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Estava bem concentrado quando a<br />
dona do tricô retornou à sala. O pai lhe<br />
entregou logo os apetrechos e reiniciou<br />
a leitura do jornal espírita. A filha procurou<br />
algum estrago em seu tricô e não<br />
encontrou. Se tivesse prestado atenção<br />
no homem à sua frente, naquele momento,<br />
veria seu meio-sorriso de satisfação.<br />
Talvez até pudesse ler em seus<br />
olhos que ele achara muito mais fácil<br />
aprender a tricotar do que levantar paredes<br />
e fazer os acabamentos das obras<br />
– e nisso ele era mestre.<br />
Tricotar era bem mais fácil e deixava<br />
a cabeça leve, os problemas esquecidos<br />
horas e horas numa parte escura<br />
da memória.<br />
Assim, ele aprendeu a produzir sapatinhos<br />
e fez um par de lã azul clarinha<br />
para o primeiro neto. Depois tricotou<br />
uma blusinha de mangas compridas na<br />
mesma tonalidade para o bebê.<br />
Os filhos se surpreenderam só um<br />
pouco com a nova diversão do pai. Bem<br />
melhor do que o vício do cigarro, que ele<br />
cultivou desde a juventude e só abandonou<br />
depois dos quarenta por causa de<br />
muitas advertências dos médicos.<br />
Durou pouco o gosto pelo tricô, mas<br />
valeu como mais uma demonstração de<br />
versatilidade daquele homem que aprendeu<br />
a tocar violão de ouvido, tinha sempre<br />
um livro à mão e evitava ensinar o<br />
significado das palavras (“Meu filho, consulte<br />
o nosso dicionário e aproveite para<br />
aprender mais lendo também o sinônimo<br />
da palavra que vem antes<br />
e o daquela que vem<br />
depois desta que<br />
você procura”).<br />
Desconhecia a<br />
barreira que, naquela<br />
época, impedia<br />
a maioria dos homens de assumir<br />
o fogão e preparava bolos<br />
e broas de fubá deliciosos no<br />
forno a lenha e, depois, no fogão<br />
a gás (“Não comam quente porque<br />
terão dor de barriga”, dizia,<br />
depois de conferir o cozimento enfiando<br />
o cabo do garfo na massa).<br />
Além disso, nos períodos em que tinha<br />
condições de trabalhar, levantava mais<br />
cedo cantando modinhas antigas e preparava<br />
um feijão tropeiro legítimo, com<br />
todos os ingredientes e temperos proibidos<br />
pelo médico.<br />
Nunca mais comi feijão tropeiro com<br />
aquele sabor, e até hoje não sei de ninguém<br />
que use com a mesma competência<br />
a colher de pedreiro e a agulha de tricô.<br />
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