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Matéria Prima 98 - Março 2018_WEB

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Estava bem concentrado quando a<br />

dona do tricô retornou à sala. O pai lhe<br />

entregou logo os apetrechos e reiniciou<br />

a leitura do jornal espírita. A filha procurou<br />

algum estrago em seu tricô e não<br />

encontrou. Se tivesse prestado atenção<br />

no homem à sua frente, naquele momento,<br />

veria seu meio-sorriso de satisfação.<br />

Talvez até pudesse ler em seus<br />

olhos que ele achara muito mais fácil<br />

aprender a tricotar do que levantar paredes<br />

e fazer os acabamentos das obras<br />

– e nisso ele era mestre.<br />

Tricotar era bem mais fácil e deixava<br />

a cabeça leve, os problemas esquecidos<br />

horas e horas numa parte escura<br />

da memória.<br />

Assim, ele aprendeu a produzir sapatinhos<br />

e fez um par de lã azul clarinha<br />

para o primeiro neto. Depois tricotou<br />

uma blusinha de mangas compridas na<br />

mesma tonalidade para o bebê.<br />

Os filhos se surpreenderam só um<br />

pouco com a nova diversão do pai. Bem<br />

melhor do que o vício do cigarro, que ele<br />

cultivou desde a juventude e só abandonou<br />

depois dos quarenta por causa de<br />

muitas advertências dos médicos.<br />

Durou pouco o gosto pelo tricô, mas<br />

valeu como mais uma demonstração de<br />

versatilidade daquele homem que aprendeu<br />

a tocar violão de ouvido, tinha sempre<br />

um livro à mão e evitava ensinar o<br />

significado das palavras (“Meu filho, consulte<br />

o nosso dicionário e aproveite para<br />

aprender mais lendo também o sinônimo<br />

da palavra que vem antes<br />

e o daquela que vem<br />

depois desta que<br />

você procura”).<br />

Desconhecia a<br />

barreira que, naquela<br />

época, impedia<br />

a maioria dos homens de assumir<br />

o fogão e preparava bolos<br />

e broas de fubá deliciosos no<br />

forno a lenha e, depois, no fogão<br />

a gás (“Não comam quente porque<br />

terão dor de barriga”, dizia,<br />

depois de conferir o cozimento enfiando<br />

o cabo do garfo na massa).<br />

Além disso, nos períodos em que tinha<br />

condições de trabalhar, levantava mais<br />

cedo cantando modinhas antigas e preparava<br />

um feijão tropeiro legítimo, com<br />

todos os ingredientes e temperos proibidos<br />

pelo médico.<br />

Nunca mais comi feijão tropeiro com<br />

aquele sabor, e até hoje não sei de ninguém<br />

que use com a mesma competência<br />

a colher de pedreiro e a agulha de tricô.<br />

ECONOMIA │ POLÍTICA │ ESPORTES │ HUMOR │ CULTURA 45

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