primeiro número na íntegra - Áskesis
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esses assassi<strong>na</strong>tos – que logo seriam seguidos por outros eventos, menos impactantes,<br />
ainda que igualmente sombrios e escandalosos – aos poucos despertariam a curiosidade dos<br />
departamentos de polícia, até chegar, um dia, ao horizonte da Inteligência Federal. mas não<br />
demoraria muito para que estes percebessem o tipo de dificuldade que teriam de enfrentar<br />
para seguir em frente. Uma das mais conhecidas palavras de ordem do gangsta resume bem<br />
o problema: “o Jogo é para ser vendido, não para ser dito”. 23 ainda nos anos 1990, seria criado<br />
em Nova Iorque um setor de investigação exclusivamente dedicado à indústria do RaP. algo<br />
que, muito provavelmente, não viria a ter uma grande importância não fossem dois detalhes.<br />
Primeiro, o fato de ter sido resultado de uma reivindicação insistente por parte de Derrick Parker,<br />
um policial crescido <strong>na</strong>s ruas de um gueto local, notável conhecedor do RaP e de sua<br />
indústria e sinceramente preocupado com a segurança dos próprios envolvidos nessa nova<br />
faceta do “Jogo”. em segundo lugar, o fato de sua investigação ter resultado <strong>na</strong> elaboração de<br />
uma compilação gigantesca com cente<strong>na</strong>s de “fichas” de cidadãos ligados ao hip-hop – “quase”<br />
todos jovens e negros.<br />
No começo dos anos 2000, o vazamento desse material para as mãos de jor<strong>na</strong>listas levaria<br />
a uma situação que exemplifica bem uma diferença fundamental entre as preocupações de<br />
rappers e aquelas mais comuns aos militantes dos movimentos negros. enquanto a tradição<br />
destes conduz normalmente a denúncias públicas e mesmo à abertura de processos judiciais<br />
contra o estado por racismo, a tradição dos <strong>primeiro</strong>s não impele a fazer mais do que abrir um<br />
sorriso de satisfação, como se uma tal empreitada policial ape<strong>na</strong>s comprovasse que, por mais<br />
direitos que tenham e por mais dinheiro que “façam”, o estado nunca os deixaria em paz, sendo<br />
portanto uma perda de tempo e energias lutar para “tor<strong>na</strong>r público” algo que a maioria das<br />
pessoas já sabe que acontece e, no fundo, deseja que aconteça. Para tor<strong>na</strong>r toda essa distância<br />
ainda mais extensa, a intimidade demonstrada por Parker com aqueles que, para imensa<br />
maioria de policiais, já haviam demonstrado ser acima de tudo indignos de qualquer confiança,<br />
tor<strong>na</strong>ria impossível a sua permanência no mundo da investigação pública e o levaria a abrir um<br />
escritório particular para continuar a fazer exatamente o mesmo trabalho. Com uma grande<br />
diferença: ele agora trabalharia para os próprios rappers e com o dinheiro deles24 .<br />
Certamente, a dificuldade que esses saberes demonstram em se misturar e em se dissolver<br />
um no outro favorecerá algum reforço mútuo: uma suposta ineficácia ou, mesmo, uma<br />
inutilidade do esclarecimento multiculturalista que sustenta o movimento negro confirma a importância<br />
de seguir a via gangsta – com sua suposta “violência” e sua suposta adesão bárbara<br />
à economia de mercado – e tor<strong>na</strong> ainda mais urgente afirmar os valores da civilidade, da solidariedade,<br />
da tolerância, do fair play, ou seja, esses que agora são as regras mais fundamentais<br />
do “jogo democrático” 25 . Porém, isso não quer dizer que não possam se misturar – ainda<br />
que seja um tanto difícil dissolver um no outro. o próprio tupac, em sua trajetória e em suas<br />
palavras, é um exemplo maior disso. Naquele banquete de 1992, após se atrever a comparar<br />
harriet tubman e malcolm X aos “traficantes”, ele ainda diria mais algumas palavras antes de<br />
sair curiosamente ovacio<strong>na</strong>do:<br />
23 essa frase foi utilizada como título de álbum por Snoop Dogg, um dos <strong>primeiro</strong>s artistas a serem produzidos pela<br />
Death Row e um dos maiores rappers vivos da atualidade. a frase aparece também esporadicamente em muitas<br />
músicas, inclusive no começo de uma de tupac, Str8 Ballin, do álbum thug life de 1994, quando uma voz distorcida e<br />
grave diz: “I would share a definition of ballin with you white folks. But no... Game is to be sold, not told. Guess so what...<br />
Fuck you!”. De maneira geral, ballin é um termo que resume a ação de “fazer dinheiro”.<br />
24 essa história é muito bem contada por um típico documentário estadunidense (SPIReR, 2006).<br />
25 a democracia como “jogo” é um dos objetos centrais da tese que defendemos recentemente (CaNDottI, 2011).<br />
<strong>Áskesis</strong> | v. 1 | n. 1 | jan/jul - 2012 | p. 126 – 141 | 137