Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Convívio celestial
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Sacralidade,<br />
beleza e<br />
elegância<br />
Pedro Moraes<br />
Oprédio da Prefeitura de Aachen parece um relicário.<br />
Se nos mostrassem uma fotografia onde<br />
não aparecessem a rua, as árvores, os lampadários,<br />
e nos dissessem: “Relicário de ouro do século XIV”,<br />
julgaríamos tratar-se de uma peça de arte lindíssima.<br />
Quando a sacralidade se comunicava<br />
a toda a ordem civil<br />
Embora seja um paço municipal, quem o visse pela primeira<br />
vez, sem uma explicação, facilmente admitiria tratar-se<br />
de uma catedral ou da igreja de um convento, porque<br />
na época em que foi construído, os edifícios laicos não<br />
eram tão diferentes dos sagrados quanto são hoje. Os prédios<br />
destinados ao governo temporal tinham qualquer coisa<br />
de sacral, e essa sacralidade se comunicava a toda a vida<br />
civil, era a impregnação da vida civil pela religião.<br />
Chamo a atenção para o teto, em ogiva, todo ele com<br />
pequenos respiratórios de chaminés que correspondem<br />
a uma necessidade para a respiração desses lugares em<br />
tempo de inverno. Mas vejam como estão postos de maneira<br />
tal que realçam a beleza do próprio teto, unindo o<br />
útil ao agradável.<br />
Admirando os frutos da<br />
civilização católica na Europa, Dr.<br />
Plinio se encanta ao contemplar<br />
a impregnação da vida civil<br />
pela sacralidade da religião,<br />
conferindo a monumentos e<br />
praças um aspecto encantador,<br />
quase de conto de fadas.<br />
Rainha e Mãe, com os encantos da<br />
juventude e da idade madura<br />
A imagem de Nossa Senhora Padroeira de Aachen, situada<br />
na Capela Palatina, é propriamente lindíssima. Eu gostaria<br />
de atrair a atenção não tanto sobre o vestido, muito<br />
bonito, nem sobre a escultura, muito boa, mas sobre o estado<br />
temperamental que o artista figurou em Nossa Senhora.<br />
Vê-se que é uma pessoa respeitável no mais alto grau.<br />
É propriamente uma rainha. Mas ao mesmo tempo sente-se<br />
n’Ela toda a bondade de uma mãe, não só pela maneira<br />
de carregar no braço o Menino-Deus, mas também<br />
o modo pelo qual a Santíssima Virgem parece olhar para<br />
quem Lhe está apresentando uma súplica. É uma benevolência,<br />
uma disposição de atender que impressiona do<br />
modo mais agradável!<br />
Outro aspecto que chama a atenção é a idade. É ou<br />
não é verdade que Ela possui algo da seriedade da idade<br />
madura? Mas é verdade também haver n’Ela ainda qualquer<br />
coisa da moça. É agradável considerar esse equilíbrio<br />
das duas idades reunindo-se num momento da vida<br />
em que a pessoa apresenta, ao mesmo tempo, os atrativos<br />
de uma e de outra etapa da existência.<br />
34
Por outro lado, é preciso considerar a calma, a tranquilidade<br />
da pessoa ali representada. Uma calma completa,<br />
serena, de quem não vive correndo, não está habituado,<br />
nem sequer andou alguma vez de automóvel.<br />
Nunca viajou de avião, nunca viu televisão nem usou telefone.<br />
É uma pessoa cujos nervos estão completamente<br />
desengajados do corre-corre do século XX.<br />
Um dos palácios mais belos da Europa<br />
Em outra fotografia, vemos a beleza singular do palácio<br />
de Chantilly, na França, embora sem muita simetria,<br />
como eram as construções próxima ou remotamente<br />
ligadas à antiga arte medieval. A simetria aparece exatamente<br />
a partir dos séculos XV, XVI e XVII, mas esse<br />
prédio foi construído ainda segundo moldes um pouco<br />
medievais. Assim, trata-se de um conjunto de corpos de<br />
edifício que se acumulam como podem, mas que, no seu<br />
imprevisto e na beleza de cada corpo, formam um aspecto<br />
encantador, de conto de fadas.<br />
Merece especial destaque a torre redonda, alta e que,<br />
ela sim, faz simetria com a outra, presente no ângulo<br />
oposto. Ambas imergem no lago, produzindo um efeito<br />
de beleza extraordinária!<br />
Notem a formosura do lago, do canteiro com seus desenhos,<br />
e a tranquilidade das águas que passam. A floresta é<br />
uma continuação desse desenho que se perde mais ou menos<br />
no infinito. É um dos palácios mais belos da Europa.<br />
Vejam como as construções humanas lucram em ficar à<br />
beira d’água. Aliás, uma coisa que me desola no Rio de Janeiro<br />
é o fato de que, tendo o panorama marítimo mais belo<br />
do mundo, a bem dizer não tem construções à beira-mar.<br />
Praça de uma beleza exemplar<br />
cortando a fachada em três pontos. No restante, todos os<br />
edifícios são iguais. No seu interior ela é inteiramente vazia,<br />
oferecendo ao trânsito um enorme espaço, de maneira<br />
que não se tem a impressão de muito tráfico de automóvel,<br />
pois aquilo se dilui sobre uma superfície imensa.<br />
Na calçada e no andar térreo há uma série de arcos,<br />
os quais geralmente correspondem a lojas de grandíssimo<br />
luxo, que constituem um dos elementos da nata do<br />
comércio de Paris. É preciso ter visto os quatro lados da<br />
praça num olhar só para compreender a nobreza, a dignidade<br />
e a perfeita regularidade de sua beleza.<br />
A coluna central não vai bem com a praça. Não digo isso<br />
por antibonapartismo. É verdade que, ainda que ficasse bem,<br />
tendo em cima Bonaparte, valeria a pena arrancar. Contudo,<br />
a coluna não combina com o ambiente, pois, por suas proporções<br />
exageradas, parece furar a praça pelo meio.<br />
O que ficaria bonito, a não ser a estátua equestre de Luís<br />
XIV – que durante algum tempo houve ali –, seria pelo<br />
menos um belo jogo de águas. Isso infelizmente não existe.<br />
Considerem o lindo lampadário. Que diferença com<br />
as nossas luminárias de São Paulo, por exemplo, com a<br />
famosa lâmpada de mercúrio em cima, causando-nos a<br />
impressão de um pescoço muito alto com uma cabecinha<br />
microcefálica no topo! Nesse lampadário parisiense, notem<br />
a elegância com que esses três focos estão apoiados<br />
sobre uma coluna de metal que termina numa base. Como<br />
é bonito! Tudo isso é o gosto tipicamente francês.v<br />
(Extraído de conferência de 21/12/1988)<br />
Aliasdoobs (CC3.0)<br />
A Place Vendôme é de uma beleza exemplar. Juntamente<br />
com a Praça de São Marcos em Veneza e a de São<br />
Pedro em Roma, é uma das praças mais belas do mundo,<br />
embora obedecendo a uma concepção técnica diferente.<br />
A praça tem evidentemente quatro ângulos com ruas<br />
Dimitri Destugues (CC3.0)<br />
Flávio Lourenço<br />
35
Publicação Mensal Ano XXI - Nº 239 Fevereiro de <strong>2018</strong><br />
Triunfo marial
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Hajotthu (CC3.0)<br />
Ó Igreja Católica!<br />
Diante da Catedral de São Marcos somos objeto de uma<br />
determinada impressão a respeito do desejo de maravilhoso,<br />
de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que,<br />
em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das<br />
mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se<br />
manifesta ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa<br />
pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”<br />
Quando se faz uma viagem muito cheia de impressões,<br />
densa de coisas que se viu e sobre as quais<br />
se pensou – ao menos no meu espírito é assim –,<br />
nem tudo aflora imediatamente. A pessoa deixa repousar<br />
as impressões de viagem e depois elas vão se evolando de<br />
tempos em tempos, mais ou menos como as flores que demoram<br />
para exalar todo o seu perfume. Passa-se por uma<br />
flor, ela se abriu e esparge seu perfume novo. No dia seguinte<br />
ela não está recendendo a nada, mas no terceiro<br />
dia, quando se pensa que já deixou de exalar sua fragrância,<br />
há uma segunda onda de perfume que se exala da flor,<br />
e assim por diante. Deste modo são também as recordações<br />
de viagem: há várias exalações consecutivas, de vários<br />
significados e bons aromas que se vão apresentando,<br />
formulando-se à medida que o tempo passa.<br />
Obras impregnadas pelo sobrenatural<br />
Recentemente consegui explicitar melhor alguma coisa<br />
que me vinha à mente em minha última visita à Europa,<br />
30
pela comparação entre a impressão que o Velho Continente<br />
me causou nas anteriores viagens e a que tive nesta.<br />
Para ficar bem clara a questão, parece-me melhor<br />
exemplificar em concreto com a Catedral de São<br />
Marcos. Antes, porém, dou uma pequena introdução<br />
e depois faço a aplicação.<br />
Suponhamos que um escritor como São Bernardo redige<br />
um sermão sobre Nossa Senhora, ou um rei como<br />
São Luís IX publica suas Capitulares, isto é, uma legislação<br />
sobre um determinado corpo de assuntos. Mas tudo<br />
é feito com espírito católico e com a intenção de servir<br />
à Santa Igreja e à Civilização Cristã. Por causa da intenção<br />
que presidiu a isso, a graça pousa, por assim dizer,<br />
naquela obra. E quem a lê tem duas impressões.<br />
Uma natural e humana que a leitura daquele texto pode<br />
causar. Por exemplo, São Bernardo é um escritor exímio,<br />
de grandes voos literários, um notável burilador da<br />
língua francesa, sob o impulso de quem esse<br />
idioma explicitou de sua genialidade original<br />
tais aspectos novos. São impressões naturais<br />
que nos vêm ao espírito, causadas pela<br />
leitura do trabalho de São Bernardo.<br />
Mas como aquela obra foi feita por<br />
amor de Deus, com a intenção de despertar<br />
pensamentos sobrenaturais<br />
inspirados pela Fé e tendentes à glória do<br />
Criador, entra também uma graça, porque<br />
ninguém é capaz de pensar uma obra com base<br />
na Doutrina Católica, nem de querer uma<br />
coisa para o bem da Santa Igreja ou para a<br />
Gabriel K.<br />
Flávio Lourenço<br />
São Bernardo<br />
São Luís Rei<br />
glória de Deus, que não seja pela graça.<br />
Sem auxílio dela ninguém pode fazer essas<br />
operações intelectuais e da vontade, pois o homem<br />
é inteiramente inerte e incapaz de as realizar<br />
se não tiver o auxílio da graça.<br />
Assim, São Francisco de Sales – para tomar outro<br />
autor – escreveu a “Filoteia”, a “Introdução à Vida Devota”,<br />
e quem a lê tem a impressão de estar essa obra<br />
embebida pela graça, e é absorvido pela graça que baixa<br />
de Deus, mas ajustada, correlata ao texto lido.<br />
Então, ao operar natural da inteligência, da vontade<br />
e da sensibilidade, soma-se uma operação de<br />
origem sobrenatural pela qual na leitura a pessoa<br />
percebe belezas novas de caráter absolutamente superior,<br />
extraordinário. Às vezes elas reluzem aos<br />
olhos do espírito do leitor através de um fenômeno<br />
da mística. São de uma pulcritude maior do que<br />
todas as belezas naturais, pois o sobrenatural vale<br />
mais do que o natural.<br />
Flávio Lourenço<br />
Amor de Deus, corolário das<br />
construções medievais<br />
Arquivo Revista<br />
Isto que se diz a respeito de escritos pode-se<br />
igualmente aplicar a monumentos, catedrais, imagens,<br />
obras de arte. Por exemplo, as estalas superiormente<br />
bem esculpidas de um convento, uma armadura<br />
medieval, um vitral, obras estas realizadas<br />
Dr. Plinio em<br />
Veneza, em 1988<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Gabriel K.<br />
Sebastião C.<br />
posição das famosas “contradas”, aqueles<br />
jogos entre as corporações e associações religiosas,<br />
que despertam esse ou aquele estado<br />
de espírito. Então aqui está uma ordem<br />
de ideias.<br />
Há locais impregnados<br />
pelo sagrado...<br />
Igreja de San Giorgio<br />
Maggiore, Veneza, Itália<br />
Órgão da Catedral de Notre-Dame<br />
de Paris, França<br />
com espírito sobrenatural para o serviço de Deus, mas<br />
também com uma finalidade natural. Quem as vê é visitado<br />
por uma graça que lhe faz compreender as analogias<br />
que elas têm com realidades sobrenaturais.<br />
De onde um muito grande apreço do homem por aquilo<br />
que ele vê. Por exemplo, a Catedral de São Marcos e a de<br />
Notre-Dame de Paris. Mas não apenas catedrais, às vezes<br />
são edifícios destinados a uma finalidade civil, como uma<br />
fortaleza, um castelo, que é a residência de uma família<br />
feudal e, ao mesmo tempo, a defesa desta família e da população,<br />
do burgo vizinho, contra possíveis agressões de<br />
maometanos, de bárbaros. Portanto, uma finalidade natural.<br />
Mas o castelo com aquelas torres, aquele jogo de<br />
ameias e barbacãs, dá uma impressão sobrenatural, proporcionada<br />
pela graça, e que vem do fato de que o castelo<br />
simboliza extraordinariamente bem para nós a virtude da<br />
fortaleza, enquanto praticada por amor de Deus.<br />
Assim, chegamos à conclusão de que muitos dos monumentos<br />
existentes na Europa foram construídos na plena<br />
era do amor de Deus, isto é, no apogeu da Idade Média.<br />
Outros em épocas posteriores ou anteriores. Nas anteriores,<br />
enquanto o gótico começava apenas a ser vislumbrado<br />
pelos seus primeiros artistas, o românico era o estilo usado.<br />
Tinha ele, entretanto, charmes, encantos em que algo do<br />
sorriso todo cheio de afabilidade, de majestade e de uma<br />
discreta melancolia do gótico ia se formando, aparecendo,<br />
o que pode ser notado num edifício, numa praça, etc.<br />
Ademais, é possível que a graça dê à pessoa um especial<br />
discernimento do espírito com que, em concreto,<br />
aquilo foi construído. Então, diante da Praça do Paço<br />
Municipal de Siena, a pessoa pode ter um discernimento<br />
especial de qual era o espírito dos sienenses daquele<br />
tempo, de como entrava ali a graça, e fazer uma recom-<br />
Passo a considerar agora outra ordem de<br />
ideias. Não é mais o estilo, a aparência material,<br />
nem mesmo a mentalidade dos que planejaram,<br />
executaram ou viveram em determinado<br />
lugar, mas é a natureza dos atos que<br />
ali se passaram.<br />
Há um princípio admitido pela piedade católica<br />
segundo o qual, quando em um ambiente<br />
se passou algo de muito sagrado, aquele lugar<br />
fica de algum modo sagrado também. Vou<br />
dar um exemplo de tal maneira supremo que, por assim<br />
dizer, estoura o assunto, mas enfim de um estourar sagrado,<br />
magnífico: o Horto das Oliveiras, onde se deu o primeiro<br />
mistério doloroso do Rosário, a Agonia de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo. “Agonia”, em grego, quer dizer “luta”.<br />
Então a luta de Nosso Senhor contra o legítimo arrepio<br />
de seus sentidos diante da perspectiva da morte que<br />
deveria vir, com tudo quanto a antecedeu. Ali, onde Ele<br />
disse: “Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice,<br />
mas faça-se a vossa vontade e não a minha” (Lc 22,42).<br />
Veio então um Anjo – o qual podemos imaginar cercado,<br />
nimbado de uma luz ao mesmo tempo alvíssima e<br />
triste por causa da tarefa que ele devia executar – levando<br />
para Nosso Senhor um cálice de uma bebida<br />
que haveria de Lhe dar força sobrenatural para<br />
tudo aquilo que Ele suportou na Paixão.<br />
Então, onde Ele esteve, sofreu e derramou o<br />
primeiro Sangue da Paixão, tudo isso torna sagrado<br />
o lugar em que essas cenas se passaram.<br />
Por essa razão, quando se está naquele lugar<br />
recebem-se graças, não raramente sensíveis,<br />
pelas quais a alma é levada ao amor de Deus,<br />
à contrição, ao arrependimento, à compunção,<br />
à piedade, à compaixão para com o Cordeiro<br />
de Deus que ali sofreu para nossa salvação.<br />
Aquele lugar tem bênçãos especiais.<br />
...outros, habitados por uma graça<br />
Mutatis mutandis, os locais onde se passaram grandes<br />
fatos históricos, eminentes atos de coragem, de virtude, de<br />
renúncia, na História da Cristandade, tornam-se lugares<br />
particularmente dignos de reverência. Às vezes até fatos<br />
32<br />
Armadura medieval - Museu<br />
Metropolitano de Arte, Nova Iorque, EUA
sem uma relação direta com a Religião, mas nos<br />
quais reluz algo do espírito católico.<br />
Vem à minha memória a execução do<br />
Duque d’Enghien, ordenada por Napoleão.<br />
Esse duque, último da linhagem<br />
dos Príncipes de Condé, reunia em si o<br />
aspecto heroico, a estampa afidalgada,<br />
a coragem, a ousadia, quase a temeridade<br />
de seus antepassados. Possuía<br />
qualquer coisa do espírito repentino e<br />
irresistível do Grande Condé.<br />
Napoleão tinha intuitos de acabar<br />
com esse último descendente da Casa dos<br />
Condé, e para isso aproveitou-se do fato<br />
de que esse duque estava noivo de uma princesa<br />
francesa residente não longe da fronteira<br />
alemã, mas do lado alemão, onde a tropas de Napoleão<br />
não podiam penetrar. O Duque d’Enghien foi visitar<br />
a noiva e quando o Sol já havia se posto, Napoleão<br />
mandou um destacamento transpor o Reno, entrar nesse<br />
lugarzinho, agarrar o Condé e levá-lo preso para a França.<br />
Depois de um simulacro de julgamento, que ninguém toma<br />
a sério, mandou matá-lo.<br />
A calma do Duque d’Enghien nesse momento extremo,<br />
sua dignidade, presença de espírito – segurou calmamente<br />
a lanterna para que os tiros acertassem nele –, suas últimas<br />
cartas, tudo isso tem um aroma de Cavalaria. É bonito<br />
ver esse cintilar de luzes da Cavalaria, brilhando na<br />
época miserável em que o mundo estava conspurcado<br />
pela Revolução Francesa.<br />
Estando em Vincennes, e sabendo onde o<br />
Duque foi executado, eu quereria ir visitar o<br />
local em espírito de peregrinação. Não tenho<br />
nenhum documento comprovatório<br />
de que esse homem fosse especialmente<br />
piedoso. Dói-me a hipótese de que não<br />
o tenha sido. Apesar disso, não há dúvida<br />
nenhuma de que se ele não descendesse<br />
de ancestrais católicos,<br />
não seria essa flor do heroísmo<br />
católico a desabrochar dentro<br />
da poluição imunda da Revolução<br />
Francesa. Portanto,<br />
nessas condições, eu iria<br />
em espírito de peregrinação<br />
ao lugar onde ele foi imolado<br />
com tanto garbo, tanta<br />
galhardia, e rezaria por sua<br />
alma.<br />
Isso nos dá a impressão – notem<br />
bem, não é a realidade – de<br />
que as cenas ocorridas em determi-<br />
Havang (CC3.0)<br />
Duque<br />
d’Enghien<br />
nados lugares, como que ainda estão se passando<br />
ali. É fora de dúvida que aquele passado<br />
todo revive, e para quem está ali ele<br />
tem um prolongamento, uma continuidade<br />
misteriosa que emociona especialmente<br />
o visitante. Onde existem coisas<br />
assim, houve graças extraordinárias.<br />
E do mesmo modo como a graça desce<br />
à alma de quem lê, com trezentos anos<br />
de diferença, um livro de São Francisco<br />
de Sales, ela também age na alma<br />
de quem, duzentos anos depois, visita o<br />
lugar onde o Duque d’Enghien foi fuzilado.<br />
Essa impressão de lugar habitado pela<br />
graça, no qual se tem a impressão de que os<br />
fatos revivem e entramos numa misteriosa intimidade<br />
com eles, é altamente benfazeja para o espírito<br />
e enriquece o sentir, o degustar do homem que se encontra<br />
nesse local.<br />
Desejo do maravilhoso inspirado pela Fé<br />
Tomemos, por exemplo, a Catedral de São Marcos.<br />
Vista durante a noite, quando não há turistas e os<br />
pombos estão dormindo, a catedral apresenta-se na sua<br />
Catedral de Notre-Dame de Paris, França<br />
Catedral de São Marcos, Veneza, Itália<br />
Gabriel K.<br />
Samuel Holanda<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
majestosa solidão, esplendidamente iluminada, deixando<br />
perceber o branco reluzente do mármore de que foi<br />
construída, bem como seus pormenores magníficos, e<br />
torna-se especialmente evidente sua linha geral.<br />
Faço notar as três profundidades para a vista humana<br />
diante dessa catedral. Em primeiro lugar, as arcadas que<br />
têm como centro um arco maior com um magnífico mosaico<br />
e, acima, um terraço. Constituem o primeiro corpo do edifício.<br />
Depois, uma espécie de ogiva central muito grande, onde<br />
se percebem os famosos cavalos, dois torreões, e de cada<br />
lado duas ogivas muito abertas, encimadas cada qual com<br />
uma figura. Por fim, constituindo a terceira dimensão, encontram-se<br />
as cúpulas ladeadas de umas torrezinhas.<br />
Diante dessa catedral somos objeto de uma determinada<br />
impressão a respeito do desejo de maravilhoso, de<br />
grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que, em louvor<br />
de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações<br />
deslumbrantes do espírito católico que se manifesta<br />
ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa<br />
pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”<br />
Entretanto, dentro dessa catedral passaram-se fatos<br />
históricos da maior importância que determinaram rotações<br />
inteiras na História da Cristandade, das nações banhadas<br />
pelo Mar Adriático, que se manifestaram na História<br />
de Veneza e da Itália, episódios ora de violência, ora de<br />
refinamento político e esperteza levada a um grau inimaginável.<br />
Veneza era uma escola de<br />
diplomatas extraordinários.<br />
Nos arquivos dessa cidade<br />
se conservam relatórios<br />
que os embaixadores<br />
venezianos<br />
mandavam periodicamente, contando o que se passava nos<br />
países onde viviam. As narrações são tão bem feitas, tão seguras<br />
– de tal maneira eles sabem evitar boatos –, as análises<br />
tão finas e tão sutis, que essas cartas servem de fonte<br />
ótima para a História de qualquer país da Europa.<br />
Imponderável de São Pio X em Veneza<br />
Assim, pelo auxílio da graça, temos não apenas uma<br />
percepção do espírito de Fé que levantou tudo isso, mas<br />
também uma ideia dos mil fatos que ali se passaram.<br />
Um desses fatos se deu no começo do século XX. São Pio<br />
X, antes de ser eleito Papa, era o Patriarca de Veneza,<br />
portanto, Cardeal e Arcebispo daquela cidade. Quando<br />
morreu Leão XIII, convocaram o Conclave. São Pio<br />
X – então Cardeal Giuseppe Sarto – comprou passagem<br />
de ida e volta, pois ao que parece ele não contava com a<br />
possibilidade de ser eleito e, ademais, não tinha vontade<br />
nenhuma. Ainda nas vésperas de sua eleição, o Cardeal<br />
Sarto julgava que não seria escolhido, mas como, de repente,<br />
as coisas viraram e sua escolha tornou-se iminente,<br />
ele chorou, porque tinha pânico de ser Papa, pelo peso<br />
da responsabilidade do Papado.<br />
Podemos imaginar a última visita desse Santo Cardeal,<br />
pouco antes de tomar a gôndola para se dirigir ao<br />
Conclave; sua longa figura esguia, com os trajes cardinalícios,<br />
cabelos já muito brancos, ele mesmo alvíssimo,<br />
acompanhado de seus secretários, monsenhores, prelados,<br />
entrando na Basílica de São Marcos para rezar. Depois,<br />
com o coração pesado de presságios que via apenas<br />
obliquamente, ele tomar a embarcação e partir para o<br />
lugar de onde o trem o conduziria até Roma.<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Nevsepic (CC3.0)<br />
Dom Giuseppe M. Sarto (futuro<br />
São Pio X), por ocasião de sua<br />
ordenação como Bispo<br />
de Veneza<br />
O Grande Canal de Veneza (por Canaletto) - Galeria Nacional de Londres, Inglaterra<br />
34
Seria a cena de Veneza despedindo-<br />
-se do mais recente dos Papas canonizados,<br />
que previu e combateu a crise do<br />
modernismo. Quem passeia por debaixo<br />
dessas colunas do átrio ou transpõe<br />
a porta, pensando em tudo isso, tem a<br />
impressão de que São Pio X encontra-se<br />
um pouco aí revivendo tudo isso. De fato,<br />
ele não se encontra, mas está presente<br />
uma graça relacionada ao que se passou<br />
e que torna especialmente sagrado<br />
esse lugar.<br />
Arquivo Revista<br />
Passeando de gôndola<br />
pelos canais de Veneza<br />
Em minha última viagem à Europa,<br />
tive diante de muitos monumentos a impressão<br />
triste, de cortar o coração, de<br />
que essas graças tinham se retirado, e<br />
as cenas históricas ali desenroladas haviam<br />
perdido o nexo sobrenatural com<br />
aqueles monumentos. Ou que esses restos<br />
de continuidade da graça estavam<br />
Dr. Plinio durante uma palestra em janeiro de 1989<br />
nos seus últimos lampejos e já iam desaparecendo,<br />
o que a multidão de turistas não censurava,<br />
e nem sequer sabia ser possível sentir isso, e visitava<br />
a Catedral de São Marcos, por exemplo, mais ou menos<br />
como se visita um museu.<br />
No entanto, essa densa presença de sobrenatural e<br />
de história, que em Veneza é incomparável, ainda senti<br />
quando tomei uma gôndola para passear pelos canais<br />
da cidade. Navegando no escuro entre aqueles palácios,<br />
tem-se a impressão de estar participando da vida psicológica,<br />
temperamental, social, daqueles personagens<br />
de trajes medievais ou do tempo das monarquias absolutas,<br />
com máscaras como se usava em Veneza, o bater<br />
dos remos na água, o brado dos gondoleiros para evitar<br />
trombadas; de repente, vê-se um homem que, ao passar<br />
diante de uma casa onde não quer ser reconhecido, pega<br />
o seu manto e cobre o corpo inteiro, só se desvendando<br />
mais adiante... Esses mistérios todos de Veneza temos<br />
a impressão de que ainda vivem, e nos metemos no meio<br />
deles ao passear de gôndola à noite pela cidade.<br />
O uso da lancha nos canais já estraga isso, porque o<br />
mistério vai embora. A lancha tem o determinismo estúpido<br />
das coisas mecânicas. O bonito é o silêncio, o mistério<br />
e o deslizar lento da gôndola, na qual os passageiros<br />
vão sentados meditando no que fizeram ou farão. Esse<br />
mistério tem seu charme.<br />
v<br />
Arquivo Revista<br />
(Extraído de conferência de 11/1/1989)<br />
Dr. Plinio diante da Catedral de São Marcos, em 1988<br />
35
Publicação Mensal Ano XXI - Nº 240 Março de <strong>2018</strong><br />
A certeza da<br />
Ressurreição
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Samuel Holanda<br />
Parece um conto<br />
de fadas!<br />
A Torre de Belém dá<br />
a impressão de ser<br />
um castelo completo<br />
e não apenas uma<br />
torre. Ela tem a<br />
pompa, a imponência,<br />
o entretenimento de<br />
uma fortificação. Suas<br />
pedras brancas ao Sol<br />
possuem particular<br />
encanto, parecendo<br />
um conto de fadas. Já<br />
a Catedral de Sevilha<br />
é uma fortaleza meio<br />
eclesiástica e uma<br />
igreja meio fortaleza.<br />
César Torres (CC3.0)<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Pedro Simões (CC3.0)<br />
Asimples vista da Torre de Belém sempre me<br />
produziu uma impressão parecida, na ordem<br />
natural, com o que seria um êxtase na<br />
ordem sobrenatural. Êxtase é uma atitude da alma<br />
quando há uma comunicação de Deus para com ela,<br />
que a faz ficar fora de si. Há coisas que na ordem natural<br />
podem produzir êxtases. Essa torre me produziu<br />
sempre um êxtase.<br />
Pompa, imponência e<br />
entretenimento de um castelo<br />
Daniel VILLAFRUELA. (CC3.0)<br />
Quando fui a Lisboa, visitei-a detida, prolongada e<br />
embevecidamente, mas não realizei o programa que tinha<br />
a respeito dela. Quem sabe se Nossa Senhora me<br />
dará a oportunidade de fazer isso algum dia: ir até lá à<br />
noite, inteiramente só, dar várias voltas à torre. Mais<br />
ainda, ter uma lancha à minha disposição, de maneira<br />
a poder contemplá-la a várias distâncias no Tejo. Isso<br />
para me fazer a ideia de qual era a atitude de alma de<br />
um missionário ou de um navegante português quando<br />
saía em direção ao Atlântico e via a Torre de Belém<br />
ficando menor… que saudades e embevecimento ela lhe<br />
causaria. E quando voltava e a observava ficar cada vez<br />
maior, que impressão ele experimentava.<br />
Esse edifício dá de tal maneira a impressão de ser um<br />
castelo inteiro, e não uma simples torre, que nos perguntamos<br />
como uma torre pode ser tão bela. Ela tem a pompa,<br />
a imponência, o entretenimento de um castelo, com isso<br />
de lindo: parece um conto de fadas! Sensação causada pela<br />
pedra branca com que é construída, e cujo brilho ao Sol<br />
tem um particular encanto, mas também por um predicado<br />
que se encontra em várias obras de arte portuguesas, e me<br />
agrada muito: o contraste entre o liso e o sobrecarregado.<br />
Notamos que as paredes da torre são inteiramente lisas,<br />
e sua monotonia é remediada, com vantagem, apenas pelo<br />
seguinte: de alto a baixo, uma linha constituída de uma<br />
primeira janela, depois dois pequenos arcos geminados e<br />
divididos por uma coluna graciosa, formando uma só janela.<br />
Em seguida, um terraço com dossel e dois pequenos<br />
arcos que repetem os de cima. Esse terraço é intensamente<br />
ornamentado e muito bonito. Temos então, reunidos numa<br />
superfície pequena, uma sobrecarga de ornatos que seria<br />
quase uma caixa de joias, um escrínio e não um terraço.<br />
Beleza artística e utilidade militar<br />
Logo abaixo temos a unidade assegurada pela última<br />
janela, muito simples, que repete a primeira. Assim, o<br />
epílogo lembra o início. São Tomás dizia que o círculo é<br />
uma figura perfeita porque volta à sua origem, pois tudo<br />
quanto retorna ao seu ponto de partida é perfeito. É<br />
bonito que o ponto de chegada desta linha perpendicular<br />
seja tão semelhante ao ponto de partida, pois essas duas<br />
janelas – a primeira e a última – são iguais.<br />
Notem também, para quebrar a monotonia, essas<br />
guaritas colocadas simetricamente bem nos ângulos da<br />
torre, todas com as mesmas características: o teto muito<br />
sobrecarregado, constituído de vários gomos e encimado<br />
por um cone, no alto do qual encontra-se uma esfera.<br />
32
Carlos L M C da Cruz (CC3.0)<br />
Arquivo Revista<br />
O resto, simplicíssimo. Uma simples janela, como costumam<br />
ter as guaritas, cuja pobreza, nudez e singeleza<br />
lembram a primeira e última janelas acima comentadas.<br />
Considerem as ameias da torre. É um alto terraço circular<br />
destinado, evidentemente, a verificar o que dia e<br />
noite se passa ao redor. A torre é concebida para se defender<br />
ela mesma contra um ataque do adversário. Mostrarei,<br />
em breve, os aspectos militares da torre.<br />
No que seria o parapeito, a torre tem uma série de<br />
brasões das casas fidalgas ilustres de Portugal. Cada<br />
uma dessas pontas é um brasão, lembrando as glórias<br />
das casas aristocráticas portuguesas. Uma porta dá<br />
acesso para um salão interno, onde os guardas descansavam<br />
e tomavam refeição.<br />
É muito bonita a altaneria e dignidade dessas várias<br />
divisas lembrando as glórias de Portugal. Assim, ao invés<br />
dos muros “dentados”, como costumam ser as edificações<br />
deste tipo da Idade Média, os “dentes” são representados<br />
por esses emblemas. Reparem como eles têm<br />
uma dignidade, um peso, um tamanho e uma força extraordinários.<br />
No intervalo entre um brasão e outro, o<br />
soldado atirava setas e, mais raramente, projéteis de armas<br />
de fogo primitivas que, na época em que a torre foi<br />
construída, apenas começavam a ser usadas. Feito o disparo,<br />
os combatentes se escondiam atrás dos brasões de<br />
pedra, de maneira a não serem facilmente apanhados.<br />
Vemos, assim, como a beleza artística coincide com a<br />
utilidade militar. O fato mesmo de haver tão poucas janelas<br />
é para defesa, limitando a entrada na torre. Por isso<br />
também a janela de baixo é muito simples e não tem<br />
terraço, para ninguém se pendurar e ficar atacando para<br />
dentro. Ademais, é janela com grade. Tudo com a preocupação<br />
de fazer da torre um uso militar.<br />
O unum se perde no céu<br />
No centro da torre ergue-se um torreão menor do que<br />
ela a fim de dar espaço para a ronda. Há, portanto, duas<br />
rondas: uma no alto, e outra embaixo. Há nisso uma razão<br />
militar muito boa, pois amplia muito o campo de visão<br />
e a possibilidade do acerto nos disparos.<br />
Mas além da razão militar existe uma vantagem estética.<br />
A torre assim como está impressiona muito, mas<br />
deixa na vista uma ilusão que resolve o seguinte problema:<br />
vemos a parte mais larga da torre e, acima dela, a<br />
mais estreita. Entretanto, em cima não existe um unum.<br />
Ora, tudo nesse monumento pede que haja um unum; essas<br />
guaritas pedem um unum. Onde ele está?<br />
A ideia é que o unum se perde no céu. É um unum meio<br />
imaginário, como seria e do cone do Fuji-Yama. Essa ideia<br />
é insinuada pela diferença da largura entre as duas partes<br />
da torre. A parte menor cria na imaginação, subconscientemente,<br />
a ilusão de outras menores que se sucedem, perdendo-se<br />
no céu, o que tem, portanto, uma grande beleza.<br />
Se considerarmos esse terraço na base da torre, que<br />
é a primeira linha da defesa dessa fortificação, percebemos<br />
mais uma vez os escudos e as guaritas repetindo o<br />
elemento ornamental de cima. Embaixo vemos janelas<br />
gradeadas, que dão para o calabouço, pois no porão da<br />
torre existiam prisões.<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Gabriel K.<br />
É muito bonita a largura desse terraço, porque tem<br />
uma certa relação estética com a altura da torre, fazendo<br />
com que o todo pareça muito amplo, quando na realidade<br />
é simplesmente uma torre. Essa torre está para o<br />
terraço mais ou menos como a rainha estaria para a cauda<br />
de seu vestido. O terraço é uma espécie de projeção,<br />
de cauda magnífica da torre. A rainha de pedra tem uma<br />
cauda também de pedra e olha altiva para a cidade, e dominadora<br />
para o mar. A posição é muito bonita.<br />
Cabral e Dom João VI<br />
Nesse terraço, quando partiam as esquadras portuguesas,<br />
às vezes o próprio rei vinha apreciar a partida<br />
da armada, acompanhado da rainha e outros membros<br />
da família real, com a corte, prelados, guerreiros, magistrados,<br />
que enchiam as muralhas e janelas da torre com<br />
pessoas esplendidamente vestidas. Desses terraços pendiam<br />
tapeçarias, e o colorido era magnífico. Podemos<br />
imaginar a beleza daqueles galeões avançando com o estandarte<br />
da Ordem de Cristo. Uma esquadra com cinco,<br />
oito navios, cânticos do lado de cá, cânticos do lado<br />
de lá. Quando as naus passavam diante do rei, reverência,<br />
com salvas de tiros no tempo das armas de fogo; e as<br />
naus desapareciam aos poucos no Atlântico.<br />
Pela Torre de Belém passou a esquadra de Cabral que<br />
vinha introduzir no mundo essa realidade chamada Brasil.<br />
Por ali passou também – em condições quão diferentes,<br />
mas não despidas de dignidade, nem de glória – a<br />
esquadra na qual Dom João VI vinha fugindo de Junot.<br />
À última hora, quando estava tudo pronto para partir,<br />
deu-se um episódio pitoresco. Ouviu-se do cais: “Para!<br />
Para!” Era um homem que vinha trazendo mais uma escrivaninha<br />
preciosa, esquecida no palácio real.<br />
Aliás, a partida de Dom João VI foi muito bem preparada.<br />
O monarca trouxe todo o ouro do tesouro de Portugal,<br />
o mobiliário dos palácios dele, obras de arte, joias,<br />
e até sardinhas, das quais ele gostava muito e sabia não<br />
haver no Brasil. De maneira que quando comermos sardinhas<br />
frescas, lembremo-nos de que elas descendem<br />
das sardinhas trazidas por Dom João VI.<br />
“Quem não viu Sevilha, não viu maravilha”<br />
Consideremos um outro monumento, agora na Espanha:<br />
a Catedral de Sevilha. Ela nos lembra um antigo<br />
provérbio português: “Quem não viu Sevilha, não viu<br />
maravilha.” Encontramos nesse edifício algo, mas muito<br />
pouco, do que elogiei na Torre de Belém. Essas duas<br />
torres laterais são muito ornadas. Entre elas, um espaço<br />
simples, com fundo claro e um gradeado muito bonito de<br />
ogivas e rosáceas, que fazem o contraste do simples com<br />
o muito embelezado.<br />
Vê-se uma faixa grande e muito ornada com imagens<br />
de Santos encimados por dosséis. Por cima do fundo simples<br />
ao qual aludi, encontra-se o portal com um triângulo<br />
34
magnífico, que é uma expressão da ogiva e, embaixo, uma<br />
porta ogival profunda. Em cima há algo parecido com<br />
aquela diminuição da Torre de Belém e, depois, também<br />
um terraço como no alto daquela torre. Essas guaritas no<br />
canto lembram igualmente a Torre de Belém. Não creio<br />
que isso tenha sido inspirado nela, mas são afinidades de<br />
estilo, muito compreensíveis entre Espanha e Portugal.<br />
A meu ver, o bonito dessa porta é que ela tem qualquer<br />
coisa de monumental. As torres têm uma altivez, levantam-se<br />
do chão com muita decisão e galhardia. Temos<br />
a impressão de que elas seguram o chão como se<br />
fossem garras, e sobem ao céu com uma segurança, uma<br />
inteira despreocupação do perigo de cair, e que sustentam<br />
o peso em cima com uma completa facilidade. Mais<br />
ainda, tenho a impressão de que elas olham do alto de<br />
si mesmas para a terra e para os pobres transeuntes, de<br />
cima para baixo, numa atitude de desafio, quase como<br />
quem diz: “Se ousas, experimenta. Só pela minha fisionomia,<br />
te afugento. É assim que eu sinto a terra.”<br />
Modos inocentes de aproveitar a vida<br />
Notem como esses arcos, que são arrimos das torres,<br />
foram transformados em verdadeiros ornatos pelos arquitetos<br />
muito artísticos do tempo.<br />
Há qualquer coisa de porta de fortaleza nesse magnífico<br />
portal. É uma característica muito sensível para<br />
mim, agrada-me muito essa fusão. Uma fortaleza meio<br />
eclesiástica e uma igreja meio fortaleza realizam a síntese<br />
de que eu gosto, isto é, os mais altos valores do espírito<br />
defendidos pela força e postos dentro da luta, com a<br />
entrega do homem e o risco da vida.<br />
É, por exemplo, a guerra religiosa, a guerra das almas e<br />
dos corpos, com uma integridade que constitui sua beleza.<br />
Um minúsculo pormenor característico da Península Ibérica<br />
é a palmeirinha, tão presente no Sul da Itália, da Espanha,<br />
de Portugal, mais rara no restante da Europa, frequente<br />
no litoral da África do Norte, tão comum no Brasil.<br />
Outra coisa também minúscula, mas que compõe o<br />
ambiente e o panorama: esse chafariz que provavelmente<br />
servia para os cavalos beberem água.<br />
Termino com um pequeno comentário a respeito das<br />
árvores. Em Granada se vê muito isso: no interior do<br />
Alhambra, aquelas partes muito bonitas, com os chafarizes<br />
cantando. Mais ainda: da fonte vêm sulcos para dentro<br />
dos quartos, com regozinhos que fazem com que a<br />
água brinque e corra em pequenos sulcos dentro do próprio<br />
quarto. Para um lugar quente, que maravilha! Esses<br />
são modos inocentes de aproveitar a vida, que tiram a mania<br />
e a obsessão de impureza. Por causa disso a Revolução<br />
combate o quanto pode para fazer com que a vida virtuosa<br />
seja sem graça. Contra isso, devemos nos levantar. v<br />
(Extraído de conferência de 15/1/1977)<br />
Smiley.toerist (CC3.0)<br />
35
Fé, Sabedoria,<br />
coerência de pensamento<br />
50 anos<br />
de sua entrada na Eternidade
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
SnoopyCo (CC3.0)<br />
Imponente e majestoso,<br />
mas sorridente e afável<br />
No Castelo de Versailles há um contraste muito<br />
inteligente entre o imponente, majestoso, sério,<br />
forte, coerente, e o risonho, afável, amável,<br />
aprazível, convidando a pessoa que o contempla<br />
a ficar à vontade junto de tanta grandeza.<br />
N<br />
a paisagem dentro da qual se insere a fachada<br />
do Castelo de Versailles que dá para os jardins,<br />
veem-se quatro elementos distintos. Em<br />
primeiro lugar, o próprio castelo, depois o lago ou tanque,<br />
os jardins e, por fim, o céu com as nuvens. Cada<br />
uma dessas coisas, dentro da perspectiva francesa, merece<br />
ser mencionada.<br />
A arte que não tem mistérios<br />
manifesta a mediocridade<br />
É interessante notar como tudo isso, para olhar de um<br />
relance só, é simples e completo. Porque ao se contemplar<br />
esse panorama gosta-se dele diretamente. É bonito,<br />
agradável e não oferece mistérios.<br />
30
Samuel Holanda<br />
Augusto P.<br />
Aliás, uma característica da arte desse tempo, que por<br />
um lado manifesta a mediocridade e, por outro, a grandeza<br />
– mas onde o aspecto de mediocridade é enormemente<br />
maior do que o de grandeza –, é precisamente não<br />
ter mistérios; tudo está explicado.<br />
Nota-se nos jardins uma riqueza de coloridos, de formas<br />
e de contornos extraordinária. Sucedem-se linhas sinuosas<br />
ora compostas de folhagem, ora de grama, ora<br />
ainda de flores em abundância, onde prepondera o formato<br />
arredondado.<br />
O lago, com um bordo de mármore, tem no centro um<br />
chafariz. Nos ângulos há também pequenos esguichos,<br />
de maneira que, quando soltam as águas, forma-se uma<br />
espécie de imensa catedral aquática com arcos e volutas;<br />
a água jorra de um lado e de outro produzindo uma fantasia<br />
de movimentos, todos muito harmoniosos e sóbrios,<br />
dentro da sua pluralidade, e constituindo uma espécie de<br />
castelo de água em frente ao castelo de pedra.<br />
O castelo propriamente dito é de uma cor meio indefinível,<br />
um pouco parecida com âmbar, um material um<br />
tanto dado a creme, tão discreta que quem olha acha<br />
bonita, mas não pensa diretamente na cor do castelo; a<br />
ideia da cor passa meio desapercebida.<br />
O edifício apresenta em relação ao jardim um contraste<br />
flagrante porque, enquanto o jardim é todo feito de sinuosidade<br />
e policromias, o palácio é composto de ângulos,<br />
linhas retas, onde há quase o excesso do duro contrastando<br />
com o quase excessivo do sinuoso. Exatamente<br />
ao se tocarem, esses quase excessos descansam a vista<br />
e dão uma espécie de harmonia.<br />
As nuvens compensam o que falta ao castelo<br />
Há, portanto, um contraste muito inteligente, bem<br />
pensado, entre o imponente, majestoso, sério, forte, coerente<br />
– de uma coerência cartesiana e quase hirta – e o<br />
risonho, afável, amável, aprazível, convidando a ficar à<br />
vontade junto de tanta grandeza.<br />
A água confere ao panorama uma variedade agradável.<br />
Nem tudo é flor, mas também nem tudo é água. Imaginem<br />
que isso fosse um aguaceiro; esse castelo, todo hirto<br />
e reto, tendo sua hirteza dentro da água: que melancolia!<br />
Por outro lado, se não tivesse a água, mas apenas flores,<br />
ficava um pouco monótono. A água dá uma nota nova<br />
diante de tanta variedade e confere ao todo uma poesia<br />
tão natural, que se tem a impressão de que isso não<br />
Samuel Holanda<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Wandernder Weltreisender (CC3.0)<br />
Augusto P.<br />
foi pensado. Para o gosto da época, o suprassumo era fazer<br />
algo artificial tão bem elaborado que desse a impressão<br />
de ser natural.<br />
O mesmo se dava com as boas maneiras. A elegância<br />
deveria ser tão natural que desse a impressão de proceder<br />
da natureza humana, sem a necessidade de estudo<br />
nenhum. Daí um empenho em apresentar as coisas de tal<br />
jeito, que a elaboração mais requintada não parecia senão<br />
uma decorrência suave e natural de todas as coisas.<br />
Por cima de tudo isso, vemos o céu. O fotógrafo apanhou<br />
as nuvens num momento muito feliz. Evidentemente,<br />
essas nuvens não foram postas aí por Luís XIV,<br />
mas creio ter havido uma grande coincidência ou um fotógrafo<br />
muito inteligente que soube quais nuvens apanhar,<br />
porque elas estão com a configuração exata para<br />
adornar a fotografia.<br />
Nota-se aí o gênio francês. Um suíço, por exemplo,<br />
preferiria um céu inteiramente azul, quanto mais azul,<br />
mais bonito. Isso ficaria bem em outro panorama, aqui<br />
não. Essas nuvens compensam o que falta de mistério.<br />
Inicialmente muito brancas e até luminosas, mas com<br />
uma massa um pouco grande, a partir de certo ponto vão<br />
se diluindo e escurecendo. Tem-se a impressão de ser algo<br />
que sobe e vai se avolumando por cima do castelo,<br />
construindo o começo de um drama sobre o castelo risonho<br />
e o céu azul. Dir-se-ia serem os primeiros sinais<br />
da Revolução Francesa misturados com as últimas glórias<br />
da monarquia.<br />
Tudo quanto é grande, ou tem algo de heroico ou de<br />
um pouco trágico, ou perde a sua grandeza. Ao Castelo de<br />
Versailles, em alguns dias falta essa nota trágica, heroica,<br />
misteriosa. As nuvens compõem isso perfeitamente.<br />
Temos, assim, uma paisagem aparentemente tão simples<br />
que se diria que uma criança riscou essa fachada,<br />
outra plantou esse jardim e tudo ficou muito bonito por<br />
coincidência.<br />
Wandernder Weltreisender (CC3.0)<br />
32
Confronto entre a mentalidade<br />
francesa e a norte-americana<br />
Para compreendermos bem a diferença de uma civilização<br />
para outra e sabermos fazer o confronto entre essa<br />
mentalidade e a norte-americana, por exemplo, tomemos<br />
o papel da costura na moda francesa e na moda norte-americana.<br />
Na moda francesa, quanto menos a costura aparecer,<br />
mais bonito é. Porque as coisas devem dar a impressão<br />
de não modeladas, espontâneas. E quando numa roupa<br />
não há remédio senão aparecer costura, na moda francesa<br />
de outros tempos punham-se sobre a costura alamares<br />
de ouro e de prata para dar a entender que aquele tecido<br />
não tinha sido costurado, mas constituía um pedaço homogêneo<br />
da fazenda, no qual com toda a naturalidade o<br />
marquês, por exemplo, tinha entrado.<br />
O sapato era de verniz e, quando o homem era nobre,<br />
com salto alto e vermelho, fivelas de ouro ou de prata. O<br />
ideal era também dar a ideia de que o calçado não tinha<br />
costura, de maneira tal que o único lugar onde ela aparecia<br />
era atrás, porque era inevitável, e assim mesmo, a<br />
menor possível, por onde só uma pessoa com olho agudo<br />
percebesse.<br />
O norte-americano transformou a costura numa pretensão<br />
a adorno. Então, sapatos em que a costura é feita<br />
no peito do pé e ainda se faz um babado e cose por cima<br />
para ficar uma sutura evidente. Nas roupas, bolso postiço<br />
por fora numa tentativa de transformar a costura, outrora<br />
escondida, num enfeite.<br />
São dois mundos, duas épocas, duas mentalidades. A<br />
época simbolizada por Versailles é a da naturalidade diáfana,<br />
leve risonha, ultrapensada, e que, depois de chegar<br />
à obra-prima de si mesma, apresenta-se com naturalidade<br />
e diz: “Eu sou assim.” É a última expressão de elegância,<br />
dentro da concepção francesa.<br />
Poder-se-á dizer a respeito dessa concepção tudo<br />
quanto se queira; entretanto, ninguém poderá afirmar<br />
que ela é medíocre. A meu ver, ela é propriamente extraordinária.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 10/6/1969)<br />
Rainha Maria Leszczyńska, esposa do Rei<br />
Luiz XV - Palácio de Versailles, França<br />
GAC (CC3.0)<br />
33
Sarça ardente<br />
de esperança
Apóstolo do pulchrum<br />
(CC3.0)<br />
O cone do<br />
Fuji-Yama<br />
O aspecto emocionante do Fuji-Yama é que ele faz surgir<br />
a ideia de como seria um cone perfeito. Vê-se nesse cone,<br />
sobretudo, o sublime. O fato de ele não existir, mas<br />
ser imaginário, insinua um cone de uma beleza como<br />
que irreal, que vai diretamente para o maravilhoso.<br />
A louçania da inocência vem disso: contemplar o<br />
“cone do Fuji-Yama” naquilo que nos rodeia.<br />
Ao contemplar uma fotografia representando o Fuji-Yama,<br />
procura-se, quase instintivamente, colocar<br />
com a mão a ponta do cone. Mas ninguém faz<br />
ali o cone perfeito, que daria toda a beleza à montanha.<br />
Um sublime com clarões paradisíacos<br />
Embora seja uma coisa física, é à maneira de um conhecimento<br />
metafísico, sob a forma de negação – não é<br />
este cone, nem aquele, nem aquele outro –, que aparece<br />
uma ideia de como seria um cone perfeito. E, a meu ver,<br />
o aspecto emocionante do Fuji-Yama é esse.<br />
Tenho a impressão de que se vê no cone do Fuji-Yama,<br />
sobretudo, o sublime. O fato do cone não existir, mas ser<br />
imaginário, insinua um cone de uma beleza como que irreal,<br />
que vai diretamente para o maravilhoso. E é claro<br />
que, no imaginar o cone maravilhoso, entra por detrás<br />
uma nota de sublimidade.<br />
No cone do Fuji-Yama há um sublime com clarões paradisíacos.<br />
Cada grau de beleza tem lampejos do grau<br />
superior, e o mais tênue dos graus possui um fulgor de<br />
sublimidade.<br />
Talvez nem todo o mundo veja o “cone do Fuji-Yama”<br />
das coisas. De onde me parece perceber que a louçania<br />
34
Monte Fuji<br />
Ilha Honshu, Japão<br />
da inocência venha disso: ver o “cone do Fuji-Yama” naquilo<br />
que nos rodeia.<br />
A Civilização Cristã<br />
É uma alegria ver todas as coisas na sua ordem ideal,<br />
achar que foram feitas para essa ordem e perceber que<br />
clamam por ela; todo o movimento da natureza no Paraíso<br />
seria uma realização do “cone do Fuji-Yama”.<br />
E há nesta Terra uma civilização, não digo incompleta,<br />
mas com lacunas, que tende para a realização desse<br />
“cone do Fuji-Yama” da natureza: é a Civilização Cristã.<br />
Daí decorre que tudo se apresenta numa ordem magnífica,<br />
que seria certo “otimismo” se não fosse o fato de haver<br />
pelo meio o inimigo do homem, o demônio e todo o resto.<br />
A Igreja Católica e a doutrina por ela ensinada facilitam<br />
a dar o “cone do Fuji-Yama” de tudo, e apresentam<br />
o universo, toda a natureza, nessa ordem. Não está dito<br />
formalmente, mas é isto.<br />
Daí vem a certeza de que, ou acaba o mundo, ou as<br />
coisas têm de caminhar para essa ordem. Porque há um<br />
clamor de todas as coisas para isso, e esse clamor ruge e<br />
pede a Deus por vingança quando é contrariado. v<br />
(Extraído de conferências de 5/9/1974, 5/5/1975 e 10/11/1980)<br />
35
Publicação Mensal Vol. XXI - Nº 243 Junho de <strong>2018</strong><br />
Contrastes divinamente<br />
harmônicos
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Altaneria e<br />
Flávio Lourenço<br />
estabilidade sacrais<br />
Nesse castelo estiveram os cruzados<br />
que lutaram contra os mouros.<br />
Existe nele um contraste harmônico<br />
entre a altaneria e a estabilidade,<br />
que de algum modo marca a<br />
sacralidade da fortaleza. Quando<br />
vier o Reino de Maria e de novo<br />
a luz do Espírito Santo brilhar na<br />
Terra, que altaneria e estabilidade<br />
magníficas terá esse Reino, pois<br />
será muito superior à Idade Média!<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
José-Manuel Benito (CC3.0)<br />
Opanorama que vamos comentar compõe-se basicamente<br />
de três elementos: o Castelo da Mota – em<br />
Medina del Campo, na Espanha –, o céu e a árvore.<br />
Muralhas altas, belas, dignas<br />
No castelo, que evidentemente é a nota dominante, encontramos<br />
dois aspectos principais: as muralhas, nas quais<br />
se destacam os grandes torreões de ângulo, que sobressaem<br />
como um elemento inteiramente distinto das muralhas,<br />
e a torre que, por sua vez, é a nota dominante do castelo.<br />
Parece-me mais interessante começarmos por analisar<br />
o castelo, partindo do elemento secundário para depois<br />
passar para o principal. O elemento secundário é constituído<br />
pelas muralhas e os torreões que as integram.<br />
As muralhas são altas, bem trabalhadas, belas, dignas,<br />
altivas. Entretanto, não têm nada de extraordinário.<br />
Elas possuem uma beleza real, mas frequente em<br />
muitos monumentos medievais desse tipo. Aliás, há muralhas<br />
muitíssimo mais bonitas do que essas. Ao menos<br />
para o meu gosto, a muralha de uma pedra sombria, um<br />
granito carregado e “preocupado”, exprime muito mais<br />
tudo quanto a muralha tem a exprimir do que essa pedra<br />
um pouco branca, tornada ainda mais reluzente pela<br />
luz do Sol, com uma aparência festiva, não parecendo<br />
propriamente militar, como era a finalidade das muralhas<br />
naquele tempo. Eu até chegaria a chamá-la de uma<br />
muralha plácida, tranquila. Ela se estende à maneira de<br />
um retângulo, sem maiores movimentos, com os torreões<br />
intercalados simetricamente, sem maior fantasia, obedecendo<br />
simplesmente a uma necessidade militar, mas sem<br />
nenhuma preocupação de estética mais particular.<br />
Torre altaneira, forte, firme<br />
Em contraste com esse aspecto e, portanto, realçando-o,<br />
vem a torre alta, imponente, que desafia e se ergue<br />
muitíssimo acima da muralha, fazendo desta quase como<br />
o véu ou manto que pende da cabeça de uma rainha.<br />
A diferença de altura, de poesia, de fantasia, de imaginação<br />
que vai da torre para os muros é enorme. Por esta<br />
forma, destaca-se extraordinariamente a torre, tornando-a<br />
verdadeiramente a nota dominante.<br />
Como eu disse acima, as muralhas erguem-se altivas.<br />
Entretanto, a altaneria da torre é realçada pelos torreões<br />
de ângulo que lhe dão a fisionomia especial. A torre<br />
se ergue altaneira, mas ao mesmo tempo atarracada,<br />
forte, firme, como quem diz: “Eu olho de cima, desafio,<br />
mas resisto. Não tenho medo de nada. Meu ângulo está<br />
disposto a cortar os vagalhões dos adversários como<br />
a proa de um navio fende os mares. Para mim nada oferece<br />
insegurança. Estou disposta a resistir de todo jeito,<br />
a todo transe. A mim ninguém derruba. Nem sequer<br />
Chefocom (CC3.0)<br />
32
Wamba Wambez (CC3.0)<br />
depois de abandonada e isolada, tendo sido retirado de<br />
mim qualquer uso militar, deixarei de ser uma proclamação<br />
viva dos ideais aos quais servi.” Dir-se-ia que<br />
por cima dos séculos ela espera outros adversários para<br />
prestar novos serviços aos mesmos ideais. Ela está intacta.<br />
Para ela o tempo, o abandono dos homens, a mudança<br />
das circunstâncias não querem dizer nada. Ela espera,<br />
serena, o fim do mundo e não teme o juízo de Deus.<br />
É uma afirmação de um estado de espírito de consciência<br />
tranquila que caminha para a morte e a eternidade<br />
sem se preocupar com elas. Assim vejo eu a fisionomia<br />
dessa torre.<br />
O céu muito azul e a luz que bate no castelo, de que<br />
maneira colaboram para compor o panorama?<br />
Zoser (CC3.0)<br />
Contando Estrelas (CC3.0)<br />
Fortaleza ufana, mas triste<br />
A meu ver, esse castelo, como se encontra, dá a impressão<br />
de um esqueleto calcinado pelo Sol. Nota-se que<br />
a vida de todos os dias não se desenrola mais nele. Tem-<br />
-se a impressão de que, por dentro, ele está pouco mais<br />
ou menos abandonado. Por causa disso, tem-se também<br />
a sensação de uma espécie de imenso naufrágio, cuja<br />
tristeza e cujo abandono são acentuados pelo esplendor<br />
da luz solar, como quem diz: “A luz bate, a natureza toda<br />
se alegra indiferente à tristeza do castelo.”<br />
A fortaleza é ufana, mas triste. Há nela qualquer coisa<br />
que não tem nada de ruína, mas anuncia a ruína de<br />
uma ordem de coisas que dentro dela houve.<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Porém, esse é apenas um aspecto. De outro lado, há<br />
uma certa alegria que a luz do Sol comunica ao castelo.<br />
Alguma coisa que dá a impressão de uma esperança de<br />
reviver. E há uma melancolia e um élan que, juntos, produzem<br />
uma sensação um pouco indefinida. Não se sabe<br />
bem se é de vitória ou de tragédia. A meu ver, no fundo, é<br />
a conjugação das duas coisas.<br />
A árvore comunica um pouco de vida ao conjunto da<br />
paisagem. Se a imaginássemos sem a árvore, essa impressão<br />
de desolação se acentuaria ainda mais. Dir-se-ia que<br />
um pouco de seiva, de sorriso de vida concreta se recosta<br />
junto ao velho castelo e dá um pouco de animação àquilo<br />
que é tão hirto e de tal maneira calcinado pelo Sol.<br />
“Represento a sacralidade contra as<br />
hordas de maometanos que invadem”<br />
Lembro-me de uma exclamação do Marechal Mac<br />
Mahon 1 durante a Guerra da Crimeia, a qual eu cito por<br />
causa da concisão francesa que a caracteriza: “J’y suis,<br />
j’y reste – Aqui estou, aqui permaneço.” Essa afirmação,<br />
que em sua simplicidade é muito sobranceira, poderia<br />
ser aplicada a esta torre. Ela, por assim dizer, olha muito<br />
de cima todos os adversários, mas está agarrada ao<br />
chão, como a afirmar: “Este chão é meu e daqui ninguém<br />
me tira. Eu fico!”<br />
Mas não é só isso. Uma coisa é a altaneria do Mac<br />
Mahon, outra é a de uma torre medieval. Quer dizer, é<br />
preciso compreender a altaneria, a persistência, a estabilidade,<br />
não como a de um homem – por exemplo, Mac<br />
Mahon – durante uma guerra, mas a de uma era, de uma<br />
civilização, de uma cultura. É, em última análise, a estabilidade<br />
e a altaneria da Fé católica. Ou seja, gente que<br />
não crê na vida eterna não é capaz de ter esse tipo de altaneria<br />
e estabilidade simbolizadas por essa torre.<br />
Não é a sobranceria de quem se compara com o adversário<br />
para declarar: “Eu sou mais!” Mas daquele que,<br />
por assim dizer, toca no céu e afirma: “O céu em que eu<br />
toco é incomparavelmente mais. Represento aqui o Céu,<br />
Deus Nosso Senhor, a sacralidade contra as hordas de<br />
maometanos que invadem.” É, portanto, uma altaneria e<br />
uma estabilidade sacrais. A sacralidade me parece estar<br />
fortemente presente aí.<br />
Assim eu definiria esse castelo.<br />
Contraste harmônico entre<br />
altaneria e estabilidade<br />
Devemos procurar lembrar que aqui estiveram os<br />
cruzados; esse castelo foi utilizado na luta contra os<br />
mouros. Vemos bem a alma católica que nele se exprime,<br />
por exemplo, na parte superior da torre. Ela é quase to-<br />
Garijo (CC3.0)<br />
34
da lisa, em cima as ameias e os torreões se acumulam, e<br />
há qualquer coisa de carregado no topo que leva para o<br />
alto, meio difícil de exprimir. Esse contraste harmônico<br />
entre a altaneria e a estabilidade de algum modo marca<br />
também a sacralidade do castelo.<br />
Donde se poderia dizer: “Ó altaneria católica, ó estabilidade<br />
católica, ó Divino Espírito Santo estável e altaneiro!”<br />
E imaginar, por exemplo, Pentecostes, com as<br />
línguas de fogo caindo, em que todas as virtudes estavam<br />
simbolizadas, como seria ali a altaneria e a estabilidade.<br />
É uma verdadeira maravilha.<br />
Ou então conjeturar, quando vier o Reino de Maria e<br />
de novo a luz do Espírito Santo brilhar na Terra, como<br />
será a altaneria e a estabilidade. Se o Reino de Maria será<br />
mais do que a Idade Média, que altaneria e que estabilidade<br />
magnífica terá?<br />
Para isso é que devemos ter os nossos olhos voltados.<br />
É a transcendência que vai até o Espírito Santo, e tem<br />
uma projeção profética para o futuro.<br />
Contando Estrelas (CC3.0)<br />
Contando Estrelas (CC3.0)<br />
Desaparecimento gradual dos castelos<br />
Com o passar do tempo, foram-se fazendo fortificações<br />
cada vez menos bonitas e menos elevadas, até chegar<br />
ao anódino, até precipitar-se na feiura. Há todo um<br />
problema de arte militar para discutir, sobre se verdadeiramente<br />
esses castelos se tornaram inúteis com as armas<br />
de fogo; eu discuto isso. Por exemplo, quando do alto<br />
das torres da Bastilha os canhões dispararam a serviço<br />
da Fronda, eles foram muito mortíferos. Por que então<br />
uma arma de fogo não é útil do alto de uma torre? É<br />
uma questão para se analisar.<br />
Mas, enfim, começaram por fazer castelos sem torres. E<br />
depois, naturalmente, a não fazer mais castelos. Então verificamos<br />
essa coisa curiosa: nas batalhas do século XIX –<br />
de Napoleão, por exemplo –, de vez em quando houve combates<br />
encarniçados para a posse de uma aldeia presente no<br />
meio de um campo de batalha. Por que a posse da aldeia?<br />
Porque aquelas construções são estratégicas para o ataque<br />
ou para a defesa. Mas então, como um castelo não seria?<br />
O desaparecimento gradual dos castelos, das fortalezas,<br />
deu lugar à arte militar baseada em trincheiras. Começava,<br />
assim, a guerra das baratas e das lesmas.<br />
É evidente que isso tudo tem uma razão técnica. Porém,<br />
haveria apenas razões técnicas? Isso seria discutível... v<br />
Contando Estrelas (CC3.0)<br />
Contando Estrelas (CC3.0)<br />
(Extraído de conferência de 3/1/1975)<br />
1) Patrice de Mac Mahon (*1808 - †1893). Estadista francês,<br />
Marechal de França e Presidente da República francesa de<br />
1873 a 1879.<br />
35
Publicação Mensal Vol. XXI - Nº 244 Julho de <strong>2018</strong><br />
Opus tuum fac!
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Erics (CC3.0)<br />
Ponto de partida da<br />
Civilização Cristã<br />
Gabriel K.<br />
Um jovem de família nobre abandonou<br />
tudo para viver na solidão, numa gruta<br />
entre montanhas agrestes. Toda a natureza<br />
fazia eco aos seus ideais, e cada vez que<br />
ele dava um passo ascendente no caminho<br />
da fidelidade, os Anjos cantavam e os<br />
demônios rugiam. Esse foi São Bento,<br />
árvore da qual brotaram todas as sementes<br />
que se espalharam pela Europa, dando<br />
origem à Cristandade ocidental.<br />
WGA (CC3.0)<br />
27
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Subiaco foi o ponto de partida da Civilização Cristã,<br />
tomando em consideração a Cristandade na<br />
Europa Ocidental. Não me refiro, portanto, a Bizâncio<br />
e àquela parte do Oriente, nem ao Norte da África,<br />
mas sim à parte da Cristandade que depois viria a se<br />
desenvolver mais, e da qual nasceriam a América e todas<br />
as expansões católicas pelo mundo.<br />
“Eu me dou por inteiro”<br />
Tudo estava na seguinte situação:<br />
os bárbaros tinham ocupado todo o<br />
Império Romano e havia restos de civilização<br />
romana; ao lado disso, pagãos<br />
e bárbaros em grande quantidade,<br />
formando um caos do qual era<br />
preciso que emergisse uma coisa diferente.<br />
A Igreja estava trabalhando empenhadamente<br />
nisso, e agindo como<br />
ela o faz. A Igreja não trabalha sempre<br />
à raiz de grandes homens, mas<br />
sempre à raiz da graça. O grande homem<br />
às vezes aparece, e quando ele é<br />
grande santo, humilde, casto, sai alguma<br />
coisa que preste. Então, na base<br />
da conjunção de todos esses fatores<br />
a Igreja ia fazendo o seu dever, pregando, ensinando<br />
a cada um nas paróquias, nas dioceses, segundo a ordenação<br />
posta por Nosso Senhor Jesus Cristo, e que ela<br />
mesma, orientada pelo Espírito Santo, ia completando,<br />
acomodando as circunstâncias, etc. Nisso tudo a Igreja,<br />
dia a dia, ia fazendo penetrar a graça nas almas que quisessem<br />
recebê-la. E muitas dessas almas recebiam essas<br />
“Meu filho, eu o<br />
quero e o quero<br />
inteiro. Você se<br />
dá inteiro?” E<br />
ele respondeu:<br />
“Sim, eu me dou<br />
por inteiro.”<br />
graças. E as acolhiam melhor do que se recebe a graça<br />
hoje em dia.<br />
Mas poder-se-ia dizer que nessa situação em que a<br />
graça soprava por todos os lados e abria algumas flores<br />
de cá, de lá e de acolá, algo estava por acontecer de<br />
muito grande e de muito bonito como desfecho desta<br />
semeadura semibem recebida por toda parte. E o desfecho<br />
é exatamente o fato de que um<br />
jovem, de família senatorial, quer<br />
dizer, família nobre, patrícia, São<br />
Bento, com um imenso chamado divino<br />
para a obra especial dele, resolveu<br />
dar-se totalmente. A graça<br />
lhe disse: “Meu filho, eu o quero e o<br />
quero inteiro. Você se dá inteiro?” E<br />
ele respondeu: “Sim, eu me dou por<br />
inteiro.”<br />
Mas para dar-se por inteiro a experiência<br />
mostrava que ele não poderia<br />
ficar naquele misto de barbárie<br />
e de cultura romana decadente,<br />
em que se encontrava a Europa. Ele<br />
então se retirou para um local a fim<br />
de ali morar só. E por quê? Para ser<br />
santo. São Bento provavelmente não<br />
notava que ele era a árvore da qual<br />
brotariam todas as sementes a serem<br />
espalhadas pela Europa. Esse é o fato beneditino. E ele<br />
foi só, a fim de ser só de Deus e de Nossa Senhora, para<br />
um lugar completamente ermo, onde não houvesse nada<br />
que perturbasse a inteira entrega dele a Nosso Senhor, e<br />
ali entregar-se à devoção, à meditação, à penitência, para<br />
que a graça tomasse cada vez mais conta da pessoa<br />
dele.<br />
Marcos França<br />
Marcos França<br />
28
Através de São Bento,<br />
Deus tomou inteiramente<br />
conta da Europa<br />
Nós o podemos imaginar jovem<br />
– como consta que ele era –, de boa<br />
apresentação, bem dotado, com os<br />
predicados de uma família senatorial,<br />
despreocupado de tudo isso, não pensando<br />
nos seus dotes nem como seria<br />
comovedor naquela gruta, ou naquele<br />
castelo de grutas, ou silvestre palácio<br />
de grutas em que ele se embrenhou,<br />
onde cada gruta dava abertura para<br />
outra como em um palácio um salão<br />
dá acesso para outro. Não estava pensando<br />
como era comovente ver o isolamento<br />
de um jovem da figura, dos antecedentes<br />
dele, com as possibilidades<br />
dele, renunciando a tudo e entregando-se<br />
a Deus. Porque não pensava em<br />
si, mas em Deus.<br />
Naquela solidão, ele começava,<br />
portanto, a vida de virtude que faria<br />
da sua alma o elemento modelador<br />
de toda uma família religiosa, que<br />
se prolonga até hoje e se prolongará<br />
até não sei quando. Eu tenho a vaga<br />
ideia de ter lido que a Ordem beneditina<br />
tem mais de dois mil santos<br />
canonizados. Isso sem falar de outras<br />
Ordens religiosas que são beneditinas<br />
na origem, mas tomam a regra<br />
de São Bento e dão outras acomodações,<br />
interpretações, são outras<br />
vocações dentro da Ordem beneditina:<br />
trapistas, cistercienses,<br />
olivetanos e outros ramos ainda.<br />
São Bento cuidava apenas de se dar inteiramente a<br />
Deus. O Criador tomava conta inteiramente dele, para<br />
através dele tomar completamente conta da Europa.<br />
Mas é preciso notar o seguinte: nesta situação, entregue<br />
a essa solidão extraordinária, ele recebia comida de<br />
um outro anacoreta que vivia em uma gruta acima, com<br />
quem não conversava nunca. O anacoreta recebia alimento<br />
de um corvo, se não me engano, amarrava a comida em<br />
uma corda e a passava para baixo, e ele comia o que mandavam.<br />
Mais nada. O único contato que ele tinha com o<br />
mundo exterior era numa certa hora na qual via uma corda<br />
descer. Ele comia e a corda subia. E nada dos dois ficarem<br />
se olhando, fazendo sinaizinhos, comentários como<br />
“o tempo hoje está ruim”. Solidão total, total, total.<br />
Grutas que ouviram o eco dos seus<br />
passos, prantos e cânticos de alegria<br />
Nesse ambiente, nessa solidão predestinada o espírito<br />
humano gosta de imaginar que até as ervinhas, as grandes<br />
árvores, a vegetação e as ondulações do terreno eram<br />
impregnadas de graças, que tinham um pressentimento<br />
profético do que ele deveria ser. E quem menos sabia o<br />
que estava para nascer era São Bento. Ele tinha os seus<br />
ideais, e todos os montes, vales, colinas – usando a expressão<br />
de Camões empregada para um fim muito inferior<br />
– e ervinhas davam repercussão, faziam eco aos seus<br />
ideais, e os ventos quando sopravam cantavam; e tudo<br />
isso ele não notava.<br />
TYP (CC3.0)<br />
29
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Flávio Lourenço<br />
Gabriel K.<br />
Flávio Lourenço<br />
E uma pessoa estando lá, hoje em dia, pode ainda encontrar<br />
aquelas ervas, remotas bisnetas das ervas da<br />
época dele. Aqueles montes ainda são os mesmos e na<br />
sua imobilidade pétrea ou térrea ainda têm a configuração<br />
de outrora, aquelas grutas que são as mesmas<br />
e ouviram o eco dos passos, os soluços, os prantos dele<br />
durante as crises, as tentações, as orações, os cânticos<br />
de alegria, etc., durante toda a<br />
vida dele repercutiram ali, e algo<br />
se poderia sentir. E quem<br />
vai a um lugar assim procura<br />
de algum modo sentir esses<br />
ecos de uma história<br />
que lá se passou.<br />
“Meu filho, há<br />
algo verdadeiro<br />
dentro disso<br />
sem que você<br />
possa distinguir<br />
bem o que é...<br />
Locais que ficam impregnados<br />
por maldições ou bênçãos<br />
Esta procura se dá, aliás, com histórias de outra natureza.<br />
Vou dar um exemplo horrendo, que me ocorre no<br />
momento. Parece que Judas se enforcou numa figueira<br />
brava, que dá figos não comestíveis pelo homem.<br />
Mas imaginem que ele se tivesse<br />
pendurado em uma macieira, a qual<br />
ainda estivesse viva e dando frutos.<br />
Há um homem no mundo que quereria<br />
comer uma maçã dessa árvore? E<br />
se alguém tocasse numa delas, dever-<br />
-se-ia dizer-lhe: “Vá lavar suas mãos<br />
na água benta! Queime essa maçã!<br />
Sepulte nas entranhas da terra, onde<br />
os vermes irão liquidá-las, as cinzas<br />
que dessa maçã possam resultar.<br />
Procure esquecer o lugar onde<br />
essa cinza ficou. Em todo caso, nunca<br />
mais passe por perto. Porque com<br />
Judas nada! É um homem cujo nome<br />
próprio é ultraje. Chamar alguém de<br />
Judas é insultá-lo do modo mais pesado<br />
possível!”<br />
Em volta dessa macieira nenhum de nós teria surpresa<br />
de saber que o cheiro é mau, quebrando aquele pau<br />
sai uma resina asquerosa misturada com vermes, e a doença,<br />
a maldição, a infelicidade, as tentações do demônio<br />
assediam a quem se aproxima da macieira da maldição.<br />
Por quê? Porque as coisas ficam impregnadas.<br />
É assim também com as bênçãos. Uma pessoa pensar,<br />
olhando de dentro daquelas grutas as montanhas:<br />
“Houve tardes em que o tempo estava bonito como o de<br />
hoje, e São Bento sentindo que o dia tinha passado na<br />
virtude, e auscultando os movimentos interiores da graça,<br />
conjeturando com probabilidade que a noite seria<br />
30
tranquila, sentado no átrio externo dessa gruta, olhava o<br />
Sol se pôr e dava graças a Deus, porque tinha sido mais<br />
um dia aparentemente tão vazio para o homem, mas na<br />
realidade tão cheio para ele.” Então<br />
visita-se um lugar desses procurando<br />
fazer a recomposição.<br />
Estes são imponderáveis que talvez<br />
realmente existam no lugar por<br />
disposição da Providência, e que algumas<br />
almas têm feitio para pensar.<br />
Elas têm mais disposição, mais aptidão,<br />
talvez um pouco mais de graça<br />
do que outras. É um lado. Mas também<br />
pode acontecer que algumas almas<br />
sejam mais poéticas, e tenham o<br />
dom de imaginar as coisas como foram,<br />
e sabem que estão fazendo apenas<br />
uma poesia, uma irrealidade pela<br />
qual possam saborear um pouco a realidade que houve.<br />
E muitas vezes o que se dá é uma coisa trançada: há<br />
uma poesia, uma imaginação que se sabe não ser real,<br />
mas existe qualquer<br />
palpitar da graça<br />
que diz: “Meu filho,<br />
há algo verdadeiro<br />
dentro disso sem que<br />
você possa distinguir<br />
bem o que é, saboreie<br />
porque no meio<br />
desse gosto existe o<br />
sabor da verdade.”<br />
Lógica, força<br />
e calma<br />
Analisemos, então,<br />
algumas fotografias<br />
de Subiaco.<br />
Isto certamente<br />
São Bento não<br />
viu. Portanto não fez<br />
parte do quadro que<br />
ele teve diante de si,<br />
porque foi construído<br />
depois. Homens<br />
chamados antes de<br />
tudo para a vida religiosa<br />
se fixaram<br />
aqui, atraídos pela<br />
graça, certos de que<br />
a presença nesse lugar<br />
abençoado lhes<br />
...saboreie<br />
porque no meio<br />
desse gosto<br />
existe o sabor<br />
da verdade.”<br />
trazia uma participação nas enormes graças que São<br />
Bento recebeu.<br />
Eu tenho tantas e tantas vezes elogiado a ogiva; deixem-me<br />
fazer um pouquinho de elogio<br />
do arco românico. Encontram-<br />
High Contrast (CC3.0)<br />
-se na base quatro arcos desiguais.<br />
O arco da esquerda é bem grande,<br />
e suporta sozinho uma parte maior<br />
do peso que vem de cima. Os dois<br />
arcos teriam talvez a metade do tamanho<br />
do arco grande; cada um<br />
sustenta um peso bem menor do<br />
que suporta o arco maior. E no extremo<br />
oposto há um arco o qual me<br />
parece ligeiramente ogival, e que<br />
provavelmente foi posterior. Também<br />
pode ter saído ogival mais ou<br />
menos por acaso, sem intenção nenhuma<br />
dos indivíduos de cultura românica que construíram<br />
isso. Mas esses arcos românicos dão uma<br />
ideia de lógica, de força, de calma, que é muito bonita<br />
e não deixa até de<br />
ter sua majestade.<br />
O mosteiro em cima<br />
seria um edifício<br />
de favela. É construído<br />
com tanta irregularidade<br />
que as<br />
janelinhas, as portinhas<br />
fazem no andar<br />
térreo um zigue-<br />
-zague, ora para cima,<br />
ora para baixo,<br />
que parece não ter finalidade<br />
ornamental.<br />
Da terceira janela<br />
para a direita há<br />
uma janela solta pelo<br />
meio, e não se sabe<br />
bem por que ela é<br />
tão grandona; enfim,<br />
nada é bonito. Entretanto,<br />
o todo tem<br />
uma beleza inegável,<br />
indefinível, que<br />
se sente na situação<br />
de um monge beneditino<br />
passeando e<br />
rezando seu Rosário<br />
no terraço que fica<br />
em cima desses arcos<br />
todos.<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Jorge A .A.<br />
Viver é olhar para o Céu<br />
Imaginem um monge andando sozinho, rezando e meditando<br />
sobre São Bento, tal episódio da vida de Nosso<br />
Senhor, o Rosário, tal fato da vida de Nossa Senhora.<br />
Como teria São Bento meditado esses fatos? O Rosário<br />
ainda não existia no tempo dele; foi revelado por Nossa<br />
Senhora, em plena Idade Média, a<br />
São Domingos de Gusmão.<br />
Mas vamos imaginar aquele monge<br />
andando de um lado para outro, sozinho,<br />
e posto nessa solidão onde não há<br />
nenhum barulho, porque não existe<br />
agricultura, não se vê passar um homem,<br />
um bicho, nada se muda a não<br />
ser um arvoredo encaracolado que, às<br />
vezes, é seguido por uma grama escassa<br />
sobre uma terra feia e dura, e que<br />
parece não servir para nada. É a negação<br />
de tudo, o vazio, mas ali está<br />
um monge com grandes ideias, grandes<br />
considerações, fenômenos místicos<br />
dos quais ele tem ou não tem consciência<br />
e que o unem enormemente a<br />
Nossa Senhora. Dir-se-ia que os passos<br />
dele fazem eco aos passos de São<br />
Bento, e que esses arcos embaixo possuem<br />
algo da lógica, da força simples,<br />
robusta e despretensiosa da alma de São Bento, o qual era<br />
uma alma em arcadas assim, imagino eu.<br />
Veem-se duas montanhas que se encontram na base,<br />
formando uma espécie de “V”. Alguém perguntaria,<br />
Sem ter a<br />
certeza do que<br />
ia nascer de lá,<br />
São Bento sentia<br />
que qualquer<br />
coisa de muito<br />
grande se<br />
jogava no Céu.<br />
por curiosidade: “O que há além?” Existe outro tanto<br />
igual a esse, vazio, árido, inútil, servindo apenas para<br />
essa coisa também inútil, da qual vive a Terra: a solidão.<br />
A solidão dos homens chamados para a solidão. Mais<br />
adiante se forma outro “V” e depois outro, e só o que se<br />
vê são montes assim. O homem se sente perdido na solidão,<br />
na terra árida, para ele a vida<br />
não reserva mais nada. Viver é olhar<br />
para o Céu: “Pater noster qui es in cœlis,<br />
sanctificetur nomen tuum...”<br />
A Cristandade europeia<br />
estava nascendo<br />
No prédio da esquerda há um pouco<br />
mais de arquitetura. Existem uma<br />
rosácea e um campanariozinho construídos<br />
muito tempo depois, certos<br />
adornozinhos quão pobres e modestos,<br />
o suficiente para, com os ecos do Angelus<br />
na aurora e no pôr do Sol, às seis<br />
da manhã e às seis da tarde, saudar a<br />
Nossa Senhora e fazer com que esses<br />
ecos santifiquem aquelas solidões.<br />
Notem aquelas montanhas. Nenhuma<br />
delas desce de modo bonito,<br />
não tem aquelas flexões e deflexões<br />
doces dos montes da Baía da Guanabara, nem é amiga<br />
da montanha seguinte. Essas são montanhas agrestes<br />
justapostas pela mão de Deus, que não se conhecem<br />
umas às outras, e parecem dilaceradas diante do céu.<br />
Em outra fotografia vemos a gruta. Tudo é desconforto,<br />
solidão. Devemos<br />
imaginar São Bento<br />
sentado lá, lendo um<br />
livro e pensando... Ele<br />
não sabia, mas a Europa<br />
estava nascendo.<br />
Muito melhor que a Europa,<br />
a Cristandade europeia<br />
estava surgindo.<br />
Ele não teria a menor<br />
ideia da quantidade<br />
dos peregrinos que<br />
iriam humildes, reverentes,<br />
oscular esse lugar.<br />
Mas cada peregrino<br />
que vai ao Mosteiro<br />
de Subiaco leva uma<br />
gotazinha de glória extrínseca<br />
para São Bento<br />
no Céu.<br />
Jorge A .A.<br />
32
ALM<br />
Jorge A .A.<br />
Os Anjos cantavam e os demônios rugiam<br />
Vemos um conjunto bem construído, que foi edificado<br />
depois, com ogivas, etc. Construído a legítimo título, mas<br />
nos dá apenas um aspecto da glória de São Bento: homens<br />
com chamado menos excepcional do que o de São<br />
Bento, mas atraídos a alguma coisa que era o chamado<br />
dele. E então compreenderam que a graça os chamava a<br />
tornar um pouco menos hirto o isolamento naquele lugar,<br />
a viverem em grupo, mas no silêncio e em edifícios<br />
que amenizavam um pouco a gruta, porém não faziam<br />
desaparecer inteiramente o ar imponderável que aquela<br />
gruta traz consigo; estão escavados naquelas grutas.<br />
Observam-se também construções do mesmo jeito,<br />
muito respeitáveis, veneráveis, até são pintadas, etc., onde<br />
viveu o cortejo enorme dos filhos menos excepcionais,<br />
menos fortes, mais fracos, mas que Deus chamou para<br />
serem assim, e que poderiam encontrar – e muitos encontraram<br />
– o seu lugar no Céu, pois foram canonizados,<br />
levando a vida nessas condições – e não nas condições<br />
de São Bento –, e que estavam aí porque queriam<br />
respirar um pouco do ar que São Bento respirou.<br />
Eu admito como provável, tanto quanto consigo cogitar<br />
nessas coisas, que, sem ter a certeza do que ia nascer<br />
de lá, São Bento sentia que qualquer coisa de muito<br />
grande se jogava no Céu, cada vez que ele dava um passo<br />
ascendente no caminho da fidelidade. Os Anjos cantavam<br />
e os demônios rugiam. Ele percebia todo o ódio<br />
que o demônio punha contra ele e, portanto, quanto estava<br />
sendo hostil, nocivo ao demônio, resistindo às tentações<br />
jeitosas com as quais, a todo momento e de um<br />
modo tormentoso, o demônio o assediava.<br />
A bandeira que tremula ao vento<br />
ou cai ao longo do fuste<br />
E quando São Bento se jogou naqueles espinhos para<br />
que atormentassem a sua carne e assim, chamando<br />
a atenção dele para a dor, a desviassem do desejo que a<br />
carne concebida no pecado original pode ter sem o homem<br />
consentir – o anseio da lascívia, do pecado impuro<br />
–, embora sem saber o que seria tudo isto, ele sentia que<br />
tinha muito mais do que fazia. E com esta particularidade<br />
interessante: talvez a Providência lhe desse não uma<br />
certeza detalhada – pão, pão; queijo, queijo –, mas grandes<br />
e ventosas intuições, que passavam de cá e de lá e lhe<br />
deixavam um fundo de certezas imprecisas, as quais ele<br />
não sabia interpretar bem. E perguntava: “O que é isto?<br />
Uma graça ou uma ilusão?” Mas que o ajudava a andar.<br />
Eu digo isso porque em muitas vocações há coisas<br />
dessas. Em nossa vida mesmo existe algo semelhante:<br />
ALM<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Jorge A .A.<br />
Ele sentia que tinha<br />
muito mais do que<br />
fazia, e talvez a<br />
Providência não lhe<br />
desse uma certeza<br />
detalhada, mas<br />
certezas imprecisas.<br />
horas em que estamos como uma bandeira que tremula<br />
ao vento, quer dizer, sentimos a certeza do futuro e que<br />
realizamos uma coisa enorme, extraordinária,<br />
fazendo-nos flutuar como<br />
uma bandeira ao vento.<br />
Há momentos, pelo contrário, em<br />
que o vento cessa e a bandeira cai<br />
ao longo do fuste. E a pessoa pensa:<br />
“Agora eu tenho que cuidar da roupa<br />
de cama e de mesa que vai para a lavadeira.<br />
Então vou mexer com a roupa<br />
suja, para ajudar a proclamar o<br />
Reino de Maria... Godofredo de Bouillon,<br />
Santo Inácio de Loyola, Santa<br />
Teresa onde estais? Vós que fazíeis<br />
coisas tão grandes e tínheis certeza<br />
da grandeza do que realizáveis, aqui<br />
está este católico, debaixo de certo<br />
ponto de vista vosso filho – porque<br />
nós somos filhos de todos os filhos da<br />
luz –, contando as peças de roupa. Estou vendo o guardanapo<br />
sujo de vinho que tal irmão meu derramou desajeitadamente<br />
na mesa; mais adiante a toalha de mesa<br />
que está toda manchada porque tal pessoa pinga feijão<br />
na toalha; estou notando a nossa vida<br />
cotidiana, as misérias de cada um<br />
nas toalhas de mesa que vão para a<br />
lavadeira. E isto é a escada de Jacó<br />
pela qual eu subo ao Céu?”<br />
Um paradoxo cruel que se<br />
resolve numa ogiva sublime<br />
Tenho certeza que alguma alma,<br />
contemplando aquelas montanhas,<br />
pensaria em coisas análogas. E se<br />
perguntaria se não é uma graça que<br />
São Bento está obtendo para ela no<br />
Céu. Naqueles montes ásperos, íngremes,<br />
naquela batalha da natureza,<br />
naquela inutilidade do que ele<br />
fazia, no paradoxo constante do homem,<br />
que por sua natureza é social, a graça o chama para<br />
viver isolado. Isso não é uma contradição, mas um paradoxo.<br />
Nesse paradoxo, que eu não hesitaria de chamar de<br />
cruel – no sentido em que o sacrifício da Cruz foi cruel<br />
–, o homem deve dizer: No fundo tudo isso se resolve numa<br />
ogiva sublime, faz um sentido que eu compreenderei<br />
um dia no Céu. Continuarei a andar, andar. E sei que caminhando<br />
assim, contando as peças de roupa e vendo as<br />
falhas morais nas manchas da toalha de mesa – são pequenas<br />
falhas morais, mas às vezes indicativas de algo<br />
tão maior –, pedindo a Deus que perdoe a eles e a mim,<br />
a todos que têm essas falhas, e faça subir todos para o<br />
Céu, eu estou preparando uma glória enorme para daqui<br />
a duzentos anos.<br />
Jorge A .A.<br />
34
Daniel Dias<br />
Gabriel K.<br />
E sei que caminhando<br />
assim, pedindo a Deus<br />
que perdoe e faça subir<br />
todos para o Céu, eu<br />
estou preparando uma<br />
glória enorme para<br />
daqui a duzentos anos.<br />
Nas particularidades da nossa vocação,<br />
senão para daqui a duzentos anos, daqui a<br />
duzentos dias ou duzentos minutos, porque<br />
o dia da intervenção de Nossa Senhora é incerto<br />
e poderia vir de uma hora para outra,<br />
como o esposo da parábola das virgens loucas<br />
e das virgens fiéis do Evangelho. As primeiras<br />
ficaram esperando, foram fiéis, e eu<br />
devo esperar que meu Deus chegue de uma<br />
hora para outra e diga: “Meu filho, o cárcere<br />
da Revolução acabou. E se esse dia demorou<br />
para chegar, eu não fui frustrado.<br />
Pelo contrário, fui glorificado. Esperei longamente,<br />
mas não perdi a esperança. A glória<br />
me chega como uma coroa.” v<br />
(Extraído de conferência de 18/11/1988)<br />
35
Festa de Glória
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Mathieu DAGNEAUD (CC3.0)<br />
Palácio<br />
esplêndido,<br />
digno, amplo,<br />
confortável,<br />
severo e forte<br />
30
Meditando sobre o Palácio Comunal de Siena, Dr. Plinio<br />
imagina um varão de Fé que ocupa importante cargo municipal,<br />
à noite, passeando sozinho em seus belos salões, enquanto toda<br />
a cidade dorme, e apenas de vez em quando um tilintar dos<br />
relógios e dos sinos fazem entender a hora que passa. Ele está<br />
rezando, quer prestar serviços à Igreja e em certo momento se<br />
interroga: “Quantos homens vão sair para a Cruzada?”<br />
Com seu isolamento naquela natureza agreste de<br />
Subiaco 1 , São Bento estaria preparando graças para<br />
uma quantidade incontável de pessoas mais fracas,<br />
chamadas para coisas menores, mas assim mesmo<br />
atraídas para o Céu.<br />
Talvez não para tomarem assento entre os Serafins e<br />
os Querubins, mas entre os Anjos, tão respeitáveis e esplendorosos,<br />
de menor posição na hierarquia que compõe<br />
a celeste e harmoniosa desigualdade dos coros angélicos.<br />
E que nessas condições, toda uma coorte de almas<br />
menores haveria de vir e viveriam em condições menos<br />
heroicas, mas que deveriam ter um reflexo daqueles esplendores<br />
meditados pelo grande São Bento na solidão.<br />
Sociedade temporal<br />
marcada pela<br />
sociedade espiritual<br />
Era preciso, portanto,<br />
que houvesse uma vida<br />
religiosa no ápice de<br />
toda a existência humana,<br />
e abaixo dela a vida<br />
temporal, dos homens<br />
que se entregam às atividades<br />
temporais. Porque<br />
Deus quis que fosse assim,<br />
que esses religiosos<br />
tivessem também um alto<br />
pensamento, uma alta<br />
mentalidade, altos anseios,<br />
e engendrassem<br />
uma sociedade temporal<br />
toda marcada por aquela<br />
sociedade espiritual.<br />
No Paço Municipal de<br />
Siena notam-se esplen-<br />
dores nascidos com São Bento e sua obra, na solidão de<br />
Subiaco. Consideremos alguns aspectos desse belo edifício<br />
destinado a ser uma simples prefeitura municipal.<br />
Creio que esses dois relógios do Palácio Comunal não<br />
funcionam mais. Nessa fotografia, o Sol parece indicar<br />
qualquer coisa de matinal, de um dia que nasce, e não<br />
aquele calor meio pesadão do meio-dia. A praça está<br />
praticamente vazia, percebem-se algumas pessoas, mas<br />
que se perdem na vastidão do local. Por isso, se tem a impressão<br />
de que toda a História conseguiu fugir do século<br />
XX e voltar, afinal reconfortada e quase sem fôlego, para<br />
os séculos nos quais ela não tinha em torno de si a não<br />
ser homens com Fé.<br />
Pedro Mondejar (CC3.0)<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Um poder exercido em nome de Deus<br />
Notem a vastidão lisa da praça e o contraste entre os<br />
dois aspectos: o palácio e o resto. O resto é decente, mas<br />
o palácio se ergue como um rei dominador, pronto para<br />
governar as outras casas. Dir-se-ia que ele tem quase<br />
um olhar, através daquele relógio que lhe serve para ver<br />
as coisas. Um olhar ordenador, de quem conhece qual é<br />
o lugar próprio para cada coisa, qual é o bem decorrente<br />
de que ela esteja em seu posto, e que cobra pelo olhar a<br />
cada coisa que se mantenha no lugar em que se encontra,<br />
não tolerando que desça quem deve estar em cima, nem<br />
que suba quem precisa ficar em baixo.<br />
Vê-se, assim, o palácio esplêndido, digno, amplo, confortável,<br />
severo e forte, que não depende a não ser de<br />
si para governar, e que exerce essa função tão parecida<br />
com a de Deus: governar os homens. O poder que se aloja<br />
ali representa eminentemente o poder divino de governar<br />
os homens. É um poder exercido em nome de<br />
Deus, embora se trate de um poder temporal.<br />
O poder espiritual tem uma investidura divina. O cargo<br />
foi criado por Deus que investe, pelas mãos da Igreja,<br />
o homem que o exerce. É o que se dá com o papa, o bispo,<br />
o pároco também. A dignidade de papa, de bispo ou<br />
de pároco é criada pela Igreja. Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
criou o cargo de São Pedro e dos Apóstolos; portanto<br />
do papa e dos bispos. A Igreja criou o dos párocos. É ela<br />
quem investe. Tudo se faz no puro terreno natural.<br />
Superchilum (CC3.0)<br />
Georges Jansoone (CC3.0)<br />
Jörg Bittner (CC3.0)<br />
32
Wknight94 (CC3.0)<br />
Mas há a autoridade terrena, que preside a ordem<br />
temporal, rege as coisas temporais e nasce da ordem natural<br />
das coisas posta por Deus. O Criador dispôs as coisas<br />
de tal maneira que o homem precisaria ter uma autoridade<br />
para governá-las, ainda que não houvesse pecado<br />
original. Mas essa autoridade indispensável no Paraíso<br />
terrestre é clamorosamente indispensável nesta Terra<br />
com pecado original. Ou as pessoas são governadas segundo<br />
Deus, orientadas por Ele, e se salvam, ou, rejeitando<br />
a Deus, elas vão para o Inferno. O que eu estou dizendo<br />
não é nada autogestionário. É um dos melhores<br />
aspectos do que estou afirmando.<br />
A natureza e a graça se osculam<br />
Esse poder se exprime aqui não com a leveza e o esplendor<br />
das coisas sobrenaturais, como, por exemplo, na<br />
Igreja de Orvieto, com aqueles mosaicos coloridos. A natureza<br />
é mais pesada do que a graça. Ela nasce do chão,<br />
santa e legitimamente, mas é do solo que ela vem. A graça<br />
baixa do Céu. Elas se encontram e se osculam, como a<br />
natureza serva oscula os pés da graça que é senhora.<br />
Mas os homens que exerciam o poder no tempo em<br />
que esse palácio foi construído, e a mentalidade dos que<br />
moravam nesse lugar, estavam profundamente compenetrados<br />
da ideia de que quem governa, ainda que seja<br />
na ordem temporal, governa por ordem, por desígnio de<br />
Deus. Ele quer que isto seja assim, que alguém governe<br />
os outros homens, seja obedecido, pois esse alguém governa<br />
em nome de Deus.<br />
Ele precisa para isso, além da graça, também da força.<br />
Não estou dizendo que ele necessita mais da força do<br />
que da graça, mas afirmo outra coisa. A graça precisa,<br />
nas vias da Providência, algum tanto da força para completar<br />
a sua obra. Mas a natureza necessita muito mais.<br />
Um governo não tem o dom de persuasão para mover as<br />
almas, como possui a graça. E quem não pode persuadir<br />
e precisa mandar, deve agarrar pelos ombros e se fazer<br />
obedecer. Por isso vemos um ligeiro ar de fortificação,<br />
de quartel, de palácio, em cujo porão bem pode caber<br />
uma prisão. Isso não se dissocia do conjunto de majestade<br />
desse edifício.<br />
Além de governar os homens, o Estado<br />
tem a missão de defender a Igreja<br />
Mas há uma coisa interessante. Vistos nesse aspecto,<br />
aqueles dois torreões que estão nos ângulos do corpo<br />
central parecem braços e mãos erguidos para o Céu,<br />
pedindo a ajuda de Deus para o exercício de mando das<br />
coisas temporais.<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
José Luiz (CC3.0)<br />
Miguel Hermoso Cuesta (CC3.0)<br />
O palácio assim é, como deve ser, muito ligado às coisas<br />
temporais, porque o poder do Estado é este. Mas o<br />
que fica por detrás, o pressuposto religioso da autoridade<br />
do Estado, a missão deste de velar, para proteger a<br />
Igreja contra as agressões, garantir a expansão dos missionários<br />
por toda a Terra, de maneira a poderem pregar<br />
livremente a palavra de Deus sem que ninguém use da<br />
força contra eles, o poder de coibir as heresias declaradas<br />
como tais pela Igreja e de impedir que elas se expandam,<br />
apenas tolerando que tenham um lugar encafuado<br />
e envergonhado sobre a face terrestre, isto indica quase<br />
que a missão de Cruzado do Estado.<br />
O Estado tem, ao lado da finalidade de governar os<br />
homens, uma missão muito mais alta, a de servir para defender<br />
a Igreja. Este lado altíssimo do poder do Estado<br />
é muito bem representado pela torre, que vai alto, alto e<br />
alto, e diz: “Vós, olhando para o lado temporal das coisas,<br />
notais toda a minha figura temporal. Vede como ela<br />
é bela! Mas vós não vistes nada, não conheceis minha<br />
missão divina: Olhai!”<br />
Esta seria uma pequena meditação sobre a praça do<br />
Paço Municipal de Siena.<br />
Tal meditação se opõe à atitude psicológica de um<br />
número incontável de turistas que enchem isto durante<br />
o dia. Eles não têm nem sequer essas ideias, nem esses<br />
pressupostos, não se colocam nesses antecedentes históricos.<br />
Em consequência, cuidam de chupar – porque a<br />
palavra é bem essa – uma orchata, ou de beber uma cerveja,<br />
comer um sanduíche ou qualquer coisa nas numerosas<br />
mesas que, nos dias de verão, coalham essa praça.<br />
Dir-se-ia que esse palácio, atualmente, é apenas um<br />
remanescente histórico o qual, à maneira de um animal<br />
pré-histórico, os arqueólogos tiram do meio dos gelos e<br />
dizem: “Esse é um mamute.” Aqui são os ossários da Civilização<br />
Cristã...<br />
Erguer as almas para o Céu<br />
O interior do palácio está coberto de pinturas de um<br />
grande valor. É interessante notar como o espírito católico<br />
aproveita os ambientes. Em Subiaco foram as vastidões<br />
que, tendo como cúpula o céu, alimentaram a meditação<br />
de São Bento. Aqui o teto, que parece baixo em virtude de<br />
quão baixos são esses arcos, convida a uma outra forma de<br />
meditação: é o recolhimento do espaço pequeno.<br />
As pinturas assemelham-se a um grande livro que trata<br />
de cenas eclesiásticas, históricas, etc., em que o homem<br />
pode meditar sobre as coisas de Deus. E um espírito<br />
meditativo e pensativo sobre as grandes responsabilidades,<br />
os grandes serviços que pode prestar para a salvação<br />
das almas e para o bem dos homens e, sobretudo, para<br />
o serviço da Igreja, encontra aqui um lugar ideal para<br />
passear sozinho enquanto toda a cidade dorme, e apenas<br />
de vez em quando um tilintar dos relógios e dos sinos fazem<br />
entender a hora que passa, e ele está rezando e pensando,<br />
rezando e pensando: “Quantos homens vão sair<br />
para a Cruzada?”<br />
34
José Luiz (CC3.0)<br />
Parece haver no interior do palácio um dossel para um<br />
altar, e que no fundo há um quadro sacro com velas e figuras<br />
de Anjos, ou outros personagens com auréolas de<br />
Santos. Tenho a impressão de que se trata de uma capela<br />
onde se realizam cerimônias religiosas, notadamente<br />
a Missa. Não me espantaria que, em todas as manhãs,<br />
os trabalhos da municipalidade fossem abertos por uma<br />
Missa oficiada por um capelão da Prefeitura; e nos dias<br />
de festa o próprio Arcebispo de Siena, seguido de seu<br />
clero, seus cônegos, a celebrasse. E para além da grade<br />
ficassem as autoridades e, olhando entre os desvãos da<br />
grade, o popolino de Deus. E que a renovação incruenta<br />
do Santo Sacrifício do Calvário precedesse, todos os dias,<br />
e a bênção do Santíssimo Sacramento encerrasse, todas<br />
as noites, os trabalhos da Prefeitura.<br />
Comparem com qualquer Prefeitura de hoje, e eu<br />
pergunto: Qual das duas levantam mais as almas para<br />
o Céu? E no erguer as almas para o Céu, há um élan<br />
dado pela graça, que homens como São Bento conquistaram,<br />
sofrendo e se tornando solitários nas grutas<br />
de Deus.<br />
v<br />
José Luiz (CC3.0)<br />
(Extraído de conferência de 18/11/1988)<br />
1) Cf. Revista Dr. Plinio n. 244, p. 27-35.<br />
35
Publicação Mensal Vol. XXI - Nº 246 Setembro de <strong>2018</strong><br />
Cavalaria Angélica
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Gabriel K.<br />
Lugar onde a<br />
Providência quis reunir<br />
suas maravilhas - I<br />
Dr. Plinio sempre teve encanto pelo mar. Eis uma<br />
das razões pelas quais apreciava sobremaneira<br />
Veneza, a cidade construída sobre as águas. A causa<br />
mais profunda do surgimento de tal maravilha é<br />
o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Quem<br />
resulta tudo quanto há de bom e de belo na Terra.<br />
Antes de comentarmos alguns aspectos de Veneza,<br />
parece-me conveniente considerarmos um<br />
pouco o que se passa no interior de nossa alma,<br />
vendo essa cidade. Externo aqui minhas reflexões ao visitá-la,<br />
pois o que vou dizer a meu respeito se dá mais ou<br />
menos com todo mundo.<br />
Fascínio pelo mar<br />
Tanto quanto me lembro, em pequeno eu tinha impulsos<br />
que me levavam a lamentar de não poder viver, não<br />
propriamente no mundo da fantasia, mas num mundo<br />
que não era aquele no qual eu vivia. Portanto, levar uma<br />
vida real numa atmosfera diferente da qual eu vivia.<br />
Assim, por exemplo, recordo-me de, muitas vezes, estando<br />
em Santos ou, muito mais modestamente, numa<br />
estação de águas hidrotermal que eu frequentava por<br />
causa de minha mãe, onde havia um riachinho um pouco<br />
nutrido, corria um pouco de água, formava uma ilhota e<br />
umas coisas assim; olhava para as águas e sentia o fascínio<br />
que esse elemento produz. A água salgada do mar me<br />
fascinava além de todo limite. Foi toda a vida o encanto<br />
de minha alma considerar o mar.<br />
Lembro-me do meu tempo de deputado, quando o prédio<br />
onde se reunia a Assembleia Constituinte ficava numa<br />
praça do Rio de Janeiro, no fundo da qual há um braço de<br />
mar. Meu gosto pelo mar era tal que, às vezes, eu estava<br />
sentado assistindo à sessão e me vinha à mente: “Como seria<br />
interessante se eu pudesse estar olhando para o mar,<br />
por exemplo, sobre uma espécie de terracinho de madeira<br />
amarrado em estacas, posto na água de maneira a acompanhar<br />
o movimento da maré!” Aquilo me distraía a ponto de<br />
ter que fazer esforço com a minha inteligência para prestar<br />
atenção nas arengas, tanto era o meu gosto pelo mar.<br />
Entretanto, nunca me passou pela cabeça imaginar<br />
um homem que, estando no mar, começasse a pensar na<br />
terra. Então, alguém se encontrando num navio, vendo<br />
a terra de longe, pensasse: “Ah, que delícia aquela terra!<br />
Pisar em solo firme…” O chão não é firme, mas duro; é<br />
diferente de firme. Para acharmos graça no chão é preciso<br />
calçá-lo com pedras bonitas, pôr um tapete para disfarçá-lo<br />
a fim de nos sentirmos à vontade em cima dele.<br />
32
Pelo contrário, no mar não. Ele é delicioso! Debaixo<br />
de certo ponto de vista, quanto mais a pessoa possa<br />
estar no mar, sem pisar em nada que lembre a terra,<br />
melhor é. Se ela estiver nadando, metida na água<br />
que exerce sobre ela uma atração extraordinária,<br />
tanto melhor. É o fascínio produzido por um elemento<br />
onde o homem realmente não vive, mas no qual ele<br />
tem a impressão de que a vida seria ideal.<br />
Pedro K.<br />
Palácios e jardins, nostalgia do Paraíso<br />
Certa ocasião, estando em Petrópolis, no Rio<br />
de Janeiro, vi pela primeira vez um homem voar<br />
em asa delta. Percebi que do local onde me encontrava<br />
até o panorama marítimo da Baía de<br />
Guanabara não levava muito tempo. E notei que<br />
lá de cima o homem estava olhando para aquela baía,<br />
realizando assim a convergência de dois sonhos: a água<br />
e o ar. Pareceu-me delicioso estar lá em cima, apesar de<br />
umas inseguranças não pequenas. Mas ele se movia com<br />
tal desembaraço no ar, que percebi estar inteiramente<br />
seguro. Então, a ideia de estar seguro, planando no ar,<br />
longe da terra e olhando o mar, era uma coisa deliciosa.<br />
De outro lado, há uma coisa que também atrai o homem.<br />
Não é propriamente a terra, mas o palácio. Folheando<br />
álbuns, vendo palácios lindamente decorados,<br />
os mais antigos com belos vitrais, os outros com pinturas<br />
lindas, ou tapeçarias bonitas, com um chão precioso,<br />
macetado com madeiras de cores diferentes, formando<br />
desenhos, com quadros, móveis luxuosos, e com o teto<br />
alto, o homem tem sedução por algo que esconde de todos<br />
os modos a realidade comum da terra onde ele vive. O<br />
palácio é uma espécie de esconderijo onde, sem sentir a<br />
instabilidade da água e da flutuação no ar, a pessoa também<br />
foge de algum modo da terra concreta e constrói um<br />
sonho dentro do qual ela entra. Este é o palácio.<br />
Ademais, para encobrir ainda de algum modo a terra,<br />
o homem elabora jardins, por vezes ornados com chafarizes<br />
que fazem a água brincar no ar, caindo depois em<br />
tanques onde o elemento líquido fica refletindo o céu, o<br />
próprio jardim e o palácio.<br />
Como se explica que o homem goste tanto de disfarçar<br />
a terra? A meu ver, porque ela é exatamente o elemento<br />
que mais traduz a punição e o desterro do homem por<br />
causa do pecado original. “Amaldiçoada será a terra por<br />
tua causa. Com sofrimento tirarás dela o alimento todos<br />
os dias de tua vida. Comerás o pão com o suor do teu rosto,<br />
até voltares à terra da qual foste tirado” (Gn 3, 17.19).<br />
A terra é apresentada como um lugar de degredo onde<br />
é duro trabalhar, é preciso regar com o suor do rosto,<br />
ou seja, é penoso obter algum resultado. Ela é prosaica,<br />
não apresenta cores lindas, nem maravilhas de nenhu-<br />
ma espécie. A meu ver, por onde mais sentimos a nostalgia<br />
do Paraíso é precisamente no contato com a terra.<br />
Palafitas para se proteger contra as feras<br />
Reportemo-nos, agora, a uma remota reminiscência<br />
para compreendermos os desígnios da Providência, e como<br />
Ela dispõe tudo de modo maravilhoso.<br />
Como demonstram as pesquisas arqueológicas, na<br />
Pré-História houve povos que, levados pelo receio dos animais<br />
ferozes, construíram as chamadas palafitas, conjuntos<br />
de estacas que sustentavam habitações construídas<br />
sobre as águas. Durante a noite, eles retiravam uma espécie<br />
de tabuleiro que lhes servia de ponte entre a palafita<br />
e a terra, e assim os animais podiam rondar em torno deles,<br />
mas não incomodavam. A água protetora os separava.<br />
Podemos imaginar a sensação de progresso experimentada<br />
por esses primitivos quando eles construíram a<br />
primeira casinha e, à noite, ouviam as feras uivar dentro<br />
do mato; ao invés de ficarem apavorados, como no tempo<br />
em que viviam em grutas ou cabanas, dentro das quais<br />
um animal feroz podia de repente irromper, eles dormiam<br />
sossegados e se abanando deliciosamente, porque<br />
a fera não constituía mais um perigo. Que “civilização”!<br />
Foi de uma situação análoga a essa que, do pânico de<br />
primitivos habitando um lugar pantanoso e inconsistente,<br />
nasceu uma das maiores belezas do universo. O local<br />
hoje ocupado por Veneza, outrora era muito pantanoso.<br />
Um dos lugares mais bonitos da Terra<br />
Em certo momento, um guerreiro terrível, Átila, desceu<br />
com seus hunos através da Hungria, invadiu a Itália e<br />
foi surrando tudo no caminho. O pavor que os latinos civilizados<br />
tinham dele era tal que se exprimiu por uma metá-<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Gabriel K.<br />
Vicente Torres<br />
Gabriel K.<br />
fora muito poética:<br />
por onde a patas<br />
do cavalo dele<br />
pousavam nunca<br />
mais nascia erva.<br />
As populações<br />
daquelas<br />
regiões ficaram com pavor de Átila e se aprofundaram<br />
em seus pântanos, procurando lugares de mais resistência<br />
para se fixarem. Ali mais ou menos repetiram as palafitas.<br />
Esses povos depois foram batizados, e o Batismo operou<br />
em suas almas o efeito regenerador que lhe é próprio;<br />
e de primitivos, mais ou menos vagabundos, passaram<br />
a ser homens de trabalho que, seduzidos pelas<br />
águas do Mar Adriático, entregaram-se à navegação.<br />
Tornaram-se grandes navegantes e se dedicaram ao comércio,<br />
passando a ser a maior potência marítima do<br />
Mar Mediterrâneo.<br />
As riquezas voltavam para Veneza e com elas as possibilidades<br />
de trabalho, de organização. Aquelas ilhas<br />
resultantes do antigo pântano foram consolidadas, ajeitadas,<br />
fizeram correr água onde havia lodo outrora. As<br />
casas foram melhorando, as águas se tornaram de trânsito<br />
fácil e, no lugar do antigo pântano, constituiu-se um<br />
arquipélago que foi se enchendo de palácios de uma beleza<br />
famosa no mundo inteiro.<br />
E ali, em vez do jardim que Veneza não tem, nasceu<br />
para o homem este sonho que se realizava: morar num<br />
palácio à beira d’água, com um céu lindíssimo. O céu de<br />
Veneza é uma espécie de céu dos céus, o colorido e as<br />
brumas são uma beleza, os anoiteceres são lindíssimos.<br />
E realiza-se assim esse ponto de eleição que é uma espécie<br />
de paraíso feito pelo homem, pela sua fantasia, pelo<br />
seu talento, pela sua capacidade de trabalhar, pelo<br />
seu desejo do maravilhoso, coisa tão distante do homem<br />
contemporâneo.<br />
Então, realizou-se em Veneza esse ponto de encontro<br />
onde a terra feia, outrora pântano, é disfar-<br />
çada pelo chão dos palácios, o pântano é coberto pelas<br />
águas do mar que correm, o céu maravilhoso e as<br />
águas se osculam, formado um dos lugares mais bonitos<br />
da Terra.<br />
Maravilha que nasceu do Sangue<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
No centro desta narração está o desvendar de um<br />
enigma. Como povos tão primitivos puderam realizar<br />
uma coisa tão maravilhosa? Será por que se mesclaram<br />
com outros povos? A meu ver, se eles não fossem batizados<br />
isso não saía. Pode ser que se tenham mesclado<br />
com latinos decadentes. Mas do pântano do primitivismo<br />
e da decadência das grandes cidades em decomposição<br />
sair uma coisa assim, não era preciso um terceiro<br />
elemento que fizesse uma coisa verdadeiramente<br />
mais bela?<br />
A meu juízo é evidente que sim. É o Corpo e o Sangue<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja imolação no alto do<br />
Calvário obteve as grandes regenerações morais. É deste<br />
Sangue, a propósito de cuja efusão Nossa Senhora chorou<br />
e do qual resulta tudo quanto há de bom, de grande,<br />
de belo na Terra, que nasceram maravilhas dessas, pela<br />
regeneração do homem. Batizou-se, ficou trabalhador.<br />
Intensificou e disciplinou o seu desejo do maravilhoso,<br />
as maravilhas começam a nascer.<br />
Foi à procura desse auge de realização do maravilhoso<br />
na Terra que me pus a sonhar sobre Veneza e a querê-la.<br />
Desde minha primeira viagem àquela cidade, meu<br />
espírito estava tomado por esta ideia: eu estava visitando<br />
uma junção incomparável e paradisíaca de coisas<br />
maravilhosas.<br />
Poder-se-ia dizer, entretanto, haver mais algo ocupando<br />
no meu espírito um grande espaço, um ponto importante<br />
que procurarei condensar: das várias obras-primas<br />
existentes em Veneza, – oh, mistério! – nenhuma é<br />
tão grande e tão maravilhosa quanto o homem.<br />
34
A “Sereníssima República de Veneza”<br />
Se Deus tivesse criado Veneza, mas a cidade houvesse<br />
ficado sozinha para ser habitada pelos pombos, que valor<br />
ela teria? Muito mais do que simplesmente aquilo, há em<br />
Veneza o estilo de vida, o estilo artístico veneziano, a cultura,<br />
as instituições venezianas, que modelaram as fisionomias<br />
dos palácios. E, no plano da Providência, o palácio é<br />
modelado pela cultura do homem, mas o auxilia a modelar<br />
depois a sua própria cultura. Ajuda-o a se requintar. O céu,<br />
o mar e a terra foram feitos para, iluminando a casa ou o<br />
palácio do homem, iluminar a alma de quem ali reside.<br />
Esta é a dignidade do ser humano. Tudo isso nos reporta<br />
ao fato de que a chamavam de “Sereníssima República<br />
de Veneza”. “Sereníssima” é quase mais bonito<br />
do que Imperial e Real. Dá a impressão de orvalhada<br />
por todas as calmas da noite. “Sua Alteza Sereníssima”,<br />
por exemplo, eu acho um título lindíssimo! E a República<br />
de Veneza, por ser soberana e querer se encaixar<br />
na hierarquia nobiliárquica e feudal da Europa, considerando<br />
que seu chefe tinha uma verdadeira dignidade<br />
de um duque, tomou para si o título de “Sereníssima”.<br />
Veneza era uma república aristocrática, dirigida por<br />
uma nobreza inscrita num livro chamado “Livro de Ouro”.<br />
As famílias promovidas à nobreza tinham seus nomes inscritos<br />
nesse livro, e pertenciam a uma classe social que elegia<br />
uma espécie de Câmara dos Lordes. Havia também, para<br />
as várias categorias da plebe, câmaras, conselhos, etc.<br />
Casamento de Veneza com o mar<br />
À testa disso estava o Conselho dos Dez, chefiado por<br />
um doge que usava o barrete frígio das repúblicas contemporâneas,<br />
cercado de uma pequena coroa. Tratado<br />
como um príncipe, eleito de dez em dez anos, podendo<br />
ser reeleito, o doge era o ponto de partida de politicagens<br />
finíssimas, rasteiras jeitosíssimas, mais elegantes<br />
do que passos de minueto; com a beleza de quem se habituou<br />
muito cedo a burilar a política como quem burila um<br />
cristal. Aliás, por uma coincidência bonita, as fábricas<br />
de cristal começaram a aparecer. Daí vem o famoso<br />
cristal Murano. Há qualquer coisa de cristalino<br />
na República de Veneza.<br />
Todo mundo conhece a festa<br />
anual de esplendor de Veneza. O<br />
doge, vestido com trajes fabulosos,<br />
ia até o alto-<br />
-mar num navio todo folheado a ouro, chamado Bucentauro,<br />
seguido de um cortejo de embarcações com gente<br />
a bordo tocando violinos e outros instrumentos. Ao chegar<br />
a certa altura, fazia-se o casamento de Veneza com o<br />
mar, lançando no fundo do Mar Adriático um anel. Nesse<br />
momento, a música dava o seu todo, o pessoal aclamava.<br />
Ao cair da tarde, todos voltavam, em meio aos reflexos<br />
da água do mar de Veneza, e a festa continuava<br />
na terra. Aqueles canais eram percorridos por gente em<br />
gôndolas, lanternas bonitas iluminavam os terraços, de<br />
fora dos palácios se percebia a luz das festas que se estavam<br />
dando ali dentro. O tilintar dos copos de cristal, os<br />
vivas, os cânticos se prolongavam<br />
pela noite afora.<br />
Se passarmos daí para as<br />
palafitas que constituíram<br />
a primeira Veneza, compreenderemos<br />
a enorme<br />
trajetória percorrida<br />
nesse lugar verdadeiramente<br />
privilegiado,<br />
onde a Providência<br />
quis reunir as suas maravilhas.<br />
v<br />
(Continua no próximo<br />
número)<br />
(Extraído de conferência<br />
de 2/12/1988)<br />
Gabriel K. TYP (CC3.0)<br />
35
Publicação Mensal Vol. XXI - Nº 247 Outubro de <strong>2018</strong><br />
Reino<br />
maternal<br />
de Maria
Gabriel K.<br />
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Lugar onde a<br />
Providência quis reunir<br />
suas maravilhas - II<br />
Em Veneza há beleza, elevação e grandeza, o contrário<br />
do que ostenta o mundo de hoje. Em nossas almas<br />
existe o desejo de uma desforra da feiura, da hediondez,<br />
da trivialidade contemporâneas. Esse desejo faz<br />
de nós os iniciadores do Reino de Maria.<br />
N<br />
uma fotografia de um aspecto de Veneza, na<br />
qual o fotógrafo foi especialmente feliz, considerem<br />
a pomba, o mar, os campanários, as<br />
igrejas e os palácios.<br />
Bolha de beleza pairando pelo ar<br />
A impressão é de que todas essas belezas como que saturam<br />
o ar e nos remetem para uma certa irrealidade, a qual<br />
está na maravilha dos crepúsculos venezianos; e que a pomba<br />
tem algo à maneira de uma noção disso, e voa deliciada<br />
no meio de todas essas coisas. Não é apenas do ar que a pomba<br />
gosta, mas dir-se-ia que ela forma um todo só com essa<br />
beleza. Nós sabemos tratar-se de um ser irracional, orientado<br />
apenas por seus instintos. Mas não é verdade que se<br />
tem a impressão de que ela goza de um bem-estar aumentado<br />
por essa formosura? Uma pomba como essa, no Largo do<br />
Arouche, em São Paulo, não teria esse bem-estar.<br />
Qual a razão disso? É pelo fato de ela concorrer, como<br />
uma obra-prima de desenho, para essas maravilhas. Ela<br />
mesma, como está aqui, é linda. Notem como as asas fi-<br />
cam bonitas, como o voo torna-se elegante. Ela é um sonho!<br />
Dir-se-ia que a pomba é uma bolha de beleza que se<br />
desprende e fica pairando pelo ar.<br />
Estas considerações nos levam a nos perguntar como será<br />
aquela perfeição alta e magnífica, para a qual a humanidade<br />
foi feita e tende a possuir antes que a História do mundo acabe,<br />
e onde Nossa Senhora será a Rainha. Quando, então, não<br />
forem apenas as pombas a voarem pelo ar, mas algo de marial<br />
habitando tudo – tomando em consideração que Maria<br />
Santíssima é a obra-prima de Deus no Céu e na Terra –, como<br />
serão essas coisas? É verdadeiramente indizível.<br />
Uma das maravilhas do universo:<br />
o Palácio dos Doges<br />
Aqui encontramos, no primeiro plano, a dois passos<br />
do mar – e o encanto está nisso, pois quanto mais próximo<br />
do mar mais arrebatador –, sem vedar o trânsito, o<br />
Palácio dos Doges.<br />
A meu ver, esse palácio é de uma cor difícil de definir e<br />
que varia um pouco de acordo com a luz do dia. Mas nes-<br />
32
ta fotografia se me apresenta de um róseo muito delicado,<br />
mas não homogêneo; percebe-se a presença variada<br />
do róseo e do branco nas ogivas góticas, formando uma<br />
espécie de contraste.<br />
De si, o bonito seria, de acordo com a lei da gravidade,<br />
vermos o elemento mais pesado carregar o mais leve.<br />
Então, seria explicável que esse palácio fosse construído<br />
de tal maneira que essa espécie de caixotão – é um ultraje<br />
chamá-lo assim – deliciosamente róseo, ornado por<br />
três ogivas agradavelmente simétricas, pensativas, calmas,<br />
tranquilas e nobres, que parecem estar, elas mesmas,<br />
olhando o mar, contemplando-o com a familiaridade<br />
com a qual as grandes pessoas contemplam o lindo;<br />
pareceria normal, enfim, que esse caixotão estivesse<br />
na terra, e a parte mais leve, ou seja, as colunas desse<br />
andar imediatamente inferior, bem como a colunata que<br />
toca no chão, estivessem em cima.<br />
Dir-se-ia que esse edifício, construído assim como está,<br />
daria uma sensação de peso medonho, e que esse caixotão<br />
vai esmagar e quebrar, a qualquer momento, a colunata.<br />
Mas está calculada com tanta inteligência a distribuição<br />
dos corpos e dos volumes, que não se tem essa<br />
impressão. Pelo contrário, sente-se que essa colunata<br />
carrega sem esforço o caixotão, o qual, recusando-se de<br />
ficar na terra, é suportado por essas colunas magníficas,<br />
de maneira a permitir a circulação do ar por debaixo dele.<br />
A arte orna isso com essa primeira linha ogival muito<br />
bonita, e embaixo com aqueles outros arcos, ficando o<br />
palácio, por assim dizer, suspenso no ar.<br />
Chamo a atenção para o que há de bem pensado em<br />
cada detalhe dessa fachada. Ela ficaria monótona se não<br />
houvesse, bem no meio, aquela porta dando para um<br />
terraço. Mas se existisse ali mais uma ogiva o palácio se<br />
tornaria insuportável. Para aquela porta, aquele terraço<br />
tem exatamente o tamanho que deve ter para completar<br />
bem e levemente uma das maravilhas do universo,<br />
o Palácio dos Doges.<br />
Viagem que conduz ao<br />
Céu ou ao Inferno<br />
Imaginem-se sentados em gôndolas e seguindo<br />
na direção dessa praça que se abre mais para<br />
o fundo e tem uma torre. Percebe-se, pelas<br />
cúpulas, que para essa praça dá também uma<br />
igreja, e existe depois outro palácio. Mas há<br />
uma parte da praça que dá diretamente para o mar. É o<br />
desembarcadouro para as pessoas que descem, um cais.<br />
Há cais ao longo de toda essa colunata, a fim de facilitar<br />
ao máximo o deslocamento da população.<br />
Notem como existem ali duas colunas. Em uma delas<br />
há uma estátua de São Teodoro esmagando o dragão; na<br />
outra, o leão alado, emblema de Veneza. No intervalo entre<br />
as duas colunas havia um outro “cais” de um gênero<br />
muito diverso. Nele alguns homens empreendiam uma<br />
viagem perto da qual as nossas viagens contemporâneas<br />
são zero, e até mesmo os homens que foram à Lua não<br />
são nada em comparação com os que fazem essa viagem,<br />
porque é a viagem que conduz ao Céu ou ao Inferno...<br />
Ali eram executados, em troncos especialmente<br />
levados para a cerimônia, os condenados à morte.<br />
Lugar lindo, encantador, mas é um dos traços de Veneza.<br />
Ela é festiva, mas tem qualquer coisa no fundo<br />
de muito grave e até de um tanto melancólico, sem o<br />
qual Veneza seria uma banalidade.<br />
Gabriel K.<br />
Arquivo Revista<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Gabriel K.<br />
Uma renda de pedra<br />
Ali vemos se levantar o campanário, os sinos que servem<br />
à catedral. Uma construção originalíssima que destoa<br />
do branco de tudo quanto está edificado ao redor.<br />
Entretanto, possui também a parte alta toda branca,<br />
com um cone muito bonito em cima, do qual cada triângulo<br />
é emoldurado por uma lista branca. Esta torre é do<br />
século XX. A original, por questões geológicas, de repente<br />
ruiu. Era então Papa São Pio X, que fora Patriarca de<br />
Veneza e impulsionou a construção de uma torre absolutamente<br />
idêntica àquela que havia. De maneira que se<br />
toma essa como a torre antiga.<br />
Examinem a cor desse mar. Quem a define? É verde,<br />
azul? Entra aí outro colorido além do verde e do azul?<br />
Também não se sabe. Essa multidão de gôndolas dá um<br />
ar festivo, de alegria e de vida, que completa o panorama.<br />
Numa outra fotografia vê-se de perto um pouco daquela<br />
verdadeira renda de pedra. No terraço de pedra<br />
branca, cada coluna dá a impressão de uma chave, dentro<br />
da qual há uma espécie de trevo, cujas folhas têm o<br />
desenho esquemático e imaginário de um trevo de quatro,<br />
dentro de círculos. Isso seria a orelha da chave; e,<br />
embaixo, um pedaço de balcão seria a lingueta da chave.<br />
Mas tudo é feito de tal maneira que, encostada uma chave<br />
na outra, se têm ogivas. E o ogival aparece aí numa<br />
das suas mais belas manifestações.<br />
Um teto que parece levantar voo<br />
Notem a simplicidade de linhas com que a fachada da<br />
Catedral de São Marcos é construída. São cinco arcos:<br />
dois de cada lado e, no meio, um arco um tanto maior,<br />
que interrompe um pouco o curso do balaústre, do corrimão<br />
de um terraço que está em cima. De maneira que<br />
aquilo serve de teto para o átrio da igreja e também de<br />
terraço para se passear em cima. Mais para cima encontram-se<br />
ogivas muito abertas, que conservam seu parentesco<br />
com a ogiva gótica comum, pelo fato de terminarem<br />
naquela ponta reunindo harmonicamente dois extremos,<br />
num movimento que tem um resto de ogival. E cada ogiva,<br />
feita de uma pedra branca linda, serve de proteção,<br />
de teto para uma bela cena em mosaico, com fundo dourado,<br />
representando fatos da vida de Nosso Senhor.<br />
Faço notar essas pontas entre arcada e arcada. Dão<br />
um caráter de leveza enorme ao teto. Tem-se a impressão<br />
de que o teto está para levantar voo. Vemos aí, mais uma<br />
vez, traduzir-se aquele anseio do homem para voar. Considerem<br />
como cada ponta dessas é bem trabalhada, e como<br />
a moldura que circunda cada arco da arcada superior<br />
é, também ela, toda eriçada de pequenas pontas. Parecem,<br />
assim, as asas de inúmeras pombas que estão se<br />
abrindo para voarem levando consigo, pelos ares, a catedral<br />
mil vezes famosa. É uma verdadeira maravilha!<br />
O charme é o aliado natural da grandeza<br />
Chamo a atenção também para um detalhe que, analisado<br />
depois de ser percebido, chega a desconcertar um<br />
pouco. Mas, enfim, isso é assim e me agrada enormemente.<br />
Em cada arco desses há uma portinha, mas nenhuma<br />
delas está bem no centro em relação ao arco inferior.<br />
Com a mania do igualitário e do decimal que se espalhou<br />
pelo mundo no século XIX, os arquitetos, em sua<br />
maioria, se fossem construir um monumento como esse,<br />
não teriam talento para isso nem de longe. Poriam essa<br />
portinha bem no centro de cada arco.<br />
Imaginem que um dedo malfazejo empurrasse essas<br />
portinhas bem para o centro. Que monotonia! Foi empregada<br />
uma forma de talento por onde a dessimetria<br />
dessas portinhas talvez passe despercebidas a muitos.<br />
Isso se chama propriamente gênio. Tem algo em comum<br />
com o charme, do qual diz o francês: le charme, plus beau<br />
34
Myugu1 (CC3.0)<br />
que la beauté – o charme, mais belo que a própria beleza.<br />
A Catedral de São Marcos está cheia de charmes assim.<br />
O charme está também nessas portinhas... Mas o<br />
que não é charme aqui? Só não é charme o que é grandeza.<br />
Entretanto, o charme é o aliado natural da grandeza;<br />
porque a grandeza sem charme fica pesadona, e o charme<br />
sem grandeza torna-se frívolo.<br />
Referi-me à grandeza. Procurem ver na cúpula, atrás,<br />
a grandeza, a magnificência. É espantosa! Ela seria muito<br />
pesada se não fosse tudo isso descrito anteriormente.<br />
Daria a impressão de um panelão colocado ali. Mas<br />
olhem a forma da cúpula, a cruz no alto, o jogo de várias<br />
pequenas cúpulas, e terão propriamente o charme. É a<br />
incomparável Catedral de São Marcos.<br />
Desforra da feiura, da hediondez e<br />
da trivialidade contemporâneas<br />
Os venezianos do tempo das palafitas 1 não percebiam<br />
o que ia sair do que eles faziam. Mas pode-se supor que<br />
já tivessem uma certa propensão para isso, à qual o Batismo<br />
deu a realidade, o élan, de maneira que saísse o<br />
que nós estamos contemplando aqui.<br />
A julgar pela afirmação de São Luís Maria Grignion<br />
de Montfort de que os Santos do Reino de Maria vão ser<br />
tais que, comparados aos do passado, serão como cedros<br />
do Líbano em relação a arbustos 2 , a medida de beleza, de<br />
verdade e de bem que toda civilização alcança é dada pela<br />
medida dos Santos que nela florescem.<br />
Esse princípio, por exemplo, o encontramos subjacente<br />
em todas as reflexões que fiz sobre a gruta de Subiaco<br />
e São Bento 3 .<br />
Mas creio que em nossas almas há um desejo de uma<br />
desforra da feiura, da hediondez, da trivialidade contemporâneas.<br />
E esse desejo faz de nós os “palafíticos” do<br />
Reino de Maria. Contudo, enquanto não se der o Grand<br />
Retour 5 , não vierem os castigos previstos em Fátima, e<br />
tudo isso não for varrido e limpo, quase não conseguimos<br />
entrever as belezas vindouras. Entretanto, no fundo<br />
de nossas almas existe esse anseio que nos faz discernir<br />
a potencialidade para o maravilhoso de cem coisas que<br />
conhecemos, mas que ainda não são maravilhosas.<br />
Para isso, cuidemos de ser santos e de ir vivendo. Pelo<br />
curso natural do tempo e da idade, muitos assistirão ainda<br />
a todas essas maravilhas sobre a face da Terra. Outros as<br />
verão antecipadamente – coisa muito melhor –, pois serão<br />
chamados por Deus a contemplá-Lo face a face, no Céu.v<br />
1) Cf. Revista Dr. Plinio n. 246, p. 33.<br />
(Extraído de conferência de 2/12/1988)<br />
2) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Cap.<br />
I, art. 2, n. 47.<br />
3) Cf. Revista Dr. Plinio n. 244, p. 27.<br />
4) No início da década de 1940, houve na França extraordinário<br />
incremento do espírito religioso, quando das peregrinações<br />
de quatro imagens de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento<br />
espiritual foi denominado de “grand retour”, para indicar<br />
o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico<br />
fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos,<br />
Dr. Plinio começou a empregar a expressão não apenas<br />
no sentido de “grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora<br />
de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus<br />
concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria.<br />
35
Contemplativo e<br />
homem de ação
Apóstolo do pulchrum<br />
J.P. castro<br />
Cogitações na linha do<br />
senso do maravilhoso<br />
Dr. Plinio possuía, desde tenra infância, um senso<br />
do maravilhoso tão excelente que, vendo um vasinho<br />
colorido, imaginava uma catedral, as ruas e casas<br />
de uma cidade feitas com o mesmo material, com as<br />
mesmas cores e luminosidades. Muito mais sensível às<br />
cores que às formas, ele cogitava a respeito de universos<br />
possíveis dos quais aquele vasinho era uma amostra.<br />
GEspírito muito mais cromático<br />
do que dado às formas<br />
ostaria de analisar um objeto que, em minha infância,<br />
serviu-me para muitas cogitações na linha<br />
do senso do maravilhoso.<br />
Trata-se de um pequeno vaso que, de si, não tem nada<br />
de extraordinário, nem é de grande valor comercial.<br />
Porém, tem isso de próprio e que me foi muito favorável:<br />
ele visa, em vários pormenores, imitar e reunir pedaços<br />
de estilos que, sob alguns aspectos, apontam para<br />
o admirável.<br />
Seu formato, os desenhos dourados, a base também dourada<br />
que, invertida, dá ideia de uma coroa, tudo isso encaminha<br />
o espírito para uma ideia de objeto maravilhoso.<br />
Para a criança não é tão importante a questão – que<br />
a pessoa se põe depois dos trinta anos, quando começa a<br />
maturar errado –: se o objeto tem ou não o maravilhoso<br />
para o qual tende. Mas a pergunta que a criança se coloca,<br />
ainda que implicitamente, é: Qual o valor do maravilhoso<br />
para o qual aponta?<br />
Então, digamos, um vasinho francamente ordinário –<br />
não como este que é bom –, mas que apontasse melhor<br />
para o maravilhoso, uma criança lhe daria mais valor<br />
do que ao bom. Porque a pergunta não é qual o valor venal,<br />
nem da pura concepção artística, mas para onde vi-<br />
sou, como sendo a primeira qualidade a ser tomada em<br />
consideração.<br />
Assim eu via, em menino, este objeto. Notem que meu<br />
feitio de espírito é muito mais cromático do que dado às<br />
formas. Para mim, mais do que a forma ou a qualidade<br />
do material, este vaso é uma gota de cor, na qual se verifica<br />
a mistura que me é bem-amada: vermelho e branco.<br />
Não assim: uma lista vermelha, uma lista branca, mas<br />
são esbranquiçados de vermelho ou uns avermelhados<br />
de branco, postos de cá, de lá e de acolá.<br />
A matéria da qual ele é composto tem uma certa<br />
transparência a qual permite à luz um certo jogo que se<br />
presta muito para a reprodução desse gênero de cor.<br />
Há aqui uma espécie de teoria da mistura das cores<br />
que me agrada extremamente. As cores podem misturar-<br />
-se até um certo ponto onde uma degenera na outra. Então<br />
já não é uma mistura, mas uma outra coisa. E o passar<br />
por todas as gamas intermediárias dá um valor cromático<br />
ideal muito especial.<br />
Imaginar ruas e casas feitas<br />
com essa matéria<br />
Aprazia-me considerar como seria um mundo no qual<br />
a cor e as luminosidades dominantes fossem essas, onde<br />
as pedras das ruas e os tijolos das casas fossem dessa<br />
matéria, onde os homens, em consequência, não seriam<br />
32
vermelhos e brancos, mas tivessem um espírito dotado<br />
desse jogo de reversibilidades, em que estivesse presente<br />
a afirmatividade, mas também houvesse concessões e<br />
afabilidades, tendo entre si um trato que eu imaginava<br />
nobilíssimo, mas ao mesmo tempo delicadíssimo, todo<br />
feito de condescendências recíprocas fantásticas, na linha<br />
do bem, de maneira que nada fosse mau, mas tudo<br />
aprazível, concessivo, bondoso, um perene sorriso e uma<br />
fórmula da perpétua douceur de vivre 1 .<br />
Seria, propriamente, o relacionamento das pessoas<br />
que se estimam por serem diferentes. Não é o relacionamento<br />
dos iguais, mas dos diversos que, na diversidade,<br />
nesse ludus, se completam.<br />
A meu ver, o papel do dourado nessa combinação é<br />
lembrar que infinitamente acima paira outra coisa, evocando<br />
uma diversa clave de valores.<br />
Imaginem que alguém esborrifasse mil gotinhas douradas<br />
em cima disso, por onde o vasinho pudesse tomar<br />
um valor venal maior. Para mim, não valorizaria; ainda<br />
que fosse de ouro verdadeiro, não lucraria nada. Eu<br />
mandava lavar o vasinho porque o dourado se tornaria<br />
promíscuo com isso, e faria com que o restante, por assim<br />
dizer, se envergonhasse de ser o que é.<br />
Certamente, o artesão que concebeu esse vaso não teve<br />
essas ideias explícitas, mas o fato é que ele pôs o dourado<br />
fora do tema central. O tema está na parte nacarada.<br />
O dourado corresponde aos horizontes para onde a<br />
mescla de vermelho e branco aponta, fora do tema, como<br />
algo para alcançar.<br />
Transpondo para o jogo das relações humanas, seria<br />
mais ou menos como se nas fímbrias desse relacionamento<br />
se compreendesse o convívio com Deus como algo<br />
de infinitamente mais alto, mais elevado, mais nobre.<br />
Necessidade da prova<br />
Se a grande indústria pudesse e devesse continuar a<br />
existir no Reino de Maria, ela poderia e deveria ser utilizada<br />
para finalidades superiores à mera produção quantitativa.<br />
Poder-se-ia compreender uma grande indústria<br />
Arquivo Revista<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
que fabricasse uma catedral desse material e a colocasse<br />
num panorama estudado para combinar com isso.<br />
O fato é que o vitral se fez sem a grande indústria. E<br />
nós poderíamos imaginar, com a evolução da indústria<br />
dos vitrais, igrejas todas feitas de vidro. De maneira que<br />
seria possível ir longe.<br />
Ademais, golpeado com jeito, esse material emite um<br />
som bonito. Imaginem uma igreja que seja o sino de si<br />
mesma, onde o toque não se dá no campanário, mas na<br />
parede da própria torre! Torres que vibram elas próprias<br />
como se fossem badalos postos no ar, de maneira a fazer<br />
corresponder em som a cor contemplada pelo olhar.<br />
É preciso dizer que fiquei com inúmeros mundos assim<br />
possíveis inacabados na mente. Sobretudo cores que eu vi<br />
de cá, de lá, de acolá, e que davam margem a imaginar<br />
universos possíveis dos quais esse vasinho era uma amostra.<br />
Creio que a matriz da inspiração artística é essa.<br />
Um perigo contra o qual é necessário precaver-se: um<br />
mundo vivido assim é tal que não se compreenderia dentro<br />
dele a dor e nem sequer a prova. Quer dizer, se imaginássemos<br />
um mundo de criaturas assim e que Deus resolveu<br />
impor a prova para elas, teríamos um suspense<br />
como se víssemos o Criador traindo a sua própria obra.<br />
Há uma dificuldade em instalar dentro disso a ideia de<br />
prova como, por exemplo, em compreender que Deus tenha<br />
permitido a entrada da serpente no Paraíso.<br />
O mais interessante é que só depois de ter passado pela<br />
prova compreendemos que tudo isso só toma sua perfeição<br />
para quem passou pela prova. Somente quando isso<br />
recebeu a trombada do oposto e se afirmou, é que propriamente<br />
justificou a sua existência.<br />
Donde poderia vir uma objeção: “Então o mal é necessário?”<br />
Não, o mal não é necessário, mas a prova é. Essas maravilhas<br />
devem existir em ordem de batalha contra o que<br />
as quer destruir. É nesta postura de ordem de batalha<br />
que elas adquirem uma espécie de plenitude de consistência<br />
que lhes dá força e dignidade.<br />
Um modo de relacionar-se<br />
próprio à visão beatífica<br />
Entra, então, um aspecto que à primeira vista não se<br />
imaginaria: um cavaleiro cuja armadura fosse feita deste<br />
material, mas inquebrantável, trazendo o próprio<br />
símbolo da delicadeza e do feérico na batalha mais feroz.<br />
Na Chanson de Roland, as despedidas entre Olivier e<br />
Roland dão ideia disso. Os dois iam morrer, encontravam-se<br />
numa situação em que estavam liquidados. Entretanto,<br />
a ternura com a qual ambos se tratam é enorme.<br />
Ouvi dizer, não sei se é verdade, que hoje em dia se tiram<br />
fotografias por onde se percebe a cor de certos corpos<br />
celestes, nos quais se vê reinar um colorido diferente<br />
do existente aqui na Terra.<br />
Poder-se-ia imaginar um mundo para o qual o colorido<br />
desse vasinho fosse como a luz do dia para nós, onde<br />
todas as pessoas se tratassem como o vermelho e o branco<br />
se “tratam” aqui, e que no interior de cada pessoa –<br />
não só fisicamente, mas moralmente – a luz brincasse<br />
como brinca neste objeto.<br />
Essas pessoas se compreenderiam e teriam uma espécie<br />
de avidez de se entenderem, uma necessidade de mútuo<br />
entendimento cordial superabundante, por onde se<br />
uniriam umas às outras numa perpétua troca de alegria<br />
com a “surpresa”, na consideração de que a outra existe.<br />
De maneira tal que indo à rua não se encontraria uma<br />
multidão de anônimos, mas de boas surpresas: “Oh,<br />
existe também este, aquele...!” As pessoas, sem se conhecerem,<br />
parariam, se saudariam e se alegrariam neste<br />
diapasão. E haveria, por assim dizer, um perpétuo sorriso<br />
de encantamento, um perene cântico e uma espécie de<br />
perpétua dança das pessoas se encontrando, se falando.<br />
O Céu deve ser assim.<br />
A questão é que existe um mundo de outras coisas que<br />
se prestam a considerações como estas. O objeto aqui<br />
analisado é uma gotícula que ocupou, nas minhas cogitações<br />
de criança, um pequeno espaço. Os jades, as porcelanas<br />
chinesas, os cristais da Boêmia, os esmaltes, os<br />
ônix, as mil coisas preciosas que há, exprimem uma ordem<br />
natural, filosófica, quiçá metafísica. Acenam para<br />
uma superior natureza, mas estão inteiramente dentro<br />
da nossa ordem natural. O sobrenatural está fora e acima.<br />
Não é inimigo; ao contrário, é amigo, bafeja, abençoa,<br />
mas se encontra diretamente acima.<br />
Para considerar como isso se instalaria na ordem sobrenatural,<br />
teríamos que imaginar como um objeto desses<br />
caberia na gruta de Belém, na noite de Natal.<br />
A ordem natural transposta<br />
para a clave sobrenatural<br />
Poder-se-ia fazer uma distinção entre a natureza do<br />
Céu empíreo, que ainda está na linha do natural, e a do<br />
metafísico. Aquilo que em nós é puramente espiritual<br />
enquanto contempla o que nos outros é também espírito;<br />
e, depois, o que em nós é espírito e contempla a Deus,<br />
portanto a essência divina, infinitamente acima de nós.<br />
São coisas inteiramente diferentes.<br />
Mas tudo isso, que seria uma contemplação árdua, difícil,<br />
pode-se resumir e acompanhar muito melhor, considerando<br />
a união das naturezas humana e divina em<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo. N’Ele encontramos todas as<br />
belezas e excelências possíveis da ordem natural transpostas<br />
para a clave sobrenatural.<br />
34
J.P. castro<br />
Assim, poderíamos imaginar as operações da graça<br />
pairando sobre objetos como esse. Por exemplo, os vitrais<br />
da Sainte-Chapelle são naturais, e aquelas cores<br />
são produzidas pela natureza, assim como as desse vaso.<br />
Mas quem vê aqueles vitrais recebe uma graça por onde<br />
percebe um certo sobrenatural análogo àquela natureza.<br />
O sobrenatural tem certo modo de assumir as coisas<br />
por onde estas, sem deixarem de ser elas próprias, elevam-se<br />
tanto que mudam de aspecto.<br />
Por exemplo, a imagem de Nossa Senhora do Miracolo<br />
tem joias até na cintura. Essas joias são pedras naturais,<br />
mas as graças que se recebem na Igreja do Miracolo<br />
são tais, que brilham por assim dizer também a respeito<br />
dessas joias. Essas joias naturais tomam um luzimento<br />
que para nós enriquece o que de sobrenatural a imagem<br />
quer dizer.<br />
Em termos mais precisos, a graça se serve também da<br />
pedra para comunicar algo a nós. Portanto, no presepe,<br />
ela poderia servir-se também deste vasinho para – por<br />
um processo análogo, difícil de imaginar – manifestar<br />
alguma coisa de si mesma a nós.<br />
v<br />
1) Do francês: doçura de viver.<br />
(Extraído de conferência de 10/2/1983)<br />
35
Publicação Mensal Vol. XXI - Nº 249 Dezembro de <strong>2018</strong><br />
Dores e alegrias na<br />
aurora do triunfo
Apóstolo do pulchrum<br />
“Celestialização” da<br />
vida temporal<br />
A verdadeira arte deve buscar o maravilhoso de modo crescente. Sua<br />
missão consiste em retraçar, tanto quanto possível, um ambiente<br />
em torno do homem de maneira a ele ter o caminho indicado e ser<br />
levado para o Céu. A Revolução faz exatamente o contrário.<br />
U<br />
ma nova perspectiva sob a qual se poderia considerar<br />
o tema “graça” seria a seguinte:<br />
Métodos para representar o maravilhoso<br />
Imaginemos que houvesse um lugar onde os Anjos<br />
baixassem visivelmente e estivessem algum tempo ali<br />
louvando a Deus, e depois fossem embora. Por exemplo,<br />
o lugar onde apareceu o Anjo na Cova da Iria. Ali tem<br />
bênção, é indiscutível. Ora, a alma humana foi feita para<br />
sentir coisas desse tipo por toda a eternidade; e o nosso<br />
estado normal de batizados é nos encontrarmos em presença<br />
de realidades que tenham esse quilate. É o nosso<br />
ponto de repouso final.<br />
Isso significa que, tanto quanto possível, a missão da<br />
arte consiste em retraçar esse ambiente em torno do homem,<br />
de maneira a ele ter o caminho indicado e ser levado<br />
para o Céu. Enquanto o papel da Revolução consiste,<br />
evidentemente, no contrário.<br />
Assim, não há maravilhoso que baste para uma arte verdadeira.<br />
Entretanto, é preciso fazer distinção de duas coisas.<br />
Uma é o maravilhoso enquanto representado através<br />
de coisas materiais, por exemplo um quadro qualquer<br />
de uma cena medieval de cruzados partindo para guerra.<br />
E outra seria uma pintura de Anjos, feita por Fra Angelico,<br />
que se serve das coisas materiais para representar o puro<br />
espírito em estado de graça. E onde o tema quase direto<br />
não é a matéria, mas a graça. Aqueles quadros de Fra Angelico<br />
representam indiscutivelmente uma tentativa de servir-se<br />
da tinta para representar o maravilhoso. E representam<br />
mesmo. É diferente de representá-lo através de uma<br />
catedral. Porém, ambos os métodos devem ser utilizados.<br />
A dimensão celeste da Cristandade<br />
Como seria o homem formado completamente num ambiente<br />
assim? Como seriam as relações dele? O conhecimento<br />
disso nos daria ideia da sociedade constituída por ele.<br />
Isso nenhum tratado de Direito Natural diz, porque<br />
de fato escapa a essa matéria. Entretanto, deveria haver<br />
obras que abordassem este assunto às quais um tratado<br />
de Direito Natural fizesse referência. Porque a mera ordem<br />
natural, no que diz respeito ao homem, não existe.<br />
Portanto, ou a Cristandade tem uma dimensão celeste, e<br />
consequentemente muito superior ao que se imagina, ou<br />
ela não atingiu seu fim. Então, a meta é a “celestialização”<br />
da vida temporal, sem deixar de ser temporal.<br />
Pode-se dizer que, até certo ponto, monarquias antigas<br />
realizaram coisas desse gênero de algum modo, muito<br />
palidamente, mas não ousavam quase chegar até lá.<br />
Digamos, por exemplo, o quarto de dormir de Maria Antonieta.<br />
Aqueles tecidos maravilhosos eram feitos para<br />
dar à sociedade terrena o aspecto mais bonito possível,<br />
mas não tinham a intenção de “celestializá-la”. Se houvesse<br />
esta intenção, não sei até onde iria!<br />
A meu ver, ao espetáculo do horror do demônio que<br />
se prepara para vir e se mostrar, nós teríamos que saber<br />
opor o espetáculo admirável de Nossa Senhora que prepara<br />
o seu Reino!<br />
Uma maravilha que ofuscaria Veneza<br />
É indiscutível que Deus fez certas obras, a rogos de<br />
Maria Santíssima, que “celestializam” um tanto mais do<br />
que os homens imaginaram. Veneza é uma delas.<br />
34
Alexander R. Pruss. (CC3.0)<br />
Adoração dos Reis Magos - Galeria<br />
Nacional, Washington, EUA<br />
Poderia ter havido ali um Fra Angelico que jogasse<br />
com os reflexos de água sobre um monumento,<br />
uma escultura, pintura ou um mosaico colocados diretamente<br />
à beira d’água. Vê-se que a ideia não passou<br />
pela cabeça dos artistas. Também os que construíram<br />
aqueles palácios estavam pensando em tudo, menos<br />
nisso.<br />
Por exemplo, um edifício que poderia ter ficado à beira<br />
d’água é a Catedral de Orvieto. Aquilo imaginado em<br />
Veneza, e colocado numa ilha, ficaria maravilhoso! Sobretudo<br />
se houvesse em alguns pontos uns braços de ferro<br />
bonitos, trabalhados, para pôr archotes durante a<br />
noite. Podia ficar muito bonito. Vou dizer mais: tornar-<br />
-se-ia tão bonito que quase ofuscaria Veneza! O resto ficaria<br />
pouca coisa em função disso.<br />
Há certos gêneros de maravilhas que estão para além<br />
da Terra. São paradisíacos.<br />
A arquitetura francesa, por mais bonita que seja, não<br />
fica bem no meio das águas como em Veneza. Lembro-me<br />
da lamentação da Condessa Anna de Noailles 1 : “C’est trop<br />
de beauté! – É beleza demais.”<br />
Está na missão da ordem material criada ser um espelho<br />
da ordem espiritual. Entende-se por aí aquela expressão<br />
de São Paulo, que afirma: “De fato, as perfeições<br />
invisíveis de Deus são percebidas pelo intelecto através<br />
de suas obras, desde a criação do mundo” (cf. Rm 1, 20).<br />
Portanto, de tudo o que nossa alma tem desejo de ver, enquanto<br />
espiritual, se souber ler as coisas da Terra, ela<br />
tira as devidas conclusões. Eis a razão pela qual estou<br />
analisando continuamente todas as coisas. v<br />
(Extraído de conferência de 13/7/1990)<br />
1) Poetisa e romancista francesa (*1876 - †1933).<br />
35