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Revista Dr Plinio 208

Julho 2015

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nha maturidade para exprimir isto assim, mas é o que estava<br />

no meu espírito. Suponho que fosse uma graça.<br />

Dou um exemplo fora do ambiente da Igreja do Coração<br />

de Jesus.<br />

Se eu visse uma bonbonnière, o mais importante para<br />

mim não era fazer a crítica dela, mas saber como ela<br />

seria se o plano do indivíduo que a fez tivesse chegado<br />

ao auge. Em seguida “decretava” — por pobreza<br />

de expressão, por falta de clareza de espírito,<br />

por uma porção de coisas — ser aquele objeto<br />

“mais bonito”, porque morava ali um plano<br />

mais bonito do que em outro objeto.<br />

Lembro-me de que vovó tinha uma<br />

bonbonnière de Sèvres, daquele tempo<br />

em que se importavam as coisas da<br />

Europa às torrentes, a baixo preço.<br />

Não era um objeto pomposo, mas<br />

eu o achava lindo!<br />

Com a partilha dos bens, isto<br />

ficou para uma tia minha, e lamentei<br />

que a bonbonnière não tivesse<br />

ficado com mamãe. Uns<br />

30, 40 anos depois, numa das<br />

idas à casa dessa minha tia, vi a<br />

bonbonnière ao alcance de minha<br />

mão; e, não sem susto da dona da<br />

casa, peguei-a e comecei manuseá-<br />

-la. Fingi não perceber o susto de<br />

minha tia, que temia que o objeto caísse<br />

no chão. Eu tinha fama na família<br />

de ser “quebrador”. Não era uma fama injusta...<br />

Tive uma decepção ao analisá-la, e percebi que achava<br />

linda a bonbonnière que o artesão quisera fazer, não<br />

a que estava ali. Quando menino, não separava suficientemente<br />

a arquetipia da realidade, e julgava que a<br />

bonbonnière linda estava de algum modo também presente<br />

ali.<br />

O que acabo de descrever é muito menos raro do que<br />

parece. O espírito humano é correntemente propenso a<br />

isto.<br />

As mitras ”preciosas” dos bispos<br />

Historisches Museum Kanton Thurgau (CC 3.0)<br />

Conto algo característico desse processo de arquetipização,<br />

por onde mostro como ele é legítimo.<br />

O velho carnaval paulista possuía aspectos dados ao<br />

suntuoso. Aquelas moças e mocinhas tinham fantasias<br />

de princesas do Oriente e roupas de Ancien Régime. Para<br />

imitar joias, compravam pedras falsas, as quais punham<br />

nos ornatos. E todo o mundo achava bonito, interessante,<br />

sabendo ser pedra falsa. Arquetipizavam aquilo que<br />

estavam vendo.<br />

Mitra de Frauenfelder - Museu<br />

histórico de Turgóvia, Suíça<br />

O que faziam as moças e mocinhas, ninguém achava<br />

ridículo.<br />

Faziam-no também os bispos. Mitras que deveriam ser<br />

de tecidos riquíssimos — porque eram chamadas “mitra<br />

preciosa”, “mitra áurea”, como reminiscência dos tempos<br />

em que eram preciosas mesmo —, no meu tempo<br />

de jovem eram feitas com tecidos comprados na Rua<br />

Santa Ifigênia 1 , nesses especialistas de objetos de alfaiataria<br />

religiosa.<br />

Mais de uma vez, terminada a cerimônia da<br />

Páscoa, vi um bispo chegar à porta da catedral,<br />

os sinos todos tocando, o portal fazendo<br />

moldura para ele; e reluzindo na mitra<br />

todas aquelas pedras falsas que poderiam<br />

ornar as fantasias de carnaval.<br />

Ninguém achava ridículo.<br />

Era uma legítima arquetipização.<br />

Quer dizer, é um processo<br />

legítimo, sem o qual a boa ordem<br />

do pensamento humano é<br />

quase incompreensível.<br />

Comigo, esse processo se dava<br />

desde que me lembro de mim, já<br />

na pré-idade de formação da razão,<br />

dos primeiros princípios.<br />

Bons arquétipos e realidade<br />

Também com relação ao mal. Alguém<br />

diria que nasci com uma vocação maniquéia furibunda,<br />

mas não é verdade. Era o inimicitias ponam 2 , e<br />

outras categorias de espírito que ainda não conhecia, as<br />

quais estavam dentro disso. Reputo que eram graças.<br />

Por exemplo, já tive ocasião de falar do Herr Kinker,<br />

o dono de pensão medonho, que me pôs uma vez na<br />

chuva 3 . Ele se me apresentava como uma personificação<br />

do mal alemão. Mas eu o via como ele não era, porém<br />

certamente de acordo com modelos alemães que o<br />

Herr Kinker procurou imitar. E vinha logo a ideia: “Está<br />

vendo?! Há uma porção de pessoas como o Herr Kinker.<br />

Existe no fundo, algo semelhante a ele, e isto eu detesto!”<br />

Isto se dava arquicarregadamente na Igreja do Sagrado<br />

Coração de Jesus, onde tudo era arquétipo e arquetipizado.<br />

Concebo que um artista faça uma crítica daquilo e encontre<br />

defeitos. Mas esta graça de arquetipização não<br />

gosta da análise científica e artística, porque nega a arquetipização<br />

e desvia a atenção dela.<br />

Devemos tomar cuidado com os bons arquétipos que<br />

formamos na alma, pois mesmo quando não correspon-<br />

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