REBOSTEIO Nº 3
Revista REBOSTEIO DIGITAL número três - entrevistas, arte, cultura, poesia, literatura, comportamento, cinema, fotografia, artes plásticas.
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conteúdo adulto<br />
<strong>Nº</strong> 3 maio/2012 abril/2012<br />
<strong>Nº</strong> 3
(poema de rubens guilherme pesenti)<br />
« Minha «Minha maloca,<br />
a mais bela a mais que bela que já já vi<br />
hoje está<br />
hoje<br />
legalizada<br />
está legalizada<br />
ningué m pode demolir.<br />
ninguém pode demolir.<br />
Minha maloca,<br />
a mais bela desse Minha mundo maloca,<br />
ofereç o aos<br />
a mais<br />
vagabundos<br />
bela desse mundo<br />
que nã o tem onde dormir. »<br />
ofereço aos vagabundos<br />
( Adoniran que não tem Barbosa)<br />
onde dormir.»<br />
(Adoniran Barbosa)<br />
TODOS NEGROS - Em 1983, o fotojornalista Luiz Morier retornava de uma pauta<br />
rumo a redação do Jornal do Brasil pela estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio de<br />
Janeiro, quando se deparou com uma blitz da PM em uma favela. Imediatamente<br />
desceu do carro da reportagem e começou a fotografar. De repente viu a cena que<br />
parecia inacreditável nos tempos de hoje, seis moradores negros da comunidade eram<br />
presos e conduzidos por um PM, amarrados pelo pescoço como escravos humilhados.<br />
A foto intitulada «Todos Negros» correu o mundo e lhe rendeu o Prêmio Esso de<br />
fotografia de 1983.<br />
imagem do acervo de fotos históricas de Fernando Rabelo:<br />
http://imagesvisions.blogspot.com.br/
editorial<br />
Editores<br />
Mercedes Lorenzo<br />
Rubens Guilherme Pesenti<br />
Willian Delarte<br />
Contato<br />
revistarebosteio@gmail.com<br />
Blog para mailing-list:<br />
http://rebosteio-revistadigital.blogspot.com/<br />
Colaboradores deste <strong>Nº</strong><br />
Edegar Ferreira<br />
Fernando Rabelo<br />
Ígor Marques<br />
Israel Neto<br />
Jacqueline Gallo<br />
José Pedro da Silva Neto<br />
Leonards Lacis<br />
Letícia Lanz<br />
Leonards Lacis<br />
Marcantonio Costa<br />
Marcelino Freire<br />
Mauro Brito Combo<br />
Mercedes Lorenzo<br />
Nirton Venancio<br />
Rubens Guilherme Pesenti<br />
Tiago Costa<br />
Valmir Alves Ribeiro<br />
Willian Delarte<br />
<strong>REBOSTEIO</strong><br />
é uma publicação digital<br />
sem fins lucrativos, construída com a<br />
ajuda de colaboradores voluntários,<br />
independente, apartidária e voltada<br />
para a divulgação de arte em geral,<br />
de idéias, provocações neurais e<br />
expansão dos sentidos... não temos<br />
todas as respostas, mas estamos<br />
interessados nas melhores perguntas.<br />
CAPA:<br />
Jacqueline Gallo<br />
PROJETO GRÁFICO:<br />
Rubens Guilherme Pesenti<br />
http://ru666.blogspot.com<br />
Mercedes Lorenzo<br />
http://olhardelambe-lambe.blogspot.com<br />
Durante o período em que viveu Zumbi, o Brasil era testemunha de dois fatos, entre<br />
os mais cruéis da humanidade, a chamada “santa” inquisição e a escravidão.<br />
A igreja católica, na linha de frente desses fatos e preservando seus interesses mais<br />
sórdidos, sobretudo o econômico, teve um papel fundamental na manutenção dessa<br />
crueldade. Grande parte das riquezas acumuladas pela “santa” igreja católica<br />
apostólica e romana é proveniente de muçulmanos e judeus perseguidos, saqueados<br />
e mortos pelo santo ofício. Da mesma maneira que muito lucrou durante a<br />
escravidão aqui no Brasil, recebendo grandes propinas dos senhores escravocratas,<br />
algumas por baixo do pano e outras oficialmente como taxação da própria igreja.<br />
Os líderes católicos em sua ganância e ignorância extremadas pouco se importaram<br />
em absorver o que essas culturas, a muçulmana provavelmente a mais desenvolvida<br />
da época, teriam a oferecer. Trocaram o conhecimento pela riqueza. A cultura<br />
lavou-se em sangue.<br />
De um lado, entre os mouros, a história nos deixou Antar Ibn Shaddad, negro, poeta<br />
e guerreiro muçulmano, que nasceu servo de seu pai e conquistou sua liberdade<br />
como um lendário combatente pelo seu povo. É um herói para os mouros<br />
reconhecido pelas qualidades pessoais, de grande poeta e corajoso nas batalhas.<br />
Entre nós brasileiros, ficou a imagem de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares,<br />
negro fugido junto aos brancos para tornar-se o grande nome da resistência de um<br />
povo na luta contra a escravidão, preconceito e segregação. Grande guerreiro que<br />
conseguiu impor diversas e humilhantes derrotas às investidas armadas por parte do<br />
governo, com o qual se recusou a fazer qualquer tipo de acordo. Jamais confiou na<br />
palavra da igreja ou da coroa portuguesa.<br />
Muito além do Malês, negros muçulmanos em grande parte educadores, que foram<br />
trazidos ao nosso país como escravos, suas revoltas em Salvador, na Bahia e das<br />
tradições que por lá deixaram enraizadas, a história do Brasil, africanos e mouros<br />
tem seu elo na figura de uma personagem até pouco tempo desconhecida de nossa<br />
historiografia, o Capitão Mouro e seu encontro com Zumbi.<br />
Karim Ibn Ali Saifudin, o Capitão Mouro, foi salvo em alto-mar pelo judeu Yusseph<br />
Ben Suleiman, após o naufrágio da embarcação que comandava sob ataque de<br />
piratas. O judeu, comerciante, vinha ao Brasil, em Pernambuco, para negociar<br />
mercadorias. Ali tomaram conhecimento de Zumbi e do Quilombo de Palmares.<br />
Saifudin embrenhou-se de tal modo na vida do Quilombo que retardou, em tese,<br />
para sempre o retorno dele e de Suleiman para seus povos. Junto aos seus<br />
conhecimentos soube absorver a cultura dos negros, inclusive com plantas<br />
medicinais índice que junto a higiene, combateu diversas doenças entre os brancos, tão<br />
pouco adeptos à limpeza.<br />
Foi o responsável pela forte defesa que se construiu em torno do quilombo. Juntos,<br />
ele 4 e Zumbi, a violência desenvolveram silenciosamuitas estratégias de ataque e defesa que 24 iam poesia minando<br />
todas 10 as minha tentativas respiração de destruição é saudade de Palmares.<br />
28 fotodocumentário<br />
Casou com uma negra chamada Maria, assim como seu amigo Yusseph casou com<br />
12 você está no processo de ser<br />
Sara, também de origem negra.<br />
34 à moda antiga<br />
Após doutrinado uma estadia infrutífera em Recife, onde Yusseph acreditava 40 liberte que viriam um livro!<br />
resgatá-lo, 13 nem voltaram toda sombra a Palmares, no momento de sua destruição. A história, já tão<br />
parca,<br />
42 a cara do careta<br />
na não parede registra é cinema mais nada sobre os dois. Quando escrita pelos vencedores,<br />
sobretudo os cruéis e assassinos, reduz os vencidos quando não 44 os como anula. fica sua<br />
14 frases de oswald de andrade<br />
Mas acreditamos na igualdade entre os povos, no respeito<br />
16 a tal revolução sexual<br />
privacidade<br />
aos costumes,<br />
com<br />
na<br />
o novo<br />
troca de<br />
conhecimento e uma convivência pacífica, acima de governos e credos.<br />
18 artes plásticas<br />
atrevimento do google<br />
Para 20 saber um velho mais sobre manuscrito o assunto leiam O Capitão Mouro, 46 de rebosteio Georges in dica<br />
Bourdoukan, Editora Casa Amarela, que pesquisou profundamente no Brasil,<br />
21 de putas e deputados<br />
47 a cidade se dá<br />
Portugal, Espanha, Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia, chegando inclusive aos<br />
beduínos 22 melancolia do deserto e os beberes das montanhas, onde prevalece 48 anti a propaganda<br />
cultura e a<br />
história de forma oral.<br />
página 03
06<br />
03 editorial<br />
Ser Negro Negro Ser<br />
Mercedes Lorenzo / Rubens<br />
Guilherme Pesenti<br />
09 entrevista:<br />
ethel muniz<br />
14 de olho no movimento:<br />
projeto aperte o play na poesia / Ijexá<br />
Ismael Neto / Willian Delarte<br />
16 Movimento Rastafari<br />
18 del arte:<br />
poema: rosa vermelha - willian delarte<br />
20 sexualidade e comportamento:<br />
é proibido gozar! - letícia lanz<br />
22 moviola:<br />
bond, negro bond / o anjo negro da bahia<br />
nirton venâncio<br />
26 ensaio fotográfico:<br />
24<br />
capoeira<br />
jacqueline gallo<br />
32<br />
blues - edegar ferreira<br />
33 antenas da raça:<br />
ou quase pretos, ou quase brancos quase<br />
pretos de tão pobres - igor marques
36<br />
37<br />
38<br />
39<br />
42 conto:<br />
48 conto:<br />
49<br />
panteras negras<br />
zumbi dos palmares<br />
banzo: a melancolia negra<br />
candomblé na rua: contexto<br />
ou liberdade poética - josé pedro da silva<br />
44 poesia:<br />
hip hop<br />
o rei - willian delarte<br />
vilmar alves ribeiro / Israel<br />
neto / solano trindade / cruz<br />
e souza<br />
nossa rainha - marcelino freire<br />
50<br />
54<br />
essencia festival - cobertura fotográfica:<br />
mercedes lorenzo<br />
de mitos e madonas - marcantonio costa<br />
55 africaminhos:<br />
dois anos depois, quem somos?<br />
mauro brito combo<br />
58 eles!<br />
60 rebosteio in dica<br />
terceira capa:<br />
brinde poster
foto: mercedes lorenzo<br />
poema:<br />
Rubens Guilherme Pesenti
Rubens Guilherme Pesenti e Mercedes Lorenzo<br />
A sociedade brasileira, de uma<br />
maneira geral, traduz o desrespeito<br />
com que trata ou se refere aos negros,<br />
através de piadinhas muitas vezes<br />
justificadas como simples<br />
brincadeiras:<br />
“Preto quando não caga na entrada,<br />
caga na saída”.<br />
“Preto só voa quando cai da<br />
construção”.<br />
“Preto só anda de carro quando vai<br />
preso”.<br />
“Preto só sobe na vida quando explode<br />
o barraco”.<br />
“Preto não erra, porque errar é<br />
humano”.<br />
“Preto só vai à escola quando a está<br />
construindo”.<br />
Na verdade, a argumentação de que é<br />
apenas brincadeira reflete o<br />
preconceito tão arraigado dentro dessa<br />
sociedade discriminatória. Frases<br />
como essas contém uma agressividade<br />
que em sua formulação procura<br />
colocar o negro em “seu devido lugar”<br />
como ladrão, favelado,<br />
intelectualmente inferior.<br />
O preconceito é reflexo de uma atitude<br />
sustentada por uma elite branca,<br />
identificada historicamente com o<br />
poder dominante em todas as<br />
instâncias do Estado brasileiro com<br />
apoio total da Igreja. Um exemplo<br />
gritante está numa inscrição que anos<br />
atrás constava na Escola de Polícia de<br />
São Paulo, onde se lia: “Um negro<br />
parado é suspeito; correndo é<br />
culpado”.<br />
Claro, existem piadas sobre<br />
portugueses, japoneses ou judeus, que<br />
na verdade denunciam formas de<br />
preconceito, que irão de algum modo<br />
transformar-se em atitudes<br />
discriminatórias. Porém, elas tomam<br />
proporções muito maiores à medida<br />
que não há como um negro escapar à<br />
sua ação negando que pertence a esse<br />
grupo.<br />
Citando Ana Lúcia E. F. Valente, em<br />
seu livro Ser Negro No Brasil Hoje,<br />
“Dizer que os negros são sujos,<br />
malandros, ladrões, etc. não é uma<br />
verdade. Existem negros sujos,<br />
malandros e ladrões, como também<br />
existem brancos sujos, malandros e<br />
ladrões. Importante é entender porque<br />
existem pessoas sujas, malandras e<br />
ladras. A frase, quando dirigida só aos<br />
negros, apenas denuncia o racismo<br />
generalizado”.<br />
Historicamente a situação atual do<br />
negro no Brasil está intimamente ligada<br />
à abolição da escravatura, onde não foi<br />
aproveitado como mão de obra livre e<br />
remunerada; ao invés, foram trazidos<br />
imigrantes europeus para as funções<br />
antes exercidas pelos escravos. Ao<br />
negro liberto restaram os trabalhos de<br />
menos prestígio na escala social, assim<br />
como lhes foi negada a acessibilidade<br />
aos benefícios sociais. O negro<br />
desempregado e sub-empregado foi<br />
sendo empurrado sistematicamente<br />
para locais urbanos onde não haviam<br />
página 07
condições de higiene, moradia, infraestrutura,<br />
etc. Tenta-se mascarar o<br />
preconceito racial justificando-o como<br />
preconceito de classe.<br />
O mito da democracia racial tem como<br />
função oficial criar uma imagem<br />
pacificadora e irreal para esconder os<br />
conflitos existentes, além de procurar<br />
manter um controle sobre a população<br />
negra exercendo uma violência<br />
invisível e portanto não sujeita a<br />
contestação.<br />
A música e o esporte são quase que as<br />
únicas brechas onde é socialmente<br />
aceito o negro se destacar, alcançando<br />
ascenção social e econômica. Ainda<br />
assim, são atividades do ponto de vista<br />
mais racional consideradas lúdicas,<br />
destinadas ao entretenimento, portanto<br />
estão fora das atividades consideradas<br />
de “responsabilidade”.<br />
Pelé, um dos ídolos do esporte mais<br />
respeitados no mundo, é usado para<br />
reafirmar a idéia insidiosa de que o<br />
preconceito no Brasil é de classe, não<br />
étnico. Ele próprio assimilou esse<br />
discurso, afirmando que nunca sofreu<br />
qualquer espécie de preconceito e<br />
omitindo-se nas questões raciais.<br />
O rei do futebol e outros negros que<br />
conseguiram se destacar são exceções,<br />
pois o “fracasso” da grande maioria<br />
dos negros é taxado pela sua suposta<br />
falta de vontade de progredir. Quando<br />
falam do preconceito sofrido,<br />
costumam ouvir mais uma das<br />
“pérolas” discriminatórias: “você tem<br />
é complexo de cor!”<br />
O negro assimila esse conceito de que<br />
ele “não serve para nada” e passa a<br />
objetivar um “embranquecimento”<br />
social, seja através de uma atividade<br />
ou de casamentos mistos, ou mesmo o<br />
recurso de cosméticos que prometem o<br />
clareamento da pele.<br />
Para aqueles que ainda acreditam que<br />
o Brasil não é um país racista: não faz<br />
tanto tempo assim, uma das emissoras<br />
de maior audiência do país pôs no ar<br />
uma novela (Corpo a Corpo, de<br />
Gilberto Braga) onde Zezé Mota fazia<br />
par com Marcos Paulo (ator branco).<br />
Foi imenso o número de cartas<br />
protestando contra esse casal interracial,<br />
sugerindo entre outras<br />
barbaridades, que o ator lavasse a boca<br />
com água sanitária a cada beijo dado<br />
em Zezé Mota. Embora a miscigenação<br />
seja um dos pilares da “democracia<br />
racial”, na prática as pessoas<br />
dificilmente admitem a mistura de<br />
cores.<br />
A mulher negra e a mulata,<br />
transformada em objeto de exportação,<br />
sofrem tripla discriminação: social,<br />
racial e sexual. Portanto os problemas<br />
da população negra no geral atingem a<br />
mulher pelo menos três vezes mais.<br />
São vítimas do machismo dentro e fora<br />
do seu grupo étnico, e somado a isto o<br />
mito racista de que são “quentes na<br />
cama” as torna vulneráveis ao assédio<br />
de uma forma muito mais agressiva do<br />
que ocorre com a mulher branca.<br />
O racismo “à moda brasileira” coloca o<br />
negro na cozinha, nos elevadores de<br />
serviço, na miséria e na cama.<br />
Proibidos de ter acesso a muitos<br />
lugares, sistematicamente são<br />
perseguidos e vítimas da polícia. A<br />
carteira de trabalho assinada é a<br />
garantia de acesso a esse livre trânsito,<br />
mas como o grande contingente de<br />
desempregados são negros, seu lugar é<br />
principalmente na cadeia. Oficialmente<br />
não somos um país segregacionista,<br />
mas sabemos onde ele coloca a grande<br />
maioria de sua população negra.<br />
O Movimento Negro tem procurado,<br />
através da conscientização, mudar o<br />
quadro dessa doença social brasileira,<br />
denunciando as sutilezas que tentam<br />
maquiar seus sintomas e as possíveis<br />
formas de combate-la.<br />
A LEI <strong>Nº</strong> 10.639/03 de 9 de Janeiro de 2003:<br />
Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação<br />
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática «História<br />
e Cultura Afro-brasileira», e dá outras providências.<br />
página 08
Ethel Muniz é um velho companheiro desses nossos encontros<br />
virtuais. Sua música, sua pintura, poemas e performances, além<br />
da sua pessoa querida, garantem uma aproximação carinhosa<br />
quase física e de bem querer constantes.<br />
Confiram nessa entrevista, que nos concedeu com toda simpatia<br />
e disponibilidade, o encontro de culturas aparentemente tão díspares.
Rebosteio - Conte-nos um pouco da sua<br />
origem em Aracaju, da sua infância e do<br />
meio em que você viveu, as relações<br />
familiares e memórias dessa época.<br />
Ethel - Vi a vida em Aracaju, cidade de<br />
brinquedo de um moleque feliz, filho de pai e<br />
mãe mágicos. Deles nasci, deles me criei e<br />
deles me tornei um Homem e desse Homem<br />
um Artista, misturado numa família de avós,<br />
tios, tias e primos maravilhosos... Infância de<br />
menino encantado, época feliz, simples e<br />
séria... vida de brinquedo, vida boa.<br />
Rebosteio - Você hoje vive na França. Antes<br />
disso já havia saído de Aracaju pra viver nos<br />
grandes centros urbanos brasileiros?<br />
Ethel - Sair primeiro do ventre dengoso de<br />
uma mamãe linda mulata e de um papai meio<br />
branco que me deram o primeiro passaporte<br />
para a vida... Vivi em centros urbanos e<br />
desurbanos no Brasil e no mundo, antes de<br />
tudo.<br />
Rebosteio - Qual a inquietação que fez com<br />
que um garoto negro de Aracaju se decidisse<br />
a sair para um mundo tão diferente<br />
culturalmente?<br />
Ethel - Nenhuma inquietação, somente a<br />
liberdade... Liberdades.<br />
Rebosteio - Em que medida a arte<br />
influenciou essa decisão? Você já tinha<br />
nessa ocasião a formação artística atual? Já<br />
tinha múltiplas expressões artísticas como<br />
hoje?<br />
Ethel - A medida do amor e de uma<br />
consciência de mim mesmo... Artista<br />
formado no berço de uma avó que me<br />
aprendeu a amar a essência do homem... a<br />
Poesia. As expressões nasceram gêmeas e<br />
elas sempre estiveram na casa do "neguinho"<br />
diferente, de talentos inatos.<br />
Rebosteio - Quais as referências artísticas<br />
de origem européia você tinha no Brasil<br />
antes de ir embora? Elas se confirmaram?<br />
Ethel - A curiosidade dessa mistura<br />
vitaminada de nossas origens, a Europa é<br />
incrustada em cada brasileiro assim como a<br />
África a Ásia a Lua (somos todos um pouco<br />
lunáticos, não é?) mesmo Vênus, mesmo o<br />
nordeste, mesmo o Tudo... elas se<br />
página 10
confirmaram.<br />
Rebosteio - Houve dificuldades de adaptação<br />
à nova cultura? Quais foram?<br />
Ethel - Nenhuma dificuldade, a cultura já é<br />
essa "dificuldade" e a "adaptação" vem com a<br />
natureza de não ter medo de se assombrar...<br />
Foram muitas e desmuitas... Mas, deliciosas<br />
sempre.<br />
Rebosteio - Sentimos sobretudo em sua<br />
música, mais do que na pintura, uma<br />
influência da moderna música européia. É<br />
uma música intimista, invernal. Onde, dentro<br />
dessa música, se encontraria esse Ethel da<br />
pintura extremamente vibrante, colorida,<br />
ensolarada e das performances corporais tão<br />
carregadas de negritude?<br />
Ethel - O Ethel se encontra no natural de Ser<br />
e de ser Buliçoso. Eu sempre meti a mão nos<br />
buracos dos tatus (como aquela música: "Não<br />
meta a mão no buraco do tatu que é muito<br />
perigoso, é preciso ter cuidado...) e eu nunca<br />
tive cuidado com o "perigo", o bom perigo.<br />
Acho então que a minha influência é<br />
nordestina-européia... O nordeste é cheio de<br />
homens intimistas, invernais, coloridos,<br />
cheios de almas e corpos ensolarados...como<br />
as europas e as negritudes do Mundo... e vice<br />
versa.<br />
Rebosteio - Sabemos que o velho mundo,<br />
sobretudo em momentos de crise políticoeconômica,<br />
retoma algumas reações<br />
xenofóbicas. Dentro desses momentos, ou<br />
mesmo fora deles, você alguma vez sofreu<br />
por questões de preconceito racial ou mesmo<br />
de nacionalidade?<br />
Ethel - Sou suspeito: O meu Eu nunca foi<br />
flechado pela raça ou pelo racismo dos<br />
pequenos homens, talvez seja eu filho-dasorte<br />
ou quem sabe um carnavalesco<br />
sonhador. Não, nunca dei bolas para o time<br />
do preconceito, dou neles de 1000 a zero.<br />
Jogo sempre no time dos grandes. Mas não<br />
esqueço que essa imundice da xenofobia<br />
existe... aqui e acolá.<br />
Rebosteio - Como o europeu vê hoje seu<br />
trabalho, tanto musical, de cinema, de<br />
pintura e performances? A acolhida de sua<br />
arte faz você se sentir agora um cidadão<br />
Frances?<br />
página 11
Ethel - A Europa enxerga o meu labor porque<br />
aqui os óculos são de marcas... E a arteminha<br />
sem pensar na artemanha os embasbaca... A<br />
França aí então fica embasbacada junto com<br />
essa velha Europa "magnifique", onde a<br />
cultura é para quem respeita e se respeita... o<br />
"meu" cinema a "minha"musica como a<br />
"minha" pintura se aglomeram e criam a<br />
"união faz a força" e eu vou indo do meu lado<br />
esparramando a "minha" Arte que é um<br />
amálgama de um certo Tudo. Creio-me um<br />
cidadão sem grades... 100 preconceitos<br />
primários.<br />
Rebosteio - Fale-nos sobre o movimento<br />
artístico fundado por você, o NOITARUGIF.<br />
Qual o fundamento desse movimento, de que<br />
maneira ele se insere na cultura artística<br />
atual e no que ele difere dos demais.<br />
Ethel - O NOITARUGIF nasceu de um<br />
vontade louca de desfigurar todos esses<br />
"ismos" e "referências" que atravancam a<br />
"intelectualidade" imposta... NOITARUGIF é<br />
a diluição do MOT (palavra) FIGURATION<br />
em francês... FIGURAÇÃO em português.<br />
Movimento que vai de frente para trás e de<br />
trás para frente... Movimento dos artistas<br />
sem nheco-nheco, sem essa fuleiragem de<br />
arte "contemporânea" que da dor de cabeça<br />
ao pleonasmo... Somos então todos ou tudo<br />
contemporâneos... O NOITARUGIF evolui,<br />
ele é MODERNO, atual e sem besteiras...<br />
Somos quase 121 NOITARUGIFIENS.<br />
Entrar é fácil, sair é que é difícil. O<br />
fundamento do NOITARUGIF é fechar a<br />
porta e deixar a tramela na biqueira... O<br />
NOITARUGIF difere dos outros porque ele é<br />
de agora... Trambiqueiro-Contemporâneo e<br />
sem Vergonha!!!<br />
Rebosteio - Espaço aberto para que você<br />
explane sobre o que não perguntamos.<br />
Ethel - Um obrigado do tamanho desse<br />
mundo a vocês e tenham paciência para a<br />
correção gramatical e acentuações...<br />
Mercedes e Rubens um grande beijo... fiz o<br />
página 12
que não pude, mas pude. Outra coisa que<br />
talvez lhes interesse: Em 1978 estive no<br />
Brasil e trabalhei no filme SARGENTO<br />
GETÚLIO, de Hermano Pena, baseado na<br />
obra de João Ubaldo, onde fiz uma "ponta"<br />
contracenando com o meu LIMA DUARTE.<br />
Pronto, aliviei o meu Ego de Artista Falso<br />
Modesto.<br />
Je vous embrasse avec amour,<br />
Ethel Muniz<br />
16 avril 2012 - Biarritz- France<br />
Informações de contato:<br />
Sites:<br />
http://noitarugif.wordpress.com<br />
http://www.artmajeur.com/ethmuniz<br />
http://www.ethmuniz.multiply.com<br />
http://www.myspace.com/ethelmuniz<br />
http://www.dailymotion.com/noitarugif<br />
E-mail: eth.muniz@yahoo.fr<br />
página 13
“Aperte o play na Poesia” é uma iniciativa do<br />
coletivo “Literatura Suburbana” que pretende<br />
mapear escritores, registrando e divulgando seus<br />
escritos neste espaço de trocas ligadas a literatura.<br />
Contemplado pelo edital “Primeiras Obras” do<br />
“Centro Cultural da Juventude”, o projeto visa o<br />
incentivo a leitura e se propõe a utilizar ferramentas<br />
multimídias para ampliar o alcance do público.<br />
Como temos a oralidade em nosso DNA,<br />
pretendemos, como diferencial, fazer a gravação dos<br />
escritos nas vozes dos próprios escritores,<br />
fornecendo o espaço para gravação e em seguida o<br />
download dessas “Áudio-poesias” diariamente aqui<br />
no site. Ao fim do projeto, criaremos uma estação<br />
de escuta no CCJ, disponibilizando as “Áudiopoesias”<br />
para o público e também lançar um “Áudio<br />
Book”, atendendo a escassez de áudios-books referente<br />
à literatura periférica, ampliando assim a possibilidade<br />
de acesso e conhecimento sobre o assunto.<br />
Além de divulgar novos escritores, registrar seus<br />
escritos, disseminar a literatura e criar um espaço de<br />
troca, queremos com essas atividades e produtos,<br />
transformar a poesia em algo simples e portátil,<br />
atingindo pessoas que não sabem ou não tem tempo<br />
para ler, podendo ouvir onde estiverem, no seu<br />
MP3, no seu computador ou pela internet, utilizando<br />
esse meio pouco explorado no Brasil, para estar no<br />
imaginário coletivo transformando esses ouvintes<br />
em leitores e os leitores em ouvintes de literatura.<br />
O projeto em 2 meses já gravou mais de 15 poetas e<br />
esta montando um acervo de áudio poesias, pretende<br />
até o término de seu 1º ciclo (junho) ter mais de 50<br />
Áudio Poesias, o grupo tem agendado de maneira<br />
simples e rápida as gravações com os poetas<br />
interessados. O estúdio montado pelo projeto fica<br />
localizado na Emef Morro Grande, escola parceira<br />
do coletivo há 2 anos, utilizando também um espaço<br />
publico como acolhedor do projeto.<br />
A divulgação do projeto conta com a disseminação<br />
dele pela cidade, por meio de visita aos saraus nas<br />
quebradas por parte de alguns integrantes do projeto<br />
e também por meio da Internet e redes sociais.<br />
O projeto pretende se tornar um pólo permanente<br />
para a produção desse gênero de literatura.<br />
www.playnapoesia.com.br<br />
Sobre o Literatura Suburbana<br />
O coletivo Literatura Suburbana é formado por um<br />
grupo de jovens, artistas e agitadores cultural, tem<br />
sua base localizada na Vila Brasilândia, Zona Norte<br />
de São Paulo. O coletivo surge em 2007 com o<br />
objetivo garantir o direito a cultura ficando o<br />
Acesso, Consumo e Produção, por meio dos<br />
projetos e áreas do coletivo (Hip-Hop, Literatura<br />
Periférica e Ensino Étnico Racial)<br />
www.literaturasuburbana.blogspot.com<br />
Projeto Produção Suburbana: Desenvolver um<br />
canal de comunicação com os poetas por meio da<br />
publicação de livretos de poesia, participação e<br />
produção de saraus e encontros literários, esse ano<br />
o coletivo tem como carro chefe o Projeto “Aperte<br />
o Play na Poesia”, que tem como atividades, criar<br />
um ambiente virtual de troca entre os poetas e<br />
promover a cultura da “Áudio Poesia” e “Áudio<br />
Book”, gravando e lançando CD de Poesia.<br />
Reviva Rap: Projeto com Foco na organização do<br />
Rap nas comunidades, indo contra a tendência de<br />
tirar o rap da comunidade e leva-lo pro centro. O<br />
projeto já existe há 3 anos, já lançou 3 coletâneas<br />
com a participação de 36 grupos, realizou mais de<br />
20 edições do festival e já contemplou cerca de 120<br />
grupos, e no ano de 2011 premio algumas ações na<br />
entrega do Primeiro Premio Reviva Rap.<br />
www.revivarap.com.br<br />
Escola da África: Oficina Lúdicas culturais<br />
desenvolvida há 4 anos em algumas escolas da<br />
região da Brasilândia, o projeto tem como objetivo<br />
desenvolver a lei 10.639/03 nas escolas. A partir<br />
desse projeto já lançamos 2 edições da Revista<br />
escritos negros (2010 e 2011) com informações,<br />
poemas, artigos sobre o tema da educação étnico<br />
racial na escola.<br />
ISRAEL NETO, Educador Social,<br />
poeta e musico, coordenador de<br />
atividades do coletivo Literatura<br />
Suburbana. Lançou em 2009 o<br />
Livreto “Fechô no Gueto” com<br />
Carolzinha Teixeira, e lançou o CD<br />
“A Resistência” em 2009, a Mix Tape<br />
“InterPRETAação” em 2010, e no fim de 2011 lançou<br />
a Mix Tape Promo “Eternamente Break Dance” e o<br />
Livro "Amor Banto em Terras Brasileiras<br />
Literatura Suburbana<br />
(11) 3427 5363 / (11) 9446.6214<br />
www.literaturasuburbana.blogspot.com<br />
www.revivarap.com.br<br />
www.playnapoesia.com.br<br />
página 14
Caía a noite deste 20 de abril, plena sexta-feira, e o<br />
pessoal do Literatura Suburbana, em especial o<br />
gentilíssimo Israel Neto, rapper e escritor, mano<br />
firmeza!, mais conhecido na quebrada da Vila<br />
Brasilândia e redondeza por Mano Réu, estava lá<br />
no estúdio do projeto “Play na Poesia”, separando,<br />
a meu pedido prévio, sons para a produção da<br />
gravação do meu poema “Ijexá”.<br />
Foram duas horas de muito trabalho, muitas<br />
tomadas de voz, com direito a batuques<br />
literalmente feitos na pele! E o resultado, até<br />
Oxum, deusa das águas doces e da beleza (grande<br />
homenageada no poema), por certo aprovou.<br />
Enquanto tanta gente bate na tecla de que neste país<br />
nada funciona, de que a educação vai de mal a pior,<br />
de que o povo é ignorante, mal educado, e de que a<br />
“Cultura” e a “Arte”, assim com “C” e “A”<br />
maiúsculos, não chegam à periferia, convido todos<br />
a uma visita rápida à EMEF Profª Caira Alayde<br />
Alvarenga Medea, mais conhecida como Emef<br />
Morro Grande, onde o Diretor, carinhosamente tido<br />
por “Luisinho” pela criançada, faz a diferença,<br />
arregaça as mangas, e abre as portas da escola para<br />
toda a comunidade e para uma infinidade de<br />
atividades e projetos culturais.<br />
Foi nesta escola municipal da capital de Sampa que<br />
o Literatura Suburbana encontrou espaço para tocar<br />
este projeto único que, além de gravar os poetas e<br />
produzir o áudio com a mais alta tecnologia e<br />
profissionalismo, divulga o resultado no site e,<br />
ainda, promoverá a tiragem de CD´s onde<br />
constarão todas as produções.<br />
As gravações, que entrarão no primeiro CD do<br />
projeto, encerram-se agora em maio. Então, fique<br />
atento, Poeta, inscreva-se no site e agende o quanto<br />
antes sua gravação. Vale muito a pena!<br />
Axé!<br />
por Willian Delarte<br />
Ouça em primeira mão o «Ijexá» de Willian Delarte neste link:<br />
http://www.divshare.com/download/17452069-cf8<br />
página 15
Hailê Selassiê<br />
Marcus Garvey<br />
O Rastafar-I (rastafarai) é um movimento<br />
religioso que declara Hailê Selassiê I (1892 –<br />
1975), imperador da Etiópia, como o<br />
representante na terra de Jah (Deus). Este termo<br />
se origina da contração de Jeová encontrada no<br />
salmo 68:4 na versão da Bíblia do Rei James. O<br />
termo rastafári tem sua origem em Ras (príncipe<br />
ou cabeça) Tafari (da paz) Makonnen, o nome de<br />
Hailê Selassiê antes de ser coroado.<br />
O movimento rastafári tem origem na Jamaica<br />
entre os trabalhadores urbanos e camponeses<br />
descendentes dos negros africanos, por volta de<br />
1920, ligados às lutas contra a exploração e<br />
miséria. Tem por alicerce uma interpretação<br />
bíblica, baseada nos títulos de Selassiê como o<br />
único monarca africano de um país independente,<br />
tais como Rei dos Reis, Senhor dos Senhores e<br />
Leão Conquistador da Tribo de Judah, concedidos<br />
pela Igreja Ortodoxa Etíope.<br />
Alguns fatores ligados ao crescimento do<br />
movimento incluem o uso da maconha,<br />
pretensões políticas e afrocentristas, inclusive os<br />
ensinamentos do propagandista e organizador<br />
jamaicano Marcus Garvey (1887 – 1940),<br />
também considerado um profeta, que contribuiu<br />
na inspiração da imagem de um novo mundo<br />
com sua visão político/cultural.<br />
O rastafári se difundiu através do planeta,<br />
sobretudo em função da imigração e da música,<br />
como o reggae que teve no cantor e compositor<br />
Bob Marley seu maior representante. Segundo<br />
pesquisas, estima-se que no ano 2.000 havia por<br />
volta de um milhão de seguidores do rastafári<br />
pelo mundo.<br />
A tenacidade com que o movimento encorajava<br />
os negros a terem orgulho de si mesmos e da sua<br />
herança levaram os Rastas a abarcar todas as<br />
questões africanas. São conscientizados da<br />
lavagem cerebral a que foram submetidos para<br />
negar todas as coisas relativas à sua origem,<br />
questionando o não ensinamento sobre a antiga<br />
nação etíope, a única nação livre na África desde<br />
sempre. Negaram e mudaram a imagem que os<br />
brancos faziam deles como selvagens e<br />
primitivos. Para um Rasta, na impossibilidade de<br />
se estar fisicamente próximo à natureza africana,<br />
página 16
Dreadlocks<br />
É costume a proibição de cortar ou pentear os<br />
cabelos. Essa tradição religiosa Rasta também<br />
é fundamentada em diretrizes sagradas. Cada<br />
Dread é ligado espiritualmente com alguma<br />
parte do corpo.<br />
Maconha<br />
Ganja (ou marijuana), erva psicoativa milenar,<br />
é usada pelos Rastas, não para diversão ou<br />
prazer, mas sim para limpeza e purificação em<br />
rituais controlados. Alguns escolhem não a<br />
usar. Muitos sustentam o seu uso através de<br />
Genesis 1:29: “E disse Deus: Eis que vos tenho<br />
dado toda a erva que dê semente, que está<br />
sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em<br />
que há fruto que dê semente, ser-vos-á para<br />
mantimento.”<br />
Medicina<br />
A tradição Rastafari não permite o uso de<br />
qualquer tipo de remédio que não seja natural.<br />
Outro costume rasta, relacionado com a<br />
medicina, é a ausência de hospitais, médicos,<br />
etc. A origem desses hábitos provém de<br />
Genesis 1:29 , pois 'Jah' se refere ao uso de<br />
todo tipo de erva ou planta proveniente da face<br />
de toda a terra. Além disso, possuem a crença<br />
de que apenas 'Jah' pode 'curar' um enfermo, e<br />
nenhum outro ser possui essa capacidade.<br />
BOB MARLEY<br />
Nascido Robert Nesta Marley (6 de<br />
fevereiro de 1945 - 11 de maio de 1981),<br />
foi o maior ícone do reggae e popularizou<br />
o gênero musical, bem como a religião<br />
rastafári. Compôs canções sobre os<br />
problemas dos pobres e oprimidos,<br />
especialmente os negros.<br />
Foi casado com Rita Marley que também<br />
era cantora e mãe de quatro dos seus doze<br />
filhos, sendo os mais conhecidos por<br />
seguirem a carreira musical, Ziggy e<br />
Stephen Marley.<br />
Bob foi eleito pela revista Rolling Stone<br />
como o 11º maior artista da música de<br />
todos os tempos.<br />
Tornou-se adepto da religião rastafári por<br />
influência de Rita. Suas músicas fizeram<br />
dele uma espécie de missionário do<br />
movimento, onde pregava a irmandade e<br />
paz para a humanidade. Pouco antes de<br />
morrer foi batizado na Igreja Ortodoxa da<br />
Etiópia com o nome de Berhane Selassie.<br />
Era defensor do uso da maconha no<br />
sentido espiritual de comunhão e<br />
mencionou a erva em várias canções.<br />
Em janeiro de 2005 Rita pretendia exumar<br />
seus restos mortais e enterrá-los em<br />
Shashamane, Etiópia, afirmando que “toda<br />
a vida de Bob foi centrada na África e não<br />
na Jamaica”. Isso causou controvérsia<br />
entre os jamaicanos.<br />
suas savanas e seus leões, é fundamental essa<br />
vivência de forma espiritual. Esta aproximação<br />
pode ser notada, por exemplo, nos dreadlocks,<br />
ganja e comida fresca e em todos os aspectos da<br />
vida rasta. Procuram evitar a aproximação da<br />
sociedade moderna e sua artificialidade.<br />
Outro identificador são as cores verde, dourado e<br />
vermelho da bandeira da Etiópia. São o símbolo<br />
do movimento rastafári, e do respeito a Hailê<br />
Selassiê, à Etiópia e a África. Estas cores teriam<br />
por simbologia o sangue dos mártires, o verde da<br />
vegetação, enquanto o dourado seria a riqueza e a<br />
prosperidade do continente africano. Muitos<br />
rastafáris aprendem a língua amárica, que eles<br />
consideram ser sua original, uma vez que esta é a<br />
língua de Hailê Selassiê, e para identificá-los<br />
como etíopes; porém na prática eles continuam a<br />
falar seu idioma nativo, geralmente a versão do<br />
inglês conhecida como patois jamaicano.<br />
Para saber mais sobre a religião Rastafári:<br />
http://redmeditation.vilabol.uol.com.br/rascultura/rastafari01religiao.htm<br />
página 17
ROSA VERMELHA*<br />
Um rio a descer<br />
em gotas<br />
por<br />
s<br />
i<br />
n<br />
u<br />
o<br />
s<br />
a<br />
s<br />
curvas<br />
Saliva a arder na boca<br />
caprichosa<br />
e turva<br />
Uma rosa vermelha<br />
acima do bem<br />
abaixo do mal<br />
rente a orelha<br />
Meia-lua na mão<br />
duas inteiras no peito<br />
e meu queixo no chão<br />
pisado, amassado:<br />
TIAGO COSTA<br />
Publicitário de formação, designer<br />
gráfico de profissão e ilustrador de<br />
coração.<br />
Nas horas vagas gosta de um violão<br />
e explorar novos conhecimentos em<br />
projetos voltados ao universo das<br />
artes plásticas.<br />
Atualmente é ilustrador da coluna<br />
Cronista de 5ª junto ao escritor<br />
Rubem Leite na revista cultura Nota<br />
Independente e Designer Gráfico<br />
em agência de publicidade.<br />
http://tiagocostailustra.blogspot.com/<br />
tiagodef@hotmail.com<br />
cachorro sem leito e babão<br />
a vislumbrar da vulva um vão<br />
de invisível vácuo<br />
como sutil elástico<br />
a puxar, repuxar<br />
minh´alma de bode<br />
que berra<br />
e explode<br />
o grande cio da noite<br />
(poema do projeto inédito “GIRA HIPERESTESIA”)<br />
página 18
LAROIÊ!*<br />
ilustração:<br />
Tiago Costa<br />
Corra gira,<br />
traga-me notícia dos homens.<br />
Com a lâmina da unha dos dedos<br />
das patas de todos os sátiros<br />
arranhe o globo, o asfalto,<br />
o barro onde rebenta estradas,<br />
e me traga a embriaguês necessária<br />
para entrever a alma por dentro,<br />
por trás,<br />
nas entrelinhas da forma oculta,<br />
por onde, secreto, incrusta<br />
o conteúdo elástico do mundo -<br />
palavra humana.<br />
Corra gira,<br />
diga-me do que é feito os homens.<br />
Receba meu vermelho e bailarino glóbulo,<br />
o suor dos dedos,<br />
meus olhos como oferenda em alguidar de aço<br />
(a retina apontada à sombra do mar<br />
na fruta minguta da Lua)<br />
e entoa o grito afiado<br />
de simulacros dilacerados<br />
no poço profundo da dor -<br />
coração humano.<br />
Corra, corra,<br />
tranque as ruas, gire as portas,<br />
guarde as pontes, encruzilhadas,<br />
letras de íntimos diários,<br />
jornais da manhã que não virá,<br />
trombones do desejo,<br />
tumbas, portos, mata fechada –<br />
erga na Torre das Horas<br />
seu altar de sons, batuques,<br />
fonemas,<br />
e envolva o globo da noite<br />
como uma língua azul e negra<br />
presa nos pólos,<br />
esticada em tapetes no chão,<br />
redes no mar,<br />
e a faça cantar um doce poema<br />
que sangre, que mate,<br />
que possa ressuscitar os homens.<br />
*poema do projeto poético inédito “GIRA HIPERESTESIA”<br />
WILLIAN DELARTE<br />
Autor do livro de poesia “Sentimento<br />
do Fim do Mundo” (Editora Patuá,<br />
2011), foi um dos vencedores do II<br />
e III Festival de Literatura da<br />
Faculdade de Letras da USP na<br />
categoria “Conto”. Graduado pela<br />
mesma faculdade, foi também<br />
finalista da 15ª edição do “Projeto<br />
Nascente” (USP).<br />
Editor da Rebosteio, escreve<br />
periodicamente no jornal<br />
“Conteúdo Independente”, e em<br />
seu blog:<br />
http://williandelarte.blogspot.com/<br />
página 19
Prazer é aquele emaranhado de sensações<br />
extraordinariamente boas e gostosas que nos<br />
levam para as nuvens, fazendo vibrar, de modo<br />
único e inconfundível, cada uma e todas as<br />
células do nosso corpo, abastecendo-nos de uma<br />
energia tão incrível que parece saída da própria<br />
fonte criadora do universo.<br />
Intuitivamente, cada um de nós sabe existir um<br />
vínculo essencial entre vida e prazer: - a vida é<br />
impossível sem prazer e sem prazer é<br />
simplesmente impossível viver. O problema é<br />
que a sociedade que construímos para viver e<br />
desfrutar a vida está mais próxima de um presídio<br />
do que de um parque de diversões. Para a<br />
maioria, viver é somente cumprir pena pelo crime<br />
de ter nascido...<br />
Para que ninguém morresse de inanição por falta<br />
de prazer, foram convenientemente inventados<br />
“prazeres substitutos”, que de alguma forma<br />
pudessem tornar tolerável viver uma vida sem<br />
prazer. Assim, entram em cena os objetos de<br />
consumo, que suamos para incorporar ao nosso<br />
patrimônio material como se este fosse capaz de<br />
suprir a miséria do nosso próprio “patrimônio<br />
existencial”. Prazeres fetichizados, no pior<br />
sentido do fetiche, já que não nos proporcionam<br />
nenhum tipo de gozo. Apenas nos mantêm vivos<br />
o suficiente para ir morrendo lentamente.<br />
“É proibido gozar” - eis o primeiro mandamento<br />
de uma sociedade onde prazer sempre foi a<br />
palavra maldita, como tudo a ela relacionado – e<br />
não é pouca coisa não, já que praticamente tudo<br />
que nos dá prazer é imoral, ilegal ou engorda. A<br />
“proibição ao gozo” é matriz de todas as demais<br />
interdições que transformam a vida natural e<br />
espontânea no tal “vale de lágrimas”, onde<br />
tentamos manter a respiração, debaixo do sufoco<br />
da permanente vigilância e repressão moral,<br />
sexual, intelectual, política, social, cultural e<br />
religiosa.<br />
Subjugados dentro do nosso próprio território<br />
individual – o nosso corpo – tornamo-nos<br />
indivíduos inteiramente desamparados e<br />
fragilizados, incapazes e temerosos de expressar<br />
qualquer lance da nossa individualidade no<br />
mundo. Em vez de “gozar”, manifestando o<br />
nosso eu no mundo, repetimos à exaustão<br />
surrados padrões de conduta que “gozam” de<br />
nós...<br />
Separados bruscamente dos nossos desejos mais<br />
originais e verdadeiros, como o sexo, somos<br />
presas fáceis para as promessas redentoras de<br />
religiões e sistemas sociopolíticoeconômicos,<br />
que se valem da nossa privação e frustração para<br />
nos empurrar goela abaixo os seus “jardins de<br />
delícias”, onde desfrutaremos todas as formas de<br />
prazer... Depois que morrermos, é claro.<br />
O “gozo na eternidade” é o prêmio pelo nosso<br />
sofrimento no dia-a-dia. Quem sofrer mais,<br />
agora, gozará mais, depois. E vice versa, de<br />
sorte que aos devassos, aos excêntricos, aos<br />
“diferentes” e aos desencaixados só restará o<br />
mármore ardente do inferno...<br />
Por mais execrável que seja tal constatação,<br />
somos todos socialmente programados para não<br />
buscar o prazer, para evita-lo a todo custo, para<br />
fugir dele como o capeta da cruz. Em nome da<br />
“ordem” e do “progresso”, a civilização fez de<br />
página 20
nós um bando de inveterados sofredores.<br />
Vagamos pelo mundo, ainda hoje, em pleno<br />
século XXI, como nas procissões de penitentes<br />
da idade média, convictos da nossa própria<br />
“culpa” pela “peste” da tentação de sentir prazer.<br />
Dispostos a fazer qualquer coisa para nos livrar<br />
dessa culpa, insuportavelmente pesada. Inclusive,<br />
e principalmente, renunciar ao prazer...<br />
A culpa é a antítese do prazer. É a vergonha<br />
profunda e dolorosa de estarmos fazendo algo<br />
errado e pecaminoso, fora dos padrões de<br />
“moralidade” que nos são impostos em nome da<br />
civilização.<br />
De prazer ninguém fala. Quando fala é com<br />
vergonha, sussurrando entre os dentes, numa total<br />
falta de jeito. Culpa, entretanto, pode e deve ser<br />
exibida em público, como um verdadeiro troféu<br />
do processo civilizatório: - vejam a minha dor!<br />
Vejam o quanto eu pago para ser “civilizado”...<br />
Prazer não tem status nenhum diante da culpa,<br />
cuja “dignidade social” beira a própria santidade,<br />
apesar de ser a erva daninha no jardim da nossa<br />
psique. Onde o prazer supre, a culpa esgota.<br />
Onde o prazer nutre, a culpa parasita. Onde o<br />
prazer nos ampara, a culpa nos derruba.<br />
Desde que nascemos, somos exaustivamente<br />
treinados para sofrer, mas ninguém recebe o<br />
mínimo de treinamento para obter algum prazer<br />
neste mundo. Quem recebeu aulas de como obter<br />
um verdadeiro orgasmo? Quem se aprimorou em<br />
alguma técnica de como prolongar<br />
indefinidamente o prazer sexual? Quem se<br />
rejubila no prazer com a mesma intensidade que<br />
se entrega à dor?<br />
O funcionamento do sistema requer que<br />
estejamos fora da nossa própria órbita,<br />
desligados inteiramente das necessidades do<br />
nosso próprio corpo. Fragmentadas em mil peças<br />
da engrenagem social em que vamos nos<br />
ajustando como podemos. Em nome de<br />
sobreviver...<br />
Ainda que conveniente e estrategicamente<br />
omitido nos discursos sobre as maravilhosas<br />
virtudes da civilização, o veto ao prazer é o pilar<br />
central sobre o qual repousa a sociedade em que<br />
vivemos, esse enorme castelo assombrado, cuja<br />
função primordial é intimidar e restringir ao<br />
máximo o nosso próprio desejo.<br />
No poema “Estirpe”, Cecília Meireles expressa<br />
como ninguém essa dor-de-que-falo, essa<br />
ausência de prazer que transforma a vida das<br />
pessoas nesse campo de concentração, onde<br />
apenas se adia a hora da “câmara de gás”...<br />
Os mendigos maiores não dizem mais,<br />
nem fazem nada.<br />
Sabem que é inútil e exaustivo. Deixamse<br />
estar. Deixam-se estar.<br />
Deixam-se estar ao sol e à chuva, com o<br />
mesmo ar de completa coragem,<br />
longe do corpo que fica em qualquer<br />
lugar...<br />
...Puseram sua miséria junto aos jardins<br />
do mundo feliz<br />
mas não querem que, do outro lado,<br />
tenham notícia da estranha sorte<br />
que anda por eles como um rio num<br />
país...<br />
... Ah! os mendigos são um povo que se<br />
vai convertendo em pedra<br />
Esse povo é que é o meu.<br />
Letícia Lanz<br />
Curitiba - Paraná<br />
http://www.leticialanz.org/<br />
página 21
Depois de Barak Obama eleito presidente dos<br />
Estados Unidos, a produtora dos filmes de 007,<br />
Barbara Broccoli, não descarta a possibilidade de<br />
um James Bond negro. Acho ótimo! Tem que ter<br />
também um Papa negro, ver se muda aquela coisa<br />
lá pelo Vaticano. Que Deus e Cristo sejam negros,<br />
não somente São Benedito.<br />
E quem seria o agente secreto negro? Há uns<br />
quatro anos, o megaempresário do hip-hop Sean<br />
Combs, também conhecido por P. Diddy, se<br />
candidatou ao cargo quando inglês Daniel Graig,<br />
o atual James Bond, cansar das correrias<br />
impossíveis. Lembro-me que, para impressionar,<br />
o cara gastou uma grana alta na gravação de um<br />
teste de representação para o papel de James<br />
Bond, em ação em um helicóptero, naquele<br />
smoking impecável, e cercado de bond-girls<br />
gostosas por todos os lados, claro. De todas as<br />
cores.<br />
Outros artistas negros também manifestaram<br />
desejo de assumir o personagem criado por Ian<br />
Fleming, como o cantor americano de origem<br />
senegalesa, Akon, e o ator Jamie Foxx, que<br />
ganhou um Oscar pelo papel de Ray Charles no<br />
cinema, em 2004.<br />
Mas quem esteve perto de assumir o cargo, bem<br />
antes de Barak Obama ser uma realidade, foi o<br />
ator Colin Salmon, que fez uma dessas bobagens<br />
"Alien x Predador" e teve uma pequena<br />
participação em um dos filmes do agente inglês.<br />
Na época em que os produtores estavam<br />
querendo revitalizar a franquia, e o escolhido foi<br />
o nem um pouco carismático Daniel Graig,<br />
Salmon só não se tornou o primeiro James Bond<br />
afro porque tinha 41 anos e queriam um ator<br />
"mais jovem". Eu não engulo esse argumento.<br />
Era mesmo o freio de mão do racismo acionado.<br />
Graig, quando recebeu do ator Pierce Brosnan a<br />
faixa de agente secreto, e da Rainha a licença<br />
renovada para matar, tinha 36 anos, estreou em<br />
“Cassino Royale”, 2005, e já está com 44 e o<br />
terceiro filme este ano.<br />
Voltando à conversa com a senhora Broccoli, a<br />
produtora acha possível, sim, um 007 negro, mas<br />
descarta taxativamente um James Bond<br />
homossexual. Para ela isso seria "contraditório<br />
com seu caráter original". Ou seja, nada do<br />
valentão arrodeado de "bond-boys"...<br />
Se isso for possível, talvez o ator Daniel Graig<br />
não tenha problemas em fazer um personagem<br />
gay. Antes de se tornar agente secreto, ele teve<br />
uns amassos calientes em uma cena com Toby<br />
Jones, que interpretou Truman Capote no filme<br />
“Confidencial" (Infamous), 2006.<br />
página 22
1980. No documentário alguns depoimentos são<br />
ilustrados com fotos, textos, cartazes, programas,<br />
trechos de filmes e ingressos de espetáculos<br />
teatrais e de dança dos acervos da Escola de<br />
Teatro da UFBA, Teatro Vila Velha, Espaço<br />
Xisto Bahia, Teatro Castro Alves e do Centro de<br />
Estudos Mário Gusmão, o que dá ao filme uma<br />
narrativa dinâmica e ilustrativa de momentos<br />
importantes.<br />
Numa dessas artimanhas do destino, Mário<br />
morreu na madrugada do Dia Nacional da<br />
Consciência Negra, 20 de novembro de 1996, de<br />
câncer no pulmão. Nos últimos anos de vida,<br />
antes ainda de saber da doença, uma das coisas<br />
que mais lutava era por sua aposentadoria.<br />
Queria o reconhecimento legítimo por tantos<br />
anos de trabalho, mas não tinha como comprovar<br />
todas as peças e filmes em que trabalhou, o que<br />
acontece com muitos atores brasileiros. Dizia<br />
que "a produção não dava recibo".<br />
Recebeu várias homenagens durante o enterro<br />
Em 2005, na segunda edição do Programa de<br />
Fomento à Produção e Teledifusão do<br />
Documentário Brasileiro, mais conhecido como<br />
DocTV, exibido nas redes públicas de televisão,<br />
assisti ao documentário "Mário Gusmão, o Anjo<br />
Negro da Bahia", dirigido por Élson Rosário.<br />
Na época conversei com algumas pessoas sobre o<br />
filme e ninguém nunca tinha ouvido falar do<br />
personagem, o que não era de se espantar neste<br />
país de amnésia cultural. O ótimo documentário<br />
conta a vida e obra do esquecido ator baiano em<br />
três linhas temáticas: a artística, a militância<br />
política no movimento negro e a espiritual. Os<br />
cineastas Orlando Senna e Paloma Rocha, os<br />
atores Jackson Costa e Nilda Spencer, o cantor<br />
Carlinhos Brown, foram alguns dos entrevistados<br />
que conviveram com Mário Gusmão, muito<br />
querido em Salvador, principalmente no bairro<br />
Liberdade, onde morava.<br />
Assim como Grande Otelo, Mário foi um ícone<br />
da presença negra no cinema brasileiro no século<br />
passado. Um de seus trabalhos mais conhecidos<br />
foi em "A idade da terra", de Glauber Rocha,<br />
realizado no Jardim da Saudade. Mas para seu<br />
amigo e vizinho Edilson Santana, "para um<br />
artista, foi a indigência". De fato, nenhuma rede<br />
de televisão, que eu me lembre, sequer notificou<br />
o fato, e os jornais dos dias seguintes apenas se<br />
limitaram a registrar a sua morte.<br />
NIRTON<br />
VENANCIO<br />
Livros publicados:<br />
"Roteiro dos pássaros", poesia,<br />
"Cumplicidade poética", poesia<br />
Filmes realizados:<br />
"Um cotidiano perdido no<br />
tempo", curta, ficção<br />
"Walking on water", média,<br />
documentário,<br />
"O último dia de sol", curta,<br />
ficção,<br />
"Dim", curta, documentário<br />
Blogs:<br />
www.nirtonvenancio.blogspot.com<br />
www.olharpanoramico.blogspot.com<br />
Atividades recentes:<br />
projeto em andamento, longa<br />
documentário "Pessoal do Ceará"<br />
página 23
“O CAPOEIRA<br />
- qué apanhá sordado?<br />
- o quê?<br />
- qué apanhá?<br />
Pernas e cabeças na calçada.<br />
(Oswald de Andrade)<br />
Mais que uma luta ou um esporte, a capoeira é<br />
uma expressão cultural que inclui a musicalidade<br />
e os símbolos traduzidos da memória corporal.<br />
Não há consenso histórico sobre a origem ser<br />
primordialmente africana ou brasileira, dos<br />
escravos fugidos que teriam desenvolvido esse<br />
tipo de auto-defesa em locais onde a mata era<br />
rala, as 'capoeiras', palavra originária do tupiguarani<br />
(ka'a = mata) + (pûer = que foi).<br />
Refere-se às áreas de mata rasteira do interior do<br />
Brasil onde era praticada agricultura indígena.<br />
Acredita-se que a capoeira tenha obtido o nome a<br />
partir destas áreas que cercavam as grandes<br />
propriedades rurais de base escravocrata.<br />
Historicamente a capoeira ganhou força nos<br />
quilombos, como meio de defesa dos mesmos,<br />
até o ponto em que soldados portugueses<br />
relataram ser necessário mais de um “dragão”<br />
(militar da infantaria montada) para capturar um<br />
quilombola, pois este normalmente se defendia<br />
com uma “estranha técnica de ginga ou luta”.<br />
Considerada subversiva, a capoeira foi proibida<br />
no Brasil desde 1821 até a década de 1930,<br />
através de portarias que estabeleciam castigos<br />
corporais severos e outras medidas de repressão<br />
à sua prática. Porém durante muito tempo, após a<br />
abolição da escravatura e a conseqüente<br />
concorrência da mão de obra estrangeira na<br />
agricultura, muitos ex-escravos capoeiristas<br />
começaram a utilizar suas habilidades para<br />
sobreviver como guardas de corpo, mercenários,<br />
assassinos de aluguel, capangas. Isso levou o<br />
governo a proibir completamente a capoeira em<br />
todo o território nacional a partir de 1890, em<br />
vista da vantagem que um capoeirista levava no<br />
confronto corporal contra um policial. Qualquer<br />
cidadão pego praticando capoeira era passível de<br />
prisão, tortura e mutilação.<br />
Esse status, no entanto, só mudou radicalmente a<br />
partir de 18 de julho de 2008, quando o IPHAN<br />
(Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico<br />
Nacional) reconheceu-a como patrimônio<br />
cultural brasileiro, em cerimônia realizada no<br />
Palácio Rio Branco, em Salvador.<br />
Em 1932, com o relaxamento da perseguição, foi<br />
fundada em Salvador a primeira academia de<br />
capoeira da história, por mestre Bimba, exímio<br />
lutador no ringue e em lutas de rua ilegais.<br />
Mestre Bimba enxugou a capoeira tornando-a<br />
mais eficiente, inseriu alguns outros movimentos<br />
de artes marciais e também o conceito de<br />
graduações, representadas por um lenço<br />
amarrado na cintura. Desenvolveu um dos<br />
primeiros métodos de treinamento sistemático e<br />
fundou o Centro de Cultura Física e Luta<br />
Regional. Como a palavra “capoeira” ainda era<br />
proibida pelo código penal, Bimba chamou seu<br />
novo estilo de Luta Regional Baiana, e com isso<br />
obteve aceitação social, passando a ensinar para<br />
as elites econômicas de Salvador. Finalmente em<br />
1940 a capoeira saiu do código penal brasileiro e<br />
deixou a ilegalidade. Das muitas apresentações<br />
que mestre Bimba fez com seu grupo, talvez a<br />
página 24
mais conhecida tenha sido a ocorrida em 1953<br />
para o então presidente da república Getúlio<br />
Vargas, ocasião em que teria ouvido do<br />
presidente: “A capoeira é o único esporte<br />
verdadeiramente nacional.”<br />
Já os capoeiristas tradicionais, ainda<br />
marginalizados então, começaram a mudar sua<br />
situação com a fundação do Centro Esportivo de<br />
Capoeira Angola, em 1941, por Mestre Pastinha,<br />
localizado no Pelourinho. A notoriedade do<br />
centro deu ao termo “capoeira angola” o<br />
significado do estilo mais tradicional de capoeira.<br />
Esse é o estilo mais próximo de como os escravos<br />
lutavam ou jogavam a capoeira, com<br />
características estratégicas, movimentos sempre<br />
junto ao chão, furtivos, malícia, malandragem e<br />
improvisação.<br />
Atualmente a capoeira já se espalhou por 150<br />
países e é uma exportadora da cultura brasileira<br />
para o exterior.<br />
Numa “roda de capoeira”, onde os oponentes<br />
ficam no centro ao som do ritmo do berimbau e<br />
das palmas da assistência, o objetivo não é o<br />
nocaute, mas a queda do oponente, ou seja<br />
derrubá-lo sem golpeá-lo, preferencialmente com<br />
uma rasteira. A ginga é o movimento básico,<br />
como também os chutes em rotação, rasteiras,<br />
floreios (como o aú ou a bananeira), golpes com<br />
as mãos, cabeçadas, esquivas, acrobacias (como o<br />
salto mortal), giros apoiados nas mãos ou na<br />
cabeça e movimentos de grande elasticidade.<br />
A música é um componente fundamental e foi<br />
introduzida para ludibriar os escravizadores,<br />
fazendo-os pensar que se tratava de uma simples<br />
roda de dança e canto. Tradicionalmente se usa o<br />
berimbau, que pode ser acompanhado de palmas,<br />
pandeiros, atabaque, agogô e ganzuá,<br />
comandando o ritmo e o estilo do jogo. As<br />
canções, classificadas como ladainhas, chulas,<br />
corridos e quadras, são entoadas pelo solista e<br />
recebem respostas do coro. As letras das músicas<br />
podem também ter a função de passar mensagens<br />
para um dos capoeiristas, de maneira velada e<br />
sutil. Alguns dos “toques” de capoeira (ritmo dos<br />
berimbaus) podem ser bem lentos, como o toque<br />
de Angola, ou acelerados como o toque São<br />
Bento Grande.<br />
A famosa “ginga” dos capoeiristas teria sua<br />
origem numa coreografia imitando dança, para<br />
ludibriar os senhores de escravos sobre a real<br />
estratégia de luta que ela encerra. Sua influência<br />
na nossa cultura hoje é observada até mesmo no<br />
futebol brasileiro, um dos melhores do mundo.<br />
Atualmente, um estilo misto de capoeira se<br />
tornou mais notório, sendo mais acrobático e<br />
com performances mais aéreas, porém é visto por<br />
alguns grupos como descaracterização das<br />
tradições capoeirísticas.<br />
Os principais golpes da capoeira são: cabeçada,<br />
rasteira, rabo de arraia, chapa de frente, chapa de<br />
costas, meia-lua e cutilada de mão. Ela usa<br />
primariamente os pés como ataque, com golpes<br />
diretos ou giratórios e a rasteira, considerada por<br />
muitos como sua melhor arma. A defesa usa o<br />
princípio da não-resistência, esquivar-se de um<br />
golpe em vez de apará-lo. Completam a técnica<br />
as cabeçadas, floreios no solo, tesouras,<br />
cotoveladas, etc. A ginga é o que determina a<br />
imprevisibilidade e criatividade do capoeirista,<br />
tornando-o, mais que um sobrevivente, um<br />
artista.<br />
****************************<br />
Para saber mais:<br />
http://abcangola.wordpress.com/<br />
http://www.capoeiradobrasil.com.br/<br />
http://capoeira_regional.vilabol.uol.com.br/<br />
http://www.capoeiratorino.it/historia.html<br />
* Pesquisa e texto: Mercedes Lorenzo e<br />
Rubens Guilherme Pesenti.<br />
página 25
Este ensaio fotográfico faz parte da pesquisa de campo da qual participei, chamada "Mulheres do Brasil" e teve<br />
início junto a um assentamento do Movimento Sem Terra no município de Ramilândia, em seguida partindo<br />
para um reassentamento - Núcleo Crabin - Comissão Regional dos Atingidos pelas Barragens do Rio Iguaçu,<br />
ambos localizados próximo a Cascavel, no noroeste do Paraná. Depois disso seguimos para uma tribo dos<br />
Kayová/Guaraní nas proximidades de Dourados (MT) junto ao grupo indígina expulso da aldeia Taquara em<br />
31.10.01.<br />
Só então partimos para a comunidade de Bom Jesus na Baixada do Maranhão, situada no município de Viana,<br />
a seis quilômetros do vilarejo Matinhos, a comunidade das Quebradeiras de Coco (fotos das páginas X e X).<br />
Colher, catar, ajuntar e quebrar o coco babaçu constitui, em toda região, atividade eminentemente feminina já<br />
a partir dos 8 anos de idade. Não são proprietários de terra, assim que são obrigados a pagar "foramento" aos<br />
proprietários em cima dos R$0,35 recebidos por quilo da "emenda" do coco quebrada ou R$0,40 pagos<br />
quando adquirem produtos na venda do comprador.<br />
Já o Quilombo do Frechal (fotos das páginas X e X), está situado no município de Mirinzal, na Baixada<br />
Ocidental do Maranhão. Esta comunidade vive desde 1799 nesta área como remanescentes das nações<br />
africanas Mandinga, Benguela, Mina, Cabinda, Angola e Congo. A denominação "terra de preto" entendida<br />
como "terra comum" é marcada por práticas sociais e formas de participação coletivas na relação com a<br />
natureza e na apropriação de seus recursos. A história do Frechal apresenta componentes de luta e resistência<br />
que evidenciam claramente uma estratégia de luta liderada pelas mulheres. No Frechal os laços de parentesco<br />
sedimentados numa descendência única, acentuam o constante visitar, compartilhar refeições e divisão de<br />
tarefas domésticas e produtivas, onde a noção de família nuclear se funde com a família ampliada. A divisão<br />
sexual do trabalho obedece a critérios que conduzem o homem à escolha do local, a quem compete ainda<br />
roçar e efetuar a queima da área a ser cultivada. O trabalho das mulheres consiste em tirar lenhas utilizadas na<br />
queima da farinha e madeira para fazer o carvão, as cercas e o preparo da terra para fazer o plantio. O carro de<br />
boi é utilizado para transporte da lenha. O plantio pode ser efetuado tanto pelos homens como pelas mulheres,<br />
embora o enraizamento da mandioca seja preferencialmente atividade masculina. Há uma valorização da<br />
função dos rituais enquanto manutenção e reforço dos sentimentos dos quais depende uma comunidade.<br />
Passamos 7 dias em cada um dos locais visitados, com uma antropóloga, uma psicóloga, dois videomakers e eu,<br />
Jacqueline Gallo, fotógrafa, no grupo "Expedição CPM" com o projeto intitulado "Mulheres do Brasil", de<br />
Orianna Wright.<br />
As fotos foram feitas com filme 35mm e digitalizadas pela primeira vez especialmente para a Rebosteio nesta<br />
edição de Cultura Negra.<br />
Jacqueline Gallo, fotógrafa e designer, passou um ano estudando fotografia<br />
no Community College of Philadelphya – Pensilvania em 1986.<br />
Viveu entre Europa, Ásia e África durante 6 anos - 5 morando em um motor<br />
home - voltou ao Brasil com a exposição “Viagem e Natureza” no MIS 'em<br />
Scene' – Museu da Imagem e do Som. Graduou-se em Design Gráfico na<br />
Faculdade Belas Artes de São Paulo – FEBASP em 1997, trabalhou nas<br />
revistas Vitrine, São Paulo City Life, de 2000 a 2002; Participou do projeto<br />
“Mulheres do Brasil”, fotografando o cotidiano de 5 comunidades, exposição<br />
“Mulheres do Brasil” Teatro São Pedro/ SP e MAM – Museu de Arte<br />
Moderna de São Paulo; hoje trabalha em São Paulo, como freelancer.<br />
Site: www.jacquelinegallo.com.br<br />
e-mail: jacgallo@uol.com.br
na foto: Blind Willie Johnson<br />
O Blues, em sua raiz, é a expressão pungente de<br />
um lamento, primeiro cantado, vindo dos negros<br />
do norte da África, de cultura Muçulmana, e que<br />
foram barbaramente capturados e trazidos para<br />
os Estados Unidos durante uns 300 anos:<br />
explorados em benefício de uma cultura branca<br />
escravagista, mas mesmo assim, fizeram do<br />
Blues a sua expressão de sentimentos, tradições,<br />
cultura, ação transmitida de pai para filho.<br />
Nas plantações de algodão surgiram os primeiros<br />
“Work Songs”, cantos entoados enquanto se<br />
trabalhava exaustivamente, sendo este o modo de<br />
preservar as raízes “Mama África”. Estes<br />
cânticos também funcionavam como<br />
comunicação para poderem, de forma libertária,<br />
falar sobre as fugas, as necessidades, as situações<br />
de perigo, enfim, de modo que os brancos não<br />
entendessem o que estava sendo feito. O seu<br />
“lamento” entoado, baseado na cultura<br />
Muçulmana miscigenada com a nova cultura<br />
desenvolvida no sul dos Estados Unidos, evoluiu<br />
para o que chamamos de Blues.<br />
Os instrumentos usados na África, em vários<br />
locais, como tambores, instrumentos de corda,<br />
também são uma influência da “Mama África”<br />
no Blues. Muitas vezes os tambores eram<br />
proibidos pelos senhores, em função de<br />
provocarem um grande ajuntamento de escravos;<br />
já os instrumentos de corda, parecidos com os<br />
europeus, eram liberados e deram origem ao<br />
banjo, por exemplo.<br />
Também temos a presença de muitas<br />
danças/cânticos, de origem Islâmica/Árabe, que<br />
influenciaram na origem do Blues. As condições<br />
de vida e todo o clima de sofrimento vivenciado<br />
por todos os originários da África, no Sul dos<br />
Estados Unidos, e também pelas gerações<br />
seguintes, já nascidas nos E.U.A, deram corpo e<br />
alma para esta cultura Blues: os “Prison Songs”,<br />
em um esquema semelhante aos “Work Songs”,<br />
eram entoados nas prisões enquanto as pessoas<br />
eram mantidas sobre trabalhos forçados, e em<br />
sua devoção surgiram também os “Spirituals”,<br />
voltados para a adoração e tradições religiosas.<br />
Com a mistura de culturas, muitos se<br />
converteram ao Cristianismo. Levando para as<br />
igrejas as tradições e fusões (dos Work Songs e<br />
Spirituals) culturais, deram origem ao Gospel, e<br />
os que frequentavam os bares, para beber e<br />
dançar, criaram o Blues propriamente dito. O<br />
que diferencia um do outro, é que no Blues eram<br />
mais retratadas as condições de vida dos negros,<br />
e no Gospel, a devoção, a vida espiritual em<br />
hinos e canções de louvor.<br />
Nesta verdadeira saga foram influenciadas<br />
muitas gerações, entre negros e brancos, e o<br />
Blues deu origem a outros estilos musicais...<br />
“The Blues is the roots, the rest are the fruits” –<br />
“Blues é a raíz, o resto são os frutos”, frase do<br />
blues-man Willie Dixon, que resume bem esta<br />
disposição histórica/cultural.<br />
No século 20 não existe, praticamente, nenhuma<br />
forma de música popular que não tenha sido<br />
“contaminada” pelo Blues, até na música<br />
Brasileira!<br />
Enfim, a Música Negra em geral, no Brasil e no<br />
mundo, é a grande fonte que todos bebem<br />
continuamente, inspirando movimentos<br />
estéticos, musicais, elementos de contracultura,<br />
linguagens, rebeldia, movimentação, ação: a<br />
eterna busca pela plena liberdade.<br />
Viva a “Mama África”!<br />
EDEGAR FERREIRA<br />
Jornalista e Produtor Cultural<br />
edegar.apoio@ig.com.br<br />
http://acavernadodredegari.blogspot.com/<br />
página 32
“... Desintegra e atualiza a minha presença / A<br />
tua presença / Envolve meu tronco, meus braços<br />
e minhas pernas / A tua presença / É branca<br />
verde, vermelha azul e amarela / A tua presença<br />
/ É negra, negra, negra / Negra, negra, negra /<br />
Negra, negra, negra / A tua presença... “ [1]<br />
Quando penso em cultura negra vejo dois caminhos<br />
de abordagem para o que convencionamos<br />
denominar o conjunto de manifestações artísticas<br />
geradas por etnias de origem africana no mundo e<br />
no Brasil. Primeiramente pela sua disseminação<br />
pelo planeta, assumindo características peculiares,<br />
em momentos históricos diferenciados, seja pelo<br />
extenso tráfico de escravos desde o século XV...<br />
“...São os filhos do deserto / Onde a terra esposa<br />
a luz. / Onde voa em campo aberto / A tribo dos<br />
homens nus... / São os guerreiros ousados, / Que<br />
com os tigres mosqueados / Combatem na<br />
solidão... / Homens simples, fortes, bravos.../<br />
Hoje míseros escravos / Sem ar, sem luz, sem<br />
razão... “ [2]<br />
... até os recentes movimentos migratórios,<br />
autênticos êxodos de africanos de toda a África, há<br />
décadas invadindo a Europa, via África do Norte,<br />
alcançando o continente europeu de forma precária<br />
e muitas vezes trágica, fugitivos das grandes fomes<br />
e de guerras civis; imigrantes clandestinos ou<br />
“aculturados”, condenados ao subemprego, a<br />
trabalhos subalternos, braçais. Este é o legado<br />
sinistro da colonização predatória de hordas de<br />
ingleses (“dividir para enfraquecer”), franceses,<br />
portugueses, holandeses, italianos, alemães e<br />
recentemente, norte americanos disputando áreas<br />
de influência econômica e o domínio de pontos<br />
militares estratégicos (Egito, Líbia e Tunisia) com<br />
russos e chineses.<br />
“...Mi vida va prohibida / Dice la autoridad /<br />
Solo voy con mi pena / Sola va mi condena<br />
Correr es mi destino / Por no llevar papel /<br />
Perdido en el corazon / De la grande babylon<br />
Me dicen el clandestino / Yo soy el quebra ley<br />
Mano negra clandestino / Peruano clandestino /<br />
Africano clandestino / nigeriano clandestino /<br />
boliviano clandestino / argentino clandestino /<br />
Marijuana ilegal ...” [3]<br />
Enfim, o quadro é complexo; envolve a<br />
reavaliação de conceitos pré estabelecidos sobre<br />
esse extenso legado cultural, p. ex., a influência<br />
decisiva, mas considerada, aos olhos do europeu<br />
colonizador, como “arte primitiva”, de valor<br />
“museológico” - sobre a modernidade nas artes<br />
plásticas do início do século XX e da música afro<br />
caribenha, gerando o “latin jazz” dos anos 60 e o<br />
“fusion” dos anos 70, com ampla repercussão no<br />
complexo universo musical norte americano,<br />
hispano americano, europeu e brasileiro<br />
“… Merci beaucoup / Merci beaucoup, Bahia /<br />
Arigatô / Arigatô, Jamaica / E Trinidad E<br />
Trinidad-Tobago / Ô, ô, ô, ô / Brigado Cuba /<br />
Thank you Martinica E Suriname / Belém do<br />
Grão-Pará Y gracias, Puerto / Gracias Puerto<br />
Rico / Ô, ô, ô, ô...” [4]<br />
Me oponho à abordagem reducionista, sub<br />
colonialista, da herança africana no país,<br />
mapeando-se a produção cultural brasileira,<br />
identificando-a pela “cor da pele” de seus atores<br />
principais ou secundários, não importa se oriundos<br />
de supostas concentrações rurais ou urbanas, da<br />
periferia ou favelas das grandes cidades do país<br />
onde há predominância entre as populações<br />
carentes, por razões históricas e políticas, de etnias<br />
de remota origem africana, identificados de forma<br />
mistificadora porque “discriminados” ou<br />
“distinguidos” apenas pela alta pigmentação de sua<br />
epiderme.<br />
“Eu tava encostado ali / minha guitarra / num<br />
quadrado branco, vídeo papelão / eu era um<br />
enigma, uma interrogação...”” “...tava por acaso<br />
ali, não era nada / bunda de mulata, muque de<br />
peão / tava em Madureira, tava na Bahia / no<br />
Beaubourg, no Bronx, no Brás / e eu, e eu, e eu,<br />
e eu / a me perguntar / eu sou neguinha? ...” [5]<br />
Meu discurso branco ou quase, é fala cafusa ou<br />
página 33
etórica acadêmica de homem de “curso superior”?<br />
Pretensiosamente discorro sobre o outro e sua<br />
cultura dita negra. Onde começa minha ignorância e<br />
até onde me permito ver, escutar, perceber a<br />
diferença étnica sem reduzi-la a meus pre<br />
conceitos?<br />
“...Não sou brasileiro, / Não sou estrangeiro, /<br />
Não sou brasileiro,/ Não sou estrangeiro. / Não<br />
sou de nenhum lugar, / Sou de lugar nenhum. /<br />
Não sou de São Paulo, não sou japonês. / Não sou<br />
carioca, não sou português. / Não sou de Brasília,<br />
não sou do Brasil. / Nenhuma pátria me pariu. /<br />
Eu não tô nem aí. / Eu não tô nem aqui. ...” [6]<br />
Meio caboclo maranhense, meio gaúcho/ucraniano,<br />
um brasileiro tipicamente híbrido, busca destacar-se<br />
desse outro denominado negro, discriminado pela<br />
cor, (jamais ouvi ninguém dizer: “olha aquela<br />
branca gostosa passando no outro lado da calçada”)<br />
numa terra onde a fusão, a mestiçagem, a<br />
miscigenação prevalecem desde sua descoberta.<br />
“... Somos todos juntos uma miscigenação /<br />
E não podemos fugir da nossa etnia / Índios,<br />
brancos, negros e mestiços / Nada de errado em<br />
seus princípios / O seu e o meu são iguais / Corre<br />
nas veias sem parar / Costumes, é folclore é<br />
tradição / Capoeira que rasga o chão / Samba<br />
que sai da favela acabada / É hip hop na minha<br />
embolada<br />
É o povo na arte / É arte no povo / E não o povo<br />
na arte / De quem faz arte com o povo ...” [7]<br />
Onde 45% da população é “negra”, de acordo com<br />
os critérios racistas do último recenseamento<br />
realizado no país. Os outros 55% são sub<br />
classificados em “pardos” (!) sendo 5%, “brancos”<br />
(puros?), naturalmente, aqueles filhos ou netos de<br />
pais e avós de imigrantes. Mais arbitrário do que o<br />
critério, brasileiro “negro”, é a subclassificação,<br />
“pardo”, inexistente em qualquer catálogo<br />
profissional de cores. A indefinição dessa “cor<br />
suja” - uma “gíria” de artista visual para uma<br />
mescla “fracassante” de cores que não leva a<br />
nenhum matiz relevante, sem valor cromático na<br />
pintura, a adoção dessa sub categorização nos<br />
remete a esses 50% fantasmáticos, brasileiros<br />
analfabetos funcionais, muitos sem identidade<br />
pessoal formalizada numa mera “RG”, decisiva<br />
para que iniciem o longo e tortuoso percurso de<br />
aquisição de status de cidadão ciente de seus<br />
direitos básicos.<br />
“Primeiro levaram os negros / Mas não me<br />
importei com isso / Eu não era negro<br />
fotoarte: mercedes lorenzo<br />
página 34
Em seguida levaram alguns operários / Mas não<br />
me importei com isso / Eu também não era<br />
operário<br />
Depois prenderam os miseráveis / Mas não me<br />
importei com isso Porque eu não sou miserável<br />
Depois agarraram uns desempregados / Mas<br />
como tenho meu emprego Também não me<br />
importei<br />
Agora estão me levando / Mas já é tarde. / Como<br />
eu não me importei com ninguém<br />
Ninguém se importa comigo.” [8]<br />
Somos uma vasta população de cor “parda”<br />
(cafusos, caboclos, mulatos, morenos?), de<br />
aparência “suja”, encardidos pela miséria, pelo<br />
subemprego e descaso histórico do poder instituído.<br />
Enfim, somos todos, sejamos da elite do poder ou<br />
párias, todos mestiços, com uma fração residual de<br />
brancos, (puros?) vivendo a recorrente e mórbida<br />
nostalgia (saudade?) de suas europeias mães pátrias,<br />
sonhando com a atlântica travessia de volta de volta<br />
ao “mundo civilizado do primeiro mundo”.<br />
E o venerável cardeal disser que vê tanto<br />
espírito no feto<br />
E nenhum no marginal<br />
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho<br />
habitual<br />
Notar um homem mijando na esquina da rua<br />
sobre um saco<br />
Brilhante de lixo do Leblon<br />
E quando ouvir o silêncio sorridente de São<br />
Paulo<br />
Diante da chacina<br />
111 presos indefesos, mas presos são quase todos<br />
pretos<br />
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos<br />
de tão pobres<br />
E pobres são como podres e todos sabem como<br />
se tratam os pretos<br />
E quando você for dar uma volta no Caribe<br />
E quando for trepar sem camisinha<br />
E apresentar sua participação inteligente no<br />
bloqueio a Cuba<br />
Pense no Haiti, reze pelo Haiti<br />
O Haiti é aqui<br />
O Haiti não é aqui”<br />
[9]<br />
“E se esse mesmo deputado defender a adoção da<br />
pena capital<br />
1 - “A Tua Presença Morena” - Caetano Veloso -<br />
http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/44771/<br />
2 - “O Navio Negreiro” - Castro Alves – Caetano<br />
Veloso -http://letras.terra.com.br/caetanoveloso/44771/<br />
3 - “Clandestino” - Manu Chao – Adriana<br />
Calcanhotto -http://letras.terra.com.br/adrianacalcanhotto/75159/<br />
4 - “Vamo Comer” - Caetano Veloso -<br />
http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/423769/<br />
5 - “Eu sou neguinha?” - Caetano Veloso -<br />
http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/81367/<br />
6 - “Lugar Nenhum” - Titãs -<br />
http://www.youtube.com/watch?v=teieaR2FRU4&f<br />
eature=related<br />
8 - “Bertold Brecht”<br />
9 - “Haiti” - Caetano Veloso -<br />
http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/44730/<br />
IGOR MARQUES<br />
Natural do Rio de Janeiro, é<br />
artisa plástico e poeta.<br />
Escreve e expõe seus trabalhos<br />
no blog Desenhospoemas:<br />
http://desenhospoemas.blogspot.com/<br />
página 35
Originalmente chamado Black Panther Party for<br />
Sel-Defense, o Partido Pantera Negra para Auto-<br />
Defesa, foi fundado no ano de 1966 em Oakland,<br />
Califórnia-EUA, por Huey Newton (17/021942<br />
–22/08/1989) e Bobby Seale (22/10/1936). Depois<br />
ficou mais conhecido como como Black Panther<br />
Party (Partido Pantera Negra) ou simplesmente<br />
Black Panthers (Panteras Negras).<br />
Inicialmente tinham por objetivo o patrulhamento<br />
dos guetos negros para a proteção dos moradores,<br />
vítimas do racismo, preconceito e contra a brutal<br />
violência dos policiais.<br />
Assumindo uma postura revolucionária, com<br />
orientação marxista, passaram a defender uma série<br />
de reivindicações como o armamento de todos os<br />
negros, a isenção do pagamento de impostos e o<br />
pagamento de compensação pela exploração a que<br />
todos foram submetidos historicamente pela<br />
América Branca. Defendiam também o fim de todas<br />
as sanções contra os afro-descendentes e a<br />
libertação de todos que estivessem presos. A ala<br />
mais radical dos Panteras Negras defendia a luta<br />
armada contra essa América excludente e<br />
segregacionista.<br />
Muitos foram os conflitos entre os membros dos<br />
Panteras Negras, que em seu age chegou a exceder<br />
2 mil membros, e a polícia. Eram enfrentamentos<br />
violentos com tiroteios na Califórnia, em Nova<br />
Iorque e em Chicago. Em um desses enfrentamentos<br />
Huey Newton foi preso acusado pela morte de um<br />
policial. Mesmo ferido a bala, segundo<br />
testemunhas, foi torturado butalmente por policiais<br />
no hospital até perder a consciência. Ficou preso de<br />
1967 a 1970, quando foi libertado sob um novo<br />
julgamento, onde as acusações foram retiradas pela<br />
promotoria da Califórnia. Em 1989 foi assassinado<br />
em circunstâncias suspeitas, tornando-se um ícone<br />
da cultura negra norte-americana. Os rappers mais<br />
combativos e militantes prestam várias<br />
homenagens a Huey em suas músicas, defendendo<br />
que sua morte foi uma conspiração das autoridades.<br />
Com as diversas acusações por parte da polícia, de<br />
que membros do partido eram culpados de atos<br />
criminosos, foram violentamente hostilizados e<br />
reprimidos em ataques. Em função dessa<br />
circunstância foi aberta uma investigação por parte<br />
do Congresso norte-americano sobre as atividades<br />
da polícia em relação aos Panteras Negras.<br />
Na década de 1970 o partido provoca uma mudança<br />
nos seus métodos de ação, sobretudo em razão da<br />
pouca simpatia que despertava em muitos líderes<br />
negros. Passaram a atuar dentro de uma política<br />
mais convencional, voltada a serviços sociais nas<br />
comunidades negras. Nos anos de 1980 o partido já<br />
estava praticamente extinto.<br />
Nas Olimpíadas da Cidade do México, os atletas<br />
dos EUA, osmedalhistas Tommie Smith e John<br />
Carlos, fizeram a saudação "black power", braço<br />
estendido com o punho enluvado e fechado,<br />
durante a cerimônia de premiação da modalidade.<br />
O Comitê Olímpico Internacional (COI) baniu-os<br />
dos jogos.<br />
O punho erguido ("Raised Fist") foi usado como<br />
símbolo de propaganda do Black Panther Party.<br />
Aqui, no Brasil, Reinaldo, Eusébio e Sócrates,<br />
todos ex jogadores de futebol comemoravam seus<br />
gols com o braço erguido e punho fechado assim<br />
como os Panteras Negras.
dos Palmares<br />
Tendo origem na palavra nzumbe, do idioma<br />
africano quimbundo, Zumbi ou Zambi significa<br />
fantasma, alma ou espírito de pessoa morta.<br />
Zumbi nasceu livre em Palmares, Alagoas, uma<br />
comunidade auto-sustentável formada por negros<br />
rebeldes que fugiam da escravidão. O Quilombo de<br />
Palmares tem suas primeiras referências históricas<br />
no ano de 1580, então constituído principalmente<br />
por negros evadidos dos engenhos das Capitanias de<br />
Pernambuco e da Bahia, resistindo por mais de um<br />
século. Foi destruído em um massacre liderado pelo<br />
bandeirante paulista Domingos Jorge Velho em<br />
1694, após resistir a várias ações militares nas<br />
tentativas frustradas de invasão e domínio. Palmares<br />
acabou por desfazer-se completamente por volta de<br />
1710, ressentindo-se da falta da liderança militar de<br />
Zumbi, morto em 1695.<br />
Quando tinha aproximadamente seis anos Zumbi foi<br />
capturado por brancos e entregue a um missionário<br />
português que o batizou com o nome de Francisco.<br />
Recebeu os sacramentos da igreja católica, onde<br />
ajudava diariamente na celebração das missas,<br />
aprendendo a língua portuguesa e o latim.<br />
Resistindo às tentativas de aculturação Zumbi foge<br />
em 1670 e, então com 15 anos, retorna a Palmares.<br />
Quando contava por volta de 20 anos já era<br />
conhecido por sua astúcia e habilidade nos<br />
enfrentamentos às tentativas de invasão ao<br />
Quilombo, tornando-se um respeitadíssimo<br />
estrategista militar.<br />
Por volta de 1678 Ganga Zumba, líder do Quilombo<br />
de Palmares, aceita uma aproximação “pacificada”<br />
com o governador da capitania de Pernambuco, que<br />
prometia liberdade a todos os negros fugidos, ou<br />
nascidos no quilombo, desde que se submetessem à<br />
Coroa Portuguesa. Não admitindo que alguns<br />
irmãos fossem libertos e outros não, além da<br />
submissão aos costumes portugueses, opostos ao de<br />
seu povo, Zumbi rejeita a proposta, prometendo<br />
continuar a resistência contra a opressão,<br />
desafiando, assim, a liderança de Ganga Zumba.<br />
Grande parte dos quilombolas se une a Zumbi na<br />
rejeição à proposta de paz e, em meio a essa disputa<br />
Ganga Zumba é envenenado, sendo substituído na<br />
liderança por seu irmão Ganga Zona, também<br />
favorável à proposta de paz. Dessa maneira, agora<br />
sob a liderança de Zumbi, os negros dissidentes se<br />
restabelecem em Palmares e o acordo com os<br />
portugueses é rompido. Aclamado pelos seus,<br />
Zumbi torna-se o novo líder do Quilombo de<br />
Palmares.<br />
Zumbi, em um primeiro momento, substitui a<br />
estratégia de defesa pacífica por uma espécie de<br />
tática de guerrilhas, atacando de surpresa fazendas<br />
e engenhos, libertando escravos e tomando posse<br />
de armas, munição e suprimentos, utilizados em<br />
novos ataques.<br />
A resistência do Quilombo de Palmares, sob<br />
liderança de Zumbi, durou 15 anos, sendo destruído<br />
na invasão organizada por Domingos Jorge Velho,<br />
em 6 de fevereiro de 1694. Zumbi é ferido na<br />
batalha. Traído por seu companheiro Antonio<br />
Soares, com promessas de liberdade, é encurralado<br />
em seu reduto. Apunhalado ainda resiste, mas é<br />
assassinado com mais 20 guerreiros, em 20 de<br />
novembro de 1695, quase dois anos depois do<br />
início das batalhas.<br />
A cabeça de Zumbi foi cortada, salgada, com seu<br />
pênis dentro boca, e ficou exposta em praça<br />
pública, no Recife, com o objetivo de desmistificar<br />
a crença entre a população de sua imortalidade.<br />
Em 1696 o governador de Pernambuco Caetano de<br />
Melo e Castro escreve ao Rei de Portugal:<br />
"Determinei que pusessem sua cabeça em um poste<br />
no lugar mais público desta praça, para satisfazer<br />
os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar<br />
os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi<br />
um imortal, para que entendessem que esta empresa<br />
acabava de todo com os Palmares."<br />
Embora a escravidão no Brasil tenha sido<br />
oficialmente abolida em 13 de maio de 1888,<br />
algumas dessas comunidades quilombolas<br />
chegaram até os dias de hoje em função de seu<br />
isolamento. Outros transformaram-se em<br />
localidades, como Ivaporunduva, no estado de São<br />
Paulo. A maioria dos quilombos tinha existência<br />
efêmera, pois uma vez descobertos, a sua repressão<br />
era marcada pela violência por parte dos senhores<br />
de terras e de escravos, com o intuito de se<br />
reapossar dos negros fugitivos e punir<br />
exemplarmente alguns indivíduos, visando<br />
atemorizar os demais cativos.<br />
página 37
As mazelas da escravidão no Brasil incluíram em<br />
seu bojo um sofrimento que ficou conhecido nos<br />
livros de história como “banzo”, uma espécie de<br />
melancolia profunda cujas causas passam por<br />
diversas interpretações, mas cujo efeito mais grave<br />
foi certamente o suicídio entre os negros<br />
escravizados da época. A estatística de suicídios<br />
entre eles, se comparada ao de homens livres, era<br />
duas ou três vezes mais alta.<br />
Há poucas fontes de pesquisa séria já realizada<br />
sobre o tema, e entre elas podemos citar a nota<br />
publicada no Jornal do Commercio, no Rio de<br />
Janeiro, em 22 de junho de 1872, resgatada por<br />
Renato Pinto Venâncio (professor de História da<br />
Universidade Federal de Ouro Preto), que diz:<br />
“Apareceu ontem enforcado com um baraço [corda<br />
de fios de linho], dentro de um alçapão, na casa da<br />
rua da Alfândega, nº 376, sobrado, o preto Dionysio,<br />
escravo de D. Olimpya Theodora de Souza,<br />
moradora na mesma casa. O infeliz preto, querendo<br />
sem dúvida apressar a morte, fizera com uma<br />
thesoura pequenos ferimentos no braço ...”<br />
Embora a palavra “banzo” designe o mal que<br />
acometia esses escravos, discute-se ainda o seu<br />
significado e origem etimológica africana, que<br />
remontaria ao equivalente do “pensar” ou<br />
“meditar”. Já em 1799 foi apresentado um estudo<br />
na Academia Real de Ciências de Lisboa, pelo<br />
médico Luiz António de Oliveira Mendes, que<br />
incluía o banzo entre “as doenças agudas e crônicas<br />
que mais frequentemente acometem os pretos<br />
recém-tirados da África”. No seu relato ele apontava<br />
os sintomas: os negros ficavam numa profunda<br />
tristeza, mutismo voluntário, e deixavam de se<br />
alimentar mesmo sendo instados a isso, morrendo<br />
por inanição.<br />
Já no século 19 esse comportamento começou a ser<br />
reconhecido como distúrbio mental, com o<br />
aparecimento das primeiras teorias psicológicas. Em<br />
“Considerações Sobre a Nostalgia”, uma tese<br />
médica de 1844 feita por Joaquim Manoel de<br />
Macedo, encontra-se o seguinte trecho: “[...]<br />
estamos convencidos de que a espantosa<br />
mortandade que entre nós se observa nos africanos,<br />
principalmente nos recém-chegados, bem como de<br />
que o número de suicídios que entre eles se conta,<br />
tem seu tanto de dívida a nostalgia [...]”<br />
O banzo e a nostalgia ficaram assim associados no<br />
ideário popular e passaram a figurar como<br />
sinônimos nos dicionários, como o de Joaquim de<br />
Macedo Soares, de 1875, que define: “banzar: estar<br />
pensativo sobre qualquer caso; triste sem saber de<br />
quê; sofrer do spleen dos ingleses; tristeza e apatia<br />
simultânea; sofrer de nostalgia, como os negros da<br />
Costa quando vinham para cá, e ainda depois de cá<br />
estarem”.<br />
Hoje o banzo é visto mais como a face visível de<br />
uma vasta gama de distúrbios do que simplesmente<br />
um sentimento de saudade da terra natal. Esses<br />
distúrbios podiam ter sua origiem em doenças<br />
mentais como depressão clínica e esquizofrenia,<br />
mas também haventa-se a hipótese de desnutrição<br />
crônica, doenças contagiosas que afetam o sistema<br />
nervoso central, bem como o consumo de álcool e<br />
drogas.<br />
Outros registros encontrados no citado Jornal do<br />
Commercio, igualmente resgatados pelo professor<br />
Venâncio, apontam suicídios associados a delírios:<br />
“Valentim, escravo de Faria & Miranda,<br />
estabelecidos na rua dos Lázaros nº 26, sofria há<br />
dias violenta febre, e era tratado pelo Dr. Antonio<br />
Rodrigues de Oliveira. Anteontem [20 de maio de<br />
1872], às 9 horas da noite, ao que parece, em um<br />
acesso mais forte, Valentim feriu-se com um golpe<br />
no pescoço”. E também: “Suicidou-se ontem [8 de<br />
março de 1872] à 1 hora da tarde, enforcando-se, a<br />
preta africana Justina, de 50 anos, escrava de<br />
Narciso da Silva Galharno. O Sr. 2º Delegado<br />
tomou conhecimento do fato e procedeu a corpo<br />
delito. Consta que a preta sofria de alienação<br />
mental”.<br />
Estes registros, segundo o professor Venâncio,<br />
“devem ser lidos com olhos críticos: o registro de<br />
suicídio pode encobrir assassinatos praticados por<br />
senhores”.<br />
Isso no entanto não minimiza todo o sofrimento<br />
expresso pelo banzo, espelhando de forma trágica<br />
as conseqüências da escravização de milhões de<br />
pessoas. Talvez sua ocorrência tão freqüente e<br />
divulgação na imprensa da época possam ter<br />
contribuído na sensibilização dos primeiros<br />
abolicionistas durante o império.<br />
página 38
“Um fato muito importante e que deveria ser<br />
totalmente condenável é que sempre que se<br />
“estuda” ou se “pesquisa” no campo das religiões<br />
comparadas, os parâmetros e os referenciais são<br />
sempre os do cristianismo, islamismo e outras. Para<br />
a religião tradicional dos yorùbá; a recíproca,<br />
infelizmente nunca é verdadeira, pois se o<br />
referencial fosse a africana, com certeza teríamos<br />
inúmeras e novas variáveis a serem avaliadas, para<br />
o bem da religião tradicional yorùbá e do<br />
candomblé”<br />
Aulo Barretti Filho<br />
O candomblé é uma religião construída no Brasil a<br />
partir da diáspora africana, onde os negros<br />
escravizados e trazidos de várias regiões da África<br />
ressignificaram seu arsenal simbólico na construção<br />
desta religião.<br />
A base da cultura negra no Brasil esta concentrada<br />
no candomblé. Neste sentido, parece fácil definir a<br />
cultura religiosa negra como sendo aquela<br />
reconstruída pelos escravos africanos, nos diversos<br />
terreiros de candomblé. Importante ressaltarmos que<br />
inúmeros elementos influenciaram, e ainda<br />
influenciam, o desenvolvimento do candomblé no<br />
Brasil.<br />
A escravidão, o preconceito, o racismo e o<br />
reducionismo construíram, ao longo do tempo, uma<br />
cultura religiosa baseada em duas grandes máximas.<br />
Uma que busca a “pureza” africana, indícios de um<br />
passado mítico que dificilmente será encontrado.<br />
Outra que mistura, reconfigura e altera o<br />
candomblé, a partir do olhar da diversidade<br />
religiosa, incorporando assim, elementos<br />
notadamente de outros grupos culturais.<br />
Neste contexto, há uma grande complexidade em<br />
definir o que é ou não cultura religiosa negra. O que<br />
podemos é tentar definir alguns padrões aplicáveis<br />
apenas no estudo das religiões de matriz africana no<br />
Brasil.<br />
Um primeiro padrão, quando aceitável, é aquele que<br />
divide o candomblé nas chamadas nações. A partir<br />
de divisões dos grupos linguísticos yorùbá, fon e<br />
bantu e seus espaços geográficos, o candomblé foi<br />
diferenciado respectivamente em três macro-nações:<br />
kétu, jeje e angola.<br />
Hoje, compreendemos que estas divisões podem ser<br />
estabelecidas não só pelos aspectos linguísticos e<br />
geográficos, mas também por macro-padrões rituais,<br />
estéticos e plásticos, alimentares e performáticos.<br />
Podemos então dizer que a cultura criada nos<br />
terreiros e levada para fora desse espaço sagrado – a<br />
rua, a praça, o mercado – também pode ser<br />
diferenciada a partir destas divisões. Por exemplo,<br />
o jongo, o samba e suas várias vertentes têm uma<br />
de suas matrizes a partir dos candomblés de nação<br />
angola. O afoxé dos candomblés kétu. O tambor de<br />
crioula dos candomblés jeje, e assim por diante.<br />
O candomblé, historicamente levou para a rua<br />
indícios do sagrado, signos reconfigurados de<br />
objetos litúrgicos, vestimentas, músicas, cânticos,<br />
danças, alimentos. Os Maracatus de Pernambuco,<br />
por exemplo, já foram chamados de candomblés de<br />
rua, e dentre vários indícios do candomblé em sua<br />
performance temos a calunga, boneca negra vestida<br />
com peruca e roupas europeizadas que possui no<br />
seu interior elementos mágicos dos candomblés<br />
recifenses. Os Bumbá do Maranhão, dentre outros<br />
vários elementos, contam com o Cazumbá,<br />
personagem mascarado representando a fusão dos<br />
espíritos dos homens e dos animais. Os Afoxés de<br />
Salvador, Recife e Rio de Janeiro, também<br />
conhecidos como candomblés de rua com seus ìlù<br />
(atabaques), agogo (agogôs), sèkèrè (xequerês)<br />
percutindo o ritmo “sagrado” chamado ìjèsà (ijexá).<br />
Todos esses pequenos exemplos materiais,<br />
superficialmente acima descritos, nos mostram a<br />
influencia da cultura dos terreiros de candomblé na<br />
rua. No espaço profano, os grupos levam em<br />
cortejo símbolos ressignificados que fazem a ponte<br />
e constroem o cordão umbilical entre eles e os<br />
terreiros. Todos os símbolos levados na rua<br />
possuem sentido e significado, não estão ali ao<br />
acaso ou simplesmente por sua beleza.<br />
Outro aspecto extremamente importante ao levar<br />
elementos do espaço sagrado ao profano é não<br />
desunir a dança, a música, o canto, estes são<br />
indissociáveis, pois constituem a trindade<br />
fundamental dessas expressões religiosas e não<br />
fazem nenhum sentido quando apresentadas<br />
separadamente.<br />
Claramente podemos visualizar estes<br />
aspectos nas apresentações públicas, por exemplo,<br />
do Afoxé Ilê Omo Dada, fundado em 1980 em São<br />
Paulo por Mãe Wanda de Oxum e Ogan Gilberto de<br />
Exu ou do Afoxé Omo Oruminlá, fundado em 1994<br />
por Pai Paulo Cesar Pereira, em Ribeirão Preto.<br />
Esses grupos fazem o candomblé na rua<br />
com todo o cuidado e entendimento desta cultura,<br />
afinal, ambos estão ligados diretamente à terreiros<br />
de candomblé.<br />
Vemos hoje, em São Paulo, grupos de<br />
teatro e dança, coletivos de artes visuais, blocos<br />
musicais, artistas plásticos, espaços culturais,<br />
usarem elementos do candomblé em seus<br />
espetáculos e apresentações.<br />
página 39
A maneira como alguns destes grupos<br />
realizam suas apresentações não leva em<br />
consideração a importância religiosa dos<br />
significados sagrados das cores, plasticidades,<br />
melodias e gestos.<br />
O uso em uma apresentação teatral de<br />
Sàngó (Xangô) identificado com Édipo ou Oya<br />
(Iansã) com Medeia parece-nos um absurdo visível.<br />
Uma das primeiras justificativas para isso seria a<br />
liberdade poética. Encontramos uma confusão. Uma<br />
liberdade poética com o olhar a partir da<br />
personagem grega. Sàngó é patrimônio dos<br />
candomblés de nação kétu, por isso a comparação<br />
deveria ser feita a partir dele. O deus da família, do<br />
fogo, do trovão, dos justos. Seu arquétipo<br />
sociocultural e sua complexidade só fazem sentido<br />
quando Sàngó for olhado a partir do seu contexto.<br />
Outro exemplo da falta de compreensão é<br />
um grupo de dançarinos, vestidos com roupas e<br />
insígnias dos orixás fazendo na rua o jinka e o ilà<br />
(ilá).<br />
O jinka é o movimento corporal de curvar o<br />
tronco e os joelhos e chacoalhar levemente os<br />
ombros. O ilà é um brado individual, uma saudação,<br />
a representação sonora de quem ele é, sua marca.<br />
Tanto o jinka quanto o ilà são atos realizados<br />
somente pelos òrìsà (orixás) quando em transe em<br />
seus iniciados, nos “terreiros” e em certos<br />
momentos sacros.<br />
Como é possível um bailarino que não está<br />
em transe de seu òrìsà, não está no espaço ou<br />
momento sagrado, possa fazer o jinka e o ilà na rua,<br />
em praça pública, ou no teatro. Isso é inspiração?<br />
Parece-nos que é uma mudança radical de contexto<br />
e sentido. Inspiração nas performances do jinka e do<br />
ilà seria se o bailarino sugerisse estes elementos em<br />
sua apresentação e não sua repetição fidedigna.<br />
Inúmeros cânticos sagrados do candomblé<br />
são entoados por grupos e artistas. Parece-nos que a<br />
maioria deles não sabe diferenciar o que é permitido<br />
sair do sagrado (terreiro) para o contexto profano.<br />
Genericamente um dia de festa de<br />
candomblé de nação kétu é dividida em seis grandes<br />
momentos. O primeiro chama-se ìpàdé (ípadê), um<br />
rito privado aos filhos do terreiro, que ocorre horas<br />
antes da festa no qual se louva e oferta o òrìsà Èsù<br />
LEONARDS LACIS<br />
(NARDS)<br />
Grafiteiro ilustrador e arte-educador.<br />
O graffite é meu melhor, a «ilustra» minha paixão, e a<br />
educação minha forma de viver...<br />
Amo o que faço, com altos e baixos, mas feliz por me sentir<br />
um pouco livre...<br />
www.flickr.com/leonards_lacis<br />
www.facebook.com/leonardslacis<br />
(Exu) e os ancestrais masculinos e femininos. O<br />
segundo inicia a festa pública, uma abertura, um<br />
prólogo, onde todos os filhos presentes trocam<br />
saudações e cumprimentos. O terceiro chamado de<br />
siré (xirê), onde cantigas de saudação geralmente<br />
introduzem a história de cada divindade e não há<br />
transe de nenhum òrìsà. O siré de fato é uma<br />
louvação, uma lembrança musicada. A palavra siré<br />
do yorùbá significa brincadeira ou festa. No quarto<br />
momento são entoados cânticos para propiciar o<br />
transe de determinados orixás. O quinto momento é<br />
página 40
grupos tradicionais de afoxé ou artistas como<br />
Caetano Veloso, Maria Bethania, Leci Brandão,<br />
Fabiana Cozza, entre outros, cantarem em suas<br />
apresentações. Para os terreiros de candomblé, são<br />
essas músicas que podem sair dos terreiros.<br />
Outros cânticos detêm uma sacralidade<br />
maior, pois são entoados em momentos específicos,<br />
por exemplo, para propiciar o transe no iniciado.<br />
Como o povo de santo fala, são cânticos para “fazer<br />
o òrìsà virar”. É o ápice numa festa pública de<br />
candomblé. O momento onde há a ligação entre os<br />
dois mundos, o material e o imaterial.<br />
Porque então escutamos no meio da rua outro grupo<br />
cantar “gbáà yìí l'àse onílá lòkè ...” ? Este cântico é<br />
pronunciado para gerar o transe de um iniciado no<br />
momento certo e no espaço sagrado do terreiro.<br />
Estas cantigas não poderiam sair do seu contexto.<br />
Estes são apenas alguns exemplos da<br />
confusão feita pelos grupos e artistas e não<br />
repelidas pelos iniciados e sacerdotes do candomblé<br />
em São Paulo.<br />
Afinal, vários artistas conseguiram a<br />
inspiração no candomblé sem ferir ou deturpar sua<br />
cultura. Temos vários exemplos onde a ponte entre<br />
o candomblé e rua foram feitos de maneira<br />
primorosa. O título Barravento de um dos filmes de<br />
Glauber Rocha, ou o Teatro Oficina, em São Paulo,<br />
projetado por Lina Bo Bardi são alguns destes<br />
exemplos.<br />
O caminho não é a busca da pureza, o tradicional<br />
também não deve ser entendido como algo<br />
imutável, não podemos justificar este uso indevido<br />
com o grande manto da diversidade.<br />
Podemos indicar um caminho onde, de fato, haja<br />
inspiração na cultura negra do candomblé com<br />
liberdade poética, inspiração e contexto.<br />
JOSÉ PEDRO DA SILVA NETO<br />
chamado popularmente de hun (rum), os cânticos<br />
são entoados para o òrìsà, vestido com suas roupas<br />
de gala e portando suas “jóias” e símbolos<br />
sagrados. Neste momento, é contada a história de<br />
cada divindade e seus feitos. Os cânticos possuem<br />
uma ordem, com começo, meio e fim. Um é<br />
complemento do outro, não possuem sentido se<br />
cantados separadamente. No sexto momento são<br />
entoados cânticos para Obàtálá (Oxalá) e para o<br />
encerramento da festa pública.<br />
As cantigas de siré são as que vemos<br />
Cientista Social PUC-SP, Pesquisador em Antropologia das<br />
Populações Afro-Brasileiras, membro do Núcleo de Relações<br />
Raciais, Memória e Imaginário do PEPG-PUC-SP. Produtor<br />
cultural e consultor especialista em adequação de projetos<br />
para editais, leis de incentivo municipais, estaduais e<br />
federais, é Diretor de Projetos da Campomare Produções,<br />
Diretor da Etu Comquem Pesquisa e Produção, Diretor do<br />
Fórum para as Culturas Populares e Tradicionais e Diretor da<br />
FUNACULTY – Fundação de Apoio a Cultura e a Tradição<br />
Yorubana no Brasil.<br />
Foi assistente de projetos na Fundação Tide Setubal,<br />
coordenador do Centro Cultural do Jabaquara / Acervo da<br />
Memória e do Viver Afro-Brasileiro – SMC e membro do<br />
Conselho Municipal de Cultura da cidade de São Paulo,<br />
como documentarista recebeu em 2005 o 1º Prêmio<br />
Palmares de Comunicação – MINC pela direção do<br />
documentário Iyalode – Damas da Sociedade.<br />
É Ogan iniciado no Ilé Àse Palepa Mariwo Sesu – SP<br />
(fundado em 1979) dirigido por Ìyà Sessu, e neto do Ilé Àse<br />
Ode Kitálesi – SP (fundado em 1976) dirigido por Bàbá Aulo<br />
Barretti Filho.<br />
E-mail:<br />
inatoby@hotmail.com<br />
Currículo Lattes:<br />
http://lattes.cnpq.br/0558573375443892<br />
Blogs:<br />
http://campomare.blogspot.com.br/<br />
http://funaculty.blogspot.com.br/<br />
página 41
página 42<br />
Quando o avistou na janela, o garotinho não teve<br />
dúvidas: é ele! - colocou em baixo do braço a velha<br />
bola que rolava nos pés e zaz!, como um foguete,<br />
desesperou-se atrás do ônibus.<br />
- Edson!, gritou a mãe que amamentava a mais<br />
nova, encostada à calçada da avenida mais<br />
movimentada da cidade.<br />
Deu de ouvidos... Na cabeça só a imagem daquela<br />
onírica figura que, num relance de segundos, encheu<br />
todo o seu coraçãozinho de esperança.<br />
Corria cambaleante, com dois olhos grandes e as<br />
incríveis canelinhas finas. Corria bem, sempre fora<br />
o mais rápido entre a molecada do Centro. Por isso<br />
não desistia; ainda que percebendo a distância<br />
aumentar; mesmo ouvindo os gritos dos que<br />
ficavam para trás, “hei pretinho!, tá maluco?”; nada,<br />
absolutamente nada poderia desviá-lo... Verdade é<br />
que fraquejou por um instante e pensou em voltar à<br />
mãe que, a esta altura, já deveria estar maluca de<br />
tantos gritos; até mesmo por perceber que não<br />
alcançaria aquele ônibus - não com um par de<br />
canelas finas, curtas, cheias desses machucados de<br />
moleque arisco... Mas era o seu dia de sorte, claro<br />
que era!, e o coletivo que parecia sumir no horizonte<br />
parou no primeiro ponto mais à frente.<br />
O garotinho tomou fôlego, extremamente necessário<br />
à boca seca e ao pulmãozinho ofegante, mas não<br />
parou: o ponto estava lá, só a algumas passadinhas...<br />
Torcia para que aquele homem descesse, para que o<br />
Menino-deus concedesse um milagrezinho, só um.<br />
O sapato preto e brilhante surgiu na porta traseira do<br />
ônibus e à sua frente o milagre lhe sorriu como um<br />
doce têta-de-nêga no altar. Não perdeu tempo,<br />
aproximou-se com a cabeça meio baixa, a bola<br />
enganchada no sovaco e os pés se arrastando no<br />
cimento.<br />
Reparando-o bem, de perto e corpo inteiro, embora<br />
muito elegante (maleta preta de couro pra guardar<br />
troféus, gravata e tudo!), teve a completa certeza: é<br />
o Rei!. Se bem que na tevê ele parecia maior, mais<br />
forte; mas tevê é assim mesmo, nunca é o que é na<br />
verdade, pensou... Lembrou da primeira vez que o<br />
viu na lanchonete do Português, num daqueles dias<br />
em que ganhava por recompensa, ou dó mesmo, um<br />
prato cheio de comida! Lá, todos podiam ver tevê à<br />
vontade sem pagar nada a mais, e sempre passava<br />
futebol. A hora do almoço é a hora do futebol!<br />
Nesse dia passaram muitos gols antigos, da época<br />
em que nem existiam cores; muitos gols do Rei e de<br />
outros, mas os mais bonitos eram os do rei, que era<br />
o melhor e, por isso, claro, era o Rei! Desde então,<br />
sempre fora o Rei nas brincadeiras de bola. Sonhava<br />
em ser um jogador como o Rei: o melhor de todos e<br />
de todo o universo! Por isso a gargantinha secava,<br />
as perninhas bambeavam, agora que se via ali tãotão<br />
pertinho.<br />
Ainda ofegava quando cutucou aquele homem<br />
apressado e de aparência séria.<br />
- Pode me dar um autógrafo?, disse gaguejando,
estendendo o capotão quase sem couro.<br />
- Eu?, sorriu o homem... Quem o senhorzinho acha<br />
que sou?<br />
- Oras, o Rei Pelé, é claro!<br />
Agachando-se, esfregou a palma da mão na<br />
cabecinha careca do garoto. Reparou nos pés<br />
descalços, no shortezinho rasgado, na camisetinha<br />
suja e manchada, nos olhinhos enormes e<br />
brilhantes.<br />
- Eu vi todos os seus gols! Aquele de cabeça,<br />
assim!, aquele de chapeuzinho, o outro de...<br />
- Olha filho, acho que...<br />
- Por favor!, interrompeu o garotinho, marejando os<br />
olhos... Eu sou o seu maior fã do mundo inteiro!<br />
Aqueles olhos - aqueles olhinhos esbugalhados! -<br />
desconcertou por completo a alma daquele homem.<br />
Vacilante, olhou para os lados sem saber ao certo o<br />
que dizer. Via sonhos naqueles olhos; sentia-se<br />
responsável por todos.<br />
- Quando eu crescer, também quero ser um jogador<br />
assim como o senhor... E todos vão me ver na tevê,<br />
e com cores! Só não vou ser rei, porque o senhor já<br />
é o Rei... Eu posso ser assim, menos que um rei.<br />
- Um príncipe, disse o homem.<br />
- É... O Príncipe do Futebol!, completou, abrindo as<br />
janelas dos dentes.<br />
O homem combinou alguns números, desfez o<br />
segredo do cadeado na maleta, retirou uma Bic e<br />
tomou a bola das mãos do garoto.<br />
- Meu nome é Dedé!<br />
“Para Dedé, um futuro de Pelé”, escreveu,<br />
devolvendo a bola timidamente.<br />
O garotinho saiu correndo, saltitante, vislumbrando<br />
a assinatura do Rei!<br />
Com pontadas dúbias no peito, o segurança preto<br />
do Bank Boston corria em direção contrária,<br />
atrasado para mais um dia invisível... Atrás de si,<br />
distanciando-se mais e mais, o garotinho chutou<br />
uma latinha de Coca-cola e gritou “goool!”.<br />
Depois, com a palma da mão no peito, tentou<br />
assoviar o hino nacional, imaginando a enorme<br />
bandeira da pátria subindo, flamulando no céu.<br />
WILLIAN<br />
DELARTE<br />
Autor do livro de poesia “Sentimento<br />
do Fim do Mundo” (Editora Patuá,<br />
2011), foi um dos vencedores do II<br />
e III Festival de Literatura da<br />
Faculdade de Letras da USP na<br />
categoria “Conto”. Graduado pela<br />
mesma faculdade, foi também<br />
finalista da 15ª edição do “Projeto<br />
Nascente” (USP).<br />
Editor da Rebosteio, escreve<br />
periodicamente no jornal<br />
“Conteúdo Independente”, e em<br />
seu blog:<br />
http://williandelarte.blogspot.com/<br />
página 43
O TREM DE MOGI A SÃO PAULO<br />
NÃO ANDA. NEM NÓS.<br />
Maranhense, nascido em 1954. Jornalista e poeta.<br />
Viveu em Pernambuco vários anos.<br />
Poemas do livro: Vá, vá ver como esses negros<br />
cultivam a mandioca - Ed. Rumo Gráfica Ltda. 1981<br />
BRANCO, UMA MODA QUE DESFIGURA<br />
Haverá um dia,<br />
não por vias naturais,<br />
em que ser branco<br />
estará inteiramente<br />
fora de moda.<br />
Aí, não caberão<br />
mais nos cabeções<br />
estilizados (um dia<br />
roupa de escravos)<br />
a «doença» política da raça,<br />
da cor da pele.<br />
E os trejeitos e<br />
balangandãs (um dia<br />
ornamento de escravos)<br />
não cumprirão uma ordem<br />
universal do capital.<br />
E os olhos verdes<br />
os olhos castanhos<br />
os olhos pretos<br />
os lábios róseos<br />
os cabelos escorridos<br />
o rouge não esconderão mais<br />
a liberdade das relações<br />
pessoais, impessoais dos homens<br />
das gentes que vão pelas ruas e,<br />
neste dia, estará<br />
falida a Helena Rubinstein.<br />
O trem vem de Mogi<br />
corta quintais expostos,<br />
braços articulando lavagens<br />
de pratos em girais<br />
ídolos e sobrecargas<br />
dos idealistas utópicos.<br />
O trem metalmente<br />
vai em frente, abarrotado<br />
de estudantes<br />
comprimindo o ar,<br />
as lesões das vozes<br />
que espatifam-se nas<br />
paredes galvanizadas.<br />
Imprensados, os corpos,<br />
as aspirações, maquinam<br />
os golpes futuros,<br />
à risca: ora dos ensinamentos<br />
de Paine, ora de Burke,<br />
ora da família, ora misticamente<br />
sob Mazzini. O trem, estômagos à mão<br />
vão-se... Os corpos enrijecem à mesma<br />
manhã sem futuro?<br />
Suas veias Mogi-São Paulo<br />
diariamente entopem na<br />
baixa dos motivos da volta.<br />
O trem se manda, a educação<br />
entre sutiãs, comprimem-se<br />
entre trilhos, que fremita,<br />
pernoita no abrir e fechar<br />
das bocas incoerentes das cidades.<br />
O trem, os estudantes,<br />
caminham para lados diferentes<br />
um, por certo, oxidará<br />
os outros esconderão<br />
por inocência ou excesso de zelo<br />
as provas reticências<br />
o trem, em seu percurso mesmo,<br />
sobre os mesmos ossos e sonhos presentes,<br />
quebra o ritmo das mãos<br />
abanando adeus e<br />
os estudantes, inocentemente, aquecem-lhe<br />
a veia mantida a óleo e fumaça.<br />
O ar não move-se,<br />
os olhares furtivos de desejos<br />
esvaem-se na perda dos abraços solitários.
PROTESTO<br />
Saurè irmãos, to livre há 120 anos,<br />
Mas meu encanto está se acabando.<br />
Caí na real que ainda não sou livre!<br />
Sonho com meu antigo lar. Lá nunca pisei,<br />
Mas um dia estarei lá.<br />
Seja em carne ou em espírito, já ouço,<br />
Escutem, ouçam!<br />
O barulho do atabaque que bate no meu<br />
peito e me lembro da onde veio.<br />
Olhem...<br />
Oxossi comandando Oyó<br />
Olorun com Oxalá no seu lar, no seu<br />
reino na raiz.<br />
Viva minha pátria Brasil,<br />
Que mata seus meninos lá no rio,<br />
Mas o branco ainda me diz que o problema<br />
é social.<br />
Viva o Brasil que estuprou minha bisavó,<br />
Matou meu bisavô e planeja meu fim.<br />
Na mão dos policiais ou pagando um irmão meu.<br />
Atitude de bandeirantes.<br />
Vichi! Vi esse nome esses dias,<br />
Jovens escravizados,<br />
Mas calma eu to inserindo o jovem no mercado<br />
de trabalho!<br />
Ato falho.<br />
Viva os negros bem sucedidos.<br />
O preto que morreu anônimo na senzala<br />
Não merece louvor ou medalha.<br />
Fecha a porta e entra pra dentro,<br />
O arrastão do gueto chegou;<br />
Guarde as louças, roupas, os favelados chegaram.<br />
Não, favelados é feio, fale morador de periferia.<br />
Maquiagem eu não quero,<br />
Deixo pra branca, pra gueixa,<br />
Que não se queixa, pois é a mulher negra que<br />
não é valorizada.<br />
Engraxates, empacotadores, traficantes e<br />
educadores,<br />
Coordenadores, poetas, músicos e artistas,<br />
Pacifistas ou marxistas.<br />
Não importa!<br />
Se for preto pra nós é diferente.<br />
Mas eu sou livre, tenho emprego,<br />
Empenho em fazer o bem para aquele que se<br />
parece comigo;<br />
Cabelo preto e crespo<br />
Nariz gordo, pele escura, com muita ou pouca<br />
melanina!<br />
AFRO SEMPRE...<br />
Brasileiro não me considero,<br />
Pois tudo aqui me lembra a África, duvida?<br />
Olho pro lado, sarau, berimbau, futebol,<br />
O sol, agricultura, minha pele escura, meu canto,<br />
O Rap, o samba, a tanga, a língua, a fala,<br />
Minha casa, meu Deus e Teu Deus!<br />
Vou falar com meu Deus africano, brasileiro de<br />
coração,<br />
Para que eu esteja aqui<br />
Quando assinarem a Alforria<br />
Educador Social, poeta e musico,<br />
coordenador de atividades do coletivo<br />
Literatura Suburbana.<br />
Lançou em 2009 o Livreto “Fechô no<br />
Gueto” com Carolzinha Teixeira, e<br />
lançou o CD “A Resistência” em 2009,<br />
a Mix Tape “InterPRETAação” em 2010,<br />
e no fim de 2011 lançou a Mix Tape<br />
Promo “Eternamente Break Dance” e o<br />
Livro "Amor Banto em Terras Brasileiras
TEM GENTE COM FOME<br />
GRAVATA COLORIDA<br />
Trem sujo da Leopoldina<br />
correndo correndo<br />
parece dizer<br />
tem gente com fome<br />
tem gente com fome<br />
tem gente com fome<br />
Piiiiii<br />
Estação de Caxias<br />
de novo a dizer<br />
de novo a correr<br />
tem gente com fome<br />
tem gente com fome<br />
tem gente com fome<br />
Vigário Geral<br />
Lucas<br />
Cordovil<br />
Brás de Pina<br />
Penha Circular<br />
Estação da Penha<br />
Olaria<br />
Ramos<br />
Bom Sucesso<br />
Carlos Chagas<br />
Triagem, Mauá<br />
trem sujo da Leopoldina<br />
correndo correndo<br />
parece dzier<br />
tem gente com fome<br />
tem gente com fome<br />
tem gente com fome<br />
Tantas caras tristes<br />
querendo chegar<br />
em algum destino<br />
em algum lugar<br />
Trem sujo da Leopoldina<br />
correndo correndo<br />
parece dizer<br />
tem gente com fome<br />
tem gente com fome<br />
tem gente com fome<br />
Só nas estações<br />
quando vai parando<br />
lentamente começa a dizer<br />
se tem gente com fome<br />
dá de comer<br />
se tem gente com fome<br />
dá de comer<br />
se tem gente com fome<br />
dá de comer<br />
Mas o freio de ar<br />
todo autoritário<br />
manda o trem calar<br />
Psiuuuuuuuuuuu<br />
Quando eu tiver bastante pão<br />
para meus filhos<br />
para minha amada<br />
pros meus amigos<br />
e pros meus vizinhos<br />
quando eu tiver<br />
livros para ler<br />
então eu comprarei<br />
uma gravata colorida<br />
larga<br />
bonita<br />
e darei um laço perfeito<br />
e ficarei mostrando<br />
a minha gravata colorida<br />
a todos os que gostam<br />
de gente engravatada...<br />
poeta recifense.<br />
“Tem Gente com Fome”<br />
foi musicado em 1975<br />
pelo grupo Secos &<br />
Molhados. A música<br />
foi proibida pela censura,<br />
sendo resgatada e gravada<br />
em 1980 por Ney Matogrosso,<br />
no álbum “Seu Tipo”. Mas, por<br />
causa deste poema, em 1944,<br />
Solano foi preso e teve<br />
o livro “Poemas de uma Vida<br />
Simples” apreendido.
ACROBATA DA DOR<br />
Gargalha, ri, num riso de tormenta,<br />
como um palhaço, que desengonçado,<br />
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado<br />
de uma ironia e de uma dor violenta.<br />
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,<br />
agita os guizos, e convulsionado<br />
salta, gavroche, salta clown, varado<br />
pelo estertor dessa agonia lenta ...<br />
Pedem-se bis e um bis não se despreza!<br />
Vamos! retesa os músculos, retesa<br />
nessas macabras piruetas d'aço. . .<br />
E embora caias sobre o chão, fremente,<br />
afogado em teu sangue estuoso e quente,<br />
ri! Coração, tristíssimo palhaço.<br />
DANÇA DO VENTRE<br />
Torva, febril, torcicolosamente,<br />
numa espiral de elétricos volteios,<br />
na cabeça, nos olhos e nos seios<br />
fluíam-lhe os venenos da serpente.<br />
Ah! que agonia tenebrosa e ardente!<br />
que convulsões, que lúbricos anseios,<br />
quanta volúpia e quantos bamboleios,<br />
que brusco e horrível sensualismo quente.<br />
O ventre, em pinchos, empinava todo<br />
como réptil abjecto sobre o lodo,<br />
espolinhando e retorcido em fúria.<br />
Era a dança macabra e multiforme<br />
de um verme estranho, colossal, enorme,<br />
do demônio sangrento da luxúria!<br />
nasceu em Desterro, atual<br />
Florianópolis. Filho de escravos<br />
alforriados. Foi educado na melhor<br />
escola secundária da região.<br />
Sofre uma série de perseguições<br />
raciais, culminando com a proibição<br />
de assumir o cargo de promotor<br />
público em Laguna, por ser negro.<br />
Em 1890 vai para o Rio de Janeiro.<br />
Morre aos 36 anos de idade,<br />
vítima da tuberculose, da pobreza e,<br />
principalmente, do racismo e da<br />
incompreensão.<br />
ENCARNAÇÃO<br />
Carnais, sejam carnais tantos desejos,<br />
carnais, sejam carnais tantos anseios,<br />
palpitações e frêmitos e enleios,<br />
das harpas da emoção tantos arpejos...<br />
Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,<br />
à noite, ao luar, intumescer os seios<br />
láteos, de finos e azulados veios<br />
de virgindade, de pudor, de pejos...<br />
Sejam carnais todos os sonhos brumos<br />
de estranhos, vagos, estrelados rumos<br />
onde as Visões do amor dormem geladas...<br />
Sonhos, palpitações, desejos e ânsias<br />
formem, com claridades e fragrâncias,<br />
a encarnação das lívidas Amadas!
Nossa<br />
rainha<br />
Do livro Contos Negreiros, Ed. Record, 2005.<br />
Mãe, eu quero ser Xuxa. Mas minha filha. Eu<br />
quero ser Xuxa. A menina não tem nem nove<br />
anos, fica tagarelando com as bonecas. Com<br />
as pedras do Morro. Eu quero ser Xuxa. Mas<br />
minha filha.<br />
A mãe ia fazer um book, como? Viu no jornal<br />
quanto custa. Perguntou ao patrão, no Leblon.<br />
Um absurdo! Ia bater na porta da Rede<br />
Globo? Nunca.<br />
A menina parecia uma lombriga. Porque<br />
nasceu desmilinguida. Mas vivia dizendo, a<br />
quem fosse: eu quero ser Xuxa. Que coisa!<br />
Que doença! Ainda era muito pequena. Eu<br />
quero ser Xuxa.<br />
Quem não pode se acode.<br />
A mãe já vivia da ajuda do povo. Mas tinha<br />
de levar a menina ao cinema. Toda vez que<br />
aparecia um filme novo. O que a Xuxa tá<br />
pensando? O que o padre Marcelo tá<br />
pensando? Que tanto disco à venda, que tanto<br />
boneco, que tanta prece! Tenha santa<br />
paciência.<br />
O padre Marcelo a mãe trocou por um Paide-santo.<br />
Esse, pelo menos, só me pede umas<br />
velas. De quando em quando, uma galinha<br />
preta. Que eu aproveito e levo daqui, quando<br />
tem réveillon. Despacho de rico só tem o que<br />
é bom. Mas a menina não tem jeito. É uma<br />
paixão que não tem descanso.<br />
Eu quero ser Xuxa. Eu quero ser Xuxa. Eu<br />
quero ser Xuxa. Um dia eu esfolo essa<br />
condenada. Deus me perdoe. Essa danada da<br />
Xuxa. Dou uma surra nela pra ela tomar<br />
jeito. Fazer isso com filha de pobre. Que<br />
horror!<br />
A mãe mal chegou do trabalho a menina já<br />
falou. Que a Xuxa vem esse final de semana.<br />
O que ela vem fazer no Morro?, a mãe<br />
perguntou. Se a Xuxa que eu conheço aqui é<br />
só você, querida. Alisou a cabeça da maldita,<br />
deu um abraço cego e mandou dormir.<br />
Maldita, sim. Quem disse que a danada foi<br />
pra cama? Puta que pariu!<br />
A mãe tinha de faltar ao trabalho de novo.<br />
Tinha medo que a filha tivesse um troço. Se<br />
jogasse debaixo do carro, sei lá. Fosse<br />
pisoteada, que remorso! Eu não. Mãe que é<br />
mãe acompanha a vida no dia mais feliz da<br />
sua vida.<br />
Pendurou a menina nas costas e enfrentou o<br />
calor. E o empurra-empurrão. E também<br />
gritou para ver se a Xuxa ouvia: Xuxa, Xuxa,<br />
Xuxa. Pelo amor de deus! Faz essa menina<br />
calar a boca. Diz pra ela pensar em outra<br />
coisa, sonhar com os pés no chão.<br />
Quando ela vai ser, assim como você, um<br />
dia? A Rainha dos Baixinhos nossa Rainha<br />
da Bateria, sei não, sei lá.<br />
O Morro nessa euforia, todo mundo doido<br />
para vê-la sambar.<br />
foto de Renato Parada<br />
MARCELINO FREIRE nasceu<br />
em 1967 em Sertânia, PE.<br />
Viveu no Recife e, desde 1991,<br />
reside em São Paulo. É autor,<br />
entre outros, de "Contos<br />
Negreiros" (Editora Record -<br />
Prêmio Jabuti 2006) e de "Amar<br />
É Crime" (Edith - visiteedith.com).<br />
É criador e articulador da<br />
Balada Literária em São Paulo.<br />
Para saber mais sobre autor e<br />
obra, acesse:<br />
marcelinofreire.wordpress.com<br />
página 48
Hip hop desenvolveu-se como uma manifestação<br />
cultural e artística que teve início na década de 1970<br />
nas áreas urbanas de comunidades jamaicanas,<br />
latinas e afro-americanas da cidade de Nova Iorque.<br />
Afrika Bambaataa, DJ norte americano e líder da<br />
Zulu Nation, reconhecido oficialmente como o<br />
criador do movimento, definiu como os quatro<br />
pontos básicos na cultura hip hop o rap, o DJing, a<br />
breakdance e o grafite. Outro elemento marcante é a<br />
comunicação em uma linguagem repleta de gírias.<br />
Desde seu surgimento no South Bronx, a cultura hip<br />
hop se espalhou pelo mundo. Mais tarde foi<br />
introduzido o rap (Rhythm and Poetry), estilo<br />
musical identificado com ritmo e poesia, cantado de<br />
uma meneira quase falada e discursiva, resgatando a<br />
tradição do talking blues, para acompanhar os<br />
efeitos dos DJs. Em sincronia, formas diferentes de<br />
danças improvisadas surgiram, como a breakdance,<br />
o popping e o locking. A relação entre o grafite e o<br />
hip hop surgiu como mais uma das expressões<br />
artísticas da cultura de rua, onde já se praticava as<br />
outras modalidades do movimento.<br />
South Bronx experimentou mudanças radicais<br />
durante a década de 60 em razão das construções<br />
urbanas sem qualquer planejamento (vias expressas<br />
e complexos de apartamentos populares)<br />
desvalorizando o bairro. A classe média,<br />
predominantemente de origem européia, mudou-se<br />
em função dessa desvalorização.<br />
Os afro-americanos mais pobres e famílias<br />
hispânicas passaram a se estabelecer no local, onde<br />
a pobreza crescente e o desemprego levaram ao<br />
aumento dos problemas ocasionados pelas drogas e<br />
violência. Em fins da década grupos de jovens<br />
passaram a aterrorizar o bairro, dando origem a<br />
diversas gangues que dominariam o Bronx. O auge<br />
da criminalidade dessas gangues adentrou o início<br />
dos anos 70.<br />
Mas os tempos estavam mudando, as gangues<br />
estavam se auto destruindo e os jovens estavam<br />
buscando novas formas de inserção e diversão, não<br />
querendo mais se envolver com esses grupos e sim<br />
com um movimento cuja idéia básica era ter<br />
atividades e competir com criatividade.<br />
Nesse contexo surge o Hip-Hop, desenvolvendo<br />
seus elementos e inspirando um número maior de<br />
pessoas. Cada um criava seu estilo próprio, sem<br />
imitar os outros, norteados pelos valores da Paz,<br />
unidade, amor e diversão.<br />
O berço do hip hop brasileiro é São Paulo, onde<br />
surgiu com força nos anos 1980, dos tradicionais<br />
encontros na rua 24 de Maio e no Metrô São<br />
Bento, de onde saíram muitos artistas como<br />
Thaíde, DJ Hum, Styllo Selvagem, Região Abissal,<br />
Nill (Verbo Pesado), Sérgio Riky, Defh Paul, Mc<br />
Jack, Doctor MC's, Shary Laine, M.T. Bronks,<br />
Rappin Hood, entre outros. A maior expressão do<br />
rap nacional é o grupo Racionais MC's, liderados<br />
por Mano Brown, com canções de forte conteúdo<br />
social.<br />
Atualmente existem diversos grupos que<br />
representam a cultura hip hop no país, como Df<br />
Zulu Breakers (Brasilia-DF), Movimento<br />
Enraizados, MHHOB, Zulu Nation Brasil, Casa de<br />
Cultura Hip Hop, Posse Hausa (São Bernardo do<br />
Campo), Hip Hop Mulher, FNMH2, Nação Hip<br />
Hop Brasil, Associação de Hip Hop de Bauru,<br />
Cedeca, Cufa (Central Única das Favelas).<br />
A principal característica do hip-hop é a sua<br />
multidimensionalidade, sendo ele mais do que a<br />
soma dos seus elementos e tendo um significado<br />
social quando inserido e visto dentro do seu<br />
contexto. O movimento não se resume aos seus<br />
componentes separados: a dança, a música, as<br />
artes plásticas... suas origens afro-americanas dão<br />
essa dimensão múltipla que não pode ser vista de<br />
forma isolada. Dentro desta visão e<br />
contextualizado num ambiente de exclusão social,<br />
o hip-hop é vivenciado por muitos como um estilo<br />
de vida.<br />
página 49
O coletivo Essência é uma iniciativa de<br />
artistas independentes que exploram a<br />
importância da arte como instrumento de<br />
ganho comunitário e social, criando<br />
intercâmbios entre artistas de diferentes<br />
países. O grupo reúne o conhecimento de<br />
diferentes culturas como Brasil, Chile,<br />
Argentina, República Dominicana e Canadá,<br />
mas sempre abertos à integração de outros<br />
povos em seu meio.<br />
Tem raízes na arte urbana, que compreende<br />
muralismos, grafite e design gráfico. O<br />
grupo esteve presente na América, Europa,<br />
África e Oriente Médio, com oficinas<br />
comunitárias cuja experiência demonstra aos<br />
jovens que a arte pode romper fronteiras,<br />
preconceitos, ser uma forma de expressão,<br />
de geração de renda e conhecimento<br />
cultural, integrando-se e mantendo a própria<br />
ESSENCIA.<br />
Criadores:<br />
SHALAK www.shalakattack.com<br />
FIYA www.fiyafiya.blogspot.com<br />
AISHAA www.aishaazonaarte.blogspot.com<br />
Membros de Montreal:<br />
JAIME EMILIO<br />
MARIEL<br />
www.flickr.com/photos/marielrosenbluth/<br />
MALICIOUZ<br />
www.myspace.com/MaliciouzStyle<br />
EL-SEED www.elseed-art.com<br />
GENE PENDON www.genependon.com<br />
INDIEFOTOG<br />
MEDUZAH<br />
Membros do Brasil:<br />
CARECA BECO RS<br />
https://www.facebook.com/profile.php?id=1<br />
00000022397254<br />
JOTAPE<br />
YARAP
Veja os muros prontos:<br />
http://youtu.be/3kkHvINqufM<br />
BONGA<br />
https://www.facebook.com/profile.php?id=1<br />
569992082<br />
SMOKY<br />
https://www.facebook.com/profile.php?id=1<br />
00000184215899<br />
Página do Coletivo:<br />
https://www.facebook.com/groups/1638588<br />
80297650/<br />
Tambor de tinto timbre<br />
tanto tom tocou<br />
A pele permeável dos muros foi colorida de<br />
ponta a ponta e fez a ligação re-vestindo o<br />
mundo externo com a música e a dança.<br />
Novas cores. Múltiplas linguagens.<br />
Houve um break. A chuva lavou todas as<br />
diferenças. Rap. Repentinamente parou.<br />
A arte traduzia a torre de babel dos idiomas<br />
sobre escadas, pallets e cadeiras.<br />
Spray. Splash. Espreitam o abraço. Ele vem!<br />
Bonga é tudo de bom... é o boom do Brasil<br />
nas paredes! Kemp, quem precisa de mais<br />
atitude? Teu ato são cores e gestos. É legal<br />
ser negão no Senegal, e também em Perús.<br />
Fiya, flauta mágica do Canadá, com ventos<br />
do Chile. Conventos não são para bruxas. Yo<br />
creo!<br />
Outros tantos nomes e mochilas pela<br />
calçada. Histórias. Irmandade.<br />
Noite. No corpo que quebra as leis da<br />
gravidade – break – grávido de som é<br />
possível gravitar.<br />
Eletrônico o som. Ele tronco e membros no<br />
ar.<br />
Quilombaque. Tinha que ser lá!<br />
No mais, imagens e lembranças.<br />
Impressões:<br />
Mercedes e Rubens, em 01/04/2012
fotos: mercedeslorenzo
Eu vou aproveitar este espaço para confessar uma<br />
autocrítica feita há tempos. A minha visão da<br />
cultura padecia de um incômodo, talvez ingênuo,<br />
idealismo filosófico que não cedia de boa vontade<br />
ao multiculturalismo de raízes antropológicas. Não<br />
por ser propriamente um 'eurocentrista', mas por<br />
almejar algum tipo universal de valor cultural<br />
abstrato que possibilitasse colocar lado a lado,<br />
digamos, Bosch e algum artista contemporâneo.<br />
Pretensões assim, em geral, buscam intersecções<br />
forçadas, e fazem pouco caso dos contextos<br />
históricos, das particulares expressões étnicas, das<br />
identidades culturais, dos conflitos políticos que<br />
permeiam a cultura. Bem, com o tempo mudei a<br />
minha visão ao me dar conta de que meu<br />
relativismo antimetafísico precisava ser coerente<br />
com a percepção das diferenças concretas, atuantes<br />
no mundo.<br />
Neste momento, estou vendo o belo quadro Morro<br />
Vermelho, de Lasar Segall; esse cara, judeu lituano<br />
de origem pobre que presenciou os pogroms, mais<br />
tarde naturalizado brasileiro, parece ter retratado<br />
essa negra com seu filho, provavelmente de alguma<br />
comunidade do Rio, na típica postura que evoca<br />
uma madona do Renascimento, como as de um<br />
Rafael, um Leonardo, etc. Que beleza esse tipo de<br />
confluência, não?<br />
Mas citei propositalmente esse quadro para suscitar<br />
uma pergunta: se ele fosse pintado por um negro, e<br />
não por um branco oriundo da Europa Oriental,<br />
estaria inserido na Cultura Negra? Certamente que<br />
não, tal como Cruz e Sousa e Machado de Assis não<br />
fazem parte dela. Digo isso apenas para fazer notar<br />
a existência de certa mentalidade, típica consciência<br />
apaziguadora, que transparece com frequência em<br />
alguns discursos sobre a Cultura Negra, e que a<br />
focam especificamente como influência, não<br />
frisando de sua autonomia e identidade, existência e<br />
ação. Algo equivalente a considerá-la relevante<br />
apenas do ponto de vista da miscigenação, do<br />
sincretismo, com alguma perda de identidade, como<br />
se a recuassem para a posição de objeto, e não<br />
tomada como ação de sujeitos atuantes e criativos.<br />
Penso, por exemplo, no caso de um carioca como eu<br />
que pode apreciar o samba de posse da informação<br />
formal de que ele representa algo da Cultura Negra,<br />
mesmo quando produzido por brancos, sem se dar<br />
conta do alcance real, vivo, e atuante dessa<br />
representação.<br />
Hoje compreendo perfeitamente que não há como<br />
separar da cultura negra um caráter combativo,<br />
afirmativo, expressão de uma consciência que<br />
inclui reflexos inevitáveis das condições históricas<br />
que nela interferiram e ainda interferem sob a<br />
forma de um contexto social. E quanto há de<br />
vitalidade nessa atuação, que além de produção de<br />
saber, de criação estética, de preservação de<br />
heranças, é também demanda afirmativa, crítica,<br />
reivindicativa por reconhecimento de espaço;<br />
contrapondo uma tensão necessária ao mito<br />
cômodo da democracia racial que vige entre nós!<br />
Não são essas, características de uma cultura viva<br />
que requer distinção real como co-formadora<br />
vigorosa do nosso Ethos, não se coformando em ser<br />
absorvida como mera influência secundária na<br />
nossa formação?<br />
“Fitai vossos olhos inamovíveis sobre os vossos<br />
filhos, aos quais se ordena<br />
Que deem a vida como o pobre sua derradeira<br />
veste<br />
Que respondamos “presente” ao renascer do<br />
mundo,<br />
Qual fermento necessário à farinha branca<br />
Pois quem ensinaria o ritmo ao falecido mundo das<br />
máquinas e dos canhões?<br />
Quem daria o grito de alegria para despertar<br />
mortos e órfãos à aurora?<br />
Dizei, quem poderia restituir a memória da vida ao<br />
homem desesperançado?<br />
Chamam-nos homens do algodão, do café, do óleo,<br />
Chamam-nos homens da morte<br />
Somos os homens da dança, cujos pés se revigoram<br />
ferindo o rude chão!”<br />
(Leopold Sedar Senghor, Oração às Máscaras)<br />
***<br />
“Olá, Negro! O dia está nascendo!<br />
O dia está nascendo ou será a tua gargalhada que<br />
vem vindo?<br />
Olá, Negro!<br />
Olá, Negro!”<br />
(Jorge de Lima, in Poemas Negros)<br />
Natural do estado do Rio de Janeiro, é<br />
artista plástico e poeta (ainda não editado).<br />
Escreve nos blogs Diário Extrovertido<br />
http://diarioextrovertido.blogspot.com/<br />
e O Azul Temporário<br />
http://azultemporario.blogspot.com/<br />
MARCANTONIO Seus trabalhos em artes plásticas podem<br />
COSTA ser vistos no blog-portfólio<br />
Cadernos de Arte<br />
http://cadernosdearte.wordpress.com/<br />
página 54
Movimento Literário Kuphaluxa<br />
Distam-se dois anos do longínquo 2009, ano em<br />
que foi criado o Movimento Literário Kuphaluxa,<br />
um grupo de leitores e escritores em formação,<br />
que visa divulgar a literatura moçambicana,<br />
brasileira e de outros países de expressão<br />
portuguesa, bem como a promoção de novos<br />
autores, de modo a tornar possível o sonho de se<br />
ter um Moçambique literário.<br />
A infinitude da missão encabeçada por jovens,<br />
que se designam leitores, no imperfeito tema que<br />
se chama Literatura Moçambicana, na situação<br />
em que ainda não se sabe definir, revela a outra<br />
face duma faixa etária tida como¯problemática!,<br />
não só em Moçambique, mas também em outras<br />
terras.<br />
Contudo, essa massa que move-se por um<br />
fenómeno esquisito, inverso de um verso, ilusório<br />
que se chama “vontade”, tomou as forças, ainda<br />
que num número ínfimo, para encontrar respostas<br />
e caminhos de tornar Moçambique um país de<br />
leitores e de cidadãos culturalmente activos e<br />
proactivos.<br />
Aliás, esses caminhos, na tentativa de encurtálos,<br />
moldá-los ao estilo moçambicano, ¯ cortamato”,<br />
acabamos nos envolvendo em outras<br />
alegações, como as questões ligadas à qualidade<br />
de ensino e principalmente do formando.<br />
Então abandonamos a nobre sala do Centro<br />
Cultural Brasil – Moçambique e imigramos para<br />
as escolas secundárias, numa viagem, em que<br />
tivemos a ousadia de induzir também escritores.<br />
Paulina Chiziane foi a nossa primeira vítima, ao<br />
aceitar com poucos conhecimentos sobre nós,<br />
deslocar-se para uma escola tão distante do<br />
centro da cidade, Escola Secundária de<br />
Malhazine, no bairro com mesmo nome. Sem<br />
entrar em detalhes, a escritora, tomou conta do<br />
recado. Ensinou e encenou aos estudantes. Ainda<br />
ofereceu um exemplar de Niketche à escola, para<br />
nossa surpresa.<br />
página 55
Paulina deixou à escola, um ensinamento que não<br />
me esqueço: encontramos a palavra em tudo o<br />
quanto nos rodeia. Nos livros, até de Matemática,<br />
Química, Física entre outros. Por isso dominar a<br />
palavra é a única alternativa que se pode ter para<br />
singrar em horizontes perfeitos. Por isso, não se<br />
justifica, que uma biblioteca escolar tenha apenas<br />
livros de interesse das ciências exactas. Há que<br />
considerar a ciência da arte. O imaginário que<br />
leva o homem ao mundo da criatividade.<br />
Mas continuando nas vítimas. De seguida, vieram<br />
os escritores Marcelo Panguana, Ungulani Ba Ka<br />
Khosa, Juvenal Bucuane que também,<br />
engrossaram-se da retórica destes miúdos que não<br />
se sabiam as suas origens. Aliás, Juvenal Bucuane<br />
chegou a oferecer cerca de 15 livros à Escola<br />
Secundária Nossa Senhora de Livramento, na<br />
Matola.<br />
A escritora Lília Momplé entrou na lista dos<br />
escritores que partilharam seus saberes com<br />
aspirantes. Muitas vezes a escritora, chegou a<br />
reclamar de cansaço pela idade, mas nunca<br />
cansada de ensinar, por isso a todos nossos<br />
chamamentos, dizia incodicionalmente ¯Sim!.<br />
O facto de estarmos sediados no Centro Cultural<br />
Brasil – Moçambique e apadrinhados pelo actual<br />
detentor do “Prémio Nobel da Literatura<br />
Moçambicana”, ou, se quiserem, ¯Prémio José<br />
Craveirinha, o maior Prémio da literatura em<br />
Moçambique, contribuiu para a credibilidade do<br />
movimento. Refiro-me ao Calane da Silva.<br />
Eterno cúmplice deste movimento que nasceu em<br />
suas mãos. Acolheu e deu amor de mãe no lugar<br />
de barbas de pai.<br />
Mas ainda não se cumpriram as menções no<br />
assunto ¯Literatura nas Escolas. Luís Carlos<br />
Patraquim, também fora nossa vítima nesse<br />
projecto. Destinávamos a sua presença, à Escola<br />
Secundária da Zona Verde e infelizmente, o<br />
homem escapou. Não tínhamos dinheiro para<br />
alugar uma viatura para cumprir com o sequestro.<br />
Como diz-se nesta geração [da vi(r)agem],<br />
barracou.<br />
Depois, veio a escritora brasileira Ana Rusche,<br />
que conhecia Moçambique pela primeira vez. E<br />
pela primeira vez, levamos um escritor a uma<br />
escola técnica. Levamos Ana Rusche para Escola<br />
Industrial 1° de Maio, em Maputo. De seguida,<br />
mais um escritor pelas águas do Atlântico veio a<br />
desaguar no Índico e levamo-lo à Escola<br />
Secundária Francisco Manyanga. Esse homem<br />
chama-se Rubervam Du Nascimento.<br />
Du Nascimento, ao estilo das suas missões na<br />
periferia da chamada Distanteresina, em Piauí,<br />
“pregou evangelhos” literários aos alunos da<br />
Manyanga e ensinou que ler é mais do que<br />
formar-se. É informar-se sobre o mundo e sobre<br />
si mesmo.<br />
Passando por essas vias rumo a consolidação dos<br />
nossos objectivos, ¯chegamos a parar na cadeia.<br />
Em 2010, ¯entramos na Cadeia Feminina de<br />
Ndlavela, no município da Matola, com a missão<br />
de conquistar mais leitores para a literatura<br />
moçambicana. Com apoio de editoras, reunimos<br />
livros e revistas que oferecemos às mulheres<br />
daquela instituição prisional.<br />
Ainda oferecemos livros infantis às crianças da<br />
Escola Comunitária Imaculada Conceição de<br />
Hulene.<br />
Avançamos. Andando pelas ruas de Maputo,<br />
vimos que há algo que esta cidade tem em quase<br />
todo o lado – as acácias. Isso nos incomodava.<br />
Decidimos invadir esse pomar de árvores sem<br />
frutos. Levamos connosco a poesia. Nossa e a<br />
dos já conhecidos e reconhecidos escritores. Eu,<br />
Mia Couto, Calane da Silva, disputávamos o<br />
espaço no Jardim Tunduro e na Rua da Rádio<br />
Moçambique, com mais de cinco defuntos<br />
proeminentes da poesia moçambicana: José<br />
Craveirinha nosso pai e a nossa mãe, Noémia de<br />
Sousa, o poeta vagabundo e desgraçado, morto<br />
pelas suas próprias harpas e farpas, Amin<br />
página 56
Nordine, Gulamo Khan rugindo aos sons do<br />
tombo no Mbuzini, Carlos Cardoso, entre outros.<br />
Pois é. Eles proeminentes e nós iminentes.<br />
Estavam lá outros vivos: Amosse Mucavele,<br />
Nelson Lineu, Francisco Júnior, Japone Arijuane,<br />
Mukurruza… Que com certeza não os conhecem.<br />
Pois. Esses jovens desconhecidos não pararam.<br />
Ainda surpreendem. Foram vencedores de um<br />
prémio Mundial de Poesia na Itália, venceram um<br />
concurso literário de crónicas, contos e poesia do<br />
Brasil e ainda barrabatissaram novamente os<br />
brasileiros, uma classificação no Prémio Poetize-<br />
2012, entre mais de 2.000 participantes.<br />
E são mesmo miúdos, estes?<br />
São o Movimento Literário Kuphaluxa.<br />
Dizem que Kuphaluxa - e soletro: K, U, P, H, A,<br />
L, U, X, A. Significa Disseminar. Mas disseminar,<br />
em Ronga, esse do Ka Mpfumo, é Kupaluxa - e<br />
soletro: K, U, P, A, L, U, X, A. Kuphaluxa sem H.<br />
Mas esta juventude, tal como outra juventude,<br />
tem os seus problemas e o seu maior problema,<br />
chama-se criatividade e inovação, por isso<br />
chamaram-se Kuphaluxa com H.<br />
Jovens que mais do que ensinar os outros a<br />
gostarem de ler, ensinaram a si mesmos a beber<br />
dos livros, os segredos da sabedoria. E hoje o<br />
verbo se encarna. Nascem novos autores.<br />
Participam em revistas, portais e antologias<br />
literárias, curiosa-mente, de fora do que dentro de<br />
Moçambique.<br />
Facto que nos leva a preocupação sobre os planos<br />
de incentivo e promoção da leitura em<br />
Moçambique, bem como de criação de espaços<br />
onde se incentive a escrita criativa e literária.<br />
Durante as visitas com escritores nas escolas,<br />
pudemos perceber que nem sempre cabe a razão<br />
a justificação ¯os jovens não lêem!, é<br />
importante que se criem condições e facilidades<br />
para que de facto, ler não seja um problema.<br />
Criar condições para se ler, não implica só, tornar<br />
o livro mais barato. Implica tornar o livro amigo<br />
do cidadão comum e acessível. Dar acesso, volto<br />
a repetir, não é baixar os preços exuberantes com<br />
que são vendidos os livros, é fazer com que a<br />
escola, as casas de cultura, as bibliotecas, sejam<br />
os pontos certos para se dar a conhecer o valor de<br />
uma obra literária e que lá, seja possível<br />
encontrar os livros para o consumo em tempos de<br />
lazer. Isso faz-me lembrar os projectos: Núcleos<br />
Escolares de Leitura, Literabrincando e<br />
Biblioteca Móvel, o Kuphaluxa saberá melhor<br />
implementá-los.<br />
Mas continuo apresentando e questionando sobre<br />
quem somos nós.<br />
Então já nos conhecem? Ainda não? Então<br />
explico já de forma resumida, mas com bons e<br />
importantes detalhes: somos o Movimento<br />
Literário Kuphaluxa, dizemos, fazemos e sentimos<br />
a literatura, e pronto.<br />
MAURO<br />
BRITO<br />
COMBO<br />
Nascido a 17/02/1990 em Nampula,<br />
residiente em Maputo. Estudante e<br />
membro do Movimento Literário<br />
Kuphaluxa desde a sua fundação.<br />
Foi um dos classificados do “Prémio<br />
Poetize 2012 do Brasil”,<br />
com o poema intitulado “Remendos”.<br />
Sem livro publicado, as suas crónicas,<br />
poemas e ensaios são publicadas em<br />
revistas literárias, a destacar, revista<br />
Tarja Preta da Academia Onírica de<br />
Piauí, revista Blecaute do Brasil e<br />
Revista de Literatura Moçambicana e<br />
Lusófona – Literatas.<br />
Contacto electrónico:<br />
manducho1@hotmail.com<br />
Blogue: pontosdosiiis.blogspot.com<br />
Endereço do grupo:<br />
Centro Cultural Brasil - Moçambique<br />
Av. 25 de Setembro, N°1728,<br />
C. Postal: 1167, Maputo<br />
Site do grupo Kuphaluxa: kuphaluxa.blogspot.com<br />
Site da revista Literatas: literatas.blogs.sapo.mz<br />
E-mail do grupo:<br />
kuphaluxa@gmail.com ou kuphaluxa@sapo.mz<br />
página 57
* QUILOMBAQUE PERUS<br />
com atividades culturais, sarau de poesia, shows com música das mais diversas<br />
vertentes, oficinas de arte, biblioteca e exibição de filmes comentados no<br />
«cine madrugadão»<br />
- fica no bairro de Perus/SP, ao lado da estação de trem, no Beco da Cultura.<br />
Acesse o site:<br />
http://comunidadequilombaque.blogspot.com.br/<br />
* SARAU DO MANOLO<br />
com poesia, música, artes plásticas, performances e projeções.<br />
- fica em Atibaia/SP<br />
Acesse o site:<br />
http://saraudomanolo.blogspot.com.br/<br />
* CASA POEMA.COM.BR<br />
Site da poeta e atriz Elisa Lucinda, onde ela promove suas Oficinas de Poesia Falada.<br />
http://casapoema.com.br/<br />
* JAGUADARTE<br />
Blog do poeta, compositor e performer Ricardo Aleixo.<br />
http://jaguadarte.blogspot.com.br/<br />
* A REVOLTA DOS MALÊS<br />
Excelente e bastante completo arquivo sobre o tema, de autoria de João José Reis,<br />
em PDF.<br />
http://www.smec.salvador.ba.gov.br/documentos/a-revolta-dos-males.pdf<br />
* LITERATURA NEGRA - UMA OUTRA HISTÓRIA<br />
Ensaio de Carina Bertozzi no Portal Cronópios.<br />
http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=2649<br />
* GALÁXIA BLACK<br />
Blog com diversos discos de black music para download.<br />
http://www.galaxiablack.blogspot.com.br/
Como presente especial deste número,<br />
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concepção e fotografia: mercedes lorenzo<br />
http://olhardelambe-lambe.blogspot.com