possam vir a sercausados ou tenham sido causados ao meio ambiente. O grande desafio, afetoà questão posta, consiste em garantir a sua efetiva utilização, buscando-se oaperfeiçoamento pela constância de sua propositura nas sendas do cumprimentodos objetivos a que se propõe, ou seja, a proteção o meio ambiente de modo agarantir a existência digna das gerações presentes e vindouras.206 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 206 12/4/2011 17:33:16


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estabelece critérios para o exercício da sua competência, conforme estabelecidona Política Nacional de Meio Ambiente. Brasília: MMA/CONAMA. [s. ed.],1997._____. Superior Tribunal de Justiça.Processo Civil. Ação Civil Pública. REsp.31150/SP. 2ª T. “Obras Hospitalares de São Lázaro e Sociedade Amigos de SetePraias”. Relator Ministro Ari Pargendler, 20 de maio de 1996. In: Revista deDireito Ambiental São Paulo, n. 17.FIORILLO, C. A. P. Curso de direito ambiental brasileiro. 5. ed. São Paulo:Saraiva, 2004.LEITE, J. R. M. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.LEITE, J. R. M.; AYALA, P. A. Direito ambiental na sociedade do risco. 2. ed.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.MACHADO, P. A. L. Direito ambiental brasileiro. <strong>14</strong>. ed. São Paulo: Malheiros,2006.MILARÉ, É. “A ação civil pública por dano ao meio ambiente”. In: MILARÉ,Édis. (org.). Ação Civil Pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos. São Paulo: Revistados Tribunais, 2002.MIRRA, Á. L. V. “Ação civil pública em defesa do meio ambiente: A questão dacompetência jurisdicional”. In: Ação Civil Pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos.MILARÉ, Édis. (org.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.MIRRA, Á. L. V. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente.2. ed. atual. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.PRIEUR, M. Droit de l’Environnement. 2 ed. Paris: Dallloz, 1991.SILVA, J. A. Direito ambiental constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros,2004.Artigo recebido em: abril /2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.208 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 208 12/4/2011 17:33:16


DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO,TRIBUTAÇÃO E INDUÇÃO AMBIENTALRaymundo Juliano Feitosa*Alexandre Henrique Salema Ferreira**Sumário: Introdução; 1. Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômico; 1.1 Estado eMeio Ambiente; 2 Tributação e Indução Ambiental; 2.1 A natureza indutora das normastributárias; 2.2 A tributação com finalidade de indução ambiental; 3 Análise Econômicado Direito e Tributação Ambiental; 3.1 O tributo como custo de transação; 3.2 A tributaçãocom finalidades ambientais; Conclusões; Referências Bibliográficas.Resumo: A busca pelo desenvolvimentoeconômico, como um fim em si mesmo,tem se mostrado trágico. De um lado, temresultado em severa degradação ambiental;por outro, a concentração de riquezasimpede o desenvolvimento social. Estarealidade pode ser constada a partir dosresultados ecossocioeconômicos advindosdo modelo desenvolvimentista do<strong>pós</strong>-guerra. Mas, como compatibilizaratividade produtiva e interesses coletivos?A resposta não passa pelo desprezo aocrescimento econômico, mas pela funçãointerventora do Estado, a fim de inibir ouremediar questões como a degradação ambientale a pobreza. O tema é bastante amplo,por isso o necessário recorte de formaa delimitar o objeto do presente trabalhoà tributação como instrumento intervençãoestatal destinada à indução de condutasambientais.Palavras-chave: Intervenção estatal. Tributação.Indução ambiental.Abstract: Searching for the economicdevelopment without considering otherpurposes has become tragic. On the onehand, it has resulted in severe environmentaldegradation; on the other hand,wealth concentration just impairs the socialdevelopment. Such a reality may benoticed through ecosocio-economic resultsfrom the post-war´s developmentalpattern. However, how can we match upproductive activity with general interests?The answer does not necessarily concernthe lack of interest for economic growth,but the mediating function of the State toprevent or solve issues like environmentaldegradation and poverty. As this is a reallybroad theme, it needs to be narrowed downso that we can delimit the objective of thepresent concerning taxation as the State´sintervention tool designed to induce environmentalpractices.Key-words: State´s intervention; Taxation;Environmental inducing.* Professor da Universidade Federal de Pernambuco, Pós-doutor em Direito.** Professor da Universidade Estadual da Paraíba, doutorando em Direito.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 209livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 209 12/4/2011 17:33:16


INTRODUÇÃOO tema do desenvolvimento econômico tem se mostrado bastantecontrovertido, principalmente depois das experiências desenvolvimentistas do<strong>pós</strong>-guerra até meados dos anos 1990, que deixaram explícitas as relações entreatividade econômica e meio ambiente e, em especial, os resultados concretosdessas relações. Hoje, por exemplo, já se sabe que a degradação ambiental emuma determinada região não tem garantido, sequer, o desenvolvimento sócioeconômicolocal.A degradação ambiental – “[...] caracterizada pela diminuição daquantidade existente ou deterioração da qualidade dos bens e serviços providospelo meio ambiente” (ORTIZ; FERREIRA, 2004, p. 34) –, na verdade, deixatransparecer muito do modelo de sociedade atual, na medida em que expõe aintensidade das interações econômicas, as escolhas individuais, as conveniênciase facilidades que o desenvolvimento econômico pode proporcionar. Contudo,pelas dimensões e resultados sócio-econômicos alcançados, esta é uma questãoque passou a ter forte presença nas agendas oficiais com a finalidade, porexemplo, de apontar quais atividades econômicas, produtos, tecnologias eprocessos produtivos devem ser estimulados, desestimulados ou vedados.Esta discussão torna-se importante a partir do reconhecimento de que asquestões ambientais migraram da esfera econômico-privada para compor osinteresses coletivos, exigindo cada vez mais a presença do Estado, a fim deinibir ou remediar a degradação ambiental. Como ator central na condução dasociedade – com relevante papel na proteção do meio ambiente, no fomento aodesenvolvimento sustentável e na redução das desigualdades regionais, dentreinúmeras outras atribuições –, do Estado exige-se uma forte presença, sem queisso represente qualquer traço de dirigismo ou planificação da economia ou davida social.Na verdade, em inúmeras situações a intervenção estatal faz-se necessária,por exemplo, para corrigir ou evitar as falhas de mercado, tais como a elevaçãodos custos de transação ou o efeito carona. Para Andrade (2004, p. 26) aexistência de externalidades, positivas ou negativas, justifica:[...] a intervenção governamental de forma a corrigir a ineficiênciagerada pela externalidade [...]É possível que ao intervir, o governo seja capaz de influenciaros incentivos privados dos indivíduos ou empresas deforma que passem a levar em consideração o impacto dassuas ações, negativos ou positivos, sobre os outros agentes210 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 210 12/4/2011 17:33:17


econômicos. [...] o governo visa a encontrar um mecanismoque faça os agentes econômicos internalizarem a externalidades.A intervenção estatal pode ser concretizada através da regulação, tambémchamada de políticas de comando-e-controle; e dos instrumentos econômicos,com soluções baseadas no mercado (ANDRADE, 2004, p. 26; ORTIZ,FERREIRA, 2004, p. 36).Segundo Ortiz e Ferreira (2004, p. 37-38):As políticas de comando-e-controle regulam diretamente ocomportamento dos agentes econômicos e se traduzem emnormas que precisam ser obedecidas, tais como padrões,zoneamento, cotas e licenças. Em outras palavras, o governoproscreve alguns comportamentos e impõe puniçõesàqueles que os praticam. Para isso, o Estado requer umaampla e eficiente estrutura de adimplemento da lei.A regulação estatal é materializada através de disciplinamento jurídicoque estabelece, por exemplo, as especificações técnicas para produtos, processosoperacionais e tecnologias de produção (padrões e controles); delimita osespaços onde a atividade econômica pode ser desenvolvida (zoneamento); impõelimitações quantitativas e qualitativas para a exploração de recursos naturais oupara a emissão de poluentes (cotas) e sujeita a atividade econômica às licenças.No caso dos instrumentos econômicos, a intervenção estatal ématerializada através de estímulos e desestímulos financeiros com a finalidadede reduzir ou elevar os custos de transação dos agentes econômicos. SegundoOrtiz e Ferreira (2004, p. 39):Os instrumentos econômicos são mecanismos de mercadoque incentivam os agentes econômicos a levar em consideraçãoos custos externos de suas decisões individuais. Hávários instrumentos econômicos, como impostos, taxas,tarifas, subsídios, mecanismos de devolução de de<strong>pós</strong>ito ecriação de mercado.Evidentemente que o tema é bastante amplo e aqui é necessário proceder aum recorte, de forma a delimitar o objeto do presente trabalho à tributação comoinstrumento intervenção estatal destinada à indução de condutas ambientais.Este recorte, logicamente, exclui aquelas condutas vedadas em lei, porque aincidência tributária recai, apenas, sobre condutas lícitas. Neste contexto, seráHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 211livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 211 12/4/2011 17:33:17


inconstitucional qualquer tentativa legal de descaracterizar a natureza jurídicado tributo a fim de assemelhar sua aplicação às penas pecuniárias. Fora doslimites da licitude, o Estado deverá fazer uso outros mecanismos de intervenção.1. MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICOA busca pelo desenvolvimento econômico, como um fim em si mesmo, temse mostrado trágico na esfera sócio-ambiental. De um lado, o desenvolvimentoeconômico tem resultado em severa degradação ambiental, resultante, porexemplo, da emissão de poluentes e do uso intensivo de recursos naturais; e, poroutro, o modelo de concentração de riquezas impede que o desenvolvimentoeconômico resulte em desenvolvimento social.Segundo Sachs (2007, p. 77) “Não é propriamente o crescimento que sedeve questionar, mas o seu caráter selvagem”. Por isso, o reconhecimento daimportância do crescimento econômico para as nações e sociedades modernasé fundamental para justificar o papel do mercado e a função interventora doEstado, tendo em vista a consecução de objetivos mais amplos, tais como odesenvolvimento social, a preservação do meio ambiente ou o uso eficiente dosrecursos naturais.1.1 ESTADO E MEIO AMBIENTEO protagonismo do Estado na condução das questões ambientais tem sidoreconhecido na proporção inversa da incapacidade de resolução dos problemasambientais através das regras de mercado. Dentro deste contexto, Sachs (2007,P. 83-84) coloca um questionamento interessante: “Será possível fazer com q<strong>uea</strong> empresa internalize essas externalidades que ela mesma provocou, por meiode uma modificação do sistema de preços?”. A resposta é um categórico não.Por isso a imperiosa necessidade de intervenção estatal.A intervenção estatal, como visto anteriormente, é materializada atravésda regulação, que impõe um disciplinamento jurídico às atividades econômicas,com a finalidade, por exemplo, de limitar ou impedir a ineficiência ambientaldos agentes econômicos; e de instrumentos econômicos, que criam sistemas deestímulos e desestímulos financeiros, a fim de induzir determinadas condutasambientais.O disciplinamento jurídico surge a partir do exato reconhecimento dasinúmeras limitações que rodam as regras de mercado, incapazes de apontar, por212 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 212 12/4/2011 17:33:17


exemplo, soluções para situações que extrapolam o mero ambiente econômico,como a degradação ambiental e a pobreza, dentre outros. Evidentemente q<strong>uea</strong> finalidade primeira do disciplinamento jurídico não deve ser o de impedira atividade econômica, mas colocá-la dentro de um espectro mais amplo,tendo em vista aquilo que Sachs (2007) denomina de desenvolvimentoecossocioeconômico. Dentro deste contexto, para Marques (2007, p. 90-91) “[...]a relação estabelecida entre o direito ao meio ambiente e a livre iniciativa [...]não constitui uma colisão, e sim um caso de limitação constitucional imanente”.Sobre o disciplinamento jurídico, contudo, recaem severas ressalvas,como, a dispendiosa manutenção de estruturas estatais, tal como as agênciasreguladoras; ou a possibilidade da judicialização da vida cotidiana, problemaque no Brasil tem alcançado uma dimensão tão aguda que tem provocado adegradação e o esgotamento do próprio ser humano. Além disso, a evidênciaempírica, revelada pela crise financeira de 2008, demonstrou que o modelode agências regulatórias é inapto à prevenção das falhas de mercado, dentreoutras causas, ou porque é impossível normatizar todas as situações fáticas(ausência de disciplinamento) ou porque a fiscalização apresenta-se ineficaz(captura econômica e/ou captura ideológica). Por isso, a intervenção regulatóriadeixa transparecer ser uma medida que não trará, em tempo hábil, resultadosambientais concretos.Mas, a intervenção estatal também pode ser materializada através deinstrumentos econômicos que, apesar de externos, incorporam a lógica demercado ao estabelecer sistemas de recompensas e restrições financeiras a fim,por exemplo, de induzir condutas. A tendência atual indica, na verdade, queos instrumentos de indução de condutas são mais contemporâneos às questõesambientais e, particularmente, a tributação tem o condão de afetar as condutasambientais dos agentes econômicos.2 TRIBUTAÇÃO E INDUÇÃO AMBIENTALA extrafiscalidade tributária tem-se mostrado apta a finalidadesambientais. Segundo Sister (2008, p. 68) “[...] os instrumentos tributários – emdecorrência de sua relação umbilical com a atividade econômica – podem edevem servir como forma de defesa de um meio ambiente sustentável”. Nestesentido, a expressão tributação ambiental tem sido utilizada para designar autilização de mecanismos tributários destinados a estimular condutas que afetempositivamente o meio ambiente e/ou a desestimular condutas que impliquemem degradação ambiental. Evidentemente, que esta aptidão decorre da naturezaindutora das normas tributárias.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 2<strong>13</strong>livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 2<strong>13</strong> 12/4/2011 17:33:17


2.1 A NATUREZA INDUTORA DAS NORMAS TRIBUTÁRIASA tributação, ao interferir na riqueza privada, tem o condão de afetarcondutas individuais, seja de forma imediata ou mediata. Neste sentido, épossível apontar a natureza indutora implícita à norma tributária. Schoueri(2005) descreve os elementos objetivos e subjetivos que adjetivam as normastributárias indutoras, com a ressalva de que tais elementos não são suficientespara abarcar os resultados concretos da indução tributária.É natural que a norma tributária de natureza fiscal ou extrafiscal tenha apotencialidade de alterar condutas individuais, tendo em vista a interferênciaestatal na riqueza privada . Por exemplo, a edição de norma tributária denatureza fiscal, cujo objeto seja a elevação da alíquota do ICMS incidente sobreo consumo de gás natural de uso industrial, além de incrementar a arrecadaçãodo referido imposto estadual, de forma secundária, poderá ter o efeito perversode induzir o consumo industrial de outras fontes energéticas mais baratas, talcomo o carvão vegetal, resultando em um indesejado desmatamento.Em sentido inverso, a edição de norma tributária de natureza extrafiscal,cujo objeto de incidência seja o estímulo à aquisição de veículos de baixacilindrada, direcionada às camadas mais carentes da população, resultará, semdúvidas, em ganhos consideráveis para este segmento social. Contudo, de formasecundária, poderá induzirá o consumo de combustíveis fósseis e o conseqüenteaumento na emissão de poluentes.Assim, ao lado dos elementos objetivos e subjetivos é necessário apreenderos resultados concretos da aplicação da norma tributária. O quadro 1 sintetizaos elementos necessários à identificação do fim primário da norma tributária.Quadro 1 – Norma tributária indutora e indução ecossocioeconômicaPor isso, a partir da confluência dos três elementos, objetivo, subjetivo econcreto, é possível, então, apontar a natureza positiva ou negativa da induçãotributária.Quadro 1 – Norma tributária indutora e indução ecossocioeconômicaPor isso, a partir da confluência dos três elementos, objetivo, subjetivo econcreto, é possível, então, apontar a natureza positiva ou negativa da induçãotributária.2<strong>14</strong> Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 2<strong>14</strong> 12/4/2011 17:33:17


2.2 A TRIBUTAÇÃO COM FINALIDADE DE INDUÇÃO AMBIENTALA tributação com finalidade de indução ambiental deve ser concretizadaexatamente onde e quando as regras de mercado são incapazes de afetarpositivamente as condutas dos agentes econômicos.A tributação possui inúmeras bases econômicas de incidência, como apropriedade, o capital, a renda e o consumo. Esta abrengência torna a tributaçãoapta a alcançar a totalidade das condutas com alguma relevância econômica,com estímulos e desestímulos financeiros direcionados tanto a pessoas físicascomo a empresas. No caso das pessoas físicas, a tributação com finalidadeambiental destina-se, por exemplo, a inibir o consumo de determinados produtosou a induzir condutas. No primeiro caso, encontra-se a elevação da tributaçãosobre os combustíveis. Se o Estado não pode vedar o consumo desses produtos,aquele que os consome deve arcar com os custos sócio-ambientais decorrente dadegradação do meio ambiente. Já no segundo caso, a redução da tributação podeestimular práticas que afetem positivamente a qualidade ambiental. É o casoda concessão de descontos no IPTU de imóveis urbanos em função do nível dearborização dos bairros ou da coleta seletiva do lixo.No caso das empresas, é possível estabelecer diferenciações financeirasa partir do nível de degradação ambiental, com fundamento na tecnologia eno processo empregados na produção; no armazenamento e na distribuição deprodutos. Por exemplo, atividades econômicas com alto consumo de recursosnaturais associada à baixa tecnologia, como as indústrias madeireiras e aatividade pecuária, podem sofrer maior incidência de tributos sobre o consumo(IPI e ICMS) ou até mesmo sobre o lucro (IRPJ), com a finalidade tanto dedesestimular a atividade econômica quanto a de obter recursos destinadosa minorar os danos sócio-ambientais. Além do evidente dano ambiental, taisatividades econômicas mostram-se inapropriadas ao desenvolvimento sócioeconômicolocal e regional. No entanto, um maior ônus tributário não podeser interpretado como uma permissão para poluir o meio ambiente ou esgotaros recursos naturais. Pelo contrário, tem a intenção de induzir nos agenteseconômicos uma maior eficiência sócio-ambiental.Em situação contrária, encontram-se aquelas atividades econômicascom alto consumo de recursos naturais associada à alta tecnologia, tal como asindústrias de beneficiamento de petróleo, siderúrgicas e de geração de energiaelétrica, dentre outras. Apesar de danosas ao meio ambiente, tais atividadeseconômicas são capazes de fomentar elevados ganhos à sociedade, desde geraçãode emprego e renda até facilidades ao homem moderno. Verifica-se, então, certaHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 215livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 215 12/4/2011 17:33:17


permissividade social, tendo em vista a relevância sócio-econômica dessasatividades. A tributação, aqui, deve premiar o esforço dos agentes econômicos naredução da degradação ambiental, com maciça desoneração sobre investimentose equipamentos destinados a melhorias tecnológicas e de processos produtivosque possibilitam, por exemplo, menor emissão de poluentes ou menor consumode recursos naturais.A tributação também pode alcançar aquelas atividades econômicascom baixo consumo de recursos naturais, porém com alta potencialidade dedegradação ambiental devido, por exemplo, a geração e descarte do lixo. Nestasituação estão incluídos os bancos, hospitais e demais prestadores de serviço.Aqui não se trata de consumo direto de recursos naturais, mas da enormepotencialidade de danos ambientais pelo excesso de material descartado. Nestecaso, é possível introduzir uma redução na alíquota do IPTU destinada, porexemplo, a estimular a coleta de lixo seletiva.3 ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E TRIBUTAÇÃO AMBIENTALEm condições perfeitas os agentes econômicos buscarão satisfazer suasnecessidades individuais com o menor consumo de recursos. Nesta situação,a interação entre agentes econômicos, segundo as regras de mercado, serásuficiente para a maximização dos resultados. Mas, a realidade indica que omercado não se apresenta perfeito, as regras de mercado não são suficientespara reger as interações econômicas e os agentes não conseguem satisfazer suasnecessidades com o menor consumo de recursos.A análise microeconômica tradicional, por outro lado, não conseg<strong>uea</strong>lcançar todos os custos inerentes às interações no mercado, resultando emuma impossibilidade teórica e empírica de apresentar soluções que preservem àeficiência econômica em condições distintas da perfeita. Em sentido contrário àanálise tradicional, Coase (2009, p. <strong>13</strong>) empenhou-se em “mostrar la importanciaque tiene para el funcionamiento del sistema económico lo que puede llamarsela estructura institucional de la producción“. Sua pretensão era estudar o sistemaeconômico não como idealizado na mente dos economistas, mas como ele é nomundo real (COASE, 2009, p.15).Coase mostrou que os mecanismos de determinação de preços trazemsubjacentes outros custos associados às interações econômicas, como, porexemplo, a busca de um contratante, a formalização e execução de um contrato,o exercício de um direito de propriedade ou a preservação ambiental. A interaçãodos agentes econômicos no mercado é influenciada não apenas pelo sistema216 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 216 12/4/2011 17:33:17


de preços da microeconomia tradicional, mas principalmente pelos custos detransação envolvidos nas interações. Neste sentido, as instituições e o ambienteinstitucional são elementos necessários à minimização dos custos de transação.O ambiente institucional tem a função primordial de possibilitar a reduçãode custos de transação através da criação de aparatos formais e materiais para arealização de trocas que maximizem os lucros dos agentes econômicos. Isto éconseguido através, por exemplo, do estabelecimento da estrutura necessária aoexercício dos direitos de propriedade, à execução dos contratos e à simetria dainformação, dentre outros.Em outras situações o ambiente institucional tem exatamente a funçãoinversa de elevar os custos de transação associados ao exercício dos direitosde propriedade ou à execução de um contrato, tais como, por exemplo, quandoo Município estabelece alíquotas diferenciadas do IPTU conforme o uso doimóvel (CF, art. 156, § 1°, inc. I) ou obriga seu “adequado aproveitamento, sobpena [...] de parcelamento ou edificação compulsórios” (CF, art. 182, § 4°, inc.I). O ambiente institucional também possui outras funções, tais como regulara atividade econômica; possibilitar a manutenção financeira do ente estatal ouproteger a parte hipossuficiente na relação de consumo, dentre inúmeras outras.Nestes casos, o ambiente institucional será um minimizador dos lucros. É ondea busca pela eficiência econômica encontra os limites sociais.Mais recentemente a função social e as questões ambientais ganharamrelevância e passaram a compor sérias restrições aos agentes econômicos noexercício dos direitos de propriedade e no direito à liberdade de iniciativa. Nestesentido, Marques (2007, p. 24) afirma que “[...] assim como a função socialopera como limite imanente à propriedade privada, o direito ao meio ambientetambém provoca uma limitação de caráter imanente [...] ao direito à liberdadede iniciativa”.A aproximação das abordagens econômica e jurídica propiciou a“aplicação de conceitos e métodos não jurídicos no sentido de entender a funçãodo Direito e das instituições jurídicas” (CALIENDO, 2009, p. 8). Contudo, aAnálise Econômica do Direito não chega a ser uma unanimidade. Há muitasvozes dissonantes. Por exemplo, Da Rosa (2009, p. 7) é enfático ao afirmar:[...] preponderância de um discurso silencioso condicionadordo jurídico, implementado a partir da construção daimagem neutra da economia universal e inevitável.Na seara ambiental, Sachs (2007, P. 83) também aponta as limitações dasanálises econômicas:Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 217livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 217 12/4/2011 17:33:17


As ferramentas tradicionais do economista, sobretudoaquelas fornecidas pela microeconomia, mostram-se claramenteinsuficientes numa abordagem de harmonização dodesenvolvimento socioeconômico com a gestão racionaldos recursos e do ambiente. É o que se verifica sobretudono que diz respeito ao sistema de preços.Por outro lado, não é prudente deixar de indicar a coincidência históricaentre o surgimento daquilo que se denomina de Análise Econômica doDireito com o ressurgimento do liberalismo econômico, agora denominadode neoliberalismo. Este último nada mais fez que propor, mais uma vez, omodelo de organização social com fundamento na prevalência das interaçõeseconômicas sobre as relações políticas e sociais. Não deixa de ser uma formaideológica de enxergar o mundo.3.1 O TRIBUTO COMO CUSTO DE TRANSAÇÃOIndependentemente das correntes sobre o fundamento político e social dotributo, de sua natureza jurídica e finalidades, é relevante entender a tributaçãocomo um custo associado ao exercício e manutenção de direitos de propriedadee à execução de contratos. No primeiro caso, temos os tributos incidentes sobrea propriedade (IPVA, IPTU) ou sobre a transmissão dessa propriedade (ITBI,ITCD). No segundo caso, temos os tributos incidentes sobre a circulação jurídicade produtos, mercadorias e serviços transferidos através de contrato de compra evenda mercantil (ICMS, ISS, IPI). Caliendo (2009, p. 22) esclarece:A tributação pode ser entendida como um custo de transaçãoem sentido restrito, na medida em que se constitui emum custo para a formalização de um negócio jurídico [...]De outra parte, a tributação pode ser entendida tambémcomo sendo um custo de transação em sentido amplo, ouseja, conforme o teorema de Coase. Nesse caso, a tributaçãopode ser considerada um custo a ser verificado nautilização dos mecanismos de mercado. As insegurançasdecorrentes de um sistema tributário imperfeito e ineficienteimplicam em maior incerteza na contratação e, portanto,em um custo de transação maior.Para melhor explicar como a tributação afeta os custos de transação épossível tomar como parâmetro as empresas industriais, tendo em vista a218 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 218 12/4/2011 17:33:17


elevância dos estímulos e desestímulos tributários destinados ao setor, bemcomo a maior potencialidade de resposta desses agentes econômicos à tributaçãocom finalidade de indução de condutas ambientais. Deve ser ressaltado que aproposição de qualquer modelo representativo da realidade requer a abstraçãode outras questões extremamente relevantes. Neste trabalho, por exemplo,não adentraremos nas questões relacionadas à legalidade, oportunidade eproporcionalidade.O modelo linear da relação custo, volume de produção e lucro é bastanterepresentativo e consegue explicar relações entre receitas totais e custos edespesas totais, bem como o lucro obtido pelo agente econômico, conformemostrado no gráfico 1.CustoPonto de equilíbrio P e12cVariáveisFixos3Custos edespesastotaisReceitastotaisuVolume de produçãoGráfico 1 – Representação gráfica do ponto de equilíbrio de mercadoOs custos e despesas totais são divididos em custos e despesas fixos ecustos e despesas variáveis. A reta 1 é a representação linear das receitas totais,que varia em função do volume de produção u. A reta 2 é a representação doscustos e despesas totais, que também varia em função do volume de produção u.Na verdade, a reta 2 é a somatória dos custos e despesas variáveis com os custose despesas fixos, estes últimos representados pela reta horizontal 3.Haverá equalização dos custos e despesas totais com as receitas totaisexatamente no ponto de equilíbrio Pe. A faixa de área entre as receitas totais(reta 1) e os custos e despesas totais (reta 2), a<strong>pós</strong> o ponto de equilíbrio Pe,representa graficamente o lucro obtido. Já a faixa de área inferior entre as duasretas citadas, representa graficamente prejuízo obtido.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 219livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 219 12/4/2011 17:33:17


3.2 A TRIBUTAÇÃO COM FINALIDADES AMBIENTAISApesar das evidentes limitações decorrentes da mera análise econômica,as questões ambientais podem ser entendidas como externalidades. SegundoAndrade (2004, p. 32):[...] externalidade [...] ocorre quando os preços que osagentes recebem do mercado não são corretos. No caso daexternalidade negativa, os indivíduos não sentem os custostotais das ações e, por conseguinte, realizam mais dessas doque a sociedade desejaria. No caso da externalidade positiva,agentes econômicos não sentem os benefícios totais desuas ações e acabam não se engajando tanto nelas quantoseria desejado do ponto de vista social.Dentre as externalidades ambientais negativas poderiam ser incluídasa emissão de poluentes e o esgotamento dos recursos naturais; já dentre asexternalidades ambientais positivas, o desenvolvimento sustentável, a reduçãodo consumo de energia ou da emissão de poluentes.As questões ambientais carregam implicitamente um custo. Por exemplo,o esgotamento de determinados recursos naturais irá elevar os custos e despesasvariáveis. Já os investimentos em tecnologias ou em equipamentos, por suavez, provocarão um incremento nos custos e despesas fixos. Evidentementeque em muitas situações as regras de mercado (preços) não conseguemabsorver os impactos desses custos e despesas. Isto pode ocorrer ou porqueos agentes econômicos não dispõem de capacidade econômica ou porque nãopretendem alterar seus custos e despesas variáveis e/ou fixos de forma a atenderas exigências ambientais. Circunstâncias como oferta/demanda, tecnologia,retração nos investimentos de ativos fixos e tanto outros, afetam a tomada dedecisão dos agentes econômicos. É exatamente onde o mercado não consegue,por si só, atender às novas exigências ambientais que a tributação representaimportante mecanismo de intervenção.A tributação pode ser entendida como uma forma de internalizar asexternalidades negativas ou externalizar as externalidades positivas. De formamais simples e menos econômica: a tributação possibilita uma oneração financeirados agentes econômicos pelos danos ambientais provocados ou, no sentidoinverso, um ressarcimento financeiro pelos benefícios ambientais. Por exemplo,em determinadas situações o Estado pode impor maior ônus tributário sobredeterminados produtos e serviços na intenção de desestimular seu consumo;ou, em sentido contrário, abrir mão de parcela de suas receitas tributárias na220 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 220 12/4/2011 17:33:17


intenção de propiciar um ambiente favorável à expansão da atividade econômicacom tecnologias e processos que representem menor emissão de poluentes oumenor consumo de recursos naturais.Diante desta realidade, o agente econômico será impelido a buscararranjos que reduzam seus custos de transação. Os gráficos a seguir mostramalguns desses arranjos. Uma primeira situação é mostrada na indução decomportamento de consumo, que pode ser concretizada através da desoneraçãodos impostos incidentes sobre o consumo (IPI ou ICMS) de produtos q<strong>uea</strong>presentem menor consumo energético (geladeiras, freezers, lâmpadas, etc.) ouemissão de poluentes (carros, motos, caminhões, etc.). Esta situação é mostradano gráfico 2.Custocc)Ponto de equilíbrio P eNovo ponto de equilíbrio P e’1243u’uVolume de produçãoGráfico 2 – Representação gráfica da redução nos custos e despesas variáveisA redução nos custos e despesas variáveis possibilita ao agente econômicoreduzir o preço final dos produtos alcançados pela desoneração, sem, contudo,reduzir o lucro, para um mesmo volume de produção u. Esta situação é mostradano gráfico 3 abaixo:Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 221livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 221 12/4/2011 17:33:17


Custocc’Ponto de equilíbrio P eNovo ponto de equilíbrio P e’12543uVolume de produçãoGráfico 3 – Representação gráfica da redução nos custos e despesas variáveis e nasreceitas totaisCom a redução nos custos e despesas variáveis o agente econômico poderáreduzir o preço final de produtos (reta 5), induzindo o consumo de determinadosprodutos em detrimentos de outros não alcançados pela desoneração. Não seveda o consumo, mas apresenta-se um estímulo financeiro de forma a induzirdeterminado comportamento de consumo.Há outras situações onde a intenção é exatamente a oposta, por exemplo,inibir o consumo industrial de determinada matéria-prima (por exemplo, amadeira) ou outros insumos (por exemplo, a água ou a energia elétrica). Umincremento nos tributos incidentes sobre a matéria-prima ou os insumos elevaráos custos e despesas variáveis, conforme mostrado no gráfico 4.222 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 222 12/4/2011 17:33:18


Custoc’cPonto de equilíbrio P eNovo ponto de equilíbrio P e’1 423uu’Volume de produçãoGráfico 4 – Representação gráfica da elevação nos custos e despesas variáveisCom a elevação dos custos e despesas variáveis (reta 4), o lucro só seráobtido a partir do volume de produção u’. Nesta situação, o agente econômicoserá induzido a substituir ou reduzir o consumo da matéria-prima e dos insumos.A finalidade, nesta situação é permitir que “[...] tanto o consumidor quanto oprodutor se defrontam com um novo preço de mercado. Por conseguinte, a novasinalização que recebem do mercado, através dos preços, é para consumir evender menos” (ANDRADE, 2004, p. 27).Também é possível, através da tributação, estimular a substituiçãode fontes energéticas industriais, a fim de reduzir o consumo, por exemplo,do carvão vegetal e da lenha, ainda muito comum em pequenas siderúrgicase em indústrias de panificação. Esta substituição requerer investimentos emtecnologia, em equipamentos e outros custos e despesas fixos. Esta situação émostrada no gráfico 5.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 223livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 223 12/4/2011 17:33:18


Novo ponto de equilíbrio P e’Custoc'cPonto de equilíbrio P e<strong>14</strong>253uu'Volume de produçãoGráfico 5 – Representação gráfica da elevação nos custos e despesas fixosA elevação nos custos e despesas fixos, representados pela reta 5, altera oponto de equilíbrio para Pe’. Nesta situação, a redução nos tributos diretos, talcomo IRPJ, permitirá a redução dos custos e despesas fixas de forma que o agenteeconômico nem reduza seu lucro nem repasse ao preço final das mercadorias aelevação dos custos. Esta situação é mostrada no gráfico 6.CustoPonto de equilíbrio P e1c23uVolume de produçãoGráfico 6 – Representação gráfica da elevação nos custos e despesas fixos224 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 224 12/4/2011 17:33:18


Também é possível apontar que a tributação pode ser utilizada comoinstrumento de zoneamento urbano. Por exemplo, o desenvolvimento dedeterminadas atividades econômicas em áreas urbanas mostra-se inconveniente,como ocorre com indústrias químicas, pequenas siderúrgicas e metalúrgicas.Com o crescimento das cidades, a localização dos distritos industriaispassou a compor a própria área urbana. Este é um problema que afeta acoletividade, tendo em vista a degradação ambiental urbana e a proximidadede agentes químicos e mecanismos, com evidentes riscos à saúde pública e àintegridade física das pessoas. Neste sentido, é possível a criação de desestímulosà permanência destes agentes econômicos em áreas urbanas através do aumentodo IPTU dos imóveis urbanos com fins industriais. Esta situação é mostrada nográfico 7.Novo ponto de equilíbrio P e’Custoc'cPonto de equilíbrio P e<strong>14</strong>253uu'Volume de produçãoGráfico 7 – Representação gráfica da elevação nos custos e despesas fixosO maior ônus no IPTU elevará os custos e despesas fixos (reta 5). Nestasituação, o novo ponto de equilíbrio Pe’ só será atingido a um volume deprodução u’, superior ao volume original u, o que afetará o lucro do agenteeconômico.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 225livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 225 12/4/2011 17:33:18


CONCLUSÕESCom o forte fenômeno do ressurgimento do liberalismo econômico,o modelo de organização social passou a ter fundamento na prevalênciadas interações econômicas. A ideologia neoliberal traz implícita a defesaintransigente das diferenças formais – e do sistema legal como vetor indutordessas diferenças – através da criação de tutelas (reservas de mercado), damanutenção de privilégios (desregulamentação dos direitos alheios, tais comoos trabalhistas e previdenciário) e maciça transferência de recursos públicos(financiamento estatal subsidiado e benefícios fiscais à atividade econômica)destinados a fomentar o desenvolvimento econômico.Depois de quase cinco décadas, porém, esta realidade passa a ser sentidacom maior intensidade nas questões que envolvem as intricadas relaçõesentre meio ambiente e desenvolvimento econômico. O discurso econômicocorrente revela que a degradação do meio ambiente é justificada a partir depremissas que privilegiam apenas o desenvolvimento econômico e a eficiênciaeconômica. O problema é que esta premissa encontra seu melhor arranjo quandohá a privatização dos recursos naturais e a socialização dos custos ambientais.Evidentemente que os resultados práticos deste modelo de desenvolvimentoeconômico já começam a despertar a atenção de parcela considerável dosgovernos nacionais, regionais e locais.Por tudo isso, o discurso desenvolvimentista deve ser encarado com adevida reserva, especialmente diante dos resultados sócio-ambientais atuais.Na verdade, a visão meramente econômica tem o condão de esconder muitoda ineficiência de parte considerável dos agentes econômicos. Esta situação,inclusive, passa a ser o fundamento de validade da intervenção do Estadono mercado para impedir ou restringir determinadas atividades econômicasdegradantes ao meio ambiente. Os mecanismos de intervenção estatal sãoa regulação e os instrumentos econômicos. Dentre estes últimos se inclui atributação.A tributação apresenta-se como mecanismo apto a internalizar ouexternalizar os custos ambientais. No primeiro caso, a finalidade é desestimular,através da imputação dos custos coletivos àqueles agentes econômicos quederam causa aos danos ambientais. Esta situação implica em uma elevaçãodos custos de transação. No segundo caso, a intenção é exatamente a inversa,ou seja, estimular, através da socialização dos custos ambientais individuais,atividades econômicas que produzam benefícios ambientais à coletividade. Estasituação corresponde a uma redução nos custos de transação.226 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 226 12/4/2011 17:33:18


Evidentemente que toda e qualquer intervenção estatal deve ser acompanhadade severas precauções, porque ao interferir nos custos de transação de algunsagentes econômicos, o Estado pode criar privilégios, muitas vezes, nãoextensíveis aos demais agentes econômicos inseridos no mercado, resultando,também, em ineficiência econômica.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASANDRADE, E. C. “Externalidades.” In: BIDERMAN, C.; ARVATE, P.Economia do setor público. 4. reimpr. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 16-33.CALIENDO, P. Direito tributário e análise econômica do direito: uma visãocrítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.CAVALCANTI, C. “Política de governo para o desenvolvimento sustentável:uma introdução ao tema e a esta obra coletiva.” In: CAVALCANTI, C. (Org.).Meio ambiente, desenvolvimento sustentável e políticas públicas. 4. ed. Recife:Fundação Joaquim Nabuco, 2002, p. 15-40.COASE, R. H. The problem of social cost. Disponível em http://www.sfu.ca/~allen/CoaseJLE1960.pdf. Acesso em: 29 abr. 2009.COASE, R. H. Ensayos sobre economía y economistas. Madrid: Marcial Pons,2009.COOTER, R.; ULEN, T. Derecho y economía. 2. reimpr. Cidade do México:Fondo de Cultura Económica, 2002.DALY, H. E. “Políticas para o desenvolvimento sustentável.” In: CAVALCANTI,C. (Org.). Meio ambiente, desenvolvimento sustentável e políticas públicas. 4.ed. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2002, p. 179-192.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 227livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 227 12/4/2011 17:33:18


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A PÓS-MODERNIDADE E AS CIÊNCIAS DACOMUNICAÇÃO*Walmir de Albuquerque Barbosa**Sumário: Introdução; A <strong>pós</strong>-modernidade; As ciências da Comunicação no contexto damodernidade e Referências.Resumo: O presente trabalho tem porobjetivo, fazer uma reflexão sobre o conceitode Pós-Modernidade e, perscrutandoalguns autores clássicos que abordaramo tema, identificar as variações que o envolvempara, em seguida, aplicá-lo à compreensãoda Ciência da Comunicação.De modo mais específico, como pontode chegada, busca-se, também, o entendimentoque contribua para um contornohistórico e teórico epistemológico às pesquisasnas Ciências da Comunicação e, porextensão, às Ciências Sociais Aplicadas,no que couber em seus fazeres científicos.Palavras-Chave: Pós-Modernidade;Ciências da Comunicação; Epistemologiada Comunicação.Abstract: This work aims to make a reflectionon the concept of postmodernity and,peering into some classic authors that addressedthe issue, identify changes that involveto then apply it to the understandingof science communication. Specifically, asa point of arrival, an attempt was also anunderstanding that will help to outline thehistorical and theoretical epistemologicalresearch in Communication Sciences and,by extension, the Applied Social Sciences,as appropriate in its doings scientific .Keywords: Post-Modernity; CommunicationSciences; Epistemology ofCommunication.* Trabalho inicialmente apresentado na forma de Aula Inaugural do Ano Acadêmico doPrograma de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade Federal doAmazonas (UFAM), Manaus, 22.03.2010.** Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambienta (UEA) e do Programade Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (UFAM); Doutor em Ciênciasda Comunicação pela Universidade de São Paulo.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 231livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 231 12/4/2011 17:33:18


INTRODUÇÃOPode parecer simples o termo “<strong>pós</strong>-modernidade”, afinal de contas eleestá em todas as bocas, nas mais lídimas representações de nossos intelectuaise, também, no cotidiano, rotulando tudo que nos parece novo, espetacular,majestoso. Parece mesmo que já nascemos <strong>pós</strong>-modernos e que tudo q<strong>uea</strong>conteceu há bem pouco tempo faz parte de um passado que não vivemos ouque pensamos não mais existir.O que pensamos ser <strong>pós</strong>-moderno tateia em nossos dedos, marca nossotempo como os sinos das aldeias, influencia nossas emoções, deslumbra-nos,e nos desnuda em olhares tri e quadridimensionais. Essas sensações empíricasnem sempre são acompanhadas de questionamentos mais profundos paraidentificarmos de onde vêm, em qual mundo foram geradas, de qual contextose desprenderam, de quais práticas se consolidaram e com quais intenções nosperseguem e nos envolvem.Tal postura não é um sacrilégio para os que não têm por ofício omartírio da reflexão. Para nós, artesãos acadêmicos, pesquisadores de ofícioe intelectuais por obrigação, nos vemos impelidos a questionar, a inquirir, ainstigar, a desmontar e reconstruir os conceitos para entender as teorias pelosseus princípios elementares e mergulhar em sua episteme. Assim, conhecercientificamente é “um ir além” das sensações empíricas e buscar nas teoriasgerais, respostas sobre as inquietações. E, continuamente inquietos, produzirnovas reflexões, novas interpretações.Para dar uma explicação ao sentido dessa dissertação sobre o tema Pósmodernidadee as Ciências da Comunicação, explicito logo: ele é de fundamentalimportância porque, dizem todos os pensadores, ser a Sociedade da Informaçãoe da Comunicação uma das marcas, se não a maior delas, da contemporaneidade.Nós, da Comunicação, estamos, portanto, “envolvidos até os cabelos” com aPós-Modernidade.APÓS-MODERNIDADEPara Lyotard (1989), na obra A condição Pós-Moderna (primeira ediçãoportuguesa), são <strong>pós</strong>-modernas as sociedades mais desenvolvidas.O termo “<strong>pós</strong>-modernidade” teve sua origem na Espanha e, quando dadoa conhecer, queria caracterizar somente um movimento artístico.232 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 232 12/4/2011 17:33:18


A palavra está em uso no continente americano, na escritade sociólogos e de críticos. Ela designa o estado da culturaa<strong>pós</strong> as transformações que afectaram as regras dos jogosda ciência, da literatura e das artes a partir do fim do séculoXIX (LYOTAR, 1989, p.11).A datação das causas da <strong>pós</strong>-modernidade, como se fossem sintomas doorganismo social, tem suas raízes fincadas no início do século XX. A confluênciae a radicalização vão ocorrer na década de 50 do mesmo século, com o inícioda “crise das narrativas”, sobretudo, as que se referem ao Racionalismo,ao Iluminismo, ao Liberalismo e ao Socialismo, como correntes filosóficasque marcaram o século XIX e serviram de matriz para as Ciências Sociais“modernas” que, segundo o autor, legitimavam cientificamente tais narrativas,que tinham como meta a promessa de emancipação da humanidade, cada umaa seu modo.“Significando ao extremo, considera-se que o ‘<strong>pós</strong>-modernismo’ é aincredulidade às metanarrativas” que, para Lyotard (1989, p.12), perdem força ese diluem em várias linguagens, estas, em alguns casos, carentes de legitimação.Mas, no conjunto, trazem consigo “valências pragmáticas sui generis”Essas linguagens, ou melhor, “jogos de linguagem”, por vezescontraditórios entre si, paradoxais, alternam performances do sistema social,quando este busca eficácia e se depara com o desencanto. Sem as metanarrativas,no vazio das utopias, “o critério de operatividade é tecnológico, não sendopertinente para ajuizar do verdadeiro e do justo” (LYOTAR, 1989, p.<strong>13</strong>). Istosignifica dizer: com a descrença nas metanarrativas que se constituíram asgrandes utopias que marcaram o século XIX e a primeira metade do séculoXX, o pragmatismo e o tecnicismo tornam-se forças mobilizadoras do novotempo que, no plano econômico, é marcado pela era <strong>pós</strong>-industrial e no campoda cultura, pela era <strong>pós</strong>-moderna. Para o autor em questão (Lyotard) essa divisãoestá na raiz do saber nas “sociedades informatizadas” e é nestas sociedades q<strong>uea</strong>s influências das ciências e das tecnologias de ponta incidem sobre a linguagem.Para o autor, o “saber científico é uma espécie de discurso” (p.15), “jogo delinguagem”, ao modo de Wittgenstein, e como tal, na <strong>pós</strong>-modernidade, nãonecessariamente deve estar vinculado a uma “ciência moderna”. Enquantonão legitimado como ciência, pode existir perfeitamente como um “discursoespecífico”, e exemplifica:a fonoaudiologia e as teorias linguísticas, os problemasda comunicação e a cibernética, as álgebras modernas ea informática, os computadores e as suas linguagens, osHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 233livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 233 12/4/2011 17:33:18


problemas de tradução das linguagens e a investigação dascompatibilidades entre linguagens-máquinas, os problemasde armazenamento em memória e os bancos de dados, atelemática do aperfeiçoamento de terminais ‘inteligentes’,a paradoxologia (LYOTAR, 1989, p.16).E continua: “a incidência destas transformações tecnológicas sobre osaber parece ser considerável. Ele encontra-se ou encontrar-se-á afectado nassuas duas principais funções: a investigação e a transmissão de conhecimentos”(p.16). Para Lyotard, a natureza do saber será alterada nessa transformaçãoe terá, necessariamente, que se operacionalizar como conhecimento ao sertraduzida em “quantidades de informação”, através das máquinas que serãoproduzidas com esta competência. E elas não são outras, senão as tecnologiasde comunicação.O autor (LYOTAR, 1989), que está escrevendo esse texto no final dosanos 80 do século passado, já está se referindo aos sistemas de redes virtuaispara circulação do saber e apontando para o problema crucial, hoje, para nós,constatável, se objeto de investigação de campo, nas pesquisa em ciências dacomunicação:Pode-se, desde logo, esperar uma forte separação do saberrelativamente ao ‘sabedor’, qualquer que seja o pontoque este ocupe no processo de conhecimento. O antigoprincípio de que a aquisição do saber é indissociável da formação(Bildung) do espírito, e mesmo da pessoa, cai e cairácada vez mais em desuso. A relação dos fornecedores e dosutilizadores do conhecimento com este tende e tenderá arevestir-se da forma que os produtores e consumidores demercadorias têm com estas últimas, ou seja, a forma devalor. O saber é e será produzido para ser vendido e é eserá consumido para ser valorizado numa nova produção:ambos os casos para ser trocado. Ele deixa de ser para simesmo, a sua própria finalidade, perdendo o seu ‘valor deuso’ (LYOTAR, 1989, p.18).Se o discurso da <strong>pós</strong>-modernidade, com Lyotard, começa por dizer que elese aplica às “sociedades mais desenvolvidas”, entenda-se: as nações Européiase os Estados Unidos da América, não deixam de ser também, como afirmamAgnes Heller e Ferenc Fehér em A Condição Política Pós-Moderna (editadopela Editora Civilização Brasileira, no Brasil, em 1998, mas escrito no contextodos acontecimentos do final da década e 80), uma denúncia ao eurocentrismo:234 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 234 12/4/2011 17:33:18


Em algum ponto tinha de chegar o momento em que fatalmenteos europeus seriam obrigados a questionar o projeto‘Europa’ como um todo, quando teriam que denunciara falsa pretensão à universalidade inerente no ‘particulareuropeu’. A campanha cultural e política contra o etnocentrismofoi na verdade uma grande campanha em favor da<strong>pós</strong>-modernidade ( p.<strong>13</strong>).Divergindo de Lyotard, o conceito de <strong>pós</strong>-modernidade de Heller e Fehérestende-se ao mundo globalizado, num ajuste que envolve as tendências maiscristalizadas da contemporaneidade no final de século:Percebe-se aí que esse segundo conceito de <strong>pós</strong>-modernidade, ao agregara idéia de pluralidade, de tempos e espaços civilizatórios diferentes, abarca tantoo centro como a periferia da humanidade, vivendo na era das <strong>pós</strong>-metanarrativas,ondequalquer tipo de política redentora é incompatível com acondição política <strong>pós</strong>-moderna [...]. Ao mesmo tempo, acondição política <strong>pós</strong>-moderna fica constrangida até mesmocom o utopismo não messiânico, que a torna vulnerávela concessões fáceis ao presente e suscetível aos mitos de‘Juízo Final’ e aos medos coletivos decorrentes da perda dofuturo (HELLER E FEHER, p.<strong>14</strong> e 15).Podemos tomar como exemplo as questões relativas ao aquecimentoglobal e as questões ambientais como um todo, trabalhadas exaustivamente pelamídia.Esse espaço do pluralismo, para os autores da obra A Condição PolíticaPós-Moderna, não exclui a possibilidade de convivência de todas as idéias,ideologias e teorias que alimentaram a produção, a reflexão e atividadeintelectual e que possam ser recicladas e retomadas dentro dos espaços múltiplosda <strong>pós</strong>-modernidade, mas repassados pelos seus filtros, o que outros autores, taiscomo Jean Baudrillard (2003), a quem voltaremos mais adiante, vão chamar deprocessos de fragmentação em oposição às grandes narrativas.Aos nossos pro<strong>pós</strong>itos interessa bastante levar em consideração asposições de outro autor clássico, Fredric Jameson. Nos seus vários escritose, notadamente, em Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardioe em As sementes do tempo, trabalha com propriedade as relações entre oCapitalismo, a Cultura e História, tendo como fio condutor a Pós-modernidade.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 235livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 235 12/4/2011 17:33:19


Enquanto Lyotard situa a Pós-modernidade no espaço das naçõesdesenvolvidas, Heller e Fehér ampliam esse espaço, ressaltam a relaçãotemporal e procuram analisar a contemporaneidade levando em conta a idéiade pluralidade, Jameson, inicialmente descrente da necessidade de rotular acontemporaneidade como <strong>pós</strong>-moderna, termina por aceitar o rótulo, abarcar osfatos na sua acontecência e os analisar a partir de uma ótica que nos aproximamuito mais da ponte que desejamos fazer com a Sociedade da Informação eda Comunicação e da Comunicação como Ciência e, mais precisamente, comoTecnociência.Logo na Introdução de sua obra Pós-modernidade: a lógica cultural docapitalismo tardio (edição original de 1991, e posteriormente editado no Brasilpela Editora Ática - em uso neste trabalho a segunda edição, de 2004), faz umaadvertência:É mais seguro entender o conceito do <strong>pós</strong>-moderno comouma tentativa de pensar historicamente o presente em umaépoca que já esqueceu como pensar dessa maneira [...].Pode ser que o <strong>pós</strong>-modernismo, a consciência <strong>pós</strong>-moderna,acabe sendo não muito mais do que a teorização de suaprópria condição de possibilidade, o que consiste, primordialmente,em uma mera enumeração de mudanças e modificações[...]. O <strong>pós</strong>-moderno busca rupturas, busca eventosem vez de novos mundos, busca o instante revelador depoisdo qual nada mais foi o mesmo, busca um ‘quando-tudomudou’(evocando William Gibson, criador do cyberpunk –parêntese nosso sobre a nota do autor), ou melhor, busca osdeslocamentos e mudanças irrevogáveis na representaçãodos objetos e do modo como eles mudam. Os modernos estavaminteressados no que poderia acontecer depois de taismudanças e nas suas tendências gerais: pensavam no objetoem si mesmo, substantivamente, de modo essencialistaou utópico. Neste sentido o <strong>pós</strong>-moderno é mais formal,e mais ‘distraído’ (evocando Walter Benjamin); apenascronometra as variações e sabe, bem demais, que os conteúdossão somente outras imagens... O <strong>pós</strong>-modernismoé o que se tem quando o processo de modernização estácompleto e a natureza se foi para sempre. É o mundo maiscompletamente humano do que o anterior, mas é um mundono qual a ‘cultura’ se tornou uma verdadeira ‘segunda natureza’.De fato, o que aconteceu com a cultura pode muitobem ser uma das pistas mais importantes para se detectar o236 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 236 12/4/2011 17:33:19


<strong>pós</strong>-moderno: uma dilatação imensa de sua esfera (a esferada mercadoria) (JAMESON, 2004, p.<strong>13</strong>-<strong>14</strong>).Ao se opor a Lyotard, que parece crer mesmo no fim das grandesnarrativas para impor o seu conceito de <strong>pós</strong>-moderno, Jameson retoma a história,a dialética, e nesse aspecto a teoria sobre o capital de Marx, para avançar e situaro quadro da contemporaneidade, de modo temporal, nos quadros da evoluçãodo capitalismo, na sua fase mais adiantada, ou seja, o Capitalismo Tardio, faseem que, além de dominar a natureza, construindo outra natureza, dominar osprocessos produtivos e ultrapassá-los naquilo que eles têm de mais dinâmico,dominar todos os mercados pelo processo globalizante, provocar dinâmicasdiferenciadas através do capital financeiro e dos deslocamentos produtivos ede bens, ele, o capital, domina os espaços produtivos dos saberes - tradicionaisou avançados, os espaços das tecnologias e das ciências e todos, sem exceção,se assim se pode dizer, na condição de consumidores embalados pelo fetiche damercadoria, o ajudam a circular velozmente no mercado, que é a forma de suarealização e reprodução ampliada.Completando a sua visão sobre o conceito de <strong>pós</strong>-modernidade, afirmaFredric Jameson ( 2004, p.18):A tarefa ideológica fundamental do novo conceito, entretanto,deve continuar a ser a de coordenar as novas formasde práticas e de hábitos sociais e mentais [...] e as novasformas de organização e de produção econômica quevêm com a modificação do capitalismo – a nova divisãoglobal do trabalho – nos últimos anos.Em 1992, Guy Debord, que morreria em 1994, reedita o seu livromanifestode 221 teses que, desde novembro de 1967, influenciava as mentesrevolucionárias do mundo inteiro, intitulado A sociedade do Espetáculo. NoPrefácio dessa edição, faz uma advertência sobre a confirmação de suas tesese a revisão de bem poucas, face aos acontecimentos do mundo. O momento dareedição do livro de Debord é um momento importante, nele não se estava adiscutir a utopia das emancipações, mais já se contabilizavam dados de um mundotransformado pelo capital, unificado por ele e já ultrapassando os limites do quese convencionou chamar na economia de Neoliberalismo. O novo momentodo capital era, na visão crítica, o “Capitalismo Tardio”, expressão formuladapor Ernest Mendel (Economista judeu-alemão, 1923-1995) e, de certo modo,bem aceita entre os neomarxistas como JAMESON, que o toma como conceitoe título de uma das suas mais importantes obras. Nesse momento, também, seHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 237livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 237 12/4/2011 17:33:19


firmam os termos a “Condição Pós-moderna” ou “Pós-Modernidade”.Ao mesmo tempo em que definimos o contexto em que se forma aSociedade da Informação e da Comunicação, o Contexto da Pós-modernidade,não podemos deixar de lado as características apontadas por Guy Debord, deforma muito radical, sobre o espetáculo como marca desse novo tempo:Tese 1 – Toda a vida das sociedades nas quais reinam asmodernas condições de produção se apresenta como umaimensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vividodiretamente tornou-se uma representação.Tese 2 – As imagens que se destacaram de cada aspecto davida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessamesma vida já não pode ser restabelecida. A realidadeconsiderada parcialmente apresenta-se em sua própria unidadegeral como um pseudomundo à parte, objeto de meracontemplação. A especialização das imagens do mundo serealiza no mundo das imagens autonomizadas, no qual omentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral,como inversão concreta da vida é o movimento autônomodo não-vivo.Tese 3 – O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo comoa própria sociedade, como uma parte da sociedade e comoinstrumento de unificação...Tese 4 – O espetáculo não é um conjunto de imagens, masuma relação social entre pessoas, mediada por imagens.Tese 5 – O espetáculo não pode ser compreendido comoo abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas dedifusão maciças das imagens. Ele é uma Weltanschauungque se tornou efetiva, materialmente traduzida. É umavisão de mundo que se objetivou (p.<strong>13</strong>-<strong>14</strong>)...............................................................................................Tese 34 – O espetáculo é o capital em tal grau de acumulaçãoque se torna imagem (p.25).Corroborando com essa visão de Guy Debord, sobre o mundo da<strong>pós</strong>-modernidade, apesar de ser um dos que faz rejeição ao conceito, JeanBaudrillard, em entrevista dada a François L’Yvonet e publicada no Brasil pelaEditora Zouk (SP), 2003, com o título De um Fragmento ao Outro, diz que nasociedade dos fractais “tudo virou tela” (p.90), tudo é “simulacro” e, como naTese 1 de Debord, esta é a forma de representação apartada do real, ou comodiz ele, textualmente, no final da Tese 3: é “a linguagem oficial da separaçãogeneralizada”(DEBORD, 1994, p.<strong>14</strong>).238 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 238 12/4/2011 17:33:19


Em ensaio intitulado “O Príncipe Eletrônico”, publicado pela EditoraCivilização Brasileira, 2000, no livro Figuras da modernidade-mundo erepublicado em 2009, pela Editora Paulinas, coletânea organizada por MariaAparecida Bacega e Maria Cristina Castilho Costa, intitulada Gestão daComunicação: epistemologia e pesquisa teórica, Octavio Ianni faz umadescrição do Príncipe de Maquiavel que, em sucessivas mudanças, torna-se OModerno Príncipe e se transforma, em seguida, no Príncipe Eletrônico.Segundoele essas figuras se “sucedem-se e convivem nas mais diversas situações, épocase regiões” (IANNI, 2009 p.53). No príncipe de Maquiavel, no qual se espelha opensamento moderno da política e dos seus notáveis a partir do século XVI, aspráticas político-econômicas e socioculturais aparecem e se transformam comonum jogo entre a “fortuna” e a “virtude” ( fortuna e virtù).A segunda versão comentada do príncipe toma corpo com Gramsci queformula a teoria do O moderno príncipe, isto é, o partidopolítico como intérprete e condutor de indivíduos e coletividades,grupos e classes sociais. O moderno príncipe é,simultaneamente, ‘intelectual coletivo’, capaz de interpretartanto os seguidores do partido como os outros setoresda sociedade, indiferentes e adversários. Nesse sentido omoderno príncipe se revela capaz de construir, realizar edesenvolver a hegemonia de um projeto de Estado-Nação,envolvendo a organização, o desenvolvimento ou a transformaçãoda sociedade (IANNI, 2009, p.54).Ao cabo da análise sobre os dois primeiros príncipes, Ianni se questiona:“nesse sentido, cabe perguntar se a crise que parece atingir duramente um eoutro príncipe não acaba por colocar em causa o que se poderia entender porhegemonia e soberania, tanto quanto virtù e fortuna, bem como outras categorias‘clássicas’ da política” (p.54).Para Ianni, no final do século XX, os dois príncipes estavam envelhecidosou “simplesmente se tornaram anacrônicos”:Na época da globalização, alteram-se quantitativamente equalitativamente as formas de sociabilidade e os jogos dasforças sociais, no âmbito de uma configuração históricosocialde vida, trabalho e cultura, na qual as sociedadescivis nacionais revelam-se províncias da sociedade civilmundial em formação. Nessa época, as tecnologiaseletrônicas, informáticas e cibernéticas impregnamcrescente e generalizadamente todas as esferas da sociedadeHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 239livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 239 12/4/2011 17:33:19


nacional e mundial; e de modo particularmente acentuadoas estruturas de poder, as tecnoestruturas, os think tanks, oslobbyings, as organizações multilaterais e as corporaçõestransnacionais, sem esquecer as corporações da mídia. Essepode ser o clima em que se forma, impõe e sobrepõe Opríncipe eletrônico, sem o qual seria difícil compreender ateoria e a prática da globalização (p.56).O príncipe eletrônico é onipresente, está em todo lugar, mas os que elerepresenta, através de suas tecnologias eletrônica, informática e cibernética,formam uma “multidão solitária”, expressão que dá título ao famoso livro deDavid Riesman, A multidão solitária, onde ele trata a subjetividade do sujeitoautodirigido e agora lembrado no ensaio de Ianni:O príncipe eletrônico é o arquiteto do ágora eletrônico, noqual todos estão representados, refletidos, defletidos ou figurados,sem risco da convivência nem da experiência. Aí asidentidades, alteridades e diversidades não precisam desdobrar-seem desigualdades, tensões, contradições, transformações.Aí tudo se espetaculariza e estetiza, de modoa recriar, dissolver, acentuar, transfigurar tudo o que podeser inquietante, problemático, aflitivo. Se quisermos compreendera crescente importância das tecnologias eletrônicas,informáticas e cibernéticas, o que é fundamental paraentender a crescente influência da mídia em todas as esferasda sociedade nacional e mundial, é essencial começar peloreconhecimento de que o século XX esteve profundamenteimpregnado, organizado e dinamizado por técnicas sociais.São inúmeras as inovações tecnológicas que adquiriramo significado de poderosas e influentes técnicas sociais (IANNI, 2009, p.67-68).Por tecnologias sociais vamos entender o conjunto de invenções edescobertas que ajudam a criar novos artefatos, transformá-los em produtos elançá-los no mercado e institucionalizá-los como artefatos sociais em uso.Seguindo o modo de produção de mercadorias, tais produtos, no casoda comunicação, no século XX, se estendem desde o telefone, que se junta àfotografia, ao telegrafo, à linotipo e as rotativas de impressão, já em uso correnteno mercado, e também ao cinema, ao rádio, à televisão, às vitrolas, ao disco, aogravador de som e gravador de imagens e som, ao transistor, ao computador,aos sofisticados parelhos de escuta e espionagem de guerra, às câmeras defilmar, aos satélites de comunicação, ao computador pessoal e a todos os seus240 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 240 12/4/2011 17:33:19


derivados e periféricos no setor de informática, às fibras óticas, aos softs detodas as naturezas, à internet e à internet nas nuvens.Para entrarem no circuito do mercado, a sua produção mobiliza cientistas,tecnólogos, empresários e seus capitais, especialistas em design, publicitários e,em muitas situações, os Estados.A presença do Estado, num primeiro caso, pode ser a de agente regulador,num segundo caso como investidor estatal ou parceiro da iniciativa privada.Dependendo da tecnologia em questão, pode mobilizar forças internacionaisque regulam o mercado, que vendem tecnologias de produtos e de processos, ouas que controlam tais mercados de forma monopolista.Para cada produto ou para um conjunto de produtos, compatíveis ouconvergentes, formam-se cadeias produtivas que aglutinam capitais financeiros,insumos, tecnologias, locais apropriados, e recursos humanos para produzi-lose comercializá-los. Em função dessa produção, aparecem outros componentesnessa cadeia, que se ligam marginalmente à produção, formando opinião,formando gosto e preferência, espionando concorrentes.Os que se ligam diretamente aos aparatos tecnológicos para completarlhesas funções, são produtores de conteúdos para neles circular na forma deentretenimento, de informação e protocolos e documentos que geram novasindústrias, um típico processo de semiose. Da mesma forma interferem, quandoem funcionamento, nos aspectos formativos das carreiras profissionais, noscomportamentos de consumo das pessoas, nos marcos regulatórios gerais dasociedade e atingem, com isso, os aparelhos de estado, tanto no que diz respeitoàs garantias de direitos do Estado e de consumidores quanto do próprio Estadona sua obrigação de tutela.Na expressão de Ianni (2009):Lado a lado com o desenvolvimento das tecnologias eletrônicas,informáticas e cibernéticas, desenvolvem-se asredes, o fax, o e-mail, a internet (e com ela as redes sociaisde relacionamento, os blogs, o twitter – parêntese nosso)a multimídia, o hipertexto, a realidade virtual, o ciberespaço,a sociedade informática, o mundo sistêmico. A parcom o mundo geo-histórico, desenhado pela modernidade,emerge o mundo virtual, tecido sistematicamente, desenhadopela Pós-modernidade. Um e outro parecem distintos,separados, autônomos, uma vez justapostos outras dissonantes,estridentes. É como se a experiência e a consciênciase dissociassem, da mesma maneira que as palavras e ascoisas, a linguagem e a imagem, o real e o virtual, o ser e odevir, o dito e a desdita... Esse mundo da Pós-modernidade,Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 241livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 241 12/4/2011 17:33:19


no entanto, está amplamente articulado em moldes sistêmicos.Ele se sustenta no ar, desenraizado, volante, virtual esideral, em toda uma vasta, complexa e eficaz rede sistêmica,por meio da qual se articulam mercados e mercadorias,capitais e tecnologias, força de trabalho e mais-valia (p.72-73).Assim, o Príncipe Eletrônico descrito por Octavio Ianni, torna-se senhorda virtù e da fortuna. Capaz de transformar, sujeitos, coisas e instituições emnotáveis, da noite para o dia, e de fazer o coletivo a acreditar que as qualidadesdesses avatares se traduzirão em obras boas e imorredouras.Neste ponto vale fazer uma intervenção metodológica para lembrar ocaráter sistêmico desse mundo da Sociedade da Informação e da Comunicação,construído e trabalhado pela Pós-modernidade. Não é sistêmico porque assimo queiramos ver, por escolha teórica específica, mas porque é forma pela qualse organiza; o sistêmico está na sua ontogênese. Parece ser um imperativocategórico, e chega-se a esta conclusão por meios e caminhos teóricos osmais diversos, para visualizá-lo criticamente. Vale lembrar, também, que umprocedimento metodológico é o de buscar dimensionar, conhecer o sistema eapreendê-lo no seu processo de funcionamento ou de performance. Outro, éconhecê-lo e produzir o estudo crítico de sua performance. Isto tem uma relaçãodireta com o referencial teórico que deve orientar os trabalhos de pesquisa,merecendo, portanto uma discussão mais demorada e em outros momentos eespaços, quando se discute as Ciências da Comunicação.AS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NO CONTEXTO DA PÓS-MODERNIDADENão é possível ver a <strong>pós</strong>-modernidade sem a presença exaustiva dacomunicação como processo, como ponto crucial das relações sistêmicas.Como não vamos aqui analisar essas relações sistêmicas e sim buscar explicarcomo elas passaram a ser hegemônicas no contexto da modernidade e como,para explicá-las as Teorias da Informação e da Comunicação, como jogosdiscursivos, particulares no interior de cada ciência, vão se constituindo numtecido explicativo mais amplo, ao ponto de se agruparem na formação do quese convencionou e busca referendar como sendo a Ciência da Comunicação ouCiências da Informação e da Comunicação.As ciências, de um modo geral, têm a função de explicar as relações quese dão em áreas específicas de conhecimento. Essa colocação fica mais fácil242 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 242 12/4/2011 17:33:19


para caracterizar as ciências chamadas ciências da natureza. Com a Ciência daInformação e da Comunicação a situação torna-se mais complexa por ser tratadaem quase todos os discursos das ciências: da lógica e da matemática, passandopelas ciências factuais, pela arte, pela retórica. Está incrustada, também, nasoutras formas de saber: o filosófico, o religioso e o popular. Isto quando seconsidera, ainda, a clássica divisão dos saberes, hoje sob interpretações diversas,com base no paradigma da interseção dos saberes.Em A Invenção da Comunicação, Armand Mattelart (1996), fala dessainvenção de ciência para explicar os fenômenos que decorrerem das intervençõeshumanas na natureza e nos relacionamentos quando se alteram as relações decomunicação, desde os primórdios da humanidade. Sem querer simplificar,podemos afirmar: o discurso da comunicação como Ciência é contemporâneo,mas nos chega enriquecido pela retórica clássica, pela escolástica, pela exegesedos textos sagrados, pela retórica dos púlpitos, pelo grito dos tribunos, pela vozda imprensa e suas representações na formatação de notícias, de entretenimentoe do trabalho básico com as unidades de informação; chega enriquecido pelasociologia, pela psicologia, pela antropologia, pelas ciências da linguagem(mais próximas e mais integradas à comunicação); chega-nos, sobretudo,revolucionada pela biologia moderna e pela física.Assim como aparece no discurso das ciências em geral, esse aparecervisivelmente comprometido está no cerne das grandes narrativas, das grandesmetanarrativas, encharcadas de ideologia.Falar, portanto, da Comunicação e da Informação como ciências, implicaaceitar o novo paradigma da relatividade do saber científico e a inscriçãodas Ciências da Comunicação no vasto campo de saberes das Ciências daComplexidade.Se, por um lado, a ciência da comunicação e da informação avança porestar sendo pensada e trabalhada como elemento importante de todas as ciências,por outro, na modernidade, ela, também, adquire a lógica que tem presidido atrajetória de todas as ciências: a busca da especificidade do seu objeto. Quandotrabalhamos a Ciência da Comunicação a partir do ponto de vista do objeto“informação” amplia-se o campo da comunicação e o estendemos a todas assituações onde a interação pode chegar, envolvendo humanos, demais seresvivos e as máquinas (os instrumentos tecnológicos), numa relação orgânica oumecânica. A Ciência da Comunicação vista a partir do objeto “comunicação”nos coloca diante da mensagem, seja qual for a sua modalidade, em processointerativo. Daí porque, a comunicação humana, nessa perspectiva, é vista comoum processo social básico, dentro de uma compreensão até sistêmica. É certoque essa visão pode nos levar à radicalização de Niklas Luhmann, que reduzHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 243livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 243 12/4/2011 17:33:19


a sociedade à comunicação onde o homem torna-se um elemento exterior aosistema, o que seria uma forma de “desantropoformização” da comunicação,vista por alguns, como Lyotard, como uma visão autoritária, posto que o sistemaautopoiético, por ele transposto das teorias biológicas de Maturana e Varela paraas Ciências Sociais, tem por objetivos em suas performances a consecução dassuas metas e todos a elas devem ajustar-se, na forma de suas comunicações,visto que os sujeitos não existem como parte do sistema.Não resta dúvida que, concordando ou não com Luhmann, os sistemassocietários ou sistemas comunicacionais, na forma que vêm se constituindo, vãoalijando os sujeitos de seu âmbito quando tudo se reduz a imagem, a virtualidade,a mensagens de variadas natureza e os sujeitos no papel de emissores-receptorese vice-versa escondem-se como personas, desaparecem do plano do real, maspermanecem no novo real suas mensagens.A ontogênese da Ciência da Informação e da Comunicação, se buscadaem Norbert Wiener vamos encontrar a comunicação ligada aos mecanismos decontrole. Em seu livro Cibernética e sociedade, escrito em 1950 e revisto peloautor em 1954, explicita a sua tese da seguinte maneira:A tese deste livro é a de que a sociedade só pode ser compreendidaatravés de um estudo das mensagens e das facilidadesde comunicação de que disponha; e de que, no futurodo desenvolvimento dessas mensagens e facilidades de comunicação,as mensagens entre os homens e as máquinas,entre as máquinas e o homem, e entre a máquina e a máquina,estão destinadas a desempenhar papel cada vez maisimportante [...] Quando dou uma ordem a uma máquina,a situação não difere essencialmente da que surge quandodou uma ordem a uma pessoa (WEINER, 1993, p.16).Os elementos essenciais para compor a teoria dos sistemas fechados,recorrendo à física mecânica e ao “biologismo”, já estão dados na teoriacibernética nessa finalização categórica de Wiener (1993):Falei de máquinas, mas não somente de máquinas comcérebros de bronze e músculos de ferro. Quando átomoshumanos são arregimentados numa organização que osusa, não em sua plenitude de seres humanos responsáveis,mas como dentes de engrenagem, alavancas e bielas, poucoimporta que eles sejam feitos de carne e sangue. O queseja usado como peça de uma máquina, é, de fato, umapeça dessa máquina. Quer confiemos as nossas decisões a244 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 244 12/4/2011 17:33:19


máquinas de metal ou a essas máquinas de sangue e carne,que são as repartições oficiais, os vastos laboratórios, osexércitos e as companhias comerciais e industriais, jamaisreceberemos respostas certas às nossas perguntas se nãofizermos perguntas certas. A Garra do Macaco de carne eosso é tão mortífera quanto qualquer coisa feita de ferroou aço. O djim, que é a figura de linguagem unificadora detoda uma corporação, é tão terrível quando (sic.)(quanto?)se fosse uma celebrada invocação (WIENER, 1993, p.183).Ao levar em conta as palavras de Wiener, o Capitalismo Tardio, noseu entrelaçamento com a cultura <strong>pós</strong>-moderna, parece não nos deixar outraassertiva: deu músculos de aço ao O Príncipe Eletrônico, que aprisionou otempo e a memória para que o mundo <strong>pós</strong>-moderno seja, unicamente, o presente.REFERÊNCIASBAUDRILLARD, J. De um fragmento ao outro. São Paulo: Zouk, 2003.CARAMELLA, E. e outros (org.). Mídias: multiplicações e convergências. SãoPaulo: Editora Senac São Paulo, 2009.DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade doespetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.FERNANDES, F. A construção do imaginário cyber: William Gibson, criadorda cibercultura. São Paulo:Editora Anhambi Morimbi, 2006.HELLER, A. e FEHÉR, F. A condição Pós-moderna. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1998.IANNI, O. “O príncipe eletrônico”. In: BACCEGA, M.A. e COSTA, M.C.C.(org.). Gestão da Comunicação: epistemologia e pesquisa teórica. São Paulo:Paulinas, p.53-81, 2009.JAMESON, F. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 245livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 245 12/4/2011 17:33:19


JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. SãoPaulo: Ática, 2004.LIPOVETSKY, G. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Barcarolla,2004.LYOTARD, J-F. A condição <strong>pós</strong>-moderna. Lisboa (PT): Gradiva, 1989.MATTELART, A. A invenção da comunicação. Lisboa (PT): Instituto Piaget,1994.MATTELART, A. Comunicação-mundo: história das idéias e das estratégias.Petrópolis: Vozes, 1996.MENZES, Manuel. “Comunicação a partir da complexidade contingente damodernidade segundo a perspectiva de Niklas Luhmann”. In: INTERCOM:Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v.31, n.2, julho/dezembro 2008, p.15-33.MEUNIER, J-P. e PERAYA. Introdução às teorias da comunicação. Petrópolis:Vozes, 2008.WEINER, N. Cibernética e sociedade. São Paulo: Cultrix, 1993.Artigo recebido em: abril /2010Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010246 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 246 12/4/2011 17:33:19


A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA ABIOPIRATARIA NA AMAZÔNIAAline Ferreira de Alencar*Fernando Antônio de Carvalho Dantas **Maria Auxiliadora Minahim***Sumário: Introdução; 1. Biopirataria na Amazônia Brasileira; 1.1 A necessidade de Tutelado Direito Penal sobre o Crime de Biopirataria; 1.2 A importância da identificaçãodo bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal no crime de Biopirataria; 1.3 Reflexõessobre formas de evitar e combater a biopirataria na Amazônia Brasileira; ConsideraçõesFinais; Referências.Resumo: Embora não possua definiçãojurídica ou legal, a Biopirataria pode serconsiderada apropriação não autorizadado patrimônio genético de uma região,incluindo espécies da fauna, flora e dosconhecimentos tradicionais associadosà biodiversidade. Essa atividade ocorrenos países biodiversos, incluindo oBrasil, mais especificamente a AmazôniaBrasileira, que possui uma riquíssimabiodiversidade, e atrai a cobiça dosAbstract: Even so does not have no legaldefinition, the biopiracy can be considereda non authorized appropriation of certainregion genetic patrimony, including fauna,flora and traditional knowledge associatedto biodiversity. This kind of activityhappens in developing countries, includingBrasil, especially in the Brazilian Amazon,region rich in biodiversity, that attracts thelust for natural sources, by countries withtechnology, however poor in biodiversity,* Advogada e Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas-UEA.** Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal doParaná. Professor do Programa de Pós-<strong>graduação</strong> em Direito Ambiental da Universidadedo Estado do Amazonas. Professor convidado do Programa de Doutorado DireitosHumanos e Desenvolvimento da Universidad Pablo de Olavide em Sevilha, Espanha.Professor convidado do Programa de Doutorado em Pensamento Latinoamericano daUniversidade Nacional da Costa Rica. Professor colaborador do Centro de EstudosSociais CES, da Universidade de Coimbra Portugal. Ex-procurador Geral da FundaçãoNacional do Índio.*** Doutora e Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Professora Associada daUniversidade Federal da Bahia, presidente nacional da Associação Brasileira deProfessores de Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos daBahia.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 247livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 247 12/4/2011 17:33:19


países ricos em tecnologia e pobres embiodiversidade, que desejam fabricarnovos produtos, com o objetivo exclusivode gerar lucro. Portanto a natureza passaa ser vista como matéria prima, fonte decapital. É neste contexto que a apropriaçãodos conhecimentos tradicionais associadosà biodiversidade, pertencentes aos povosindígenas e populações tradicionais,representam um poderoso atalho para acriação de novos produtos, pois atravésda bioprospecção é possível alcançar osresultados desejados com racionalidadeeconômica. A biopirataria atenta contraos interesses nacionais e contra os direitoshumanos, por essa razão sugere-se a q<strong>uea</strong> atividade seja criminalizada pelo DireitoPenal, em virtude da relevância do bemjurídico a ser tutelado, o meio ambiente.Além disso, para se coibir a biopiratariana Amazônia, é necessário o aumento defiscalização na região, investimento emciência e tecnologia, bem como a aplicaçãodos princípios da informação, educaçãoe participação ambiental como forma dealiar os esforços do Poder Público e dacoletividade para que ocorra a prevençãodessa atividade nociva ao Brasil e aosdetentores do conhecimento tradicional.Palavras-chave:Biopirataria;Conhecimento Tradicional Associado;Biodiversidade; Amazônia Brasileira;Patrimônio Genético; Tutela Penal.who intends to manufacturate newproducts, obtaining great financial returns.Therefore the nature is seen like rawmaterial, source of capital gains. In thiscontext, the appropriation of the traditionalknowledge associated to biodiversity,from the Indians people and traditionalpopulations, depicts a powerful short cutto create new products, because using thebioprospection is possible to reach thegood results with economic rationality.The biopiracy attempts against the nationalinterest and human rights, for that reasonthere is a suggestion to punish this activityby the criminal law, considering therelevance of the object, the environment.Also, to curb on biopiracy, there is also anecessity to improve the surveillance in theBrazilian Amazon, investment in research,and the application of the information,education and environmental participationprinciples, as a way of combining the Stateand collectivity, to prevent this harmfulactivity to Brazil and the traditionalknowledge keepers.Key-words: Biopiracy; TraditionalKnowledge; Biodivesirty; BrazilianAmazon; Genetic PatrimonyINTRODUÇÃOA presente investigação científica tem por escopo analisar a necessidadede tutela penal contra a biopirataria na Amazônia. A relevância desta temáticaocorre em razão do reducionismo responsável por considerar a biodiversidadee os conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético como248 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 248 12/4/2011 17:33:19


mercadorias, bem como pela ausência de tipificação legal e penal para a atividadeda biopirataria, a qual traz inúmeros prejuízos para o Brasil, bem como para ospovos indígenas e populações tradicionais.Vandana Shiva entende que a biopirataria pressupõe uma nova forma decolonialismo, “é a ‘descoberta’ de Colombo 500 anos depois de Colombo. Aspatentes ainda são o meio de proteger essa pirataria da riqueza dos povos nãoocidentais como um direito das potências ocidentais”. Para a autora, “resistirà biopirataria é resistir à colonização final da própria vida. [...] É a luta pelaconservação da diversidade, tanto cultural quanto biológica”.A biopirataria é um problema que assola os países biodiversos, inclusiveo Brasil, que possui a maior parte do ecossistema da Amazônia em seu territórionacional. A região, segundo Ozório Fonseca, é também denominada AmazôniaContinental, Grande Amazônia ou Panamazônia e contém as seguintescaracterísticas importantes:1/5 da água doce do Planeta (sic); 1/3 das florestas latifoliadas;1/3 das árvores do mundo; 80.000 espécies vegetais;Mais de 200 espécies de árvores por hectare; 30 milhõesde espécies animais; Aproximadamente 1.500 espécies depeixes conhecidas; Cerca de 1.300 espécies de pássaros;Mais de 300 espécies de mamíferos; 10% da biota universal;1/20 da superfície da Terra; 750 milhões de hectares(500 milhões no Brasil); 4/10 da América do Sul; Mais de30% da biodiversidade do Planeta; 350 milhões de hectaresde florestas; 17 milhões de hectares de Reservas e ParquesNacionais; Maior rio do mundo em extensão (Amazonas,com 6.577 km); Maior rio do mundo em volume de água(vazão média de 200.000 m3/s); Aproximadamente 80.000km de rios; Cerca de 25.000 km de vias navegáveis;. Amaior província mineral do globo; Mais ou menos 30% doestoque genético da Terra.O Brasil também é rico em seu contexto humano, assim, estima-se que,na época da chegada dos europeus, existiam cerca de 1.000 povos indígenasno país, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Atualmente, há no territóriobrasileiro 227 povos, que falam, aproximadamente, 180 línguas diferentes. Amaior parte dessa população distribui-se por milhares de aldeias, situadas nointerior de 593 terras indígenas, de norte a sul do território nacional.O território nacional também abarca as populações tradicionais,representadas por sujeitos sociais com existência coletiva, que incorporam pelocritério político-organizativo uma diversidade de situações correspondentesHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 249livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 249 12/4/2011 17:33:20


aos denominados seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, quilombolas,ribeirinhos, castanheiros e pescadores, os quais se têm estruturado igualmenteem movimentos sociais.As populações tradicionais assim como os povos indígenas são detentoresdos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e representamos saberes pertencentes a esses povos, que possuem formas diversas de serelacionarem com a natureza.Os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade atraem ointeresse das nações desenvolvidas, principalmente representadas pelos paísesdo Norte, pobres em biodiversidade, mas ricos em tecnologia e, por essa razão,buscam apropriar-se desses saberes para fabricar produtos, com o objetivo degerar lucro.Por fim, buscou-se com esse estudo analisar a necessidade de tutela penalcontra a biopirataria na Amazônia, bem como refletir sobre formas de coibir essaatividade na região, sem pretensões de esgotar tão vasto assunto, mas contribuirde maneira reflexiva com a essa discussão.1. BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA BRASILEIRAEmbora a apropriação do patrimônio genético e o acesso aos conhecimentostradicionais associados à biodiversidade de forma não autorizada, por meio dabiopirataria ocorra em vários países biodiversos, bem como em diversas regiõesdo Brasil, este trabalho analisa a biopirataria na Amazônia Brasileira, a qualrepresenta uma região emblemática por possuir a maior sociobiodiversidade doPlaneta e atrai a atenção financeira dos biopiratas.Nesse contexto, Bertha Becker enumera algumas características únicasda Amazônia:É fácil perceber a importância da riqueza in situ da Amazônia.Correspondendo a 1/20 da superfície da Terra e a 2/5da América do Sul, a Amazônia Sul-Americana contém 1/5da disponibilidade mundial de água doce, 1/3 das reservasmundiais de florestas latifoliadas e somente 3,5 milésimosda população mundial. E 63,4% da Amazônia Sul-Americanaestão sob a soberania brasileira, correspondendo amais da metade do território nacional .A valorização ecológica da Amazônia, de acordo com Bertha Becker,apresenta duas faces: “a da sobrevivência humana e a do capital natural,250 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 250 12/4/2011 17:33:20


sobretudo, neste caso, a megadiversidade e a água” . A autora considera, ainda,a existência de três grandes eldorados: os fundos oceânicos, que ainda nãoestão regulamentados; a Antártida, que foi partilhada entre as potências; e aAmazônia, a única que pertence a majoritariamente um só Estado Nacional,qual seja o Brasil.Ao observar as riquezas existentes na Amazônia, percebe-se o motivo de aregião ser tão atrativa para os países desenvolvidos, os quais almejam se utilizarda biodiversidade para criar ou aprimorar novas tecnologias e depois vendêlas,amparados pelo sistema mundial de patentes, o qual acaba por legitimar aapropriação privada da biodiversidade.Danilo Lovisaro do Nascimento possui também o mesmo entendimento,ao afirmar que a exploração dos conhecimentos tradicionais e da biodiversidaderealizada pelos países desenvolvidos, sem a autorização dos Estados ou dospovos indígenas e populações tradicionais dos países menos desenvolvidos,possui como maior estimulador o acordo de TRIPs:O principal mecanismo jurídico para garantir aos paísesdesenvolvidos a exploração desse patrimônio alheio e colhidosem autorização tem sido o monopólio decorrente depatentes, que vêm sendo conferidas a esses países por meiodo Acordo Geral sobre Propriedade Intelectual (TRIPS) noâmbito da Organização Mundial do Comércio .Por outro lado, em razão das dimensões continentais, bem como dascomplexidades geopolíticas da Amazônia, especificamente a Brasileira, abiopirataria na região ocorre das mais diversas formas: pesquisadores disfarçadosde turistas ou estudantes, os quais adentram na Amazônia para coletar elementosda biodiversidade, organizações não governamentais (ONGs) de fachada, falsosmissionários de várias seitas e religiões, contrabandistas, dentre outros, cujoúnico pro<strong>pós</strong>ito é espoliar os recursos naturais, principalmente pela utilizaçãodos conhecimentos tradicionais.Quando esses “pesquisadores” se utilizam dos conhecimentos tradicionaisassociados à biodiversidade para a fabricação de novos produtos, reduzemconsideravelmente o tempo de pesquisa e dinheiro no patamar de até 400% deeconomia, motivo pelo qual esse conhecimento representa grande “valor” aosbiopiratas.Além disso, observa-se que as dimensões continentais da AmazôniaBrasileira representam um fator incentivador para a prática da biopirataria e, poressa razão, a imensidão da região configura um obstáculo a ser enfrentado parase evitar a biopirataria, em virtude da necessidade de fiscalização e controle,Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 251livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 251 12/4/2011 17:33:20


uma vez que essa atividade ilícita pode ser realizada em qualquer ponto doscinco milhões de quilômetros quadrados da região.Da mesma forma, Ozório José de Menezes Fonseca explica que aespoliação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais da AmazôniaBrasileira, por meio da biopirataria, é facilitada por inúmeros artifícios utilizadospelos biopiratas que possuem conhecimento, dentre outras limitações, sobre aprecariedade de fiscalização na região:[...] Na realidade, a experiência mostra que, para retirarmaterial biológico da Amazônia, não há necessidade de estruturasformais. Na era da biotecnologia e da engenhariagenética, tudo de que se precisa, para reproduzir uma espécie,são algumas células facilmente levadas e dificilmentedetectadas, por mecanismos de vigilância e segurança.O bolso, a caneta, o frasco de perfume, os estojos de maquiagem,os cigarros, os adornos artesanais, as dobras ecosturas das roupas, enfim, há milhares de maneiras de esconderfragmentos de tecidos, culturas de micro-organismos,minúsculas gêmulas ou diminutas sementes, sem queseja necessário o uso de muita criatividade .Sobre a questão em análise, Patrícia Arruda Del Nero menciona algunsdos elementos presentes na maioria dos casos de biopirataria. 1) A existência deuma organização não governamental, cuja preocupação normalmente é a suposta“defesa do meio ambiente”; 2) os passeios “ecológicos” dos turistas ambientais,os quais, com olhar de rapina e tentáculos vorazes, saqueiam a biodiversidadenacional para garantir interesses transnacionais; 3) a formalização de “acordos”com comunidades indígenas, mediante os quais os corsários tentam aproximaçãocom os povos indígenas e ganham sua confiança, com um discurso amigo,enquanto prestam atenção em seus conhecimentos tradicionais para transformálosem conhecimento científico a serviço do capitalismo transnacional. Por fim,trancam a tecnologia obtida nos cofres dos escritórios que concedem patentes.Embora a discussão acerca da biopirataria tenha tido notoriedade apenas apartir de 1990, o problema configura uma prática antiga, visto que “fatos históricosrevelam a sua ocorrência ao longo dos séculos, desde o descobrimento, como naextração do pau-brasil, no contrabando da semente da seringueira, do quinina edo curare”, não obstante essa prática não fosse denominada biopirataria, pois oconceito é atual.Nesse sentido, Clarissa Wandscheer ensina que expressão biopiratariasurgiu em 1993 e foi lançada pela ONG RAFI , com o escopo de alertar sobreo fato de recursos biológicos e conhecimentos tradicionais indígenas estarem252 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 252 12/4/2011 17:33:20


sendo apanhados e patenteados por empresas multinacionais e instituiçõescientíficas, sem a autorização do governo brasileiro. Para a autora, pretendia-seainda denunciar os abusos sofridos pelas comunidades tradicionais, visto que elasnão estavam recebendo a devida repartição de benefícios, além de isso impedir apossibilidade do desenvolvimento sustentável das comunidades, impulsionar adegradação do meio ambiente e vulgarizar o conhecimento tradicional.Contudo, é necessário esclarecer que um dos casos mais notórios deespoliação da biodiversidade amazônica foi o da Borracha, extraída a partirdo látex da seringueira, Hevea brasiliensis, cujas sementes foram levadas pelo“naturalista” inglês Henry Wickman e plantadas no Kew Botanical Gardens,na Inglaterra, onde se multiplicaram e, posteriormente, foram transplantadasna Malásia. Apesar de desbancarem a produção brasileira e trazerem inúmerosprejuízos para o Brasil, não configura um caso de biopirataria, pois, conformeexplica o economista Roberto Araújo de Oliveira Santos , o inglês obteveautorização legal do governo brasileiro para exportar as sementes. Alémdisso, as empresas britânicas e americanas desejavam transferir a produção daborracha para outro lugar em razão de o sistema brasileiro ser ineficiente e haverprovocado a ira de entidades antiescravagistas.Embora legalmente não tenha configurado biopirataria, o plantio deseringueira fora do Brasil trouxe grandes prejuízos e serviu para alertar que nãose pode dispor dos recursos naturais da Amazônia Brasileira, uma vez que, nãotendo mais exclusividade, a região perde poder em detrimento de outras nações.Em contrapartida, não se pode negar a ocorrência da biopiratariaconfigurada pela apropriação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionaisem diversos casos, apontados pelo Instituto de Tecnologia do Paraná, por meioda Agência Paranaense de Propriedade Industrial – APPI:1) a andiroba, usada pelos índios como repelente para insetos, contrafebre e como cicatrizante, foi patenteada pela empresa Rocher Yves Vegetable,que possui direitos sobre a produção de cosméticos ou remédios que possuemseu extrato; 2) o cupuaçu, fruto amazônico que foi patenteado pela empresaAsahi Foods, para a produção do cupulate, uma espécie de chocolate. Essapatente, contudo, foi revertida por não possuir o requisito de patentiabilidade,novidade; 3) o sapo tricolor, produtor de uma toxina analgésica duzentas vezesmais potente que a morfina, a qual foi patenteada pelo laboratório americanoAbbott; 4) o pau-rosa, utilizado como fixador de aroma em diversos países,atualmente é a matéria-prima do perfume Chanel 5, dentre muitos outros casos.Por seu turno, Argemiro Procópio também destaca inúmeros casos deapropriação dos conhecimentos tradicionais dos povos amazônicos por meio dabiopirataria, a qual denomina “bionegócio” e, segundo ele, representa o novocampo para exportações bilionárias:Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 253livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 253 12/4/2011 17:33:20


Remédios vendidos nas prateleiras das farmácias do mundointeiro trazem riquezas para transnacionais, graças ao conhecimentotradicional e causam impiedosa descrição emseu processo de cata ou colheita. Vale citar, a título de exemplo,o jaborandi, Pilocarpus jaborandi,, usado no tratamentode glaucoma; a espinheira santa, Maytenus ilicifol,acontra distúrbios estomacais; o látex antiviral da corticeira,Erythrina crista-galli; o veneno da Bothops jararaca, transformadoem anti-hipertensivos; poderoso analgésico presentena pele do sapo Epipadobates tricolor. Esses e centenasde outros frutos da biopirataria enriquecem mais aindamultinacionais e grandes laboratórios como o Abbot, Bristol-MeyersSquibb, Eli Lilly, Nippon Mektron, ShapmanPharmaceuticals, Monsanto, Merco etc .Juliana Santilli considera que os casos de biopirataria possuem como fatorde identificação, a ocorrência das espécies vegetais ou animais serem coletadascom ou sem o uso de conhecimento tradicional associado e sem consentimentoprévio e informado do país de origem e levadas ao exterior com o objetivo deserem identificados os princípios ativos úteis, com base nos quais os produtose processos foram patenteados, tanto sem a repartição de benefícios com opaís de origem, quanto sem a população fonte do conhecimento obter qualquerbenefício.Não obstante, neste estudo, considera-se que a biopirataria não estádissociada da apropriação dos conhecimentos tradicionais pertencentesaos povos indígenas e populações tradicionais. Nesse sentido, além da nãodissociação que fazem os povos indígenas entre o objeto conhecido e o sujeitodo conhecimento, com a ajuda da bioprospecção, é possível alcançar resultadosmais rápidos e evitar, assim, o desperdício na racionalidade econômica.Por outro lado, é importante ressaltar que, para os povos indígenas, abiopirataria só ocorre quando existe a utilização do conhecimento tradicional,haja vista que esses povos não consideram os elementos da biodiversidade deforma isolada, conforme foi demonstrado no III Foro Indígena Internacionalsobre a Biodiversidade, realizado na Eslováquia, em maio de 1998, quandoesses povos afirmaram:Que nossas culturas se fundamentam nos princípios de harmonia,paz, desenvolvimento sustentável e equilíbrio coma natureza, por esta razão a conservação e utilização dos recursosformam parte da cosmovisão e vida diária dos PovosIndígenas e comunidades locais.254 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 254 12/4/2011 17:33:20


Nota-se que a biopirataria está diretamente relacionada com a apropriaçãodos conhecimentos tradicionais, portanto entende-se necessária a tutela dodireito penal para coibir essa atividade nociva, em razão da importância do fato,o que demanda suporte desse ramo do direito voltado para a proteção de bensessenciais, com o objetivo de definir essa atividade como crime, a fim de tutelara sociobiodiversidade brasileira.1.1 A NECESSIDADE DE TUTELA DO DIREITO PENAL SOBRE O CRIMEDE BIOPIRATARIAEm face dos diversos aspectos discutidos neste estudo, entende-se que abiopirataria configura um crime, embora, no ordenamento jurídico brasileiro,essa atividade não seja tipificada ou incriminada, haja vista que nem o CódigoPenal Brasileiro, nem a legislação penal que trata sobre os crimes contra o meioambiente abordam essa questão.No ordenamento jurídico brasileiro, a legislação responsável pelacriminalização das ofensas ambientais é a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de1998 , conhecida por Leis dos Crimes Ambientais, que não tipifica a biopiratariacomo um crime. Contudo, é interessante ressaltar que, no projeto inicial dessalei, devidamente aprovado pelo Congresso Nacional, havia a inclusão dabiopirataria como crime, no artigo 47, que foi vetado pelo então presidente daRepública Fernando Henrique Cardoso.A título meramente informativo, o vetado art. 47 possuía a seguinteredação:Art. 47. Exportar espécie vegetal, germoplasma ou qualquerproduto ou subproduto de origem vegetal, sem licençada autoridade competente:“Pena - detenção, de um a cinco anos, ou multa, ou ambasas penas cumulativamente”.As razões explanadas pelo ex- Presidente da República, para justificar oveto do artigo supracitado, foram:O artigo, na forma como está redigido, permite a interpretaçãode que entidades administrativas indeterminadasterão que fornecer licença para a exportação de quaisquerprodutos ou subprodutos de origem vegetal, mesmo os deespécies não incluídas dentre aquelas protegidas por leisHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 255livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 255 12/4/2011 17:33:20


ambientais. A biodiversidade e as normas de proteção às espéciesvegetais nativas, pela sua amplitude e importância,devem ser objeto de normas específicas uniformes. Ademais,existem projetos de lei nesse sentido em tramitaçãono Congresso Nacional .Em razão de não existir punição específica para o crime de biopirataria,alguns casos concretos se tornam difíceis de serem solucionados. Nessecontexto, um dos casos de notoriedade internacional – e que deu causa a umadecisão considerada a primeira condenação por biopirataria no Brasil –, foi oocorrido em junho de 2007, cujo autor foi o holandês naturalizado brasileiro,Marc Van Roosmalem, renomado e premiado pesquisador internacional.O pesquisador acima mencionado foi condenado pela Justiça Federal daSeção Judiciária do Amazonas pelo cometimento de diversas práticas criminosas,como manter animais em cativeiro sem autorização do órgão ambientalcompetente, transportar ilegalmente macacos e orquídeas, estas últimas, sob aacusação de vender pela Internet, por preços que variavam de US$ 500 mil aUS$ 1 milhão, o direito de escolha do nome das espécies de macaco por eledescobertas, dentre outras imputações penais.Pelos crimes supracitados, o pesquisador foi condenado a uma pena dequinze anos e nove meses de prisão, sendo que quatorze anos e três meses sãoreferentes apenas à acusação de peculato. Não obstante, Van Roosmalem ficoupreso por menos de um mês, em razão de ter sido liberado por ordem de habeascorpus concedida pelo Tribunal Regional Federal-TRF, da 1.ª Região, pararesponder a seu processo em liberdade.A condenação do cientista foi amplamente criticada por organismosinternacionais, os quais alegaram entraves às pesquisas científicas, no entanto,para este trabalho, é importante observar a fragilidade das normas incriminadorasque tutelam a biodiversidade, haja vista que são incapazes de evitar a espoliaçãodo patrimônio genético dos conhecimentos tradicionais pela biopirataria.Vislumbra-se a necessidade da tutela penal sobre o crime de biopirataria,em virtude da existência de uma preocupação legítima com relação à proteçãoà biodiversidade brasileira e aos conhecimentos tradicionais associados. Emrazão dessa situação, é necessário saber a real intenção dos pesquisadores q<strong>uea</strong>dentram na região, para constatar se a pesquisa é bem intencionada ou visaapenas à espoliação da biodiversidade. Sobre a questão, Nascimento consideraque:256 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 256 12/4/2011 17:33:20


[...] O problema está em saber como reconhecer a ajudaestrangeira bem intencionada, que possa cooperar como desenvolvimento regional e aquela que busca apenaso lucro e somente servirá para alimentar o processo dedominação dos países desenvolvidos sobre os países emdesenvolvimento .Observa-se, portanto, a necessidade de tutela jurídica sobre o crime debiopirataria, e por essa razão, sugere-se a criação de norma jurídica com esseobjetivo. Nesse panorama, Juan Ramón Capella ensina que, para serem criadasnovas normas jurídicas, não basta haver vontade do poder jurídico político, masdeve haver uma etapa de negociação da norma futura:Nas experiências que respondem a este tipo de jogo, asnormas jurídicas não nascem, em nosso tempo, somente davontade do poder jurídico-político, ainda que esta vontadeseja uma condição necessária de sua existência. Para formara vontade normativa do poder jurídico-político, dá-sepreviamente uma etapa de negociação da norma futura .Capella prossegue e afirma que os distintos agentes sociais interessadosem obter uma norma jurídico-política que determine direitos ou legitimeinteresses deve negociar com as autoridades para estabelecer o conteúdo dasnormas em questão. Desse modo, para, o autor:Esta negociação tem um caráter essencialmente político.Sua essência pode ser macroscópica [...] ou microscópica[...], esse caráter político não se vê afetado, sem embargo,pelas dimensões do objeto da negociação. O que se negocia,ao final de contas, é uma decisão que há de tomar umpoder instituído e explícito da sociedade, legitimado paraditar normas jurídicas .Em razão de tudo que foi estudado, sugere-se que ocorra a tutela penalsobre o crime de biopirataria, quando for comprovada a intenção do sujeitoativo para cometer essa atividade ilícita e, desse modo, será vislumbrada apossibilidade de proteção do direito penal ao crime de biopirataria, bem comoserá identificado o bem jurídico a ser tutelado por esse ramo do Direito.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 257livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 257 12/4/2011 17:33:20


1.2 A IMPORTÂNCIA DA IDENTIFICAÇÃO DO BEM JURÍDICO A SERTUTELADO PELO DIREITO PENAL NO CRIME DE BIOPIRATARIAPara que algo seja tutelado pelo Direito e pelo Direito Penal em especial,inicialmente é necessária a identificação do bem jurídico a ser protegido, oqual deve possuir alguma importância ou valor para o direito. Nesse panorama,Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado ensina que a importância da identificaçãodo bem jurídico para o Direito Penal ocorre em razão da obrigatoriedade de olegislador partir do princípio de que todo crime é uma ofensa a um bem jurídicoindividual, coletivo ou difuso preexistente à norma, deduzido de uma fontemetajurídica (segundo teorias sociológicas), ou de uma fonte jurídica superior,que é a Constituição Federal (consoante concepção dos constitucionalistas).Segundo a mesma autora , “bem, em sentido amplo, é tudo aquilo queé valioso, que é necessário para o homem”. Desse modo, apenas alguns benssão considerados bens jurídicos, haja vista que o Direito determina os que sãodotados de valor e, por esse motivo, receberão proteção jurídica.Por seu turno, Luiz Régis Prado considera que o “pensamento jurídicomoderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penalradica na proteção dos bens jurídicos” . Portanto, para o autor, em um Estadodemocrático e social de Direito, é imprescindível a noção de bem jurídico paraque ocorra tutela penal:Em um Estado democrático e social de Direito, a tutelapenal não pode vir dissociada do pressuposto do bem jurídico,sendo considerada legítima, sob a ótica constitucional,quando socialmente necessária. Isso vale dizer: quandoimprescindível para assegurar as condições de vida, o desenvolvimentoe a paz social [...] A noção de bem jurídicoimplica a realização de um juízo positivo de valor acerca dedeterminado objeto ou situação social e de sua relevânciapara o desenvolvimento do ser humano .Contudo, Álvaro Sanchez Bravo esclarece que o Direito Penal deve ser aúltima fronteira a ser recorrida para reparar danos experimentados pelos estadosdemocráticos:De todos é conhecido como nos estados democráticos o DireitoPenal se considera a última fronteira, la ultima ratio, acujo auxílio se recorre ante sucessos (ações e/ou omissões)de especial gravidade que requerem a máxima censura por258 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 258 12/4/2011 17:33:20


causar dano aos valores e direitos fundamentais, individuaise coletivos, que nos definem como pessoas e cidadãos .Ainda em se tratando de bem jurídico, Maria Auxiliadora Minahimconsidera que, embora exista controvérsia sobre a definição desses bens, elessão imprescindíveis para a existência comum e devem ser tutelados pelo DireitoPenal:Considere-se que, apesar de reinar grande controvérsia sobreo conceito de bem jurídico, não se nega que se tratade bens ou valores considerados imprescindíveis para a existênciacomum e, por isso, merecedores da mais intensatutela jurídica, ou seja, da proteção penal .Desse modo, Minahim, ao tratar sobre a aprovação do Direito Penal paratutelar as questões referentes à biotecnologia, considera que esse ramo do Direitoé naturalmente convocado para emprestar sua adesão e coercitividade na tutelade bens e interesses que se deseja preservar de lesões e ameaças produzidaspela biotecnologia, em razão não somente de sua importância, mas também pelagravidade dos ataques.A autora prossegue e afirma que o ineditismo das situações referentes àbiotecnologia, assim como a velocidade em que elas ocorrem têm surpreendidoo Direito Penal e provocado, assim, não só uma desestabilização nesse ramo doDireito, mas também ocasionado a necessidade de alinhamento daquele com arealidade. Nesse contexto, segundo Minahim, o Direito Penal não é confrontadosomente por questões postas pela Bioética, mas também “com o problemarelativo ao oferecimento ou não de tutela a outros questionamentos trazidospela sociedade <strong>pós</strong>-moderna”.Portanto, Minahim considera que os bens jurídicos, para os quais se buscaproteção do Direito Penal, possuem natureza diferenciada daqueles que eramprotegidos desde o Iluminismo, motivo pelo qual existe a polêmica sobre aintervenção desse Direito na denominada sociedade de risco. Nesse sentido, aautora reputa que a natureza pode ser objeto de tutela pelo Direito Penal:Pode-se mesmo afirmar que é a própria natureza (bem difuso,supraindividual) e a forma de proporcionar-lhe proteçãoeficaz que constituem o cerne de toda a polêmica em tornodo papel da intervenção do direito penal na chamada sociedadede risco .Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 259livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 259 12/4/2011 17:33:20


É importante ressaltar que a sociedade de risco é representada pelacomunidade contemporânea, caracterizada pela intensa divisão social dotrabalho, pelo consequente crescimento da complexidade e, ainda, pela adoção detecnologias, cujas consequências são impossíveis de se medir, os denominadosriscos. Por conseguinte, a sociedade de risco é o local onde ocorrem os riscose os fenômenos como o da irresponsabilidade organizada ou irresponsabilidadegeral, que segundo Ulrich Beck pressupõe:[...] À divisão do trabalho muito diferenciada correspondea uma cumplicidade geral e, a esta, uma irresponsabilidadegeral. Cada qual é causa e efeito e, portanto, não é causa.As causas se diluem em uma mutabilidade geral de atores econdições, reações e contrarreações.Na sociedade de risco, um dos problemas a serem enfrentados diz respeitoà proteção do meio ambiente e, nesse contexto, em se tratando da discussãoacerca da viabilidade da proteção do Direito Penal ao meio ambiente, LuizRegis Prado entende que o meio ambiente é digno e capacitado de receber atutela penal. Além disso, considera que a lei penal não deve punir somenteas agressões ao meio ambiente, mas ainda os comportamentos nocivos queimpeçam sua utilização de forma livre e solidária. Portanto, o autor observa que:Em remate, quadra aqui a reafirmação do ambiente, comobem jurídico de natureza difusa, – digno e capacitado emerecedor de tutela penal – adequado ao livre desenvolvimentoda pessoa humana, com vistas à proteção e melhorade sua qualidade de vida (exercício, gozo de todas as suaspotencialidades), de conformidade com a diretriz (formal ematerial) perfilhada no texto maior. É de se reter ainda que,no Estado democrático e social de direito, a lei penal nãodeve se contentar em punir as agressões ao meio ambiente,mas também alcançar comportamentos que dificultem ouimpeçam seu desfrute de forma livre e solidária .A importância de se punir a biopirataria na esfera penal dá-se em razãodo bem jurídico a ser tutelado, qual seja o meio ambiente. Com efeito, ÁlvaroSanchez Bravo considera que esse ramo do Direito só deve socorrer os atentadosmais graves aos bens e interesses individuais e coletivos, suscetíveis de sesubmeterem à censura mais contundente à restrição de direitos mais palpáveisna liberdade e no patrimônio dos cidadãos culpados por determinados atoslesivos . Assim Sanchez Bravo entende que:260 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 260 12/4/2011 17:33:20


A apelação ao Direito Penal para a proteção do meio ambientesupõe considerá-lo como um desses valores e interesses,como uma realidade, sem a qual não se entende asociedade, nem os Estados, nem o próprio ser humano. Se oDireito Penal deve recorrer em defesa do medo ambiente éporque é tão importante, tão imprescindível, que um ataquecontra o mesmo rachará os cimentos de nossa própria existência.Logo, ao se criminalizar a biopirataria, o bem jurídico a ser tutelado peloDireito Penal seria a biodiversidade, representada pelos seus elementos naturaise pelos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético. Portanto,a conduta que se pretende coibir é a apropriação não autorizada das riquezasnaturais que pertencem ao Brasil e a seus povos, bem como os conhecimentostradicionais associados à biodiversidade, os quais pertencem a seus detentores.Sobre a tutela do Direito Penal à biodiversidade, Nascimento pensacriticamente que, na atualidade, não criminalizar a biopirataria configurariaum erro, haja vista que os demais mecanismos para coibir essa atividade tãoprejudicial ao País são ineficientes. Assim, nas palavras do autor:[...] No momento presente, não criminalizar a biopiratariaseria um erro, pois os demais mecanismos estabelecidospara realizar o referido controle se mostram ineficientes epouco importa se a ineficiência é por inoperância do próprioaparelho estatal. O que é relevante, neste caso, é que o DireitoPenal, mais do que os outros meios de controle, exercetambém uma função intimidadora ou de prevenção geralque necessariamente contribui para a preservação de umbem juridicamente protegido .Ainda em se tratando da necessidade de criminalização para essa conduta,Nascimento afirma que “a biopirataria atenta contra os interesses nacionais etambém se constitui em uma prática violadora de direitos humanos, nunca sendodemais lembrar que tutelar o meio ambiente é proteger a própria vida”.Nesse contexto, a<strong>pós</strong> verificar-se que o bem jurídico a ser tutelado pelodireito penal seria o meio ambiente, sugere-se que o direito estabeleça umatipificação penal para enquadrar esse crime em razão dos tipos penais existentesnão serem eficazes para punir essa atividade ilícita. Para tanto, é necessária aaplicação de alguns princípios desse ramo do direito como o da subsidiariedade,necessidade e fragmentariedade, os quais são importantes quando se trata daintervenção do Direito Penal no que concerne aos recursos naturais. Da mesmaHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 261livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 261 12/4/2011 17:33:20


forma, entendem Prado e Minahim:É importante frisar que não se defende, aqui, a expansãoarbitrária da tutela penal, mas apenas aquela que se pautenos princípios da fragmentariedade, da necessidade e dasubsidiariedade do direito penal. Dessa forma, a intervençãopenal no tocante à proteção dos recursos naturais deveser parcimoniosa, e deve incidir apenas quando a lesão forgrave a ponto de justificar a privação de outros bens tãorelevantes para o ser humano, como a liberdade .Para se ter uma breve noção acerca dos princípios supracitados, oprincípio da fragmentariedade dispõe que “nem todo tipo de ofensa deve serconsiderado pelo direito penal, mas aquelas socialmente intoleráveis em relaçãoao bem jurídico” . Nesse contexto, Gustavo O. Diniz Junqueira explica que:Nem toda lesão a bem jurídico com dignidade penal carecede intervenção penal, pois determinadas condutas lesamde forma tão pequena, tão ínfima, que a intervenção penal,extremamente grave seria desproporcional, desnecessária.Apenas a grave lesão a bem jurídico com dignidade penalmerece tutela penal .Do mesmo modo, Damásio de Jesus entende que o princípio dafragmentariedade é consequência dos princípios da reserva legal e da intervençãomínima. Para o autor, o Direito Penal não protege todos os bens jurídicos,somente os mais importantes e, dentre estes últimos, não os tutela de todas aslesões, mas somente das de maior gravidade. Por esse motivo, é fragmentário.Gustavo Junqueira entende, ainda, que o princípio da fragmentariedadedecorre do princípio da subsidiariedade , o qual determina que o Direito Penalé um remédio subsidiário e, desse modo, deve ser reservado apenas para assituações em que outras medidas estatais ou sociais não foram suficientes paraprovocar a diminuição da violência gerada por determinado fato. Segundo o autor,se for possível evitar a violência da conduta com ações menos gravosas que asanção penal, a criminalização da conduta se torna ilegítima ou desproporcional.Por último, o princípio da necessidade, segundo Alessandra Prado, deveser utilizado quando determinados bens jurídicos são expostos à ofensa e nãoé suficiente para sua tutela a intervenção civil ou administrativa, de modo quepassa a ser exigida a interferência do Direito Penal para sua proteção.Entende-se, portanto, que é urgente a necessidade de se criar um tipopenal novo para enquadrar o crime de biopirataria, não obstante essa questão262 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 262 12/4/2011 17:33:20


deva ser estudada e aprofundada pelos operadores do Direito, alicerçados noDireito Penal e em outros ramos do Direito e até mesmo em disciplinas de outrasáreas do conhecimento, visto que, por se tratar de uma questão complexa, deveser avaliada com cautela, a fim de se evitar prejuízos às pesquisas científicas, àsociedade, aos detentores do conhecimento tradicional e à soberania do Brasil.Embora se defenda a criminalização para a conduta da biopirataria, essanão configura a única sugestão para tratar do problema. Conforme se verificou,a tutela pelo Direito Penal dá-se em razão da importância do bem jurídico a sertutelado, embora seja importante ressaltar que somente a tipificação penal nãoserá capaz de elucidar o problema, uma vez que ainda há muito a ser feito comrelação a essa questão e, portanto, são necessárias outras reflexões sobre o tema.1.3 REFLEXÕES SOBRE FORMAS DE EVITAR E COMBATER A BIOPIRA-TARIA NA AMAZÔNIA BRASILEIRAEvitar a biopirataria na Amazônia não é uma questão simples, em razãode muito precisar ser feito para coibir essa atividade nociva para a região.Por esse motivo, serão analisadas algumas hipóteses possíveis de ajudar nocombate à biopirataria, a fim de buscar formas de proteção à biodiversidade eaos conhecimentos tradicionais pertencentes aos povos indígenas e populaçõestradicionais.Conforme já demonstrado nesta pesquisa, entende-se necessária a tutelado Direito Penal a fim de criminalizar a conduta da biopirataria e imputar puniçãoaos agentes que cometerem a espoliação da biodiversidade e dos conhecimentostradicionais. Essa tutela penal dá-se em razão da importância do bem jurídico aser tutelado, o meio ambiente, essencial para a manutenção da vida no Planeta.Por outro lado, levando-se em consideração os estudos realizados porÁlvaro Sanchez Bravo, somente a aplicação do Direito Penal não é suficientepara proteger o meio ambiente, uma vez que esse ramo do Direito tem porescopo reprimir e castigar a conduta ilícita, apesar de ser importante a prevençãodo dano. Assim, Bravo ensina que:[...] Convêm assinalar que somente a apelação ao DireitoPenal não bastará por si só para erradicar os atentados aomeio ambiente. Em primeiro lugar, porque o Direito Penaltenderá fundamentalmente a reprimir, a castigar uma vez odano se haja inferido. A margem dos clássicos fins atribuídosao Direito Penal (prevenção geral e especial), a funçãopreventiva requer outros mecanismos e outras implicações .Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 263livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 263 12/4/2011 17:33:20


Bravo prossegue e afirma que, além da aplicação do Direito Penal, éimprescindível que haja a educação e o compromisso para prevenir os danos aomeio ambiente:É evidente que o Direito Penal pode jogar um papel muitoimportante para articular um sistema sancionador frente acondutas que anteriormente acabavam na impunidade, ouem uma leve sanção (geralmente econômica). Porém, juntoa ele, para assegurar que se previnam os atentados, devemaparecer outras variações a considerar: educação e compromisso.Além disso, Bravo considera que, junto à educação e informação sobreo meio ambiente, outra variação vem determinada pelo compromisso, apesarde esse compromisso não ser somente dos cidadãos, mas também dos Estados.Nesse sentido, os Estados também devem sentir o problema como global,não circunscrito aos direitos existentes dentro dos limites de suas fronteirasterritoriais.Nessa perspectiva, é importante ressaltar que, no ordenamento jurídicobrasileiro, o princípio da participação, dentre outras conceituações, diz respeito àcoletividade e ao Estado agirem em conjunto na preservação do meio ambiente.Desse modo, Fiorillo considera que:A Constituição Federal de 1988, em seu art. 225, caput,consagrou na defesa do meio ambiente a atuação presentedo Estado e da sociedade civil na proteção e preservação domeio ambiente, ao impor à coletividade e ao Poder Públicotais deveres. Disso se retira uma atuação conjunta entre organizaçõesambientalistas [...] e tantos outros organismossociais na defesa e preservação .Com efeito, Fiorillo considera que, para ocorrer essa atuação em conjunto,é imprescindível a união dos princípios da informação e educação ambiental,numa relação de complementaridade. Nesse contexto, o princípio da informaçãoambiental está disposto no art.225 §1.°, IV, da Constituição Federal:Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamenteequilibrado, bem de uso comum do povo e essencialà sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público eà coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para aspresentes e futuras gerações.264 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 264 12/4/2011 17:33:21


§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbeao poder público:[...]VI - promover a educação ambiental em todos os níveis deensino e a conscientização pública para a preservação domeio ambiente;Por seu turno, o princípio da educação ambiental, segundo Fiorillo,decorre do princípio da participação da tutela do meio ambiente e está dispostona Constituição Federal no art.225 §1.°, VI, acima mencionado. Logo, parao autor, “buscou-se trazer a consciência ecológica ao povo, titular do meioambiente, permitindo a efetivação do princípio da participação na salvaguardadesse direito”.Logo, além da tutela penal contra a atividade nociva da biopirataria, énecessário que haja a aplicação dos princípios retromencionados, quais sejam:educação, informação e participação, para que ocorra a conscientização dacoletividade sobre a gravidade da biopirataria e, junto com o Poder Público,buscar formas de prevenção contra esse crime.Além do já que foi exposto, para se prevenir a biopirataria, segundoFonseca, é necessário que exista uma política de investimentos em ciência etecnologia na região, uma vez que a Amazônia Brasileira é pouco conhecidae estudada, em razão da carência de pesquisadores, investimentos políticos,incentivos às pesquisas, dentre outros, os quais acabam por prejudicar oconhecimento sobre a região, bem como seu desenvolvimento.Nesse contexto, ressalta-se a importância de serem firmados convêniosnacionais ou internacionais, alicerçados na transparência, clareza e legalidadepara possibilitar a realização de pesquisas na região, a qual possui pouca basefísica e humana para promover estudos, por meio da busca de cooperação comoutros centros de pesquisa.Sobre a situação, Ozório José de Menezes Fonseca entende que proibiracordos que viabilizem convênios com outros centros de pesquisa significaperpetuar a miséria na região:Evitar ou proibir esses acordos significa perpetuar a misérianessa região que tem urgência em se desvendar, através daaquisição de novos conhecimentos que levem à descobertade novas tecnologias ou benefícios. É também impediravanços científicos importantes, sem conseguir evitar queoutros países recebam e estudem nossa biota, pois os mecanismospara retirada de organismos, extratos químicos ouHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 265livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 265 12/4/2011 17:33:21


substâncias, seja através da exportação ou da denominadabiopirataria, são quase impossíveis de serem combatidos.Em se tratando do investimento em convênios internacionais, éimportante mencionar o exemplo da Costa Rica, que estabelece, por meio doINBio, diversos contratos que possibilitam desde investigação básica até abusca e identificação de recursos da biodiversidade para aplicação comerciale podem ser utilizados por indústrias de diversos segmentos: farmacêuticas,biotecnológicas e agroquímicas, além de instituições de pesquisa e acadêmicas.Segundo Rodrigo Zeledón, o INBio é uma organização da sociedade civil,de caráter não governamental sem fins lucrativos, criada em 1989 e trabalha emregime de colaboração com diversos órgãos do governo, universidades, setorempresarial e outras entidades públicas e privadas, dentro e fora do país. Aorganização tem personalidade jurídica e trabalha com vistas ao conhecimentoda diversidade biológica do país e promove sua conservação e uso sustentável.A sua relação com o governo é regulamentada por um contrato denominado“convênio cooperativo”.Os três objetivos principais do INBio, definidos por Zeledón, são aexecução de um inventário nacional, a consolidação de uma base de dados e adivulgação das informações geradas à sociedade. De acordo com essa ordem,somente depois, viria a bioprospecção, que começou a ser concretizada peloInstituto em 1991, quando foi criada uma unidade de prospecção.Nesse contexto, Muñoz considera as ações realizadas na Costa Rica uma“boa política de acordos com grandes empresas para identificação e exploraçãode recursos biológicos com potencialidade” . Da mesma forma, entendemDourojeanni e Pádua: “[...] Países como a Costa Rica alcançaram progressosnotáveis na maior parte dos aspectos que compõem o complexo tema da pesquisa,do aproveitamento e da comercialização de recursos da biodiversidade”.Com efeito, Vandana Shiva é contrária a esse tipo de acordointernacional, uma vez que a autora considera que o acordo realizado entre aMerck Pharmaceuticals e o INBio da Costa Rica não respeita os direitos dascomunidades locais, nem o governo daquele país. Shiva prossegue e critica que:[...] Os que venderam a bioprospecção nunca tiveram direitoà biodiversidade, e aqueles cujos direitos não estãosendo vendidos ou alienados por meio da transação, nuncaforam consultados nem tiveram a chance de participar.Além do mais, embora as taxas de bioprospecção pudessemser usadas para aumentar a capacidade científica noTerceiro Mundo, o que realmente se cria é uma instalaçãopara a empresa .266 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 266 12/4/2011 17:33:21


É necessário ainda, o aumento de fiscalização na Amazônia, visto que, emrazão de suas dimensões continentais, os ataques de biopiratas tornam-se muitasvezes impossíveis de serem percebidos e isso acaba por incentivar o aumento daespoliação da biodiversidade na região. Desse modo, a fiscalização na FlorestaAmazônica é ineficaz, em razão da ausência de policiamento ambiental eorganismos que atuem na proteção à sociobiodiversidade brasileira.Por outro lado, para proteger a biodiversidade, também se deveria, nosaeroportos, monitorar a entrada e saída de estrangeiros, como pesquisadores,missionários, estudantes, dentre outros. Além disso, deve-se fiscalizar aregularização de ONGs que trabalham com populações tradicionais e povosindígenas para verificar sua real intenção nesses trabalhos, bem como algunsmissionários que atuam diretamente com esses povos e possuem total acesso aseus costumes e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.É importante ressaltar que, quando se sugere maior fiscalização, não sebusca ocasionar entraves às pesquisas científicas, nem desabilitar instituiçõessérias que trabalham com povos indígenas e populações tradicionais, no entantoé necessário que elas estejam em conformidade com a legislação nacional, afim de se evitar prejuízos futuros ao Brasil e aos povos, cujo conhecimento éutilizado de forma não autorizada.É essencial, ainda, a preservação dos territórios utilizados pelos povosindígenas e populações tradicionais para a produção de seus saberes, em razãoda relação que esses povos possuem com suas terras não representar umasimples ocupação, mas, sim, configurar o local onde são desenvolvidas suasexperiências com a natureza e que, segundo Fernando Dantas, são indispensáveisà manutenção da própria vida.Ainda sobre a questão da biopirataria, Eliana Calmon considera que asinstituições internacionais e empresas privadas possuem três visões acerca dosplanos para a utilização do conhecimento tradicional associado à biodiversidade:1- partilhar os lucros sobre as novas patentes baseadas no conhecimento dospovos indígenas e populações tradicionais; 2- outras instituições não aceitam apartilha e defendem a cobrança de royalties; 3- algumas instituições e empresasconsideram que o domínio genético está fora do mercado e não pode ser vendidoa qualquer preço.A mesma autora explica que alguns setores consideram a proteção dosconhecimentos tradicionais por meio de patentes uma forma de reprimir a livretroca de informações, fundamental para o aprimoramento da condição humana.Para Calmon, os países desenvolvidos ainda não chegaram a uma conclusãodefinitiva sobre a questão e, assim, critica que “parece até que os países ricosnão têm interesse na solução para o impasse, que seguramente não lhes traráHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 267livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 267 12/4/2011 17:33:21


nenhum benefício”.Também como sugestão para coibir a biopirataria, alguns autoresconsideram a necessidade da existência da cooperação internacional parao desenvolvimento. Segundo Bruno Pino, cooperação internacional para odesenvolvimento pressupõe:Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, entendidacomo o conjunto de ações que realizam os governose seus organismos administrativos, assim como entidadesda sociedade civil de um determinado país ou conjunto depaíses, orientadas a melhorar as condições de vida e impulsionaro processo de desenvolvimento em países em situaçãode vulnerabilidade social, econômica ou política e que,além disso, não tem capacidade suficiente para melhorarsua situação por si sós .Logo, a cooperação internacional diz respeito a aspectos de negociaçõesem que as partes envolvidas buscam o estabelecimento de um acordo benéficopara ambas. Um dos fatores mais importantes da cooperação dá-se em razãode sua utilização como mecanismo alternativo de integração e promoção dodesenvolvimento.A cooperação internacional foi incluída em 1945 na Carta da ONU, emseus artigos 1, 55 e 56. Além disso, essa negociação está disposta no preâmbuloda Convenção sobre a Diversidade Biológica:Enfatizando a importância e a necessidade de promover acooperação internacional, regional e mundial entre os Estadose as organizações intergovernamentais e o setor nãogovernamental para a conservação da diversidade biológicae a utilização sustentável de seus componentes .Desse modo, um dos objetivos da cooperação internacional é a utilizaçãoda biodiversidade de forma sustentável, com vistas ao desenvolvimentoeconômico da região amazônica. Da mesma forma entende Ozório Fonseca, aosugerir a criação de um “Tratado proibindo o patenteamento de qualquer produtode origem biológica que não tenha procedência absolutamente transparente”.Nesse contexto de cooperação internacional, pode-se citar a possibilidadede implantar o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), para buscar odesenvolvimento da região, com o objetivo de impedir a espoliação dosconhecimentos tradicionais, no entanto, não será aprofundada essa questão, pornão ser objeto desta pesquisa,268 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 268 12/4/2011 17:33:21


A título informativo, o Tratado de Cooperação Amazônia (TCA) foicelebrado em 3 de julho de 1978 e teve como partes contratantes a Bolívia, oBrasil, a Colômbia, o Equador, a Guiana, o Peru, o Suriname e a Venezuela.Esse documento foi aprovado pelo Congresso Nacional e ratificado pelo Estadobrasileiro, mediante a promulgação do Decreto n. 85.050, de 18 de agosto de1980.Por fim, além da cooperação internacional com vistas a buscar odesenvolvimento da região, e das demais sugestões analisadas neste artigo, éimportante ressaltar que evitar a biopirataria envolve não apenas a criação deleis, como também a proteção pelo Direito Penal, de forma que é imprescindívelmaior participação do povo brasileiro com seu sentimento de nacionalidade,fortalecimento dos órgãos públicos na região, incentivo à informação,participação e educação ambiental da população, como forma de tutelar asociobiodiversidade brasileira.CONSIDERAÇÕES FINAISA<strong>pós</strong> a finalização deste estudo, verificou-se que a biopirataria configuraum grave problema na atualidade e está diretamente relacionada à apropriação dosconhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Esses conhecimentospertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais são utilizados paraa fabricação ou aperfeiçoamento de produtos, motivo pelo qual, por meio dabioprospecção, ocorre a racionalidade econômica, aumento da aferição de lucro.A natureza passa a ser vista unicamente como fonte de capital e utilizadacom o objetivo de impulsionar grandes retornos financeiros. Por essa razão,ocasiona a cobiça de países desenvolvidos, ricos em tecnologia e pobres embiodiversidade, que buscam acessar a biodiversidade por meio da apropriaçãodos conhecimentos tradicionais, de forma a trazer prejuízos para o Brasil e paraos povos detentores do conhecimento tradicional, cujos saberes são comparadosa mercadorias.A mercantilização da natureza subjuga os detentores do conhecimentotradicional, os quais possuem o entendimento contrário à lógica capitalista.Nessa ótica, verificou-se que, para os povos indígenas, a biopirataria ocorresempre que existe a utilização da natureza, uma vez que esses povos enxergama biodiversidade como um todo e não separam o conhecimento tradicional doselementos da biodiversidade.Nesse contexto, as tradições e os costumes dos povos indígenas epopulações tradicionais passam a ser considerados inferiores em comparaçãoHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 269livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 269 12/4/2011 17:33:21


ao pensamento dominante, razão pela qual se percebe a supremacia doconhecimento científico em comparação ao conhecimento tradicional associadoà biodiversidade.Portanto, nota-se que se está diante de um novo processo exploratóriode colonização, exercido pelos países desenvolvidos, que será extremamenteprejudicial ao Brasil e aos detentores dos conhecimentos tradicionais, se nãofor repensada toda essa situação e vislumbradas novas formas de proteger asociobiodiversidade brasileira.Nessa perspectiva, a Amazônia Brasileira encontra-se no centro dessasdiscussões, em razão de possuir uma riquíssima biodiversidade e tambémabarcar diversos povos indígenas e populações tradicionais, detentores doconhecimento tradicional, cuja utilização é muito importante para a fabricaçãode novos produtos e acaba por impulsionar a atividade nociva da biopirataria.Além disso, em se tratando da biopirataria realizada por meio daapropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade daAmazônia Brasileira, verifica-se a fragilidade da atuação estatal, incapaz decoibir essa atividade nociva, em razão da carência de fiscalização na região, dafalta de conhecimento sobre a biodiversidade da região, da pouca quantidadede pesquisadores, da ausência de investimentos em ciência e tecnologia, dentreoutros.Em contrapartida, observa-se que os países desenvolvidos não possueminteresse em resolver a situação, posto que necessitam da biodiversidade dospaíses subdesenvolvidos ou em desenvolvimento para impulsionar o aumentode capital, motivo pelo qual a solução do problema não lhes trará nenhumbenefício.Apontou-se, nesta pesquisa, a necessidade de criminalizar a conduta dabiopirataria, a fim de coibir essa atividade atentatória aos interesses nacionais,sendo relevante a tutela pelo Direito Penal, por força do bem jurídico protegido,qual seja, o meio ambiente, indispensável à manutenção da própria vida.Verificou-se que, além da criminalização da conduta, deve haver aplicaçãodos princípios da educação, participação e informação ambiental, para que acoletividade, os detentores do conhecimento tradicional, juntamente com oPoder Público possam buscar a conscientização e a prevenção dessa atividadeno Brasil.Finalmente, observou-se a necessidade de maiores investimentos empesquisa, ciência e tecnologia, aumento de fiscalização na Amazônia Brasileira,preservação dos territórios indígenas, bem como a verificação da possibilidadede utilizar a cooperação internacional para o desenvolvimento da região, no quediz respeito à utilização do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA).270 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 270 12/4/2011 17:33:21


No entanto, essa questão precisa ser aprofundada e repensada para que sejaassegurada a soberania do Brasil e a proteção aos detentores do conhecimentotradicional, associado à biodiversidade.REFERÊNCIASALMEIDA, A. W. B. Terras de Quilombo, terras indígenas, “babaçuais livres”,“castanhais do povo” faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmenteocupadas. Manaus: PGSCA/UFAM/Fundação Ford, 2006.ALVES, E. C. “Direitos de quarta geração: biodiversidade e biopirataria”. In:Revista da Academia Paulista dos Magistrados, São Paulo, p. 53, nov./2002.BECK, U.. La sociedade de riesgo: hacia uma nueva modernidad. Barcelona:Paidós, 1998.BECKER, B. K. Amazônia: geopolítica na virada do III milênio. Rio de Janeiro:Garamond, 2006.BECKER, B. K. “Da preservação à utilização consciente da biodiversidadeAmazônica”. In: GARAY, I.; BECKER, B. K. Dimensões humanas dabiodiversidade: o desafio de novas relações sociedade-natureza no século XXI.Petrópolis: Vozes, 2006.BRASIL. Presidência da República. Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998.Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas eatividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências.BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 2.519, de 16 de março de 1998.Promulga a Convenção sobre a Diversidade Biológica, assinada no Rio deJaneiro, em 5 de julho de 1992. Brasília, 1998.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 271livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 271 12/4/2011 17:33:21


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ÍNDICE - PARTE IIIPOR UMA ALTERIDADE JURÍDICA NOS CONFLITOSSOCIOAMBIENTAIS PESQUEIROS: uma análise sobre a ComunidadeSanto Antônio do Rio Urubu – AMDenison Melo de Aguiar ..............................................................................277Introdução;1 Por uma alteridade Jurídica;2 Conflitos Socioambientais na Amazônia Brasileira;3 Conflitos Sociaoambientais pesqueiros na Amazônia Brasileira; 4. Comunidade Santo Antônio do rio urubu – Amazonas;5. Da Alteridade jurídica no acordo de pesca 11/2003;Empoderamento da alteridade jurídica nos Conflitos Pesqueiros;Referências.A EFETIVIDADE DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICACOMO TRATADO-QUADRO DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DAFAUNA E DA FLORA DO BRASILDiogo de Oliveira Lins.......................................................................303Introdução1. O Tratado de Cooperação Amazônica: Histórico e Antecedentes2. Tratado de Cooperação Internacional e a Jurisdificação da Proteção Internacional aoMeio Ambiente3. Breves digressões a respeito da definição de fauna e flora4. Legislação Brasileira e Proteção Penal do Meio Ambiente5. As dificuldades entre a realidade cotidiana e as tentativas de implementação do TCAConclusõesReferênciaslivro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 275 12/4/2011 17:33:21


POR UMA ALTERIDADE JURÍDICA NOSCONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS PESQUEIROS:uma análise sobre a Comunidade Santo Antônio doRio Urubu – AM*Denison Melo de Aguiar **Sumário: Introdução; 1 Por uma alteridade Jurídica; 2 Conflitos Socioambientais naAmazônia Brasileira; 3 Conflitos Sociaoambientais pesqueiros na Amazônia Brasileira;4. Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu – Amazonas; 5. Da Alteridade jurídicano acordo de pesca nº 11/2003; Empoderamento da Alteridade Jurídica nos ConflitosPesqueiros; Referências.Resumo: A alteridade jurídica resulta darelação entre o Direito e a Antropologia.De um lado o sentido de alteridade possibilitao diálogo entre os usuários de culturae pensamentos diferenciados, e de outrolado o Direito possibilita que esse diálogotenha uma legitimidade e representatividadeefetiva desses usuários (interessadosenvolvidos), desta maneira, ocorreum diálogo unido pela diversidade dessesusuários nos acordos de pesca. E é nosconflitos pesqueiros que a alteridade jurídicapode ser uma abordagem que facilitaAbstract: The Legal altery results of therelationship between law and anthropology.On the one hand the sense of alteryenables the dialogue between users of differentculture and thoughts, and then theLaw allows this dialogue has a legitimateand effective representation by the users(stakeholders involved) in this way there isa dialogue united by the diversity of usersin fisheries agreements. And it is in fisheriesconflict that legal altery can be a approachthat facilitates the solution of theseconflicts. An example of this is the case of* Para fins de contextualização, este artigo é resultado parcial da pesquisa e levantamentode dados da dissertação intitulada: “O Princípio da Dignidade da Pessoa Humanae o Conhecimento Tradicional associado ao Manejo Pesqueiro: um estudo de caso naComunidade Santo Antônio do Rio Urubu, no município de Boa Vista do Ramos/AM”desenvolvida pelo autor, qualificada e orientada pelo Professor Doutor Serguei AilyFranco de Camargo, no Programa de Pós Graduação em Direito Ambiental da Universidadedo Estado do Amazonas – UEA, bem como que este ser integrante dos seguintesProjetos de Pesquisas: 1. Gestão Participativa da Pesca na Região do Rio Urubu, emBoa Vista do Ramos (AM), financiado pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estadodo Amazonas - FAPEAM e 2. Direito Pesqueiro na Bacia Amazônica, financiado peloConselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPQ.**Mestrando e Pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Direto Ambiental daUniversidade do Estado do Amazonas; Advogado; Bolsista da CAPES. Contato: denisonaguiarx@hotmail.com.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 277livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 277 12/4/2011 17:33:21


as soluções destes conflitos. Um exemplodesta realidade é o caso da comunidadeSanto Antônio do rio Urubu, que participado acordo de pesca nº 11/2003.Palavras-chave: Alteridade Jurídica;Acordos de pesca; Comunidades pesqueiras.Santo Antonio do rio Urubu community,involved the fishing agreement nº 11/2003.Key-words: Legal altery; fisheries agreements;fishing communities.INTRODUÇÃONas complexidades sócio-culturais da Amazônia Brasileira, tem-sedestacado o movimento popular das comunidades pesqueiras ribeirinhas parasua emancipação. Neste sentido, as comunidades pesqueiras desenvolveram osacordos de pesca como forma de resolução de suas controvérsias. Um exemplode acordo de pesca é o da Portaria nº 11/2003 (IBAMA), que legalizou adeterminações consuetudinárias da Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu edas comunidades que estão nas suas adjacências.Neste contexto a alteridade jurídica é uma abordagem que consideraa pluralidade como um fator determinante na efetivação dos direitos dascomunidades pesqueiras. Esta Alteridade perpassa o sentido de facultas agendi,para se concretizar na norma agendi, ou seja, é uma maneira de se efetivar odireito destas comunidades de se manterem como tais, sem desrespeitá-lase mesmo considerando que estão inseridas também nas proximidades dosgrandes centros urbanos como o de Manaus. Portanto, a alteridade jurídica nosacordos de pesca é uma resposta concreta como possível resolução dos conflitossocioambientais na Amazônia Brasileira.1 POR UMA ALTERIDADE JURÍDICAO termo “Alteridade Jurídica” é um termo ainda em construção,especialmente por ser de natureza interdisciplinar, Direito e Antropologia.Com isso, tem-se como objetivo inicial deste artigo, descrever quais são ascaracterísticas primordiais que o evidencia, seja como uma conceito teórico,278 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 278 12/4/2011 17:33:21


seja como um conceito de aplicação prática nos conflitos socioambientaispesqueiros. Desta maneira, não se tem como ter um conceito estanque do termo“Alteridade Jurídica”, mas sim, um entendimento sobre esta matéria.A idéia de alteridade 1 , conforme Lévinas (2009, p. 28) está baseada em “[...]querendo-se, eu compreendo o ser em outrem, além de minha particularidadede ente; a pessoa com o qual estou em relação, chama-o ser, mas ao chamá-loser, eu o invoco”. Desta maneira, a alteridade é uma concepção da qual o serhumano interagindo em sociedade, interdepende de outros indivíduos. Nestestermos, a existência de um ser (indivíduo) só é possível, mediante o contato comoutro, é claro, considerando a variável de que o indivíduo viva em sociedade.Portanto, a alteridade, é a capacidade de se por no lugar do outro, pois o invoca,o chama, mudando-se o outro de objeto para sujeito.É neste contexto que o termo ‘Alteridade Jurídica’ advém de uma interrelação entre a Antropologia e o Direito e é uma abordagem do qual uni estasduas ciências, objetivando descrever e analisar uma realidade fática da AmazôniaBrasileira, qual seja, das Comunidades Tradicionais. Sendo que, é um termoque é uma proposta que veio a partir das observações de uma das realidadessociais da Amazônia Brasileira; dessa forma, pretende-se analisar neste artigoa efetivação dos Direitos das comunidades tradicionais através dos Acordosde Pesca, especialmente nos conflitos socioambientais pesqueiros. Portanto, éuma proposta elaborada a partir do ponto de referência de uma comunidadetradicional.Jelin (1996, p. 12) entende alteridade existente na relação interpessoal, naqual, se põe como ponto de referência o outro, ou seja, a de se por no lugar dooutro. Nesta realidade, a alteridade é uma forma de combater os preconceitos,discriminações, segregações que na contemporaneidade são existentes, isso porcausa das discriminações por: cor, raça, gênero, etnia e dentre outras, valendosede que estas são formas do não reconhecimento dos (as) outros (as), sejano âmbito individual, seja no coletivo, da qualidade intrínseca de ser humano.Dessa forma, na relação interpessoal, a alteridade possibilita os indivíduos ougrupos envolvidos tenham os mesmos direitos de qualquer outro grupo, é claro,conforme a igualdade material, ou seja, de se ter tratamento igual a todos ese respeitando as diferenças proporcionais nas diferenças entre indivíduos ouos grupos, em conseqüência, há uma mudança de ponto de referência no meiojurídico, isto é, do individualismo à coletividade, por exemplo.1O tema alteridade é estudado por diversas ciências, por exemplo, na Filosofia comEmmanuel Lévinas; na psicologia, por Karl Rogers, dentre outras. Neste artigo, a abordagemcentral da Alteridade é na Antropologia e no Direito.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 279livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 279 12/4/2011 17:33:21


O objetivo da alteridade é fazer uma mudança de ponto de referência,isto é, sair do ponto de referência da violência e do ódio para a solidariedade,responsabilidade, cuidado, respeito e dignidade ao (s) outro (s). Vale salientarque, para Jelin (1996, p. <strong>13</strong>) esta postura de compreender os (as) outros (as), tema origem numa perspectiva interdisciplinar, no qual para se saber dos (as) outros(as), vai-se ter que perguntar como se interage com estes (as), envolvendo osvalores e as éticas destes (as) e não de quem se propõem. Tarefa essa de mudançade perspectiva de existência, sendo-a mais difícil do que a auto existência deambas as partes, isso significa, uma mudança de paradigma relacional, queprioriza a coletividade e não o individualismo.Vale-se desta perspectiva de uma análise na construção de um “Nós”coletivo considerando uma realidade específica. Esta relação, sem sombrade dúvidas começa no plano individual, para depois se ter uma relação intercomunitária e intergeracional Jelin (1996, p. 16) propõe que se tenha etapas doexercício analítico da alteridade: 1. Fazer um eixo de como se definir o “nós”;2. em seguida, descobrir quais são os princípios morais desta relação valendo-sedo ponto de “nós” ou do “outro”, referência dos (as) outros (as) e em 3. ir alémdo “nós” ou “outro”, ao se perceber a alteridade deste outro, sem se perder a desi mesmo. Há de se ater de que há diferentes padrões culturais que devam serconsiderados, como forma de se consolidar o conteúdo da responsabilidade paracom dos (as) outros (as).Ao tratar de responsabilidade, Jelin (1996, p. 16) aponta que esta deveser devidamente fundamentada na consciência moral. Consciência esta nãoocidentalizada, isto é, não padronizada, mas vinculada aos conteúdos básicosda moralidade, da responsabilidade e da solidariedade do outro que sofre,objetivando chegar a uma subjetividade moral autônoma, isso significa queo sentido de alteridade vai ser posto conforme uma autonomia subjetiva quesustenta a relação intersubjetiva a partir das redes de comunicação e gruposenvolvidos. Desta feita, a relação intersubjetiva no Direito, está configurada noDireito Subjetivo e ser de máxima importância para se falar de uma alteridadejurídica.Conforme Ráo (2004, p. 215) Direito Subjetivo é:a faculdade que ela (a norma) confere às pessoas, singularesou coletivas, de procederem segundo o seu preceito, istoé, entre a norma que disciplina a ação (norma agendi) e afaculdade de agir em conformidade com o que ela dispõe(facultas agendi)280 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 280 12/4/2011 17:33:22


O Direito Subjetivo é formado então na pessoa do seu titular que a realiza,que consubstancia a vontade do titular de direitos. Debatendo-se, segundo Jelin(1996, p. 17) em primeiro plano, qual é a natureza deste “sujeito” e do conteúdodos “Direitos”, naquele sujeito na sua inter-relação e neste, os direitos universaisfrente ao pluralismo dos Direitos. Com isso, cria-se, conforme Jelin (1996,p. 24) uma tensão entre a universalidade destes Direitos versus o PluralismoCultural, por exemplo, o que na área do Direito pode-se ser elencado como umaantinomia, pois é uma “situação de normas incompatíveis entre si” (BOBBIO,2008, p. 228).Neste cenário, a cidadania é um campo o exercício da alteridade. Jelin(1996, p.18) pondera que a cidadania faz referência a “uma prática conflitivavinculada ao poder, que reflete as lutas sobre quem poderá dizer o quê noprocesso de definir quais são os problemas comuns e como serão abordados”,assim sendo, há se de valer que os Direitos estão em constante processo demudança e construção, numa ação humana de auto manutenção e expansão. Porisso, Ráo (2004, p.559) defende que o direito subjetivo tem a finalidade:de conferir vida, meios de coexistência, segurança e desenvolvimentoaos direitos das pessoas, dos grupos sociais eda coletividade, os direitos subjetivos existem; e tanto valedizer sobre a justa conceituação desses direitos a inteiraconstrução jurídicas e levantaPortanto, a cidadania tem uma dimensão cívica, dos sentimentos queunem e vinculam uma coletividade. Neste sentido, perpassa a alteridade, otensão entre os direitos universais e o pluralismo, cultural, de gênero, ou declasse, gerando diversidade (JELIN, 1996, p. 24):O reconhecimento da pluralidade dentro da humanidadedevia converter-se no antídoto para a repetição de crimesem massa, genocídios e aniquilamentos culturais a partir deideologias e interesses que negavam, explicita ou implicitamente,às vítimas, a qualidade de ‘ser humano de direitos!Jelin (1996, p. 21) sugere que se deva aumentar a base social dacidadania, pensando-se em incluir grupos socais minoritários. Uma possívelanálise é quando se pensa na relação entre universalidade e pluralismo, deve-selevar em consideração que a diversidade e a pluralidade devam ser elementosconstitutivos da universalidade. Desse modo, se relacionando o Princípio daigualdade e o Direito de diferença, sem a ilusão de uma norma que trate todosHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 281livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 281 12/4/2011 17:33:22


igualmente de maneira formal, mas sim, de forma material. Assim sendo, oexercício de mudar o foco de ponto de referência ao (às) outro (as) é essencialpara a prática da alteridade, no âmbito da igualdade material.Afirma Jelin (1996, p. 24) que a alteridade é um componenteindispensável no processo de construção da cidadania ativa e aberta ao debatepermanentemente. Devendo-se primordialmente reconhecer a historicidade daslutas sociais e de seus conteúdos, já que deva-se deixar claro que, não há umamaneira única de resolver as contradições e tensões básicas, por exemplo, entreo universalismo e a pluralidade. Faz-se necessário ter-se muita criatividade einovações permanentes; reconhecer as historicidades é reconhecer que não háverdades absolutas; para fomentar a solidariedade e a responsabilidade pelooutro (a).Levi-Strauss (1952, p. 328) observa que há de se separar a biologia domundo social. Não há causa ou efeito no mundo social que tenha patamaresbiológicos, senão simplesmente as próprias caracterizações sociais, assimsendo, a cultura não é estática, é sim dinâmica, e faz parte de um fenômeno dediversidade cultural, logo as culturas não estão em diferentes etapas da evoluçãosocial predeterminada, mas são em suas essências diferentes, não melhores oupiores, não primitivas e mais desenvolvidas, mas simplesmente diferentes.Neste contexto, deve ser evitado o discurso etnocêntrico, o etnocentrismo temcomo base primordial, em se afirmar e determinar que uma cultura seja certa dese seguir e outra não, de acordo com determinações sócio-culturais, devendo-seter uma postura científica de tolerância dinâmica e não contemplativa.Geertz (2001, p. 75) defende que a diversidade cultural é mais caracterizadacom a capacidade de sondar as sensibilidades alheias, os pensamentos que nãose tem ou que não se tendem a ter. No mau presságio de que “nós somos nós” e“eles são eles”, o limite está nas fronteiras dos que estão à pesquisa, ou seja, emsi mesmo, esta idéia, para Geertz é errada, a constituição é feita através da idéiade que a cultura é socialmente constituída. Devendo-se respeitar os autos limitesdaquele que pesquisa “os outros”, pois terá limites nas: 1.sua própria cultura; 2.sua formação de vida e 3. sua própria constituição social, ou seja, nas fronteirasde si mesmo.Para Geertz (2001, p.79) o sentido maior da alteridade está em mostraros conflitos de valores surgidos da diversidade cultural. Compreendida atravésda etnografia, que descreve a realidade em questão a partir do outro e é atravésdo outro que se descreverá os usos da diversidade, da integridade grupal emantendo a lealdade do grupo, de maneira concretizada. Pois, “não há substitutopara o conhecimento local, nem tampouco para a coragem” (GEERTZ, 2001, p.81) e a “capacidade de nossa imaginação para apreender o que está diante de282 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 282 12/4/2011 17:33:22


nós, que residem os usos da diversidade e do estudo da diversidade” (GEERTZ,2001, p. 85). Assim sendo, Laplatine (2007, p. 23) discorre que a descoberta daalteridade permite uma relação de deixar de ter a identidade de um indivíduocom a humanidade, o que evita correlacioná-la com o presumido “selvagem”.Isso significa romper com a multiplicidade das culturas, muitas das vezes,considerada enigmática e com a naturalização do social, com o humanismoclássico e da cultura como cultura. Com isso, se evitando pensar de uma maneirahomogeneizada.Geertz (2009, p. 91) defende que “é necessário que deixemos de ladonossa concepção, e que busquemos ver as experiências de outros com relaçãoa sua própria concepção do ‘eu’”. Para Geertz (2009, p. 107), isso é possívelatravés da compreensão da forma e da força do interior do “nativo” (os outros),através de uma tarefa interpretativa. Dessa forma, não sendo uma comunhãode espíritos, mas do ponto referencial do outro. Até aqui, há uma perspectivaantropológica, mas considerando a relação do Direito com a Antropologia comoGeertz (2009:107), falar, vivenciadas na prática.Todorov (2010, p. 269) defende que a relação com o outro não se dá deuma única dimensão. Para Todorov (2010, p. 269-270) tem-se que distinguirtrês eixos para se compreender as relações com o outro: 1. Um julgamento devalor, isto é, num plano axiológico, para se entender se o outro é bom ou malna tábua de valores daquele que julgar; 2. A relação de ação de aproximação oudistanciamento, num plano praxiológico, ou seja, os valores daquele que julgaestão identificados com o outrem ou não, está assimilado ou não e 3. Se há oconhecimento ou se ignora a identidade do outro, num plano epistêmico. Estestrês eixos ocorrem em certa diversidade dentro de cada eixo. Não se podendoreduzir estes eixos de maneira isolada, de maneira que o mais importante ese mudar de ponto de referência de si para outrem, sem que se perda a autoidentidade e auto reconhecimento.Supiot (2007, p. XXVIII) descreve que quando se põe no Direito o pontofundamental o indivíduo se esquece que “não há identidade sem limites, e quemnão encontra seus limites em si os encontrará no exterior de si.”, assim o Direitoé uma representação do social, nas comunidades pesqueiras vislumbradaspelas normas de usos e costumes que são as formas consuetudinárias de tornaros conflitos passíveis de soluções, através do diálogo inter comunitário, paraencontrarem soluções entre as comunidades. Dessa forma, a alteridade jurídicaé determinante às soluções de conflitos socioambientais nas comunidades, poisune as diversas formas de vivenciar o Direito em suas dimensões sociais.Neste ínterim, Aguiar (2006, p. 12) descreve que a palavra alteridadeestá presente no Direito, ora para constituir a bipolaridade mínima da relaçãoHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 283livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 283 12/4/2011 17:33:22


jurídica, ora para expressar a interferência jurídica, o que em conseqüênciapode-se traduzir no que seja a condição de um outro, que é distinto, diferente ouconstratante. Neste sentido, Aguiar (2006, p. 12) pondera que:Uma certa fixidez dogmática de raiz metafísica do sensocomum jurídico não trata do jurídico a partir da relação entrediferentes, mas a partir de uma norma uniformizadora,que dilui os sujeitos no interior de uma igualdade abstratae retira dos envolvidos na relação jurídica os seus rostos,suas existências e concretude. Em suma, nas relações sintáticasentre duas abstrações não existe o outro, pois tudoestá enovelado na ditadura do uno, do indiviso.E é esta configuração jurídica que não resolve os problemas nos conflitosentre grupos. Enquanto que o sentido primordial do Direito está em resolverconflitos, mas ainda Aguiar (2006, p. 12) pondera que é a partir desta idéia, desolução de conflitos que, O Direito, seja na negação do outro, por sempre se tera necessária destruição de um pólo para que o outro vença, numa contenda doDireito.O termo “Alteridade jurídica”, conforme Aguiar (2006, p. 35) advém dosentido de que O Direito também tem como fonte de normatividade, as minoriassociais. Criando-se novas maneiras de expressão da democracia e claramente seopondo às práticas hierárquicas e verticais do Estado, mostrando uma maneirahorizontalizada das práticas sociais e constituindo uma maior simetria de poder.Relação esta, possível somente através do sentido maior da alteridade jurídica,o de por no centro o outro.Portanto, quando se trata da união entre O Direito e A Antropologia,a alteridade jurídica é uma abordagem que vincula estas duas ciências. Estaunião se consubstancia inicialmente, na alteridade normativa, ou seja, no fatode a norma formalmente constituída pelo Estado recepciona em sua atividadelegislativa as normas consuetudinárias de uma comunidade pesqueira. Nestestermos, o ponto de referência jurídico não é o do Estado, mais sim a do os(as) outros (as), um exemplo que se tem na Amazônia Brasileira de alteridadejurídica são os acordos de pesca.284 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 284 12/4/2011 17:33:22


2 CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS PESQUEIROS NA AMAZÔNIABRASILEIRAHá na Amazônia Brasileira uma diversidade de conflitos socioambientais,especialmente ao se tratar das complexidades sócio-culturais e de seusmovimentos populares. No que tange aos conflitos socioambientais pesqueiros,é importante salientar que não há uma homogeneização ou bipolarizaçãodos conflitos socioambientais. Assim sendo, há várias categorias de sujeitosenvolvidos nestas contendas.Para Furtado (1993, p. 389) os conflitos pesqueiros na AmazôniaBrasileira, ocorrem entre: varjeiros, pescadores citadinos, fazendeiros,marreteiros e as lideranças dos órgãos representativos da pesca. Conflitos entreos antagonismos de varjeiros/pescadores citadinos; pescadores/fazendeiros,pescadores/marreteiros; pescadores/Estado; pesca artesanal/pesca industrial,dessa forma, estes conflitos são minimizados ou resolvidos a partir das açõesalternativas dos próprios pescadores regionais, evitando-se beneficiar as classesdominantes envolvida na pesca, o que desestrutura a produção pesqueira empequena escala. Conflitos estes também situados numa realidade social nacional,como por exemplo, a valorização da terra para fins agropecuários e capitalizaçãodos recursos dessas áreas.Neste sentido, Chaves, et al (2007, p.54), descreve que os conflitossocioambientais pesqueiros, vão muito além das disputas pelos territórios eposse de áreas tradicionais de uso, mas também pela presença de fatores sociais,políticos, culturais e ambientais. Dessa forma, possui uma história de grandediversidade, por exemplo, as diferenças entre os movimentos sociais do Paráe do Amazonas, nestes cenários, sempre apoiados por diferentes movimentossociais, instituições religiosas, organizações não governamentais e de pesquisa,para que se regulasse o uso e o acesso aos recursos pesqueiros. Portanto, foiatravés destas configurações históricas que os movimentos sociais pesqueirosconstruíram reconhecimento e credibilidade na sociedade civil da Amazônia,mantendo-se a continuidade da reprodução social do modelo de vida destascomunidades tradicionais. A efetivação de direitos e formulação de manejo; egestão participativa adaptativo às novas realidades sociais apresentadas pelasmudanças sociais, por exemplo, a intensificação da pesca comercial na décadade 1960.Desta maneira, Jacaúna et al (2009, p. 345)analisa que:Observa-se que os conflitos de pesca na Amazônia Centralnão se trata de confrontos maniqueístas, mas de umaHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 285livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 285 12/4/2011 17:33:22


elação entre grupos sociais que possuem características,interesses estratégias e racionalidades, isto é, habitus específicosque atuam de maneira diversa num campo socialmarcado pela escassez de alguns estoques pesqueiros emseus ambientes aquáticos.Estes conflitos são causados por vários fatores, como o crescimento dedemanda para compra e comercialização de pescado. Dentre todas estas situaçõeshá os recursos pesqueiros, que quando não manejados e sobre-explotados ficamescassos e com isso, falta alimentação das famílias das comunidades tradicionaise para a subsistência dos pequenos pescadores. Outro fator que contribui paraa sobre-explotação dos recursos pesqueiros é a modernização das técnicasde pesca, que facilita a atividade, onde antes não havia possibilidade do seuexercício.Para Ruffino (2005, p. 22-23) os conflitos pesqueiros na Amazônia têmcomo causas o declínio na produtividade pesqueira e a falta de credibilidadegovernamental na regulamentação da pesca, o que acabou por proliferar taisconflitos. Exemplificativamente, a “guerra do peixe”, ocorrida em 1973, noLago Janauacá, no Amazonas, Soares (2009, p.128) descreve que foi um conflitoque teve repercussão na mídia, por ter tido. E acabou sendo um caso de granderepercussões no movimento das comunidades pesqueiras no Amazonas.Conforme Soares (2009, p. 128) o conflito ocorreu entre agricultores,produtores de tapioca e farinha de trigo e pescadores da própria localidade.Envolveu a captura indiscriminada de tucunaré e outras espécies, de um ladoos agricultores acusavam os pescadores de “não trabalho”, argumentando queos pescadores não trabalhavam, por só pescarem e que somente os agricultoreso faziam, responsabilizando os pescadores pela sobrepesca naquela região; deoutro lado, os produtores de goma de tapioca, que moravam mais no interior daregião contestavam os pescadores explotavam todos os peixes na entrada daságuas do lago e por fim, da acusação de que os pescadores gastavam o dinheirodo seguro defeso para melhorar suas técnicas de pesca, logo, pescando mais. Deuma maneira geral, o conflito de Janauacá é existente até os dias atuais (2010),vez que o ponto central desta disputa está no sentido que se dá à territorializaçãodos lagos pelas partes.Segundo Soares (2009, p. <strong>13</strong>8) houve o uso pejorativo que se dão aospescadores como “coisa de preguiçoso”. Isso ocorre por causa da identificaçãodos trabalhadores rurais com a terra firme e dos que trabalham nos lagose rios num vínculo de autonomia política local entre estes dois grupos detrabalhadores distintos. A partir destes conflitos houve tentativas de mediação econciliação, objetivando manter-se a sustentabilidade na explotação pesqueira286 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 286 12/4/2011 17:33:22


em conformidade com o uso comum dos recursos pesqueiros para todos osusuários envolvidos.Analogicamente aos conflitos em Janauacá/AM, os conflitossocioambientais de pesca ocorrem por causa dos usos múltiplos dos recursospesqueiros. Nestes conflitos ocorrem desde a queima de embarcações até o usode violência contra pessoas e uso de armas, na maioria dos conflitos estão deum lado os ribeirinhos, pescadores das comunidades localizadas nos lagos, ede outro lado os “pescadores de fora” ou “invasores”. Dentro deste contexto,as comunidades de várzea e ribeirinhas desenvolvem e implementam sistemasde manejo próprios, objetivando reduzir os conflitos e controlar a pressão sobreos recursos pesqueiros. Preventivamente, os órgãos e entidades envolvidasna pesca incentivam a elaboração de mecanismos de participação efetiva, porexemplo, nos fóruns de administração.Para McGrath et al, (1993, p. 2<strong>14</strong>/5 e 217) os lagos são postos comounidade de manejo pelas comunidades tradicionais. Isso acontece como formade gerenciamento de pesca, sendo que estes lagos são considerados territórios/propriedades das comunidades, e reserva de recursos pesqueiros, o que sevale de acordo com o conhecimento local ecológico dos recursos pesqueiros,diferenciado de comunidade para comunidade. Havendo uma adaptaçãoecológica das comunidades ao meio em que vivem, o que possibilita, dessamaneira, limitar o acesso aos recursos pesqueiros.Afirma McGrath et al, (1993, p. 2<strong>14</strong>/5 e 217) que as comunidades pesqueirassão conservadoras dos recursos pesqueiros. Mas para tanto, se deve analisaro manejo e o processo de desenvolvimento incluindo-se os conhecimentostradicionais e conhecimentos ecológicos locais relacionados à diversidade dosrecursos pesqueiros de cada região dessas comunidades ribeirinhas, o que porsua vez possibilita melhores processos de soluções de controvérsias. Portanto, aparticipação política das comunidades tradicionais nestes processos de soluçõesde controvérsias são determinantes para as efetivas soluções de conflitos entreos usuários.Outro exemplo que se tem são os casos dos conflitos socioambientaisno Médio Amazonas, Pará. Alencar (2000, p. 121) descreve que tais conflitosocorrem em dois níveis: 1. sobre o manejo e gestão dos recursos pesqueiros e 2.sobre o território de acesso a estes. Nestes conflitos, as partes geralmente são:os pescadores artesanais versus pescadores comerciais. Nestes termos, numarealidade onde os recursos pesqueiros afetam sobremaneira a forma de ser eviver das comunidades, seja em relação com o meio ambiente, seja em relaçãoda forma de organização e divisão social de trabalho e produção, geralmentefeita por gênero. Afirma ainda Alencar (2000, p. 126) que estes conflitos sãoHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 287livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 287 12/4/2011 17:33:22


astante complexos, já que possuem outras peculiaridades, por exemplo, osconflitos entre pescadores artesanais (pescadores de pequena escala) versuspecuaristas e agricultores.Desta maneira, se descreve os conflitos do Pará, valendo-se dos seguintesfatores: 1. a divisão de dois níveis dos conflitos desta região no nível ideológicodescrita anteriormente; 2. da definição de território de produção, 3. do conflitoentre os pescadores católicos versus pescadores da Assembléia de Deus(Comunidade de Caieiras/PA), 4. da agravante da pecuária, por ocorrer umademarcação territorial, 5. da agravante da diminuição do pasto natural e 6. dofenômeno da terra caída, que diminui os espaços para a pecuária. Assim, estãode um lado as famílias evangélicas eminentemente pecuaristas, de outro ladoas famílias católicas, sendo que aquelas geralmente possuem seus territóriosdemarcados com cerca de arame farpado, o que não ocorre com as famíliascatólicas. Por isso, um dos conflitos mais destacados ser o conflito advindo dapassagem de gado por propriedades de donos de religiões diferentes.O segundo nível de conflitos socioambientais está relacionado aoterritório e uso dos de recursos pesqueiros. Na Região de Cuieras-PA, osconflitos ocorrem por causa das restrições de acesso ao lago, especialmenteaos pescadores comerciais e “de fora” desta região, objetivando:1. fechar oLago Grande para a pesca comercial em determinado período do ano; 2. evitara sujeição dos pescadores locais às geleiras através do uso do material detrabalho, que possuem uma dívida financeira e moral, o que tira a autonomiados pescadores locais. Desta forma, originando-se mais uma complexidadedos conflitos socioambientais, qual seja, entre os pescadores de geleiras versuspescadores ribeirinhos.Pondera Alencar (2000, p. <strong>13</strong>9/<strong>14</strong>0/<strong>14</strong>1) que a maior preocupação coma diminuição dos recursos pesqueiros expressa incertezas quando ao futuro dascomunidades que dependem dos recursos pesqueiros para sua subsistência:Observa-se assim que a população de Cuieiras vive umasituação de ameaça à sua sobrevivência enquanto um grupotradicional com formas específicas e culturalmente re-elaboradasde se relacionar com o ambiente da várzea amazônica.De um lado está a dinâmica ambiental, a terra caídaque, além de provocar a diminuição do espaço físico dacomunidade, também potencializa a disputa pelo controledo acesso aos recursos naturais. De outro lado, a ameaçade esgotamento do principal recurso, o peixe. Na impossibilidadede aumentar o espaço físico da comunidade, jáque se trata de um fenômeno natural e irreversível, e na impossibilidadede realizar o manejo dos recursos pesqueiros,288 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 288 12/4/2011 17:33:22


estaria como alternativa, na pior das hipóteses, a migraçãopara os centros urbanos, como já vem ocorrendo com apopulação de várias comunidades da região.Esterci (2002, p. 51) descreve e constata que a Amazônia é um laboratóriode política e projetos. Na Amazônia há processos sociais complexos, queenvolvem relações entre o Estado; a sociedade civil organizada e pesquisadores,e advêm destas relações uma dimensão ecológica como forma de identidade, porexemplo, os seringueiros do Acre, que por sua vez envolvem em seu discursoa Natureza, os Direitos e os critérios de Justiça Social. Mostrando uma relaçãoentre Ecologia, Política e Direito.Nesta percepção, Esterci (2002, p. 52) descreve um exemplo significativo,isto é, a separação dos sentidos entre pescador e ribeirinho. Para a primeiracategoria, Esterci (2002, p.52) descreve tendo uma discriminação negativa,no qual é colocado como “depredadores”, não interessado na conservação danatureza; já a categoria do ribeirinho, possui uma discriminação positiva, o qualé denominado como o conservador “tradicional”. Ela descreve que essas duascategorias estão de lados opostos, com a ressalva que estas categorias estão emprocesso constante de mudança e é necessário se destacar que não só possui umarelação de conflitos bilaterais, mas também que envolve vários sujeitos.Ambas são categorias de trabalhadores da pesca. Neste sentido é pescador(a), aquele (a) que pesca, que vive em pequenos ou grandes centros urbanos eaos ribeirinhos, àqueles que moram nas margens dos rios e lagos do interior; valesalientar que nem todos que são pescadores somente e que nem sempre possuemcaracteres de ribeirinhos e vice-versa, mas mesmo assim sendo-os. Originandosedesta análise ecológica política a problemática entre a representação de ambas,ou seja, a unidade básica de representação dos ribeirinhos são as comunidades edos pescadores as colônias de pescadores.Há de se ater que esse processo de construção de imagens possui umhistórico desses grupos e determinou a organização e a legitimação darepresentação de ambas. Cita Esterci (2002, p. 53) que o estado do Amazonas,no qual no decorrer do século XIX, teve a formação de pequenos grupos deprodutores na região, e por causa de alterações nas áreas de várzeas e esgotamentoou perda dos valores dos recursos naturais o êxodo rural destas populações noséculo XX; sendo que na década de 1950 houve a modernização nas técnicas decaptura, inclusive com incentivos governamentais, especialmente nas décadas de60 e 70, importante salientar também a criação da Zona Franca de Manaus. Comesses fatores iniciaram mudanças de paradigma de vida, alguns dos pescadoresde subsistência (pequena escala) tornaram-se pescadores comerciais, originandovários conflitos como o caso dos “pescadores de fora”, isto é, aquele que nãoHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 289livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 289 12/4/2011 17:33:22


eram das comunidades mas iam pescar nas áreas destas. A partir destes conflitos,vieram medidas para tentar resolver ou amenizar tais problemas.Historicamente umas das medidas foram tomadas através dasComunidades Eclesiais de base (CEBS), que contribuíram para a elaboraçãodos acordos de pesca. Disseminadas pela Amazônia Brasileira nas décadas de60 e 70, através da Igreja Católica Apostólica Romana, configurou-se novaspropostas às comunidades tradicionais, com uma nova estrutura organizativae mais formal, por exemplo, a criação de funções políticas e burocráticasinternamente nas comunidades; o que com o passar dos tempos, as autoridadescomunitárias começaram a transcender as autoridades religiosas no caminhode legitimidade da representação, o que de certo modo distanciou as IgrejasCristãs da centralidade da representatividade. No estado do Amazonas aComissão da Pastoral da Terra - CPT tentou inicialmente unificar os pescadores,nesta denominação, no entanto, no decorrer dos encontros, houve a cisão entrepescadores e ribeirinhos; mas, foi a igreja Católica que começou a traçar oentendimento da imagem positiva dos ribeirinhos, deste a época da “crise dopeixe”. O que consolidou os movimentos de conservação e manejo dos lagose acabou por se requestionar a representatividade dos pescadores e ribeirinhos.Esterci (2002, p.56) afirma que as colônias de pescadores possueminadequação da organização e da representação dos trabalhadores da pesca.Isso é causado pela contrariedade das normas da Colônia de pescadores quenão valorizam a autonomia e a representação daqueles; ao mesmo tempo emque, no Estado do Pará, houve a valorização da classe na década de 1980,com a formação de grupos de organização pesqueira, como o MovimentoNacional dos Pescadores – MONAPE, Movimento dos Pescadores do Estadodo Pará – MOPEPA. Tornando o movimento de organização dos pescadoresmais independente ao mesmo tempo em que contrários alguns valores de seusmembros.Na realidade, esse movimento significou a cisão entre as CEBS,Comissão da Pastoral da Pesca e Movimentos de Pescadores, tornando-osmais independentes e laicos. Esterci (2002, p. 57) salienta que os Movimentosdos Pescadores dos Estados do Pará e do Amazonas são diferentes, no Paráocorreu através de um processo de discussão e luta pela representação legítimados pescadores, conforme reconhecimento político e social; já no Estado doAmazonas, a formação das colônias de pescadores ocorreu a partir da Marinhade Guerra, que não apoiavam as CEBS.No processo de organização dos trabalhadores de pesca que mais sedestacou, foi o de Santarém - Pará, no final da década de 80. No qual, a partirde um projeto político, implantou-se um “sindicalismo oficial”, um exemplo290 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 290 12/4/2011 17:33:22


desse processo, foi a expulsão dos “pescadores cooperados”, que em 1982,significavam mais de 400 (quatrocentos) sócios, pelo fato de que não pescavam,eram atravessadores, comerciantes, fazendeiros e armadores. Bem como, aconsolidação de representatividade legítima e a formação de uma identidadecoletiva de pescadores, para se ter a efetiva representação desse grupo.Já no Estado do Amazonas, a CPT utilizou outro caminho, conformeEsterci (2002, p.59), embasado no seguinte:1.A longo prazo, construção de Nova Sociedade, igualitária,justa; construção do Reino de Deus; 2. A médio prazo, melhoraras organizações para uma sociedade mais igual e 3.A curto prazo, mais peixe, mais respeito aos trabalhadores,lago preservado, etc.Sendo ainda uma tentativa de unir os movimentos de pescadores eribeirinhos em uma representação, postura esta abandonando pela IgrejaCatólica em 1991, o que tornou os acordos de pesca, por exemplo, o de Tefé,mais efetivo.Nesta realidade, ao se considerar os movimentos de representação dospescadores e ribeirinhos Esterci (2002, p. 60) defende que esta representaçãopossui uma eficácia desigual. As colônias de pescadores do Estado do Amazonas,não representam seus pescadores, foram sim criados pela Marinha de Guerra,neste sentido, a história das colônias de pescadores não promove a autovalorização da categoria, “as colônias estão associadas a crises permanentese disputas de poder, à dependência com relação a políticos e à malversação derecurso” (Esterci, 2002, p. 60); mesmo assim, de outro modo, há a indicação demobilização ao se considerar a filiação dos pescadores nestas colônias, e nãosomente motivo para obter carteira profissional e outros benefícios.No que tange às comunidades, houve duas vertentes. A primeira,considerando os consensos e os compromissos firmados, para “falar em nomede”; e a segunda no que tange à “união”, que se fez, como forma de atacar os“invasores”; sendo que os moradores dos povoados tiveram mais possibilidadede fazer uma regulamentação da pesca para manter o estoque pesqueiro. É apartir das comunidades que houve a formação de uma identidade como unidadepolítica, neste ínterim, a Igreja Católica contribuiu para a formação de umaidentidade coletiva e de um espaço social.Esterci (2002, p. 61) conclui que os efeitos sociais de cada históricodiferencial contribuíram de certa maneira para evidenciar que a pesca é umaalternativa de meio de vida. Para tal, o diálogo entre as partes e a construção deacordos de pesca são importantes para amenizar ou até resolver os conflitos deHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 291livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 291 12/4/2011 17:33:22


pesca, sem se desqualificar a profissão de pescador, respeitando a representaçãodos ribeirinhos, sempre com a utilização de orientações ecológicas.Os movimentos dos pescadores no Pará e no Amazonas foram e sãodiferentes; e possuem contextos diferentes de conflitos ambientais. No primeiroo movimento se origina com a colaboração da Igreja Católica, no entanto, como passar do tempo se torna independente, sendo considerado um modelo deefetiva representação dos pescadores na Amazônia Brasileira, o que facilitapara resolução de conflitos socioambientais. O movimento dos pescadoresno estado do Amazonas tem sua origem através da Marinha de Guerra e nãoé considerado um movimento que efetivamente represente sua classe. Valesalientar que neste âmbito, os acordos de pesca são medidas de resoluções decontrovérsias nos conflitos sociais em ambos os estados, assim sendo, os efeitossociais de cada histórico diferencial contribuiu de certa maneira para evidenciarque a pesca é uma alternativa para efetivar o modo de vida das comunidadespesqueiras da Amazônia, através do diálogo entre as partes, respeitando-se asrepresentatividades.Mas, para resolução desses conflitos socioambientais é de se falar doDireito a multiculturalidade como fator para emancipação destas comunidadespesqueiras enquanto tomadoras de decisão. Duprat (2007, p. 9/10) defendeque com a constituição de 1988 se reconheceu o Estado Brasileiro como umEstado plural ou pluricultural, que possui identidades específicas e cabe aoDireito assegurar o direito da manutenção da existência destas comunidades,como mandamento constitucional, de reconhecer esses grupos como de sujeitosde Direitos Coletivo. Pois, “são visões que, goste-se ou não, não podem serdescartadas, sob pena de, em afronta à Constituição e a outros tantos documentosinternacionais, se negar qualquer valor às asserções de verdade do outro”(DUPRAT, 2007, p. 19), noutros termos, da alteridade jurídica aplicada aosconflitos socioambientais pesqueiros.O patamar da valorização de tal postura é feita através da união da naturezae da cultura. Conforme Derani (1997, p. 72/73) a análise entre natureza e culturaé dialética e de maneira indissociada, onde os elementos que constituíram àsmaneiras de resolução dos conflitos socioambientais não nascerão de análisepuramente teórica, mas de análises que congregam os relacionamentos como meio natural e social, em suas complexidades. Dessa forma, a qualidade devida das comunidades pesqueiras serão auto determinadas por elas, dialogadasentre as partes envolvidas, especialmente quando se trata da relação natureza ecultura.Roué (1997, p.72) aconselha que se devam evitar as designações dehomem (ser humano) e natureza, pois se pode a partir dessas designações ocorrer292 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 292 12/4/2011 17:33:22


o erro de pré determinações e dificultar a elaboração de soluções coerentescom os conflitos socioambientais pesqueiros. Por ser “essencial compreender aorganização hierárquica e social, a divisão do trabalho, antes de examinar as açõese o pensamento da natureza” (ROUÉ, 1997, p.72) que essas comunidades têmculturalmente constituída, não valendo do indivíduo, mais sim da coletividadedas comunidades diversas e diferentes. Desta maneira, fazer uma co-gestãoentre as partes para o respeito à biodiversidade e à sociobiodiversidade, no casopesqueiro, incluindo e inserindo as comunidades pesqueiras, como participantesefetivas, mas com uma ressalva, qual seja, considerar o que elas pensam sobreas soluções, conforme as relações: entre si, com outros usuários, noutros termos,com o uso e aplicação da alteridade.Logo, os conflitos socioambientais pesqueiros na Amazônia Brasileira,envolvem características disposta sobre as representatividades dos sujeitosde Direitos Coletivos, territorialidade nos lagos, exercício de cidadania naalteridade, dentre outros motivos. Neste sentido, a alteridade jurídica, é umaabordagem que está sendo desenvolvida para solução de controvérsias dosconflitos socioambientais pesqueiros, que condessa o manejo pela participaçãocooperativa dos usuários envolvidos, considerando que o pano de fundo destesconflitos, são os usos e manejo de recursos naturais, no caso pesqueiro. Importantesalientar que, os acordos de pesca, como fruto da elaboração consensual entre osusuários são uma prática existencial da alteridade jurídica.3 COMUNIDADE SANTO ANTÔNIO DO RIO URUBU – BOA VISTA DORAMOS (AM)Desta feita, passa-se a descrever alguns aspectos da comunidade SantoAntônio do Rio Urubu. Esta comunidade fica localizada no município de Boavista dos Ramos, no Estado do Amazonas. Este município, conforme Atlas deDesenvolvimento no Brasil (PNUD, 2000), faz parte da Microrregião de Parintise da mesorregião do Centro Amazonense. Possui uma área de 2.598,1 Km², comdensidade demográfica em 5,3 hab/km², distante da capital a 270,6 km. Temuma população, (IBGE, 2000), de 10.482 pessoas, destes 5.465 em área rural e5.017 em área urbana. Por fim, possui um Índice de Desenvolvimento HumanoIDH-municipal, de 0.642 (PNUD,2000).A Região do Rio Urubu possui cinco comunidades que participaram doacordo de pesca nº 11/2003 e da elaboração do novo acordo de pesca. Estas são:Nossa Senhora de Fátima da Terra Preta; Nossa Senhora do Carmo do Itaúbal;Santo Antônio do Rio Urubu; São Pedro do Tamoatá; Boa União, todas em BoaHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 293livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 293 12/4/2011 17:33:22


Vista do Ramos e São João de Itaúbal, no município de Maués. Acordo de pescaeste respeitando a Instrução Normativa nº 29 de 2002 - IBAMA, que trata doprocesso de elaboração dos acordos de pesca.A Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu fica localizada no ladodireito do Paraná do Ramos. Possui, conforme pesquisa de campo 2 realizadade 09 e 12 de março de 2010, em média 78 (setenta e oito) pessoas, divididasem 18 (dezoito) grupos familiares de um tronco familiar em comum. Estadesenvolve a permacultura, através do Instituto de Permacultura da Amazônia;manejo de pesca, através de um viveiro; projeto de curso de informática e cursosde reflorestamento, que compatibiliza com o perfil do pescador polivalentecaboclo-ribeirinho. Relacionada às outras, tem um relativo melhor acesso, tantona seca como na cheia.Esta comunidade ao participar de uma auto pesquisa de levantamentosócio-econômico viabilizada pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestale Agrícola - IMAFLORA, no ano de 2001, se auto determinou, como sendo defamílias humildes, onde todos são parentes, que ganham seu sustento de vidaatravés do trabalho, tendo uma vida calma e tranqüila. No início a comunidadetinha uma maior quantidade de população, que trabalhavam por um objetivo emcomum.Segundo pesquisa de campo feita entre os dias 30 (trinta) de julho de2010 a 02 (dois) de agosto de 2010, em uma das entrevistas feitas, foi levantadaa informação de que a comunidade foi fundada depois que o Sr. Hilário Gomesdoou parte do seu terreno para compor a comunidade, fundada oficialmentepelo Padre Gabriel Modica, Pontifício Instituto Missões Exteriores - PIME.Nesta época, os primeiros moradores tinham bastantes peixes, caças, terra boapara plantio; católicos construíram uma capela: primeiro de palha, depois dealvenaria para oração; o primeiro centro social foi fundado em 1991; possuiuma escola; um posto de saúde que foi construído uma fundação, mas não foiconcluído, mesmo que tenha sido inaugurado.Para os comunitários de Santo Antônio do Rio Urubu ser pescador é umorgulho e uma honra. Pelo fator de que ser pescador é ter o peixe como umalimento, se caso tirasse da suas vidas a pesca, perderiam o sentido de vida, de2As pesquisas de campo foram executadas pelo autor deste artigo, como resultadoparcial da pesquisa e levantamento de dados da dissertação intitulada: “O Princípioda Dignidade da Pessoa Humana e o Conhecimento Tradicional associado ao ManejoPesqueiro, p. um estudo de caso na Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu, no municípiode Boa Vista do Ramos/AM” desenvolvida no Programa de Pós Graduação emDireito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA.294 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 294 12/4/2011 17:33:22


ser comunidade, descrevem ainda que a história da comunidade é permeada pelasustentabilidade pesqueira. Ser pescador (a) para esta comunidade é ser parte dacomunidade que o fazem existir.A Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu vive e se sustenta dapesca, primordialmente de subsistência ou pequena escala. Geralmente, oscomunitários vão pescar por volta das 5:00 horas da manhã, e dependendo danecessidade que tem voltam antes do horário do almoço, tal qual na maioriada Amazônia Brasileira quem vai pescar é o homem e a mulher trata e assa opeixe para alimentação do grupo familiar. A pesca é o meio de sustentabilidadefamiliar, mas isso não significa que os grupos familiares não tenham o cultivo ecriação de animais, como plantação de banana e criação de bovinos e suínos, oque os coloca como pescadores polivalentes, ou seja, possuem como principalatividade a pesca, mas também, são agricultores, pecuaristas e apicultores(criadores de abelha) em pequena escala. Neste sentido, a pesca é um meio devida que os identifica como comunidade pesqueira.4 DA ALTERIDADE JURÍDICA NO ACORDO DE PESCA Nº 11/2003A<strong>pós</strong> se ter levantando um marco teórico sobre a alteridade jurídicae os conflitos socioambientais pesqueiros na Amazônia, se faz necessáriocontextualizar estas análises teóricas em um caso concreto, qual seja, o acordode pesca nº 11/2003 - IBAMA na Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu, queparticipou da elaboração deste Acordo de Pesca. O objetivo deste tópico é fazeruma análise conjunta entre os marcos teóricos e uma realidade social específicada Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu.A partir dos conflitos - “pescadores de fora”, diminuição do estoquepesqueiro - da década de 1990 a Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu e asoutras comunidades do Paraná do Ramos, as cinco comunidades antes citadas,começaram o processo de elaboração do acordo de pesca, que foi homologadopelo Ministério do Meio Ambiente em 20 de março de 2003, pela portaria nº11/2003, o que amenizou os conflitos naquela época. Posteriormente, na décadade 2000 começaram a fazer uma reelaborarão do acordo de pesca que está emfase final, a de homologação pelo Ministério do Meio Ambiente e pelo Ministériode Pesca e Aqüicultura.No acordo de pesca nº 11/2003 as 5 (cinco) comunidades (Santo AntôniodoRio Urubu, São Pedro do Tamoatá, Nossa Senhora do Carmo do Itaubal, BoaUnião, Nossa Senhora de Fátima da Terra Preta do RioUrubu), Organizaçõesnão-governamentais (Colônia de Pescadores Z-15, de Boa Vista do Ramos/AM)Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 295livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 295 12/4/2011 17:33:23


e os órgãos governamentais envolvidos (IBAMA) decidiram algumas regrasque são de conteúdo consuetudinário. Determinaram que a área deste acordode pesca seria estabelecida, conforme o artigo 1. Do acordo de pesca que ficarianos “limites para pesca na Região do Rio Urubu, no Município de Boa Vistado Ramos/AM, que compreende desde a boca do Rio Urubu com Paraná doUrariá de Cima, até a boca do Furo da Baixa; e, da boca do Castanhal à boca doFuro do Amandio”. Decidindo conforme os conhecimentos tradicionais que ascomunidades tem sobre a região que pescam.Um dos exemplos de conhecimento consuetudinário ou conhecimentolocal ecológico, transformado em norma através do acordo de pesca nº 11/2003- IBAMA descrito no próprio acordo de pesca é:Art. 2º. Limitar, em até 3 (três), o número de malhadeiraspor barco permissionado para a atividade pesqueira.§ 1º. Cada malhadeira não poderá ter mais de 100m (cemmetros) de comprimento, nem ter malha inferior a 70mm(setenta milímetros), medidos entre nós opostos.§ 2º. Cada malhadeira não poderá ser colocada a menos de200m (duzentos metros) da confluência de rios, lagos, furose igarapés, nem estar a uma distância inferior a 100m (cemmetros) uma das outras.Há nesta norma o reconhecimento e relação com os conhecimentostradicionais associados aos recursos pesqueiros. Pois, ao se limitar em três onúmero de malhadeiras, determina-se um limite para a quantidade de pescado;limitando-se à malha de 70 mm, limita-se o tamanho deste pescado, deixandosepassar pelas malhadeiras os peixes de menor tamanho para controle daquantidade dos peixes, e se determinando as distâncias de onde deverá sercolocadas as malhadeiras, protege-se o ciclo reprodutivo dos peixes. Sendoestas normas, medidas de manejo pesqueiro, ou seja, de etnoictioconservação,por se ter uma relação entre o sentido de reserva dos peixes e o conhecimentotradicional aplicado a uma norma.Determinações estas que só são possíveis com o conhecimento ecológicolocal das comunidades envolvidas. Como forma de controle do pescadoregulamentou-se que “Art. 3º. Cada barco ou geleira poderá capturar e/ouarmazenar até 200kg (duzentos quilos) de pescado, por viagem de pesca.”, demaneira que as comunidades tivessem seu alimento sem a sobrepesca, isto é,fazendo-se o manejo de pesca através do acordo de pesca, ou seja, através deum instrumento legal. Outra medida de etnoictioconservação das comunidadesneste acordo de pesca foi “Art. 4º. Proibir, por 2 (dois) anos, qualquer tipo de296 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 296 12/4/2011 17:33:23


pescaria nos lagos Marajá e Laguinho, do Município de Boa Vista do Ramos/AM, os quais ficam reservados como criadouros naturais.”Assim, delegar às comunidades tradicionais o poder de:Art. 2º. Permitir que, na ausência da fiscalização do IB-AMA, Agentes Ambientais Voluntários, devidamente credenciados,lavrem Autos de Constatação, de acordo com asdeterminações da Resolução CONAMA nº 003, de 16 demarço de 1988 e da Instrução Normativa IBAMA nº 19, de5 de novembro de 2001.§ 1º. As apreensões de materiais provenientes de infraçõesà legislação pertinente serão realizadas por fiscais do IB-AMA, na forma da lei.§ 2º. Aos Agentes Ambientais Voluntários, quando necessário,caberão as ações previstas no art. 3º da InstruçãoNormativa IBAMA nº 19/01.(numeração de artigo equivocada conforme publicação)Respeitando-se a determinação de que ficam excluídas tais proibições daspescas científicas, que são devidamente autorizadas pelo IBAMA conforme seuart. 6º, de tal portaria. Ressaltando-se que tais normas devam respeitar as Leis doEstado, como por exemplo, o que determina o “Art. 7º. O exercício da pesca emdesacordo com o estabelecido nesta Portaria sujeitará o infrator às penalidadesprevistas no Decreto nº 3.179, de 21 de setembro de 1999”. Nestes termos, osAgentes Ambientais Voluntários, (IN 66/2005 - IBAMA) são competentes parafazer o monitoramento e avaliação dos acordos de pesca, até mesmo por seremtambém comunitários, no entanto, a Comunidade Santo Antônio do Rio Urubunão os tem, funções estas exercidas pelos líderes comunitários.Mesmo se tendo o segundo acordo de pesca sido elaborado em consensocom as comunidades e órgãos governamentais da região em meados de 2009,ou seja, na fase de monitoramento e avaliação do primeiro acordo de pesca, osconflitos ainda são existentes: presença dos “pescadores de fora”; diminuiçãodo estoque pesqueiro; e pesca ilegal do pirarucu. Nas pesquisas de campo feitasem março de 2010 teve-se a notícia com os comunitários de que no lago doMarajá haviam sido pescados <strong>14</strong> (quatorze) espécimes, em maio de 2010 oscomentários já estava em 21 (vinte e uma) espécimes.A alteridade jurídica no acordo de pesca nº 11/2003 reside no processo detomada de decisões das comunidades e na elaboração dos artigos antes descritos.Cada comunidade tem seus usos e costumes, onde alguns são similares e outrosnão, no que tange à efetivação dos interesses de cada comunidade, com isso, arelação de alteridade das comunidades está no consenso entre elas, isto é, noHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 297livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 297 12/4/2011 17:33:23


processo de diálogo entre a compreensão e cada uso e costume que for diferente,por exemplo, somente a subsistência do consumo do pescado para algumascomunidades e para outras, subsistência do consumo do pescado e a venda dopescado. Essa diversidade de interesses foram dialogados durante o processo deelaboração deste acordo de pesca aconteceu também com os outros usuários. Porfim, no acordo de pesca nº 11/2003, a alteridade jurídica foi efetivada através doconsenso, isto é, da tomada de decisões dialogada.EMPODERAMENTO DA ALTERIDADE JURÍDICA NOS CONFLITOS SOCIOAM-BIENTAIS PESQUEIROSA alteridade jurídica nos conflitos pesqueiros é a aplicação fática daresponsabilidade solidária entre os usuários que participam nas elaborações dosacordos de pesca. Dessa forma, a alteridade jurídica é um instrumento de soluçãode conflitos entre comunidades pesqueiras e destas com os outros usuários, poisé de se considerar que as comunidades pesqueiras envolvidas vivem em ummesmo ecossistema, que se comunicam para o co-manejo de espécies atravésdo acordo de pesca nº 11/2003. A alteridade jurídica é a forma de recepçãointer- relacional entre as comunidades, de seus usos, costumes e conhecimentosecológicos locais consolidados e a partir desta consolidação da relação com osoutros usuários.As comunidades tradicionais e pesqueiras da Amazônia Brasileirahistoricamente se organizam e resolvem seus conflitos entre si. Isso significaque trabalham em cooperação para a sustentabilidade ambiental dos recursospesqueiros e a sustentabilidade socioeconômica das comunidades envolvidas.Mas para tanto, é necessário que tais comunidades sejam participantes ativas noprocesso de tomada de decisões e elaboração dos acordos de pesca.Assim sendo, o empoderamento da alteridade jurídica nos conflitospesqueiros acontece através da participação ativa das comunidades pesqueiras,que descentraliza o poder de alguns grupos e consolida o empoderamentointercomunitário. Portanto, a alteridade jurídica é uma abordagem que, quandoutilizada, pode resolver grande parte dos conflitos de maneira mais efetiva. Poiso foco central está na compreensão conjunta dos usuários, especialmente dascomunidades pesqueiras envolvidas; na tomada de decisões, em consenso, otornando mais efetivo, por ser um plano decisório das comunidades com outros(as). Um exemplo real desta abordagem e desta realidade da alteridade jurídicacomo instrumento de solução de conflitos socioambientais, é o caso do acordo298 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 298 12/4/2011 17:33:23


de pesca nº 11/2003, que a Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu é parte,como forma de pluralidade jurídica e efetivação dos direitos das comunidadespesqueiras.REFERÊNCIASAGUIAR, R.A.R. “Alteridade e Rede no Direito”. In: Veredas do Direito, v.3,n.6, p.11-43, julho-dezembro de 2006. Disponível em: . Acesso em: 27 de outubro de 2010.ALENCAR, E. “Entre o rio e o lago: conflito social e etnografia da pesca navárzea do Médio Amazonas” In: Pós-Revista Brasiliense de Pós-Graduação emCiências Sociais, ICS, Universidade de Brasília, ano IV, 2000. p. 121-<strong>14</strong>4.BOBBI, N. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008.CHAVES, M. P. S; BARROS, J. F. & FABRÉ, N.N. “Confl itos Socioambientaiseidentidades políticas na Amazônia” Disponível em: . Acesso em: 03 de maio 2010. 2007. p. 42-57.DERANI, C. “Natureza e Cultura”, “Natureza e Meio ambiente”, “A razão danorma ambiental” In: DERANI, C. Direito Econômico Ambiental. São Paulo:Max Limonad, 1997, p. 76-88.DUPRAT, D. “O direito sob o marco da plurietnicidade/multiculturalidade”In: DUPRAT, D.(Org.) Pareceres Jurídicos: Direito dos Povos e ComunidadesTradicionais. Manaus:UEA,2007, p.9-19.ESTERCI, N. “Conflitos Ambientais e Processos Classificatórios na AmazôniaBrasileira”. In: ESTERCI, N.; LIMA, D.; LÉNA: Diversidade Sociocultural ePolíticas Ambientais. Boletim Rede Amazônia. Ano 1, n. 1, 2002. p. 51-62.ESTERCI, N. “Confl itos Ambientais e Processos classificatórios na AmazôniaBrasileira” In: ESTERCI, N.; LIMA D.; LÉNA P.;. Diversidade Socioculturale Políticas Ambientais. Boletim Rede Amazônia. Ano 1, nº 4, 2002, p.51-62.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 299livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 299 12/4/2011 17:33:23


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PNUD. Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 06 de junho de 2009.RÁO, Vicente. O Direito e a vida dos Direitos: Noções Gerais: Direito positivo.Direito Objetivo. Teoria Geral do Direito Subjetivo. Análise dos Elementos queconstituem Os Direitos Subjetivos. 6ªed. Ant. e atual. Com o novo Código Civilpor Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2004.ROUÉ, M. “Novas Persperctivas em etnocecologia: saberes tradicionais egestão dos recursos naturais” In: DIEGUES, A.C. (Org.) Etnoconservação:novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: Anna Blume,NUPAUB/USP, p. 67-79.RUFFINO, Mauro Luis. Gestão do uso dos recursos pesqueiros na Amazônia.Manaus: IBAMA, 2005.SOARES, A.P. A. “A guerra do peixe: Janauacá, conflitos e territorialidades naságuas.” In: SCHERE, E; OLIVEIRA, J.A. (Org.) Amazônia: território, povostradicionais e ambiente. Manaus: EDUA,2009.SUPIOT, A. Homo juridicus: Ensaio sobre a função antropológica do Direito.São Paulo: Martins Fontes, 2007.TODOROV, T. A Conquista da América: A questão do Outro. São Paulo:Martins Fontes, 2010.Artigo recebido em: junho/2010Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 301livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 301 12/4/2011 17:33:23


302 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 302 12/4/2011 17:33:23


A EFETIVIDADE DO TRATADO DE COOPERAÇÃOAMAZÔNICA COMO TRATADO-QUADRO DEPROTEÇÃO AMBIENTAL DA FAUNA E DA FLORADO BRASILDiogo de Oliveira Lins•Sumário: Introdução; 1. O Tratado de Cooperação Amazônica: Histórico e Antecedentes;2. Tratado de Cooperação Internacional e a Jurisdificação da Proteção Internacionalao Meio Ambiente; 3. Breves digressões a respeito da definição de fauna e flora; 4. LegislaçãoBrasileira e Proteção Penal do Meio Ambiente; 5. As dificuldades entre a realidadecotidiana e as tentativas de implementação do Tratado de Cooperação Amazônica;Conclusões; Referências.Resumo: A efetividade de políticas públicasem torno da proteção do meio ambientepressupõe normas aptas a regulamentálasou, pelo menos, fazerem qualqueralusão a instrumentos os quais vinculemum Estado à obrigação de implementálas.Dada a natureza transfronteiriça dobioma amazônico, o qual incide em váriospaíses latino-americanos, inevitável seria aratificação, no atual contexto das relaçõesinternacionais, de algum documentojurídico por todos os países interessadospela temática. Nessa linha de entendimento,assinou-se o Tratado de CooperaçãoAmazônica em 1978, com entrada emvigor em 1980, no cerne da emergênciada disciplina do Direito Internacional doMeio Ambiente. Passadas mais de duasdécadas do início da implementação desteAbstract: The effectiveness of publicpolicies geared toward protecting theenvironment presupposes standardsable to regulate them, or at least makeno reference to instruments which binda state obligation to implement them.Given the transboundary nature of theAmazon biome, which is based in severalLatin American countries, the ratificationwould be inevitable in the current contextof international relations in any legaldocument for all countries concerned bythe issue. In this line of understanding,signed the Amazon Cooperation Treatyin 1978, entered into force in 1980, at theheart of the emergence of the disciplineof International Law on the Environment.After more than two decades of thebeginning of the implementation of this• Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade doEstado do Amazonas. Diretor de Secretaria da 2ª Vara da Comarca de Iranduba/AM.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 303livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 303 12/4/2011 17:33:23


instrumento normativo internacional,procedeu o presente trabalho àidentificação das principais conquistas efalhas na busca pela sedimentação de seusdispositivos, com enfoque sobre os delitosconsumados em detrimento da fauna eflora brasileira. Nesse sentido, realizou-sepesquisa documental na Procuradoria daRepública do Amazonas, contabilizandoseas denúncias oferecidas por crimescontra a fauna e flora em bens da União,no período de janeiro a outubro de 2007.international instrument, conducted thisstudy to identify the main achievementsand failures in the quest for consolidationof their devices, focusing on the crimes tothe detriment of wild fauna and flora. Inthis sense, there was documentary researchin the Prosecutor's office of the Amazon,accounting the complaints offered forcrimes against fauna and flora of the estate,from January to October 2007.Palavras-Chave: Tratado de CooperaçãoAmazônica; Fauna; Flora.Keywords: Amazon Cooperation Treaty;Fauna; Flora.INTRODUÇÃONa esteira dos entendimentos firmados com o nascedouro do DireitoInternacional do Meio Ambiente, emergiram na década de 1970 os primeirosinstrumentos normativos internacionais a versar de forma pioneira sobre asquestões ambientais, por ocasião da Declaração de Estocolmo de 1972. A ordemglobal passou, ainda de maneira tímida, a aventar a temática da proteção aomeio ambiente como uma das futuras preocupações da humanidade. Erigiram-seprincípios fundamentais do Direito Ambiental, tais como prevenção, precaução,poluidor-pagador, democrático e desenvolvimento sustentável, entre outros.A Floresta Amazônica, por sua extensão transfronteiriça, requer acooperação conjunta dos países sob as quais incide o seu território de milhares dequilômetros quadrados no interesse de sua proteção. Os tratados internacionaisse revelaram, em um primeiro passo na longa trajetória de desenvolvimento deconsciência ambiental, como um instrumento hábil a projetar a questão perantenão apenas os Estados diretamente interessados, mas perante a sociedade global.Não obstante a dualidade entre as teorias monista e dualista de regências dosdiplomas celebrados pelos aparelhos estatais no exercício de suas soberanias, éinegável a monta e a vinculação fornecida por um tratado, convenção, pacto ououtro de magnitude equivalente, entre os seus respectivos signatários. Infere-se,diante dessa conjuntura, a conveniência e o momento oportuno no qual entrou304 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 304 12/4/2011 17:33:23


em vigência o Tratado de Cooperação Amazônica, no ano de 1980, a<strong>pós</strong> 3 anosde sua assinatura, com o de<strong>pós</strong>ito das adesões necessárias.A partir desse momento, as conquistas se revelaram incontestes. A<strong>pós</strong> ainclusão de dispositivos os quais aludem ao meio ambiente em diversos tratados,a Constituição Federal de 1988 se tornou a primeira Lei Fundamental da históriaconstituinte brasileira a mencionar expressamente a temática em um capítulo(art. 225 CF/88), consagrando os “direitos de terceira geração”.Resta indubitável a influência do Tratado de Cooperação Amazônica,na sua posição de tratado-quadro, em inúmeros dispositivos de leis brasileirasas quais tratam intrinsecamente da questão ambiental. O presente trabalhose ocupou, a<strong>pós</strong> a análise do histórico e antecedentes do TCA, bem assim adefinição de fauna, flora e biodiversidade, da análise de dados práticos, a partirdos quais será possível fornecer um quadro da realidade cotidiana.1. O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA: HISTÓRICO E ANTE-CEDENTESCelebrou-se o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) com os seguintespro<strong>pós</strong>itos: reafirmar a soberania dos países que o compõe além de incentivar,institucionalizar e orientar o processo de integração e cooperação regional entreos mesmos. A assinatura teve lugar em Brasília, na data de 10 de julho de 1978,por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela,mas só entrou em vigor no dia 3 de agosto de 1980 (trinta dias depois o de<strong>pós</strong>itodo instrumento de ratificação venezuelano) 1 .Como referencial para sua área de abrangência, o tratado toma o conceitode bacia Amazônica e áreas cujas características geográficas, ecológicas oueconômicas, se considerem estreitamente vinculadas à mesma (artigo II),explicando assim a inclusão da Guiana e do Suriname, regiões que se enquadramno segundo critério.Interessante observar a exclusão da Guiana Francesa do Pacto, sob oargumento de se tratar de uma colônia, e por isso não teria soberania para serdefendida no tratado 2 .1Entre os antecedentes do TCA, indica-se a Convenção de Iquitos de 1948 compostapor Brasil, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, a qual foi coordenada pela UNESCO(BARRERA, 1993, p. 200).2O professor Guido Soares indica: “none of the contracting parties of the TAC wantedto negotiate with a colonial power. France and Trinidad and Tobago had tried to join deTAC negotiations at na early stage, but they were diplomatically turned down by consensusamong the negotiating countries ” (SOARES, 1993, p. 212).Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 305livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 305 12/4/2011 17:33:23


O tratado prevê a colaboração entre os países membros para a promoçãoda pesquisa científica e tecnológica, o intercâmbio de informações, a utilizaçãoracional dos recursos naturais, a liberdade de navegação nos rios amazônicos,a proteção da navegação e do comércio, a preservação do patrimônio cultural,os cuidados com a saúde, a criação e a operação de centros de pesquisa, oestabelecimento de uma adequada infra-estrutura de transportes e comunicações,bem assim o incremento do turismo e o comércio fronteiriço.Ademais, a necessidade de proteção além das fronteiras nacionaiscontempla o fato de ser o meio ambiente um bem jurídico fundamental cujosdanos podem ultrapassar os limites político-administrativos de um Estado e,mais precisamente no contexto amazônico, atingir direta ou indiretamente ospaíses vizinhos. 3O diploma normativo internacional em apreço se destina à ponderaçãoda sustentabilidade a partir de três dimensões: ambiental, social e econômica,com vistas a um compromisso entre desenvolvimento econômico e proteçãoambientalCom vistas a desenvolver seus objetivos, o diploma normativo suboccullis abre espaço para que seus membros efetuem acordos bilaterais de modoa lhe garantir exeqüibilidade, ou seja, trata-se de um tratado quadro (umbrellaagreement).Barrera (1993, 201). explica que:From the single paragraph to Article I, as well as from othersections of the text (...) it can be inferred that the Threatyhás the characteristics of na ‘umbrella agreement’, not subjectto interpretive reservations and not open to new adherenceand which requires, for its full implementation, thesubscription of specific agreements and understandings,elminating the possibility that its execution affects the existingboundary disputes among the signatoriesNo Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), em seu Artigo VII, háprevisão expressa de proteção à fauna e flora amazônicas dos países signatários,com ditames na forma de soft law, ou seja, não possui em si sanção contraaqueles que deixarem de praticar o que nele está previsto. Porém, isto não otorna vazio de qualquer significado.3SILVA, S. T. et all. Responsabilidade Civil Ambiental nos Países Integrantes do Tratadode Cooperação Amazônica, 2006. p. 7.306 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 306 12/4/2011 17:33:23


Contudo, esses não são os únicos aspectos que cabem ser analisados noque diz respeito a esta proteção. Tendo em vista que o TCA é um tratado guardachuva(umbrella treaty), limita-se descrever as bases jurídicas que permeiamo próprio tratado, assim como os direitos e deveres das partes permitindo queoutra regulamentação mais detalhada seja feita a posteriori.Entre os acordos bilaterais firmados à luz do TCA convém rememorar osseguintes:a) Plano de Ordenamento e Gerenciamento das Bacias dos Rios SanMiguel e Putumayo: envolvendo Equador e Colômbia, o plano englobauma proposta de ação para o desenvolvimento sustentável da zonafronteiriça, o qual inclui parte do Departamento de Putumayo na Colômbiae a Província de Sucumbíos a Província do Napo no Equador.b) Plano para o Desenvolvimento Integral da Bacia do Rio Putumayo:consiste em um plano proposto pela Comissão Mista de CooperaçãoAmazônica a fim de implementar um programa de desenvolvimentosustentável na área de 160.500 km2 coberta.c) Plano Modelo Colombiano - Brasíleiro para o DesenvolvimentoIntegrado das Comunidades Vizinhas do Eixo Tabatinga – Apaporis: frutodos trabalhos da Comissão Mista, visa promover a integração entre ospaíses por meio de acordos econômicos os quais confiram viabilidadeao aumento dos fluxos comerciais de Letícia (Colômbia) e Tabatinga(Brasil).d) Programa de Desenvolvimento Integrado para as ComunidadesFronteiriças Peruano - Brasíleiras (Inapari e Assis Brasil): baseado noTratado de Amizade e Cooperação entre Brasil e Peru em 1979, procuraa dinamização do comércio fronteiriço.e) Programa de Ação Conjunta Brasil Bolívia: elaborado no espíritoda Declaração de 1988 entre Brasil e Bolívia sobre a necessidade dededicar atenção constante à questão ambiental da região amazônica oprograma pretende iniciar a execução de planos modelos binacionaisde desenvolvimento integrado de comunidades visinhas, no âmbitoda Subcomissão de Cooperação Fronteiriça da Comissão MistaPermanente de Coordenação. Para tanto, determinaram o início dessesplanos nas seguintes microrregiões: Brasiléia - Cobija; Guajaramirím -Guayaramerín; e Costa - Marques - Triângulo San Joaquín, San Ramón eMagdalena, todas na Amazônia.f) Convênio Complementar ao Acordo de Cooperação Amazônicaentre Brasil e Colômbia, Sobre Cooperação no Desenvolvimento dosRecursos Minerais na Área de Fronteira: firmado em 9 de fevereiroHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 307livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 307 12/4/2011 17:33:23


de 1988 em Bogotá, este convênio objetiva estimular a cooperaçãoeconômica e empresarial, com amplo intercâmbio de informação técnicasobre atividades mineras e recursos geológicos da região de fronteiraou de comum interesse. Permite ainda a realização de levantamentosaerogeofísicos na região limítrofe, e determina que As informaçõesobtidas em trabalhos conjuntos desenvolvidos no âmbito do presenteConvênio não serão divulgadas a terceiros sem prévio acordo escrito entreas Parte, mesmo depois do término de sua vigência, com exceção dasinformações geo1ógica, geofísica e geoquímicas e outras, relativas aoscorrespondentes territórios, as quais poderão ser divulgadas e utilizadapela respectiva Parte, sem qualquer limitação.g) Acordo de Cooperação para a Conservação e o Uso Sustentável da Florae da Fauna Silvestres dos Territórios Amazônicos do Brasil e do Peru:de 25 de agosto de 2003, este acordo reitera o compromisso das partesde cooperar em matéria de conservação da flora e da fauna silvestres erespectivos ecossistemas em seus territórios amazônicos com o pro<strong>pós</strong>itode promover a conservação do meio ambiente e o aproveitamentosustentável dos recursos naturais.h) Convênio entre o Governo da República Federal do Brasil e o Governoda República do Bolívia para a Preservação, Conservação e Fiscalizaçãodos Recursos Naturais nas Áreas de Fronteira: assinado em 1990 esseconvênio atesta o compromisso entre Brasil e Bolívia de proibir e areprimir a caça e a depredação, bem como o comércio interno e externode espécies da fauna e flora que se encontrem ameaçadas de extinção,inclusive seus subprodutos naturais ou manufaturados e proteger asflorestas naturais e a preservar seus recursos, principalmente nas zonasfronteiriças binacionais, realizando estudos coordenados com vistas àaplicação, em seus respectivos países, de planos, programas e projetosque permitam o aproveitamento racional dos recursos naturais. Traziaainda a proposta da criação de uma Unidade de Conservação NacionalContígua que acabou não sendo levada a cabo.2. TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA E A JURISDIFICAÇÃO IN-TERNACIONAL DA PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTEConvém discorrer brevemente sobre a natureza jurídica do Tratado deCooperação Amazônica frente ao Direito Internacional do Meio Ambiente, afim de que se estabeleça um liame interpretativo para as disposições de direito308 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 308 12/4/2011 17:33:23


interno a serem adotadas pela República Federativa do Brasil em consonânciacom esse diploma.Freire et al (2007, 4) partem da definição de juridificação para enquadraras disposições do Tratado de Cooperação Amazônica, entendendo-a como umconjunto particular de características as quais as instituições podem ou nãopossuir, consideradas a partir de três dimensões: obrigação (um Estado ou outrosatores estão limitados por regras ou compromissos ou um conjunto de ambos,com regras e comportamentos sujeitos ao Direito Internacional); precisão (essasnormas devem ser isentas de ambiguidades); delegação (terceiros detêm garantiaspara interpretar e aplicar as regras, solucionar conflitos e, possivelmente, criarnovas regras).Juridificar significaria, portanto, tornar jurídicas disposições meramentepolíticas. A preservação do meio ambiente, até os idos da década de 1970,consubstanciava meramente um compromisso político desencadeado pelaDeclaração de Estocolmo de 1972, sem a devida positivação, notadamente nocontexto da Floresta Amazônica, detentora da maior sociobiodiversidade doglobo terrestre. Nessa esteira, erigiu-se o Tratado de Cooperação Amazônica,com o objetivo de estabelecer obrigações internacionais, mínimas que fossem,aptas a conferir coercibilidade ao contexto de proteção ao bem jurídico ambientalem exame nessa pesquisa.Ocorre, portanto,uma sobreposição de ambos os sistemas acima aludidos:o jurídico e o político, tendo em vista a natureza fechada de ambos.Postas estas notas, passa-se à análise do tratado como soft law ou hardlaw, como acima pretendido.Define-se uma obrigação internacional soft law como um instrumentoquase jurídico, desprovido de força coercitiva e, por conseguinte, de sançõesaplicáveis aos Estados- Parte, ou cuja coercibilidade aparenta ser menor do queo enforcement do direito tradicional. Na seara do Direito Internacional, aludema disposições as quais não se enquadram como normas internacionais em sentidoestrito, com caráter inteiramente voluntário e subsidiário e de aprendizagemmútua, de acordo com lições proferidas por Freire I (2007, p.11).O termo hard law, por sua vez, contempla o direito rígido, dentro do qualse reputam inseridas sanções contra as infringências perpetradas.Ressalte-se que a natureza de soft law de uma disposição não lhe retira ajuridificação, mesmo que desprovida de sanção.Diante das definições acima colacionadas, situa-se o Tratado deCooperação Amazônica, a partir dos três elementos basilares ao direito nãorígido:Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 309livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 309 12/4/2011 17:33:24


a) Obrigação: o tratado possui artigos concisos, mas nãocoercitivos, com vistas à cooperação entre as partes. Destacam-se aafirmação da soberania e responsabilidade dos Estados-partes contratantesem face da Bacia Amazônica compreendida em seus territórios;b) Precisão: as intenções do tratado são as de incrementar oemprego racional dos recursos humanos e naturais dos seus respectivosterritórios e estimular a realização de estudos e a adoção de medidasconjuntas;c) Delegação: a efetivação do tratado se dá através dofuncionamento articulado com agências e órgãos responsáveis pelacoordenação, implementação de programas e projetos de cooperaçãotécnica dos países membros, os quais interagem com as unidadesexecutoras e coordenadoras nacionais.Dá-se, por conseguinte, uma obrigação fraca, precisão forte e umadelegação moderada.3. BREVES DIGRESSÕES A RESPEITO DA DEFINIÇÃO DE FAUNA EFLORASirvinskas (2009, 423) define flora como o conjunto de plantas deuma região, de um país ou de um continente. Pondera o autor que a interaçãoconstante com outros seres vivos, bem como microorganismos e outros animaisacarreta o conceito de ecossistema sustentado.Carvalho (1999, 17) profere, outrossim, as seguintes lições:(...) toda comunidade de seres vivos – vegetais ou animais– interage com o meio circundante, com o qual estabeleceum intercâmbio recíproco, contínuo ou não, durante determinadoperíodo de tempo, de tal forma que ‘um fluxo deenergia produza estruturas bióticas claramente definidase uma ciclagem de materiais entre as partes vivas e nãovivas’.Esseconjunto de fatores, respectivamente denominadosbiocenose e biótopo, dão origem a um complexo querecebe o nome de ecossistema sustentado graças às constantestrocas de matéria e energia, responsáveis por seuequilíbrio”Conforme Sirvinkas (2009, 459) a fauna, por sua vez, é o conjunto deanimais estabelecidos em determinada região.310 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 310 12/4/2011 17:33:24


4. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E PROTEÇÃO PENAL DO MEIO AMBIENTEVerifica-se que os efeitos da penalização de condutas contra o meioambiente, tendo em exame a tutela penal ambiental, sobretudo em face darelativa incipiência da Lei nº 9.605/98.Nesse sentido, existe uma complementação em torno da dogmáticaconcernente à definição de bem jurídico e o alcance sobre o meio ambiente: aprimeira desenvolve importantes funções de ordem político-criminal que, quandoconjugada com a última, demonstra a sua importância para o desenvolvimentoda vida humana como um valor essencial de proteção. Há também a necessidadede delimitação do conceito em apreço.Costa Júnior (1996) efetua um minucioso estudo crítico e pioneiro sobreo tema, quando, ainda no final da década de 1990, traça as bases da construçãodo tipo penal ambiental. Enfatiza que essa se tratava da proteção “imediata”dos valores ambientais no momento atual. Costa Júnior (1996) enuncia que,normalmente, o bem tutelado consiste na limpeza e pureza da água, ar e solo,mas que também abrange os elementos concernentes ao equilíbrio natural.Ressalta que não é possível a homogeneização de condutas tipificadas nasdiversas legislações ao redor do planeta, pois os comportamentos e as relaçõesde manejo de recursos naturais diferem de acordo com a região.No que tange especificamente ao bem jurídico tutelado pela norma penalambiental, Costa Júnior (1996, 60-70) adota a posição de que se destaca aindicação do “fim perseguido”, em detrimento do “fato” vetado, de forma asupervalorizar o bem jurídico e produzir uma tensão dialética com o confrontoentre “valoração” e “descrição”. Registra-se, por conseguinte, o ímpeto ansiosodo legislador em proteger a qualquer preço bens em estado de destruição, emdetrimento de uma melhor técnica legislativa ou mesmo das questões culturaise socioambientais peculiares a uma determinada população.Apesar de não estar diretamente ligado ao objeto central da presentepesquisa, a obra de Minahim (2005, 48) revela uma tormentosa questão que, nocontexto atual de proteção ambiental na Amazônia, se reputa tormentosa anteà diversidade biológica existente na região: a biopirataria e a necessidade denorma incriminadora da conduta. Assim sendo, apresenta as bases para alinharo conceito de bem jurídico com a tutela penal ambiental: a própria natureza ea maneira de proporcionar-lhe proteção eficaz constituiriam o cerne de toda apolêmica em volta do papel da intervenção do Direito Penal na sociedade derisco, ante os avanços da biotecnologia.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 311livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 311 12/4/2011 17:33:24


Minahim e Prado (2006, 4) também discorrem, em trabalho conjunto, queo Direito Penal não pode eximir-se de proteger bens jurídicos transindividuais,como no caso da norma ambiental, a fim de atender aos desafios lançados àsciências, à razão e à ética.Deve-se também sublinhas ar lições de Jakobs (2007, 7-8), no sentidode que o Direito Penal representa o “cartão de visitas” da sociedade na qualé inserido, ou seja, erige-se esse ramo da ciência jurídica de acordo com osproblemas sociais de relevância.Nesse sentido, a lição de Pastana (2003, 27) remonta à atualidadeda tutela criminal do meio ambiente: a política criminal do Estado dirigidaà repressão encontra aceitação da opinião pública, porque se justifica com opensamento de combater condutas típicas as quais lesem o bem jurídico meioambiente. Enquanto os demais ramos do direito sofrem uma deslegalização edesregulamentação, militariza-se o Direito Penal.Marinho (2003, 172) ressalta que a tutela do meio ambiente enquantobem jurídico penal advém de sua especial transcendência e da necessidade deproteção para a própria existência do ser humano em geral e da vida. 45. A DISPARIDADE ENTRE A REALIDADE COTIDIANA E AS TENTATI-VAS DE IMPLEMENTAÇÃO DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMZÔNICAOs artigos 29 a 37 da Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) tratamdos crimes contra a fauna. Assim, é crime matar, perseguir, caçar animais dafauna silvestre sem permissão, impedir a procriação destruindo ninho e abrigonatural, vender, exportar, manter em cativeiro, ovos, larvas ou espécimes dafauna, exportar peles e couros sem autorização, introduzir outras espécies nopaís sem parecer técnico, praticar abuso, maus tratos, ferir, mutilar, degradarcativeiros, viveiros naturais, pescar em períodos em que a pesca é proibida oumesmo pescar utilizando meios tóxicos, entre outros.Já os artigos 38 a 53 abordam os crimes contra a flora, dentre os quaisestão: destruir florestas de preservação permanente, causar danos às Áreas deProteção Ambiental, comercializar produtos de origem vegetal sem licençaválida, dificultar a regeneração natural de florestas, entre outros.As denúncias contabilizadas, as quais ensejaram a propositura de açãopenal pública incondicionada, atinem unicamente a infrações cometidas em4Tutela Penal da Cobertura Vegetal, 2003. p. 172.312 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 312 12/4/2011 17:33:24


detrimento de bens da União. Ao contrário do que se imagina, existem inúmerasUnidades de Conservação criadas, principalmente a partir dos fins da década de1970, através de sucessivos decretos dos Presidentes da República com mandatosnesse ínterim. Nessa esteira, a prática delituosa se verifica, nos seguintes: naReserva Biológica de Balbina, Parque Nacional do Jaú, Parque Nacional doPico da Neblina e Estação Ecológica Anavilhanas. Tem-se intensificado tambéma ocorrência de delitos nas áreas de segurança nacional, ou seja, a faixa de 150quilômetros a partir da fronteira do Brasil com algum país sul-americano, comoBolívia, Venezuela, Peru e Colômbia.Surgem as ações penais públicas a partir, na maioria das hipóteses, deautuações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos NaturaisRenováveis (IBAMA), encaminhadas ao Ministério Público Federal na formade representações. Devem constar nos autos de infração elementos aptos asedimentar a materialidade e indicar a autoria dos crimes em comento, quaissejam: nome do autuado, endereço, número de documentos hábeis a identificálo(Carteira de Identidade, Cadastro de Pessoa Física, Título de Eleitor), filiaçãoe outros, bem assim a especificação da infração, o local, a assinatura do autordo fato, do servidor responsável pela fiscalização e das testemunhas. A<strong>pós</strong>esse momento, inicia-se um procedimento administrativo no âmbito do órgãoresponsável pela verificação in loco da prática delituosa, com o fito de impugnaro documento, se constatada a sua ilegalidade, para que depois se encaminhemas suas cópias ao Parquet Federal.Cabe também a possibilidade de a Polícia Federal, através de suaDelegacia Especializada em Repressão a Crimes Ambientais, remeter apuratóriospoliciais ao Ministério Público Federal. Essas investigações são cada vez maisexíguas e, quando relatadas, se posicionam aquém do esperado nas disposiçõesconcernentes à autoria e materialidade dos crimes ambientais.Nesses termos, procede-se à menção dos números relativos à criminalidadeambiental no Amazonas no ano de 2007 (até 25 de outubro de 2007). Noâmbito do Juizado Especial Federal, mais precisamente a 6ª Vara Federal daSubseção Judiciária do Estado do Amazonas, contabilizaram-se 40 convocaçõesde audiências preliminares em delitos de menor potencial ofensivo (a penamáxima cominada é de 2 anos), dentre as quais a maioria cinge ao artigo 50 (<strong>14</strong>ações penais cada), da Lei nº 9.605/98, respectivamente: “destruir ou danificarflorestas nativas ou plantadas ou vegetação fixadora de dunas, protetora demangues, objeto de especial preservação”. Nesses casos, existe a possibilidadede ser celebrada a transação penal em audiência preliminar.No âmbito da Justiça Federal Comum, totalizaram-se 46 denúncias, sendoa maioria delas (18 ações penais) referentes a crimes tipificados no art. 34, daHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 3<strong>13</strong>livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 3<strong>13</strong> 12/4/2011 17:33:24


Lei nº 9.605/98: “pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugaresinterditados pelo órgão competente”. Nestes crimes, a pena mínima atine a 1 anode detenção, motivo pelo qual cabe a suspensão condicional do processo, em umperíodo de prova de 2 anos. Assim sendo, o infrator comparecerá mensalmenteao juízo prolator da sentença para justificar suas atividades.Uma vez que as penas cominadas a crimes ambientais, em sua maioria, nãosão de elevada monta e admitem transações penais e suspensão condicional doprocesso, insta salientar a exigüidade do prazo prescricional para tais condutas(art. 109, Código Penal). Antes de remeterem-se os autos ao Ministério PúblicoFederal, instaura-se um processo administrativo prévio no órgão responsávelpela fiscalização ambiental, com a garantia da ampla defesa e do contraditórioao infrator. Inexiste, entretanto, uma duração célere dessa tramitação, a pontode, quando se instaurar a representação no Parquet, os fatos nela narrados seencontrarem às vésperas de prescrever, obrigando o Agente Ministerial aarquivá-la, em face da inviabilidade de promover ação penal pública.Ademais, não obstante o fato da demora em remeter os procedimentosao Órgão Ministerial, em grande parte das situações os autos de infração nãodelimitam a área onde ocorreu o delito ambiental. Exige-se, dessa forma, umasolicitação de informações ao IBAMA, a fim de questionar se o local do crimealude a bem da União ou outro, para legitimar a competência da Justiça Federalou Estadual, demorando ainda mais para o oferecimento da denúncia.CONCLUSÕESEvidenciam-se as possíveis soluções, por conseguinte, diante dessaconjuntura: um maior contingente de agentes responsáveis pela fiscalizaçãoambiental em meio à densidade da mata amazônica, principalmente nas Unidadesde Conservação; a boa fundamentação dos autos de infração e a célere duraçãodos processos em âmbito administrativo.Impende salientar também a falta de uma regulamentação específica eeficaz para a prática da biopirataria. Necessária se faz a promulgação de umalei a qual preveja penas mais severas aos infratores, bem assim mantenha emseu bojo gradações de acordo com o contexto econômico-social do apenado.Tem-se aplicado hodiernamente, com inegável insegurança, o art. 29, da Lei nº9.605/98, para punir os autores desses fatos criminosos. Além de a punição serexígua, não há competência federal ou estadual jurisprudencialmente firmada,3<strong>14</strong> Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 3<strong>14</strong> 12/4/2011 17:33:24


ocasionando uma insegurança jurídica sem fronteiras se considerado esse delitoo qual ofende a soberania nacional.Verifica-se que, apesar da legislação ambiental considerada avançada eampla, o Brasil ainda peca por não realizar uma efetiva fiscalização. Salienteseque a mesma se dá na forma de operações pontuais, por exemplo o órgãode repressão ambiental escolhe datas específicas para concentrar pequenasequipes em Unidades de Conservação de grandes dimensões. Os números aquiapresentados poderiam ser apresentados com um fator multiplicador muitomaior.REFERÊNCIASBARRERA, L. & SOARES, G.. “The impact of international law on theprotection of the Amazon region and further development of enviromental lawin Brazil.” In: NIJHOFF, N. (org.). Amazonia and Siberia: legal aspects ofthe preservation of the environment and development in the last open spaces.Oxford: Oxford, 1993.BRAGA, D. C. “A tutela penal da biodiversidade amazônica em face da ausênciade tipifi cação legal de condutas de biopirataria.” In: Revista da Justiça Federaldo Amazonas, Manaus, v.1, n.2, p.37-47, setembro/dezembro de 2003.CARVALHO, É. M. Tutela Penal do patrimônio florestal brasileiro. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1999.COSTA JÚNIOR, P. J. Direito Penal Ecológico. Rio de Janeiro: Forense, 1996.FARIA, A. L. S. “Tratados e projetos internacionais e suas repercussões napreservação do meio ambiente da Amazônia brasileira”. In: Espaço Científico:Revista do Instituto Luterano de Ensino Superior de Santarém/UniversidadeLuterana do Brasil. Canoas, n. 1, janeiro/junho de 2000.FREIRE, C. C. F.; TORQUATO, C. C. A. & COSTA, J. A. F. “Juridifi caçãoInternacional: Análise do Tratado de Cooperação Amazônica em face dosDesafios Ambientais Internacionais”. In: XVI Congresso Nacional do Conselhode Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, 2006, Manaus. Anais. Florianópolis:Fundação José Boiteux, 2007. p. 1-21.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 315livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 315 12/4/2011 17:33:24


JAKOBS, G.. “Sociedade, norma e pessoa”. In: Coleção Estudos de DireitoPenal. Barueri: Manole, 2003.MACHADO, P. A. L. Direito Ambiental Brasileiro. 15. ed. São Paulo: Malheiros,2007.MARINHO, V. P. S. M. “Tutela Penal da Cobertura Vegetal”. In: Hiléia:Revista de Direito Ambiental da Amazônia, Manaus, v. 1, n.1, 165-198, agostodezembro2003.MINAHIM, M. A. Direito Penal e Biotecnologia. São Paulo: Revista dosTribunais, 2005.MINAHIM, M. A.; PRADO, A. M. “Proteção penal dos recursos naturaisno âmbito da América do Sul.” In: XVI Congresso Nacional do Conselho dePesquisa e Pós-Graduação em Direito, 2006, Manaus. Anais. Florianópolis:Fundação José Boiteux, 2007. p. 1-25.MINIUCI, G. “O Direito e a Cooperação internacional em matéria ambiental:a estrutura de um diálogo.” In: NASSER, Salem Hikmat; REI, Fernando (org.).Direito Internacional do Meio Ambiente. São Paulo: Atlas, 2006.SANTILLI, J. “Proteção à diversidade biológica e cultural na ConstituiçãoBrasileira.” In: Boletim Científi co da Escola Superior do Ministério Público daUnião, Brasília, n. 15, 121-<strong>14</strong>9, abril/junho de 2005.SILVA, J. A. “Fundamentos constitucionais da proteção ao meio ambiente.” In:Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 27, 51-57, julho/setembro de 2002.SILVA, S. T.; COSTA, J. A. F. “Responsabilidade Civil Ambiental nos PaísesIntegrantes do Tratado de Cooperação Amazônica.” In: XVI Congresso Nacionaldo Conselho de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, 2006, Manaus. Anais.Florianópolis: Fundação José Boiteux, 2007. p. 1-21.SIRVINSKAS, L. P. Manual de Direito Ambiental. 7. ed. São Paulo: Saraiva,2009.SOARES, G. F. S. Direito Internacional do Meio Ambiente. 2. ed. São Paulo:Atlas, 2003.Artigo recebido em: novembro/2009.Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010.316 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 316 12/4/2011 17:33:24


ÍNDICE - PARTE IVTERRAS INDÍGENAS E FRONTEIRAS NACIONAIS: UM ESTUDOJURÍDICO SOBRE AS TERRITORIALIDADES INDÍGENAS NA FAIXA DEFRONTEIRA DA AMAZÔNIA BRASILEIRAAlex Justus da Silveira..................................................................................319A EXPLOTAÇÃO PESQUEIRA DOS GRANDES BAGRES MIGRADORESNA REGIÃO AMAZÔNICA E A RESPONSABILIDADE DO ESTADO PORDANO AMBIENTAL TRANSFRONTEIRIÇOArilúcio Bastos Lobato..................................................................................321REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM RESERVAS DE DESENVOLVIMENTOSUSTENTÁVEL DO ESTADO DO AMAZONASEvelinn Flores De Oliveira............................................................................322PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NA REGULAÇAO JURÍDICA DOCONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO À BIODIVERSIDADESheilla Borges Dourado.................................................................................324A PROTEÇÃO JURÍDICA DE EXPRESSÕES CULTURAIS DE POVOSINDÍGENAS NA INDÚSTRIA CULTURALVictor Lúcio Pimenta de Faria.....................................................................325ACORDO DE PESCA COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO PARTICIPATIVANA AMAZÔNIARegina Glória Pinheiro Cerdeira.................................................................326MEIO AMBIENTE DO TRABALHO DO AQUAVIÁRIO (FLUVIÁRIO):A NAVEGAÇÃO NO ITINERÁRIO MANAUS/EIRUNEPÉ/MANAUSMarcelo de Vargas Estrella...........................................................................328Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 317livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 317 12/4/2011 17:33:24


INSTRUMENTOS DE POLÍTICA E GESTÃO AMBIENTAL NASATIVIDADES DO PÓLO INDUSTRIAL DE MANAUSViviane Passos Gomes...................................................................................329COMPOSIÇÃO E REPARAÇÃO DOS DANOS AMBIENTAIS: Art. 27 da Lein° 9.605/98Zedequias de Oliveira Júnior.........................................................................331GRANDES INTERVENÇÕES URBANAS VERSUS PLANEJAMENTO:UMA QUESTÃO JURÍDICO AMBIENTALElizandra Litaiff Leonardo...........................................................................332318 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 318 12/4/2011 17:33:24


TERRAS INDÍGENAS E FRONTEIRASNACIONAIS: UM ESTUDO JURÍDICO SOBRE ASTERRITORIALIDADES INDÍGENAS NA FAIXADE FRONTEIRA DA AMAZÔNIA BRASILEIRAMestrando:Banca Examinadora:Alex Justus da SilveiraProf. Dr. Fernando Antônio da Carvalho (Orientador – UEA)Prof. Dr. Alcindo José de Sá (UFPE)Prof. Dr. Carlos Frederico Marés de Souza Filho (UFPR)Resumo: A presente dissertação tem como objetivo a análise da recorrentediscussão sobre a demarcação de terras indígenas situadas nas faixas de fronteirada Amazônia brasileira. Diversos discursos tem se difundido no sentido derelativizar os direitos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas,sobretudo, aquelas que estão localizadas nas áreas limítrofes com outros paísesda América do Sul e que são objeto de territorialidades específicas de diversospovos indígenas que ocupam essas regiões. Um dos argumentos que maisquestionam o reconhecimento das terras indígenas nessas áreas constitui-se nofato de se tratarem de vastas extensões territoriais com densidade demográficamuito reduzida, o que representa um risco à segurança e à soberania nacional.Este estudo faz uma contextualização histórica dos direitos territoriais indígenase demonstra, que até mesmo hoje em dia, com o tratamento humanista trazido pelaConstituição no que tange os direitos indígenas sobre as terras tradicionalmenteocupadas, a contradição entre o previsto na legislação e o interesse do Estado emimplementá-las é gritante. Procura também, analisar o processo de consolidaçãodas fronteiras nacionais e construção do Estado moderno, a fim de demonstrara importância propositadamente esquecida dos povos indígenas na constituiçãodas fronteiras que atualmente compõem o Brasil, bem como, mostrar que asterritorialidades indígenas não são compatíveis com a categoria “território”,cujo engessamento característico deste elemento do Estado moderno, não seenquadra no conceito de territorialidade específica dos diversos povos indígenasque compõem a pluralidade social brasileira. Ao final, conclui-se que o Estadobrasileiro deve necessariamente reconhecer os direitos originários dos povosindígenas, sobretudo, os direitos territoriais indígenas nas faixas de fronteira,Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 319livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 319 12/4/2011 17:33:24


uma vez que suas territorialidades não levam em conta as fronteiras políticasdos Estados, pois na concepção indígena, essas fronteiras muitas das vezestranscendem a categoria jurídicopolítico do território nacional.Palavras-chave: direito indígena; território; territorialidade indígena; faixa defronteira.320 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 320 12/4/2011 17:33:24


A EXPLOTAÇÃO PESQUEIRA DOS GRANDESBAGRES MIGRADORES NA REGIÃO AMAZÔNI-CA E A RESPONSABILIDADE DO ESTADO PORDANO AMBIENTAL TRANSFRONTEIRIÇOMestrando:Banca Examinadora:Arilúcio Bastos LobatoProf. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (Orientador – UEA)Prof. Dr. Miguel Petrelli Júnior (Universidade EstadualPaulista)Prof. Dr. Saúl Prada Pedreiros (Universidade Javeriana)Resumo: O objetivo desta dissertação está relacionado à possibilidade deatribuir responsabilidade ao Estado que, em virtude de ação ou omissão, originaum dano ou o perigo de dano transfronteiriço em virtude do risco de depleçãodo único (ou reduzido) estoque dos bagres migradores, em destaque a dourada epiramutaba. Ressalta-se a peculiaridade do fato, o que enriquece a discussão, deque os bagres migradores possuem um ciclo de vida singular, uma vez que, aolongo de um extenso habitat (rio Amazonas/Solimões), nascem no denominadoGolfão Marajoara (Pará), migram rio acima e, ultrapassando os limitesterritoriais do nosso país, desovam na cabeceira do Amazonas, inclusive emáguas colombianas, peruanas e bolivianas. Exatamente por isso, a proposta detrabalho foi direcionada ao estudo de caso dos bagres migradores e à elaboraçãode argumentos jurídicos que consubstanciem e fundamentem à responsabilidadeestatal por eventual dano ambiental transfronteiriço. Importante ressaltarque se busca estabelecer fundamentos jurídicos, embasados no ordenamentonacional e internacional, capazes de justificar a responsabilização estatal pelasconseqüências danosas de seus atos (e perigos) causados ao ambiente pesqueirotransfronteiriço.Palavras-chave: bagres migradores; explotação; depleção; responsabilidadeestatal; direito internacional ambiental; direito transfronteiriço.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 321livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 321 12/4/2011 17:33:24


REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM RESERVASDE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DOESTADO DO AMAZONASMestranda:Banca Examinadora:Evelinn Flores De OliveiraProf. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (Orientador – UEA)Prof. Dr. Walmir Albuquerque (UEA)Prof. Dr. Saúl Prada Pedreiros (Universidade Javeriana)Resumo: O presente trabalho teve a finalidade de avaliar os aspectosconcernentes à Regularização Fundiária nas Unidades de Conservação de UsoSustentável, em especial, nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável doEstado do Amazonas. As unidades de conservação do Amazonas apresentamvários problemas para a efetiva gestão ambiental. Um dos problemas é aregularização fundiária, atingindo aproximadamente 80% das UC’s, dificultandorealizar o zoneamento ambiental e executar o plano de gestão. Para se chegara esta conclusão analisou-se os instrumentos de gestão da UC’s, como o Planode Manejo, o Conselho Gestor, o Regimento Interno e etc, que facilitam aimplementação da Regularização Fundiária, para em seguida, abordar os aspectosgerais da Regularização Fundiária e os instrumentos normativos possíveis emcada categoria de bem público e o (s) instrumento (s) adequado (s) pelo tipode dominialidade das Unidades de Conservação. Ainda, realizamos uma breveexposição da situação fundiária no Estado do Amazonas, elencando a legislaçãoaplicável às UC’s. As normas jurídicas foram expostas na busca de entender oseu conteúdo, para depois estabelecer uma relação com a realidade encontra dasRDS do Amazonas. Ao final, o estudo se concentrou na RDS Tupé, localizadano Município de Manaus, relacionando à legislação pertinente àquela realidade,apontando os entraves que deverão ser superados pelo órgão gestor da Reservado Tupé, nas etapas que seguirão à regularização fundiária. Os problemaslevantados podem ser classificados em três grupos: pessoal, institucional/administrativo e normativo. Identificou-se que o órgão gestor terá dificuldadesde numerar as famílias que serão beneficiadas pela regularização fundiária, pois,segundo o decreto de criação da Reserva do Tupé, só se consideram moradores(populações tradicionais) os residentes e domiciliados na UC no momento desua criação. Demonstrou-se o crescimento elevado na população do Tupé desde322 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 322 12/4/2011 17:33:24


a data de sua denominação em RDS, em 2005, até 2009 e parte dessa populaçãofixou residência no Tupé, então, resta saber se eles serão incluídos ou excluídosdo processo de regularização fundiária da Reserva. No campo institucional,antes de começar o processo de regularização da RDS do Tupé, o órgão gestordeve resolver o impasse da transferência da titularidade da área da União para oMunicípio de Manaus, pois, a RDS do Tupé foi criada sob uma gleba federal, q<strong>uea</strong>inda não foi arrecada pelo Município. E por fim, o órgão gestor deve solucionaros entraves criados pela própria legislação, que vão desde a conceituaçãojurídica, falta de precisão técnica, clareza nos objetivos e procedimentos a seremseguidos. Assim, verificou-se que estes fatores contribuem para que a normajurídica tenha sua eficácia limitada. Entretanto, entende-se que para responder aquestão da eficácia social do art. 20 do SNUC aplicada à realidade da RDS doTupé, faz-se necessário um estudo trans-disciplinar do assunto, o qual contenhaindicadores sociais, econômicos, ambientais e etc, pois, a eficácia social deuma norma jurídica, em especial da norma ambiental, não deve ser avaliadaunicamente do ponto de vista jurídico, visto que este não possui indicadorespredeterminados de avaliação da eficácia social de uma norma e, caso analisadoisoladamente, sempre será insuficiente para responder estas questões.Palavras-Chave: Unidades de Conservação; Reserva de DesenvolvimentoSustentável; Plano de Manejo; Regularização Fundiária.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 323livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 323 12/4/2011 17:33:25


PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NA REGULAÇAOJURÍDICA DO CONHECIMENTO TRADICIONALASSOCIADO À BIODIVERSIDADEMestranda:Banca Examinadora:Sheilla Borges DouradoProfa. Dra. Andréa Borghi Jacinto Moreira (Orientadora – UEA)Profa. Dra. Rosa E. Acevedo Marin (UFPA)Prof. Dr. José Joaquim Shiraishi Neto (UEA)Resumo: O presente trabalho pretende investigar as formas de participaçãodos povos indígenas no debate político em torno da regulação jurídica dosconhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. A regulação jurídica doacesso e do uso de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associadosconcerne a um campo de disputas protagonizadas por uma multiplicidade deinstituições e agentes sociais. Órgãos governamentais, ONGs, movimentossociais, entidades empresariais e instituições de ensino e pesquisa encontram-sereferidos aos debates que marcam o mencionado processo de regulação jurídica.Esta dissertação focaliza a participação indígena neste processo e os efeitos desua atuação junto ao Estado e aos instrumentos jurídicos “apropriados” (medidaprovisória, leis, decretos, resoluções) e pretende demonstrar os limites do direitoà participação consagrada pelo Estado Democrático deDireito.Palavras-chaves: Conhecimento tradicional. Biodiversidade. PropriedadeIntelectual. Recursos Genéticos. Participação. Movimento Indígena.Representação.324 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 324 12/4/2011 17:33:25


A PROTEÇÃO JURÍDICA DE EXPRESSÕESCULTURAIS DE POVOS INDÍGENAS NAINDÚSTRIA CULTURALMestrando:Banca Examinadora:Victor Lúcio Pimenta de FariaProfa. Dra. Andréa Borghi Jacinto Moreira (Orientadora – UEA)Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (UEA)Profa. Dra. Deise Lucy Oliveira Montardo (UFAM)Resumo: Este estudo analisa a proteção jurídica das expressões culturaisde povos indígenas na indústria cultural. Para este fim, aplica o conceito de“expressão cultural” adotado pela UNESCO. Em decorrência deste empregoconceitual, povo indígena é compreendido como sujeito criador de expressõesculturais. A análise da proteção jurídica decorrente da dimensão coletivade expressões culturais de povos indígenas é empreendida na perspectiva daproteção dos direitos de propriedade intelectual, especialmente na do direitoautoral e na perspectiva dos direitos que asseguram a diversidade cultural,especialmente a diversidade das expressões culturais. As duas perspectivasdelimitam proteções jurídicas distintas. Entretanto, objetivando o recorteepistemológico, tais proteções serão pensadas e projetadas na idéia de indústriacultural, tomada como um termo essencialmente crítico a partir da obra conjuntade Adorno e Horkheimer, a Dialética do Esclarecimento.Palavras-chaves: expressões culturais; Povos indígenas; Diversidade Cultural;Propriedade Intelectual; Indústria Cultural.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 325livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 325 12/4/2011 17:33:25


ACORDO DE PESCA COMO INSTRUMENTO DEGESTÃO PARTICIPATIVA NA AMAZÔNIAMestranda:Banca Examinadora:Regina Glória Pinheiro CerdeiraProf. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (Orientador – UEA)Prof. Dr. Miguel Petrelli Júnior (Universidade EstadualPaulista)Profa. Dra. Andréa Borghi Moreira Jacinto (UEA)Resumo: Esta dissertação aborda os acordos de pesca enquanto instrumento degestão participativa da pesca desenvolvida na Amazônia. Descreve os ambientesde várzea como o cenário das relações que se estabelecem a partir do uso deum recurso de acesso livre como o pescado; e como as principais de áreas deprodução de pescado nas águas interiores da Amazônia. Os acordos de pescacomunitários, desenvolvidos a partir das pressões sobre os ambientes de lagosdas comunidades ribeirinhas amazônicas, são o principal instrumento da gestãoparticipativa da pesca, e vem se apresentando como promissores no controle deconflitos, na diminuição da sobrepesca e aumento na produtividade pesqueirados lagos. Contudo, enfatiza-se, também, a necessidade de monitoramento eavaliação desse instrumento para se ter resultados consolidados a cerca destaproposta de gestão. Um dos desafios desta co-gestão de base comunitária, passapela questão de garantir o acesso livre e o manejo adequado ao recurso pesqueirodiante dos interesses antagônicos dos usuários atuantes sobre o recurso.Aborda, também, sob análise jurídica, o único documento legal, a instruçãonormativa IBAMA No. 29/02, que determina de forma específica critériosclaros para a criação destes acordos visando gerar normas complementaresá legislação pesqueira; além dos novos conceitos de pesca determinado pelaLei 11.959/2009. A análise dos acordos de pesca ocorre, considerando-setambém, a gestão participativa que vem sendo desenvolvida na região do rioUrubu no município de Boa Vista do Ramos/AM, contemplando aspectossocioeconômicos de suas comunidades e as impressões de seus moradores acerca da vigência e eficácia das regras contidas na Portaria IBAMA No 10/2003.Neste estudo discute-se que é fundamental a participação dos usuários na gestãodos recursos naturais como o pescado, mas a partir de estruturas organizacionais326 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 326 12/4/2011 17:33:25


fortalecidas com capacidade de mobilização, coordenação e representação dogrupo com lideranças aptas a atuarem como interlocutores nos processos deco-gestão. Neste aspecto, as comunidades da região do rio Urubu em Boa Vistado Ramos ainda carecem de desenvolvimento. A falta de articulação entre essascomunidades e envolvimento em torno da organização pesqueira local podemser apontados como importantes na decadência observada no acordo de pescavigente; embora este acordo, também, tenha apresentado aspectos positivoscomo o controle dos conflitos de pesca e sensação de abundância do pescado,mesmo que inicialmente.Palavras Chave: Acordo de pesca; gestão participativa da pesca; comunidadesribeirinhas amazônicas; conflitos de pesca.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 327livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 327 12/4/2011 17:33:25


MEIO AMBIENTE DO TRABALHO DOAQUAVIÁRIO (FLUVIÁRIO): A NAVEGAÇÃO NOITINERÁRIO MANAUS/EIRUNEPÉ/MANAUSMestrando:Banca Examinadora:Marcelo de Vargas EstrellaProf. Dr. Sandro Nahmias Melo (Orientador - UEA)Profa. Dra. Sandra do Nascimento noda (UFAM)Prof. Dr. Aldemiro Rezende Dantas Júnior (UEA)Resumo: A hostilidade do meio ambiente do trabalho é um dos principais problemasque os trabalhadores enfrentam em sua vida funcional. Para o aquaviário(fluviário), que navega pelos rios, o grau de nocividade do trabalho é potencializadoante as características da atividade e das condições geográficas da RegiãoAmazônica. O texto buscará apresentar a importância da navegação no interiordo Estado do Amazonas, as características do trabalho do fluviário e a necessidadeda proteção do seu meio ambiente do trabalho como materialização doprincípio da igualdade, propondo uma discussão sobre as propostas de melhoriasna segurança e saúde os tripulantes e passageiros das embarcações regionaisque trafegam pelo interior do Estado. Trata-se da uma pesquisa bibliográficaque consistiu na procura de referências teóricas publicadas em livros, artigos,documentos, anais etc. A pesquisa foi de cunho fenomenológico com abordagemqualitativa, tendo como finalidade a descrição dos dados coletados cujosresultados foram interpretados para a compreensão do fenômeno estudado.Palavras-Chave: Meio Ambiente do Trabalho; Navegação; Igualdade.328 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 328 12/4/2011 17:33:25


INSTRUMENTOS DE POLÍTICA E GESTÃOAMBIENTAL NAS ATIVIDADES DO PÓLOINDUSTRIAL DE MANAUSMestranda:Viviane Passos GomesBanca Examinadora:Profa. Dra. Solange Teles da Silva (Orientadora – UEA)Prof. Dr. Álvaro Sánchez Bravo (Universidade de Sevilha - Espanha)Prof. Dr. Ozorio Jose de Menezes Fonseca (UEA)Resumo: A presente dissertação analisa os aspectos jurídicos dos instrumentosde política e gestão ambiental, de caráter obrigatório, os chamados instrumentosde comando e controle; e os instrumentos de regulação de caráter voluntários,destacando dentre os obrigatórios, o licenciamento ambiental e dentre osvoluntários, a ISO <strong>14</strong>000. Ademais verifica a aplicação destes instrumentos nasatividades do Pólo Industrial de Manaus - PIM. Esta pesquisa possui cunhoexploratório-descritivo, na medida em que se desenvolveu com a utilização defontes teóricas, que permitiram o levantamento de divergências doutrinárias,além da regionalização do estudo, pretendendo demonstrar a praticidade e oalcance do tema. Para verificação da aplicabilidade dos instrumentos de Políticae Gestão Ambiental no PIM foram realizadas inúmeras visitas, com pro<strong>pós</strong>itode investigar as atividades dos atores sociais que se relacionam com o processode implantação, consolidação e análise destes instrumentos obrigatórios evoluntários. Verificou-se, quanto aos desafios de sustentabilidade para a RegiãoAmazônica, no tocante a sua principal atividade econômica - o PIM, que épacífico o entendimento de que o modelo de incentivos fiscais – o qual estábaseado a sustentabilidade atual do pólo – é absolutamente necessário paramanter a competitividade do PIM, mas não suficiente no médio e no longo prazo.É bem verdade também, que o PIM, ao centralizar as indústrias, contribui paraque o Estado do Amazonas possua hoje uma baixa taxa de desflorestamento.Porém, isso não significa que não haja sensíveis impactos ambientais advindosdesta atividade industrial deste pólo para a Região Amazônica. Estes impactosse traduzem principalmente na falta de destinação correta dos seus resíduosindustriais, causando ao longo dos 42 anos de existência da Zona Franca deHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 329livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 329 12/4/2011 17:33:25


Manaus – ZFM, a poluição do solo, da água e do ar, contribuindo também paraa precarização do ambiente em vivem a população do entorno deste distritoindustrial. Por outro lado, a Superintendência da Zona Franca de Manaus –SUFRAMA, enquanto gestora das atividades do PIM, tem sido compelida peloMinistério Público local a ter maior participação ativa no cumprimento dospreceitos normativos quanto à matéria ambiental, inclusive com a realização deperiódicas vistorias ambientais. Defende-se uma substancial cooperação técnicaentre os Órgãos gestores da política ambiental no sentido de promover proteçãoambiental. Ademais, constatou-se que os instrumentos de fiscalização deveriamser dotados de maior transparência e acesso ao público de forma a proporcionar aparticipação democrática nas demandas ambientais, as quais interessam a todos.Com relação à possibilidade de ser simplificado o processo de licenciamentoambiental diante dos sistemas de certificação como a ISO <strong>14</strong>000, ou viceversa,motivado pelo fato de que entre estes existem vários pontos na interface,defende-se, como próprio imperativo do Estado Democrático, uma cooperaçãoentre o ente público licenciador e os organismos privados de certificação, semque um suprima a atividade do outro.Palavras-Chave: Instrumentos de política e gestão ambiental; Pólo Industrial deManaus; Licenciamento Ambiental; ISO <strong>14</strong>.000.330 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 330 12/4/2011 17:33:25


COMPOSIÇÃO E REPARAÇÃO DOS DANOSAMBIENTAIS: Art. 27 da Lei n° 9.605/98Mestrando:Banca Examinadora:Zedequias de Oliveira JúniorProf. Dr. Sérgio Rodrigo Martinez (Orientador- UEA)Prof. Dr. Eduardo Augusto Salomão Cambi (UNESPAR/PR)Prof. Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa (UEA)Resumo: Este trabalho apresenta a proposta de enfocar a repercussão técnica,probatória, reparatória e, sobretudo, jurídica da aplicação por parte do PoderPúblico, via especialmente do Ministério Público, Poder Judiciário e da PolíciaJudiciária, do instituto da composição dos danos ambientais do art. 27 daLei n°9.605/98 - Lei de Crimes e Infrações Administrativas Ambientais e asimplicações decorrentes de sua incidência prática na hipótese do cometimentode infração penal e sua correlação com o instituto despenalizador da transaçãopenal ambiental. Destaca, a fim de alcançar este desiderato, o papel exercidopelo Poder Público e pela coletividade e sobreleva a necessidade de qualificaçãopreferencialmente interdisciplinar daquele que irá atuar concretamente na tutelarepressiva cível e criminal. Pretende, ademais, inseri-la fundamentadamentena concepção de um real instrumento que poderia impulsionar uma maiorefetividade de atendimento ao princípio da proteção integral do meio ambienteecologicamente equilibrado como direito humano fundamental consagrado pelaConstituição da República de 1988.Palavras-Chave: composição; reparação; dano ambiental; Art. 27 - Lei n° 9.605Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 331livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 331 12/4/2011 17:33:25


GRANDES INTERVENÇÕES URBANAS VERSUSPLANEJAMENTO: UMA QUESTÃO JURÍDICOAMBIENTALMestranda:Banca Examinadora:Elizandra Litaiff LeonardoProf. Dr. Edson Ricardo Saleme (Orientador - UEA)Prof. Dr. Eid Badr (ESA/AM)Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (UEA)Resumo: As grandes intervenções urbanas são importantes para odesenvolvimento do espaço urbano, gerando melhorias na qualidade de vida dapopulação. Ao mesmo tempo estão vinculados à política de desenvolvimentourbano vigente na ordem jurídica do país. Este estudo aborda os principaisaspectos relacionados ao planejamento urbano no âmbito do direito urbanísticobrasileiro, pois não são raros os momentos em que ao mencionar as atividadesdesenvolvidas pelo urbanismo e pelo planejamento urbano estas se confundam.O urbanismo seria o estudo racionalizado e sistematizado do desenvolvimentodas cidades, incluindo crescimento, planificação, aglomerações humanas,condições adequadas de habitação, modo de vida dos habitantes, obras públicas,atividades culturais e de lazer, ou seja, a produção e arquitetura urbana. Já oplanejamento urbanístico ou planejamento urbano, consiste na prática da açãoestatal sobre a organização do espaço intra-urbano. A compreensão acercada política de desenvolvimento urbano faz-se imperiosa, uma vez que oentendimento da mesma, por meio dos termos que a definem, possibilita queesta possa ser correta e amplamente utilizada por todos os atores que compõemo cenário público brasileiro. São reportados os principais instrumentos decontrole urbanísticos relacionados às grandes intervenções urbanas: o Estudo deImpacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), o Estudode Impacto de Vizinhança (EIV), o Licenciamento Ambiental e as OperaçõesUrbanas Consorciadas. Observa-se que os estudos mencionados dificilmenteserão impeditivos para construção ou início da atividade empreendedora, aquivisualizada pelo exemplo da construção da ponte sobre o Rio Negro. Embora osrequisitos legais para construção tenham sido atendidos, ressalta-se a discussão332 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 332 12/4/2011 17:33:25


jurídica acerca dos aspectos positivos e negativos do empreendimento, em facedo tempo utilizado para o estudo do impacto sobre a dimensão da obra e sualocalização, reconhecendo sua inegável importância para o desenvolvimentosocial e econômico da região.Palavras-Chave: Direito Urbanístico; Planejamento; Impacto.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 333livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 333 12/4/2011 17:33:25


NORMAS EDITORIAISAs normas editoriais da Hiléia - Revista de Direito Ambiental daAmazônia são as seguintes:1) A revista é de periodicidade semestral, observando-se o caráter deinterdisciplinaridade no que tange ao papel crítico do periódico e constitui-seem um veículo para publicação de artigos, ensaios e resenhas críticas, bemcomo à livre circulação de idéias e opiniões sobre temas relacionados ao Direitoe, especialmente, ao Direito Ambiental, sendo de inteira responsabilidade deseus autores as opiniões expressas nos artigos publicados.2) Os artigos serão submetidos à aprovação do Conselho Editorial.3) O recebimento do artigo, ensaio ou resenha não implica a obrigatoriedadede sua publicação.4) Não será efetuado qualquer pagamento ou contraprestação pelapublicação dos artigos selecionados. Serão enviados 5 (cinco) exemplares donúmero correspondente para cada autor de artigo, ensaio ou resenha publicado.5) Os trabalhos deverão ser inéditos e conter os dados de identificação(título, nome do autor, vinculação institucional) e, obrigatoriamente contersumário, resumo em português e em inglês, devendo ser acompanhados decurrículo resumido do autor.6) Além dos trabalhos que integrarão as sessões, a revista terá um espaçoreservado para publicação das atividades desenvolvidas pelos Núcleos e Projetosde Pesquisa e pelo Programa de Pós-<strong>graduação</strong> em Direito Ambiental.7) A formatação, citações e referências deverão obedecer às normas daABNT e, no que couber, as Normas Técnicas internas do Programa.8) Os trabalhos deverão ser entregues em disquete ou como anexo dee-mail, digitados com fonte Times New Roman, tamanho 12, com espaçamentoentre linhas de 1,5, margens superior e esquerda de 3 cm e margens inferior edireita de 2 cm, em editor compatível com o Word, comportando entre 15 a 20laudas para artigos e ensaios e entre 5 a 10 laudas para resenha, incluídas asreferências.9) Para deliberação quanto à aprovação dos artigos com indicação parapublicação, o Conselho Editorial adotará os seguintes critérios:• Interesse acadêmico – serão priorizados os trabalhos cuja reflexãomantenham pertinência com as linhas de pesquisa do Programa, quais sejam:Conservação dos recursos naturais e desenvolvimento sustentável, que engloba:334 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 334 12/4/2011 17:33:25


tutela jurídica do meio ambiente; unidades de Conservação; Ecoturismo;educação ambiental; espaço urbano; recursos naturais; mecanismos de resoluçãode conflitos; desenvolvimento sustentável; direito ao desenvolvimento; políticaspúblicas e Direitos da sócio e biodiversidade, que engloba: biodiversidade;biossegurança; bioética; direito dos povos, povos indígenas e populaçõestradicionais; agricultura sustentável; direito ambiental econômico e empresarial;meio ambiente do trabalho.• Relevância e atualidade jurídica – os textos deverão trazer para o debatequestões cuja abordagem jurídica ensejem o diálogo interdisciplinar entre odireito, o direito ambiental e as demais áreas do conhecimento.• Rigor acadêmico – os textos deverão seguir, rigorosamente, a metodologiacientífica, oportunizando o debate acerca do conhecimento jurídico.10) Artigos, ensaios ou resenhas recebidos e não publicados no númerocorrespondente à chamada editalícia do envio, integrarão banco de trabalhose poderão ser publicados posteriormente, em número subseqüente, mediantecomunicação e consentimento prévio do autor.Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 <strong>13</strong> |Jul - Dez| 2009 n 0 <strong>14</strong> |Jan - Jun| 2010 335livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 335 12/4/2011 17:33:25


Esta obra foi composta em Manaus PelaUEA Edições.livro hileia<strong>13</strong>,<strong>14</strong>.indd 336 12/4/2011 17:33:25

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