Entre culturas O termo canibalismo é associado a uma crueldade, podendo ser exofagia (comer o inimigo) ou endofagia (comer membros da própria tribo ou família), enquanto que a antropofagia está relacionada à rituais sociais. As circunstâncias e valores envolvidos mudam de uma cultura para outra. Vários segmentos do canibalismo fogem ao termo literal, como é o caso do Movimento Antropofágico dos anos 1920, das expressões “comer com os olhos” e o “comer” relacionado ao sexo. Segundo a pesquisadora Eliane Knorr de Carvalho, em seu texto Canibalismo e antropofagia: do consumo à sociabilidade, a antropofagia funerária é um costume de algumas tribos, realizada em cerimônias coletivas. A carne era ingerida com o acompanhamento de algum vegetal, mas nem todos poderiam desfrutá-la, o que é o caso das tribos Guayaki (Aché) (Paraguai), os Yanomâmi (Brasil e Venezuela) e os Wari’ (Brasil), está última também se alimentava de guerreiros inimigos mortos. Os parentes próximos que decidiam se os ossos seriam queimados e enterrados ou macerados e ingeridos com mel. Atualmente, os mortos são enterrados. O abandono do canibalismo ocorreu pouco tempo depois da “pacificação”. Diferente da tribo Wari’, para os Guayaki a carne era proibida para os parentes próximos. O corpo era assado no moquém [um tipo de forno] com palmito e os ossos jogados fora. Atualmente os Yanomâmi são um dos poucos, senão os únicos, que mantém o ritual funerário com consumo dos ossos. Os “civilizados” Para sociedades em que o canibalismo não é um hábito, sua prática é considerada anti-social, condenada moralmente, sendo divididas em três categorias: fome, tática do medo, crime ou loucura. A primeira é a prática do canibalismo como último recurso de sobrevivência. Por falta de qualquer outra opção, algumas pessoas aderem ao canibalismo para fugirem da morte por inanição. Em 1972, um acidente na Cordilheira dos Anges, envolvendo um time de Rugby, matou 34 pessoas. Os 16 sobreviventes, passaram 72 dias esperando resgate e após o décimo dia aderiram ao canibalismo como uma forma de sobrevivência, devido a escassez de comida e água. A segunda circunstância tem como objetivo imobilizar o outro até exterminá-lo. Segundo a mestranda em Historia Social Débora Meira em “Tupinambá: um discurso para escravização”, esta é uma tática que foi usada na escravização e extermínio dos Tupinambás, durante o seculo XVI. A terceira forma desta prática é quando o canibal é considerado louco ou um criminoso, ou seja, é aquela em que o canibalismo aparece como um elemento a mais dentro de uma situação arbitrária, como o caso do trio brasileiro que comiam e serviam salgados com carne humana no estado de Pernambuco, após matarem suas vítimas. Segundo a legislação brasileira o canibalismo não se caracteriza como crime, enquadrando caso a vítima venha a falecer, tipificando o crime de vilipêndio, que significa desrespeitar o corpo, artigo 212 do Código Penal, além do crime de destruição, subtração ou ocultação do cadáver, artigo 211. O cadáver não pode ser vítima de algum crime porque não tem mais a capacidade de se defender, essa pena não é restrita ao canibalismo. Segundo o artigo 231, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, ou seja, o crime de assassinato ou vilipêndio não se aplica aos indígenas brasileiros. Cultura POP O fiscal rodoviário João Paulo Mendonça, 22 anos, é um aficionado estudioso do canibalismo desde os 16 e atualmente tem como ideia escrever um livro que relate casos reais, retratando o canibalismo patológico. Segundo João, os casos que mais chamam sua atenção são os de canibalismo coletivo induzido, ou seja, quando um assassino mata, consome a carne e induz outros a consumi-la, muitas vezes alegando se tratar de carne de porco. Existe uma vasta literatura sobre o tema, o mais famoso canibal da ficção triller é Hannibal Lecter. Na Lituânia, na Segunda Guerra Mundial, sua família foi alvo das tropas alemãs. Como consequência do frio e da falta de comida, os hiwis (traidores lituânios) acabaram por matar e devorar sua irmã Mischa, traumatizando Hannibal. Doutor em Psiquiatria, Lecter se torna ajudante do FBI elaborando perfis psicológicos de criminosos. Uma de suas vitimas, o professor Will Graham, acaba revelando o lado sombrio de Hannibal. No Brasil, na década de 1920, Oswald de Andrade dá inicio ao Movimento Antropofágico, baseado no Manifesto Antropófago escrito por ele. O objetivo era a não imitação da cultura estrangeira, ironizando a submissão da elite brasileira aos países desenvolvidos. A história do Brasil é contada metaforicamente, retomando características das culturas primitivas brasileira, indígena e africana. Quase cem anos depois, a intenção de promover o resgate da cultura primitiva a partir dos ideais do Movimento Antropofágico não obteve o sucesso almejado no contexto oswaldiano. Devorar corpos permanece um tabu, mesmo em situações extremas. Os indígenas continuam com a imagem negativa do canibalismo, julgados pela sociedade que se diz evoluída. A sociedade brasileira ainda não conseguiu lidar naturalmente com questões menos conflitantes de sua cultura. “Abaporu” vem do tupi aba (homem), pora (gente) e ú (comer), ou seja, “homem que come gente”. A icônica obra de Tarsila do Amaral inspirou o Movimento Antropofágico do modernismo brasileiro.
Habitar Arte: Douglas Evangelista ALIMENTE SENTIMENTO CURINGA | EDIÇÃO <strong>14</strong> 31