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primeiro número na íntegra - Áskesis

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“Pode sentar-se aqui, senhora” 3 . Dizendo isso, a escrivã aponta para uma cadeira que com-<br />

põe as ferramentas para o registro da queixa: a mesa, o computador e uma impressora matricial<br />

que zunia de quando em vez transformando queixas em crimes. levanto minha cabeça e<br />

consigo ver entrar <strong>na</strong> sala4 uma senhora de cerca de 40 anos, branca de cabelos negros e presos<br />

à nuca, trajando uma saia <strong>na</strong> altura dos joelhos e uma blusa discreta cobrindo o decote. a<br />

senhora, a mim parecendo muito tímida, caminha num ante pé até a cadeira indicada e termi<strong>na</strong><br />

por compor o aparato para o registro de sua queixa. a escrivã, então, pergunta o motivo de<br />

sua visita à DDm <strong>na</strong>quele dia. o motivo é a agressividade do marido, cada vez pior: “Agora ele<br />

está brigando com as crianças também”. a senhora segue dizendo que não aguenta mais e que<br />

aquilo tinha de parar, por isso estava ali. a escrivã a interrompe: “Minha senhora, aqui a gente<br />

vai processar seu marido. É isso que a senhora quer?”. Um momento de silêncio toma a mulher,<br />

findo o qual ela balbucia: “Ele será preso?”; “Ele pode ser preso. Se a senhora quiser se separar<br />

dele não é aqui, é <strong>na</strong> justiça civil. Aqui é justiça crimi<strong>na</strong>l. A gente processa. O que o seu marido<br />

fez contra a senhora que é crime?”. Um novo silêncio faz com que eu pare a leitura do Inquérito<br />

que descansava pacientemente à minha frente para, inevitavelmente, um pouco constrangida,<br />

concentrar-me <strong>na</strong> conversa. a senhora, então, diz que não gostaria de ver o marido preso, mas<br />

somente que ele parasse com as agressões verbais contra a família e arremata: “Vocês não podem<br />

mandar alguém lá em casa para pedir para ele parar de agir assim?”.<br />

Situações como essas não são triviais <strong>na</strong> DDm estudada. Por diversas vezes, acompanhei<br />

em minha pesquisa de campo mulheres acio<strong>na</strong>ndo a DDm no intuito desta se imiscuir em sua<br />

intimidade e resolver seu conflito doméstico e familiar, cujos autores compunham uma gama<br />

considerável de perso<strong>na</strong>gens: maridos, <strong>na</strong>morados, ex-maridos e ex-<strong>na</strong>morados, filhos, irmãos,<br />

parentes próximos, amigos, inclusive, vizinhos. as policiais agiam com certo desconforto, uma<br />

vez que não entendiam parte das <strong>na</strong>rrativas trazidas por essas mulheres como crimes. alguns<br />

conteúdos das queixas eram, para as policiais, matéria da justiça civil e não crimi<strong>na</strong>l: não<br />

pagar a pensão alimentícia, divórcios ou pedidos de separação de corpos, entre outros. além<br />

disso, em algumas delas, as policiais entendiam que o tratamento da questão deveria ser de<br />

responsabilidade da psicologia ou do serviço social, como ofensas mútuas, dificuldade em se<br />

decidir pela separação, desavenças entre pais e filhos, discórdia entre vizinhos, ou situações<br />

trazidas pela polícia militar de “desinteligência” 5 .<br />

Para as vítimas, a busca pela polícia especializada, observada <strong>na</strong> sua relação e seus usos<br />

a partir da DDm, dava-se não com o intuito de processar ou aprisio<strong>na</strong>r seus autores, mas de os<br />

assustarem e, assim, findar ou amenizar o conflito. Seus efeitos podem ser vistos <strong>na</strong> desistên-<br />

3 As ce<strong>na</strong>s etnográficas enunciadas nesse trabalho não são reproduções fiéis das falas das policiais e vítimas, uma vez<br />

que foram transcritas concomitante à sua observação. No entanto, consiste numa readaptação que tenta preservar o<br />

sentido lógico do diálogo estabelecido, assim como, incorporar termos mencio<strong>na</strong>dos pelos interlocutores da pesquisa,<br />

os quais serão colocados entre aspas. Aproveito para agradecer às minhas interlocutoras da Delegacia de Defesa da<br />

Mulher, onde fiz minha pesquisa de campo. Sem o auxílio e presteza dessas pessoas, essa pesquisa não existiria.<br />

4 Esta sala localiza-se estrategicamente próxima à recepção da DDM. Ela é utilizada por escrivãs, delegadas, vítimas,<br />

autores e policiais militares para registros de ocorrência e de flagrante delito, e para a reprodução de fotocópias de<br />

documentos e consulta de Boletins de Ocorrência já registrados anteriormente e que esperam a representação da<br />

vítima ou a oitiva das partes envolvidas em crimes. Ali existem duas mesas, com cadeiras e computadores, onde as<br />

queixas são registradas, concomitantemente. Também foi nessa sala que a delegada disponibilizou gentilmente uma<br />

mesa para que eu pudesse consultar os Inquéritos Policiais (IPs), tendo em vista a falta de outro espaço para isso. Foi<br />

nessa sala que passei boa parte da pesquisa de campo lendo IPs e, por conseqüência, acompanhando a roti<strong>na</strong> da<br />

prática policial nessa delegacia.<br />

5 Este termo não consta no Código de Processo Pe<strong>na</strong>l (1941), nem no Código Pe<strong>na</strong>l (1940). Trata-se de um<br />

termo utilizado largamente pela polícia militar e incorporado pela polícia civil no histórico que compõe o registro do<br />

Boletim de Ocorrência. No dicionário Aurélio on line, desinteligência refere-se a: “Falta de acordo, de compreensão;<br />

desentendimento” Disponível em: . Acesso em:<br />

<strong>Áskesis</strong> | v. 1 | n. 1 | jan/jul - 2012 | p. 47 – 62 | 48

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